Language of document : ECLI:EU:C:2019:825

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

3 de outubro de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Artigo 17.o, n.o 1 — Competência em matéria de contratos de consumo — Conceito de “consumidor” — Pessoa singular que efetua operações no mercado internacional de câmbio por intermédio de uma sociedade de corretagem — Regulamento (CE) n.o 593/2008 (Roma I) — Diretiva 2004/39/CE — Conceito de “cliente não profissional”»

No processo C‑208/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Nejvyšší soud (Supremo Tribunal, República Checa), por decisão de 13 de março de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de março de 2018, no processo

Jana Petruchová

contra

FIBO Group Holdings Limited,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, C. Toader, A. Rosas, L. Bay Larsen e M. Safjan (relator), juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: M. Aleksejev, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 31 de janeiro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de J. Petruchová, por M. Hostinský, advokát,

–        em representação da FIBO Group Holdings Limited, por J. Komárek, advokát,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Šimerdová e M. Heller, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de abril de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Jana Petruchová à FIBO Group Holdings Limited (a seguir «FIBO») a respeito da exigência de pagamento da diferença entre o lucro realizado por J. Petruchová e o lucro que teria obtido, se a ordem de compra de uma moeda por si dada tivesse sido executada pela FIBO sem demora.

 Quadro jurídico

 Regulamento n.o 1215/2012

3        Nos termos dos considerandos 15, 16 e 18 do Regulamento n.o 1215/2012:

«(15)      As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. […]

(16)      O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. […]

[…]

(18)      No respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral.»

4        A secção 4 do capítulo II deste regulamento, sob a epígrafe «Competência em matéria de contratos de consumo», inclui os seus artigos 17.o a 19.o O artigo 17.o, n.os 1 e 3, do referido regulamento enuncia:

«1. Em matéria de contrato celebrado por uma pessoa, o consumidor, para finalidade que possa ser considerada estranha à sua atividade comercial ou profissional, a competência é determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 6.o e no artigo 7.o, ponto 5, se se tratar de:

a)      Contrato de compra e venda, a prestações, de bens móveis corpóreos;

b)      Contrato de empréstimo reembolsável em prestações, ou outra forma de crédito concedido para financiamento da venda de tais bens; ou

c)      Em todos os outros casos, contrato celebrado com uma pessoa com atividade comercial ou profissional no Estado‑Membro do domicílio do consumidor ou que dirija essa atividade, por quaisquer meios, a esse Estado‑Membro ou a vários Estados incluindo esse Estado‑Membro, desde que o contrato seja abrangido por essa atividade.

[…]

3. A presente secção não se aplica ao contrato de transporte, com exceção dos contratos de fornecimento de uma combinação de viagem e alojamento por um preço global.»

5        O artigo 18.o, n.o 1, do mesmo regulamento dispõe:

«O consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte.»

6        O artigo 19.o do Regulamento n.o 1215/2012 tem a seguinte redação:

«As partes só podem derrogar ao disposto na presente secção por acordos que:

1.      Sejam posteriores ao surgimento do litígio;

2.      Permitam ao consumidor recorrer a tribunais que não sejam os indicados na presente secção; ou

3.      Sejam celebrados entre o consumidor e o seu cocontratante, ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado‑Membro, e atribuam competência aos tribunais desse Estado‑Membro, salvo se a lei desse Estado‑Membro não permitir tais acordos.»

7        O artigo 25.o, n.o 4, deste regulamento prevê:

«Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.o, 19.o ou 23.o, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24.o»

 Regulamento Roma I

8        Nos termos dos considerandos 7, 28 e 30 do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008, L 177, p. 6, a seguir «Regulamento Roma I»):

«(7)      O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [(JO 2001, L 12, p. 1)] (Bruxelas I) e com o Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, sobre a lei aplicável às obrigações extracontratuais (“Roma II”) [(JO 2007, L 199, p. 40)].

[…]

(28)      Importa assegurar que os direitos e as obrigações que constituem um instrumento financeiro não sejam abrangidos pela regra geral aplicável aos contratos celebrados por consumidores, visto tal poder conduzir à aplicabilidade de leis diferentes a cada um dos instrumentos emitidos, o que alteraria a sua natureza e impediria as suas negociação e oferta como bens fungíveis. […]

(30)      Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por instrumentos financeiros e valores mobiliários os instrumentos referidos no artigo 4.o da Diretiva 2004/39/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa aos mercados de instrumentos financeiros, que altera as Diretivas 85/611/CEE e 93/6/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 93/22/CEE do Conselho (JO 2004, L 145, p. 1)].»

9        O artigo 1.o do Regulamento Roma I, intitulado «Âmbito de aplicação material», dispõe no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

«O presente regulamento é aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis.»

10      O artigo 6.o deste regulamento, sob a epígrafe «Contratos celebrados por consumidores», dispõe:

«1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar‑se estranha à sua atividade comercial ou profissional (“o consumidor”), com outra pessoa que aja no quadro das suas atividades comerciais ou profissionais (“o profissional’), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profissional:

a)      Exerça as suas atividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou

b)      Por qualquer meio, dirija essas atividades para este ou vários países, incluindo aquele país,

e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas atividades.

[…]

4. Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes:

[…]

d)      Direitos e obrigações que constituam um instrumento financeiro e direitos e obrigações que constituam os termos e as condições que regulam a emissão ou a oferta ao público e as ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários, e a subscrição e o resgate de partes de organismos de investimento coletivo na medida em que estas atividades não constituam a prestação de um serviço financeiro;

[…]»

 Diretiva 2004/39

11      O artigo 4.o da Diretiva 2004/39, sob a epígrafe «Definições», dispunha, no seu n.o 1:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

10)      “Cliente”: qualquer pessoa singular ou coletiva a quem uma empresa de investimento presta serviços de investimento e/ou serviços auxiliares;

11)      “Cliente profissional”: um cliente que satisfaz os critérios estabelecidos no Anexo II;

12)      “Cliente não profissional”: um cliente que não é um cliente profissional;

[…]

17)      “Instrumento financeiro”: qualquer dos instrumentos especificados na secção C do anexo I;

[…]»

12      Sob o título «Instrumentos financeiros», a secção C do anexo I da Diretiva 2004/39 expunha a lista dos instrumentos financeiros visados por essa diretiva, entre os quais figuravam, no ponto 9 dessa secção, os “contratos financeiros por diferenças” (financial contracts for diferences)».

13      Sob a epígrafe «Categorias de clientes que são considerados profissionais», a secção I do anexo II da Diretiva 2004/39 precisava:

14      «Consideram‑se profissionais em relação a todos os serviços e atividades de investimento e instrumentos financeiros, para os efeitos da presente diretiva:

1.      As entidades que necessitam de ser autorizadas ou regulamentadas para operar nos mercados financeiros. A lista seguinte deve ser considerada como incluindo todas as entidades autorizadas que exercem as atividades características das entidades mencionadas […]:

a)      Instituições de crédito

b)      Empresas de investimento

c)      Outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas

[…]

2.      Grandes empresas que satisfaçam dois dos seguintes critérios de dimensão a nível individual:

—      Total do balanço:      20 000 000 de euros

—      Volume de negócios líquido:      40 000 000 de euros

—      Fundos próprios:      2 000 000 de euros.

3.      Governos nacionais e regionais, organismos públicos que administram a dívida pública, bancos centrais, instituições internacionais e supranacionais como o Banco Mundial, o [Fundo Monetário Internacional (FMI)], o [Banco Central Europeu (BCE)], o [Banco Europeu de Investimento (BEI)] e outras organizações internacionais semelhantes.

4.      Outros investidores institucionais […]

As entidades acima referidas são consideradas profissionais. Devem, no entanto, ser autorizadas a solicitar um tratamento como não profissionais, podendo as empresas de investimento acordar em proporcionar‑lhes um nível de proteção mais elevado. Caso o cliente de uma empresa de investimento seja uma empresa acima referida, a empresa de investimento deve informá‑lo, antes da prestação de qualquer serviço, de que, com base nas informações de que dispõe, o considera um cliente profissional e que será tratado como tal, salvo se a empresa de investimento e o cliente acordarem em contrário. […]

[…]»

15      Sob o título «Clientes que podem ser tratados como profissionais mediante pedido», a secção II do anexo II desta diretiva continha um ponto II.1, intitulado «Critérios de identificação». Este ponto previa:

«[…]

As empresas de investimento devem […] ser autorizadas a tratar qualquer dos clientes acima referidos como clientes profissionais, desde que sejam respeitados os critérios e procedimentos relevantes adiante referidos. Contudo, não se deve presumir que estes clientes possuem conhecimentos e experiência do mercado comparáveis aos das categorias enumeradas na secção I.

Qualquer renúncia à proteção […] só será considerada válida [com] uma avaliação adequada […]

[…]

Para os efeitos da referida avaliação, devem ser respeitados, no mínimo, dois dos seguintes critérios:

—      o cliente efetuou transações, com um volume significativo, no mercado relevante, com uma frequência média de 10 transações por trimestre durante os últimos quatro trimestres,

—      a dimensão da carteira de instrumentos financeiros do cliente, definida como incluindo depósitos em numerário e instrumentos financeiros, excede 500 000 EUR,

—      o cliente trabalha ou trabalhou no setor financeiro durante pelo menos um ano num cargo profissional que exige conhecimento das transações ou serviços previstos.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

16      J. Petruchová reside no território da República Checa. A FIBO é uma sociedade de corretagem de direito cipriota, que opera na qualidade de profissional no domínio dos valores mobiliários.

17      Em 2 de outubro de 2014, J. Petruchová celebrou, à distância, com a FIBO um contrato‑quadro (a seguir “contrato‑quadro”), cujo objetivo era permitir‑lhe efetuar operações no mercado internacional de câmbio FOREX (Foreign Exchange) (a seguir “mercado FOREX”), dando ordens de compra e venda da moeda base, que a FIBO devia executar através da sua plataforma de negociação on‑line.

18      Para o efeito, o contrato‑quadro previa a celebração, entre J. Petruchová e a FIBO, de contratos individuais, qualificados de contratos financeiros por diferenças (a seguir “CFD”), que são instrumentos financeiros cujo objetivo é obter lucros com a diferença entre as taxas de câmbio aplicáveis, respetivamente, à compra e venda da moeda base em relação à moeda de cotação.

19      Embora seja possível efetuar transações no mercado FOREX com fundos próprios, J. Petruchová recorreu à possibilidade de operar através de «lotes», tendo um lote o valor de 100 000 dólares dos Estados Unidos (USD) (cerca de 88 000 euros), utilizando o efeito de alavancagem. Este mecanismo permitiu‑lhe operar com um volume de fundos superior ao que tinha à sua disposição. Assim, quando abria a sua posição comprando a moeda base, contraía um empréstimo junto da FIBO, que reembolsava fechando a sua posição através da venda da moeda base.

20      O artigo 30.o do contrato‑quadro previa um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais cipriotas.

21      Em 3 de outubro de 2014, J. Petruchová celebrou um CFD com a FIBO, nos termos do qual deu uma ordem de compra de 35 lotes a uma taxa de câmbio fixada em relação ao iene japonês (JPY).

22      Devido ao processamento de uma longa série de ordens no sistema de negociação da FIBO, a ordem dada por J. Petruchová foi por aquela executada com um atraso de 16 segundos, durante os quais ocorreu uma flutuação da taxa de câmbio USD/JPY no mercado FOREX. Consequentemente, a compra, pela FIBO, do montante de dólares dos Estados Unidos ordenada por J. Petruchová foi feita a uma taxa de câmbio USD/JPY diferente da que J. Petruchová tinha aceite ao confirmar a sua ordem de compra.

23      Segundo J. Petruchová, se a sua ordem de compra da moeda base tivesse sido executada a tempo, e não com atraso, teria obtido o triplo do lucro.

24      Nestas circunstâncias, em 12 de outubro de 2015, J. Petruchová intentou uma ação no Krajský soud v Ostravě (Tribunal Regional de Ostrava, República Checa), alegando um enriquecimento sem causa da FIBO.

25      Como resulta da decisão de reenvio, J. Petruchová, considerando‑se um «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, intentou uma ação no tribunal do seu local de residência. Do mesmo modo, considerava que, em conformidade com o artigo 19.o, ponto 1, e com o artigo 25.o, n.o 4, desse regulamento, um pacto atributivo de jurisdição celebrado com um consumidor antes do surgimento do litígio era ineficaz.

26      Por despacho de 29 de setembro de 2016, o Krajský soud v Ostravě (Tribunal Regional de Ostrava) julgou improcedente a ação de J. Petruchová. Este tribunal concluiu que o pacto atributivo de jurisdição constante do artigo 30.o do contrato‑quadro era válido e que, por conseguinte, não dispunha de competência internacional para se pronunciar sobre o litígio perante si pendente. Segundo o referido órgão jurisdicional, J. Petruchová não tinha a qualidade de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, uma vez que não tinha celebrado o CFD em causa para satisfazer as suas necessidades pessoais, dispunha dos conhecimentos necessários e da experiência exigida para celebrar CFD, tinha agido com a finalidade de retirar um benefício e tinha sido alertada para os riscos relativos aos CFD e para o caráter inadequado desses contratos para os «clientes não profissionais», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39. A título subsidiário, o Krajský soud v Ostravě (Tribunal Regional de Ostrava) considerou que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 devia ser interpretado da mesma maneira que o artigo 6.o do Regulamento Roma I, a fim de manter a uniformidade dos regimes jurídicos relativos às regras de conflito das leis e à determinação da competência internacional em matéria de contratos celebrados pelos consumidores. Ora, os instrumentos financeiros estão excluídos do âmbito de aplicação desta última disposição.

27      Por despacho de 17 de janeiro de 2017, o Vrchní soud v Olomouci (Tribunal Superior de Olomouc, República Checa) confirmou o despacho do Krajský soud v Ostravě (Tribunal Regional de Ostrava).

28      Nestas circunstâncias, J. Petruchová interpôs recurso do primeiro despacho para o órgão jurisdicional de reenvio, o Nejvyšší soud (Supremo Tribunal, República Checa).

29      O órgão jurisdicional de reenvio observa que se J. Petruchová fosse considerada um consumidor, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, o artigo 30.o do contrato‑quadro que reconhece a competência exclusiva dos tribunais cipriotas seria desprovido de efeitos.

30      Este órgão jurisdicional recorda a este respeito que, nos termos do artigo 25.o, n.o 4, desse regulamento, os pactos atributivos de jurisdição não produzem efeitos se forem contrários ao disposto no artigo 19.o do referido regulamento. Este último artigo apenas permite derrogações às disposições da secção 4 do seu capítulo II, que regem a competência em matéria de contratos de consumo, por acordos que sejam posteriores ao surgimento do litígio, acordos que permitam ao consumidor recorrer a tribunais que não sejam os indicados na secção 4, ou acordos que sejam celebrados entre o consumidor e o seu cocontratante, ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado‑Membro, e que atribuam competência aos tribunais desse Estado‑Membro.

31      Ora, segundo o órgão jurisdicional nacional, o artigo 30.o do contrato‑quadro não preenche nenhum desses requisitos, uma vez que, em primeiro lugar, o contrato‑quadro foi celebrado antes do surgimento do litígio, em segundo lugar, o acordo atributivo de jurisdição priva J. Petruchová do direito previsto no artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 de intentar uma ação nos tribunais do Estado‑Membro em que tem domicílio e, em terceiro lugar, as partes no processo tinham, no momento da celebração do contrato‑quadro, o seu domicílio e a sua sede em diferentes Estados‑Membros.

32      É neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a interpretação do conceito de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, e sobre a questão de saber se uma pessoa na situação de J. Petruchová pode ser qualificada como tal. A este respeito, este órgão jurisdicional considera que os tribunais checos inferiores interpretaram este conceito de forma errada.

33      Com efeito, em primeiro lugar, na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, um «cliente não profissional», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39, não é necessariamente um «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, na medida em que estes dois atos de direito derivado têm um alcance diferente e que um «cliente não profissional», na aceção do primeiro destes atos, pode ser um profissional na aceção do segundo.

34      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que mesmo que seja necessário assegurar a manutenção da uniformidade dos regimes jurídicos relativos às regras de conflitos de leis e à determinação da competência internacional em matéria de contratos celebrados por consumidores, o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 não deve ser interpretado da mesma forma que o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Roma I, uma vez que esses regulamentos não têm a mesma finalidade, sendo que o primeiro regula as questões processuais e o segundo trata da problemática dos conflitos de leis a fim de determinar o direito material aplicável. Assim, as disposições da secção 4 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012 são aplicáveis aos contratos relativos aos instrumentos financeiros e de investimento, uma vez que apenas alguns contratos de transporte estão excluídos do âmbito de aplicação dessa secção.

35      A este respeito, decorre igualmente do acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37), que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 não restringe a proteção dos consumidores em matéria de instrumentos financeiros e de investimento.

36      Por último, em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio considera irrelevante, para efeitos da qualificação de «consumidor» na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, a circunstância de as operações efetuadas serem de um montante elevado, de a pessoa em causa dispor de conhecimentos e de uma experiência especiais ou ainda de o contrato em causa ser complexo, atípico ou apresentar riscos de que a pessoa foi informada.

37      Nestas circunstâncias, o Nejvyšší soud (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 1215/2012] ser interpretado no sentido de que uma pessoa, como a recorrente no processo principal, que opera no [mercado FOREX] com base em ordens suas que são dadas de forma ativa, embora por intermédio de uma terceira pessoa que é um profissional que opera nesse mercado, deve ser qualificada de consumidor na aceção da referida disposição?»

 Quanto à questão prejudicial

38      Com a sua pergunta, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa singular que, nos termos de um contrato como o CFD, celebrado com uma sociedade de corretagem, efetua operações no mercado FOREX através desse intermediário pode ser qualificada de «consumidor» na aceção dessa disposição, e se são pertinentes para efeitos dessa qualificação fatores como o valor das operações efetuadas ao abrigo desses contratos, a dimensão dos riscos de perdas financeiras associados à sua conclusão, os eventuais conhecimentos ou experiência da referida pessoa no domínio dos instrumentos financeiros ou o seu comportamento ativo no âmbito de tais operações, bem como o facto de os instrumentos financeiros não serem abrangidos pelo artigo 6.o do Regulamento Roma I ou de essa pessoa ser um «cliente não profissional» na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39.

39      A título liminar importa recordar que, na medida em que o Regulamento n.o 1215/2012 revogou e substituiu o Regulamento n.o 44/2001, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições deste último regulamento é igualmente válida para o Regulamento n.o 1215/2012, quando as disposições destes dois instrumentos de direito da União possam ser qualificadas de equivalentes (Acórdão de 15 de novembro de 2018, Kuhn, C‑308/17, EU:C:2018:911, n.o 31 e jurisprudência referida). É o caso, nomeadamente, dos artigos 15.o a 17.o do Regulamento n.o 44/2001 e dos artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012.

40      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 é aplicável no caso de estarem preenchidos três requisitos, isto é, em primeiro lugar, existir uma parte contratual, na qualidade de consumidor, que atue num âmbito que possa ser considerado estranho à sua atividade comercial ou profissional; em segundo lugar, ter sido efetivamente celebrado um contrato entre esse consumidor e um profissional; e, em terceiro lugar, esse contrato integrar uma das categorias referidas no dito artigo 17.o, n.o 1, alíneas a) a c). Estes requisitos devem estar cumulativamente preenchidos, pelo que, se não se verificar um dos três requisitos, a competência não pode ser determinada segundo as regras relativas aos contratos celebrados por consumidores (v., neste sentido, acórdão de 23 de dezembro de 2015, Hobohm, C‑297/14, EU:C:2015:844, n.o 24 e jurisprudência referida).

41      Como resulta da decisão de reenvio, a questão submetida ao Tribunal de Justiça no presente processo diz respeito ao primeiro destes três requisitos, ou seja, a qualidade de «consumidor» de uma parte contratante.

42      A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «consumidor» na aceção dos artigos 17.o e 18.o do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado de forma restritiva, atendendo‑se à posição dessa pessoa num contrato determinado, em conjugação com a natureza e finalidade deste, e não à situação subjetiva dessa mesma pessoa, pois uma única e mesma pessoa pode ser considerada consumidor no âmbito de determinadas operações e operador económico no âmbito de outras (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 29 e jurisprudência referida).

43      O Tribunal de Justiça concluiu daí que só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem comercial ou profissional, unicamente com o objetivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo, ficam sob a alçada do regime especial previsto pelo referido regulamento para proteção do consumidor enquanto parte considerada mais fraca (Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 30 e jurisprudência referida).

44      Esta proteção especial não é justificada no caso de contratos que têm como objetivo uma atividade comercial ou profissional, mesmo que prevista para o futuro, dado que o caráter futuro de uma atividade nada retira ao seu caráter comercial ou profissional (Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Milivojević, C‑630/17, EU:C:2019:123, n.o 89 e jurisprudência referida).

45      Daqui se conclui que as regras de competência específicas dos artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012, em princípio, só são aplicáveis nos casos em que o contrato foi celebrado entre as partes para uma utilização não comercial ou profissional do bem ou serviço em causa (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 31 e jurisprudência referida).

46      É à luz destas observações que há que examinar se uma pessoa que, nos termos de um contrato como o CFD celebrado com uma sociedade de corretagem, efetue operações no mercado FOREX através dessa sociedade pode ser qualificada de «consumidor» na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

47      A este respeito, note‑se que nenhum elemento da decisão de reenvio ou dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe indica que a celebração do contrato‑quadro ou do CFD em causa fazia parte da atividade profissional de J. Petruchová. Do mesmo modo, na audiência de alegações, J. Petruchová declarou, sem ser contraditada, que no momento da celebração destes contratos era estudante universitária e trabalhava a tempo parcial. Segundo as suas afirmações, celebrou os referidos contratos fora da sua atividade profissional.

48      Todavia, como resulta da decisão de reenvio, o Tribunal de Justiça é interrogado sobre a questão de saber se, numa situação como a descrita nos n.os 45 e 46 do presente acórdão, pode ser recusada a uma pessoa singular a qualidade de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 devido a fatores como os riscos associados à conclusão de contratos como os CFD, o valor das transações, os eventuais conhecimentos ou experiência da referida pessoa no domínio dos instrumentos financeiros ou o seu comportamento ativo no mercado FOREX.

49      A este respeito, note‑se, em primeiro lugar, que o Tribunal já decidiu que o âmbito de aplicação das disposições da secção 4 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012 que regem a competência em matéria de contratos de consumo se estende a todos os tipos de contratos, exceto o referido no artigo 17.o, n.o 3, da referida convenção, ou seja, o contrato de transporte, com exceção do contrato de fornecimento de uma combinação de viagem e alojamento por um preço global (v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2019, Pillar Securitisation, C‑694/17, EU:C:2019:345, n.o 42).

50      De onde resulta que instrumentos financeiros como os CFD são abrangidos pelo âmbito de aplicação dos artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012.

51      Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça precisou também que o âmbito de aplicação das disposições da mesma secção 4 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012 não está limitado a montantes particulares (v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2019, Pillar Securitisation, C‑694/17, EU:C:2019:345, n.o 42).

52      Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 51 das suas conclusões, se os artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012 fossem interpretados no sentido de que não são aplicáveis a investimentos financeiros significativos, o investidor não estaria em condições, uma vez que este regulamento não fixa um limiar acima do qual o montante de uma operação é considerado significativo, de saber se beneficiará da proteção concedida por estas disposições, o que seria contrário à vontade do legislador da União, expressa no considerando 15 do referido regulamento, segundo a qual as regras de competência devem apresentar um elevado grau de previsibilidade.

53      Ora, o Regulamento n.o 1215/2012 prossegue um objetivo de segurança jurídica que consiste em reforçar a proteção jurídica das pessoas estabelecidas na União Europeia, permitindo simultaneamente ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele em que pode ser demandado (Acórdão de 4 de outubro de 2018, Feniks, C‑337/17, EU:C:2018:805, n.o 34 e jurisprudência referida).

54      De onde decorre, como corolário do que precede e, nomeadamente, do n.o 51 do presente acórdão, que a circunstância, salientada na decisão de reenvio, de a conclusão dos CFD ser suscetível de envolver, para um investidor, riscos significativos em termos de perdas financeiras é, enquanto tal, irrelevante para a sua qualificação como «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, desse regulamento.

55      Em terceiro lugar, quanto à questão de saber se os conhecimentos e experiência de uma pessoa no domínio abrangido pelo contrato que celebrou, como aqueles de que dispõe J. Petruchová relativamente aos CFD no processo principal, são suscetíveis de a privar da qualidade de «consumidor» na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, importa observar que, para que uma pessoa possa ver reconhecida essa qualidade, basta que celebre um contrato para uma utilização estranha à sua atividade profissional. A este respeito, a referida disposição não impõe requisitos adicionais.

56      Com efeito, na medida em que o conceito de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, é definido por oposição ao de «operador económico», tem um caráter objetivo e é independente dos conhecimentos e das informações de que a pessoa em causa realmente dispõe (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de setembro de 2015, Costea, C‑110/14, EU:C:2015:538, n.o 21, e de 25 de janeiro de 20018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 39).

57      A este respeito, o facto de considerar que a qualidade de consumidor de um cocontratante pode depender dos conhecimentos e informações que este possui num determinado domínio, e não da circunstância de o contrato que celebrou ter ou não por objetivo a satisfação das suas necessidades pessoais equivaleria a remeter para a situação subjetiva desse cocontratante. Ora, segundo a jurisprudência referida no n.o 41 do presente acórdão, a qualidade de «consumidor» de uma pessoa deve ser analisada unicamente à luz da posição desta última num determinado contrato, tendo em conta a sua natureza e finalidade.

58      Em quarto lugar, deve precisar‑se que o comportamento ativo, no mercado FOREX, de uma pessoa que dá ordens através de uma sociedade de corretagem e que permanece, assim, responsável pelo rendimento dos seus investimentos, é, enquanto tal, irrelevante para a qualificação da referida pessoa como «consumidor» na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

59      Com efeito, como foi salientado pelo advogado‑geral no n.o 53 das suas conclusões, o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 não exige que o consumidor atue, no âmbito de um contrato celebrado para uma utilização estranha à sua atividade comercial ou profissional, de uma determinada forma.

60      Por conseguinte, embora incumba ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, no âmbito das suas relações contratuais com a FIBO, J. Petruchová atuou efetivamente fora e independentemente de qualquer atividade de ordem profissional, e daí retirar as consequências no que respeita à sua qualidade de «consumidor», há que precisar que, para efeitos dessa qualificação, fatores como o valor das operações efetuadas ao abrigo de contratos como os CFD, a dimensão dos riscos de perdas financeiras associados à conclusão de tais contratos, os eventuais conhecimentos ou experiência de J. Petruchová no domínio dos instrumentos financeiros ou ainda o seu comportamento ativo no âmbito de tais operações são, enquanto tais, em princípio irrelevantes.

61      Dito isto, é ainda necessário examinar, para efeitos da qualificação de uma pessoa como «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, por um lado, a relevância da exclusão dos instrumentos financeiros do âmbito de aplicação do artigo 6.o do Regulamento Roma I e, por outro, a relevância da qualidade de «cliente não profissional» na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39 dessa pessoa.

62      Com efeito, para garantir o respeito dos objetivos prosseguidos pelo legislador da União no domínio dos contratos celebrados pelos consumidores e a coerência do direito da União, o conceito de «consumidor» contido noutras regulamentações do direito da União pode revelar‑se pertinente (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 28).

63      Assim, importa observar, em primeiro lugar, que ainda que o conceito de «consumidor» seja definido no artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Roma I em termos quase idênticos aos do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, na medida em que esta primeira disposição prevê que se aplica aos «contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar‑se estranha à sua atividade comercial ou profissional», o artigo 6.o, n.o 4, alínea d), do Regulamento Roma I, lido à luz dos seus considerandos 28 e 30, exclui das regras aplicáveis aos contratos celebrados por consumidores, previstas no artigo 6.o, n.os 1 e 2 desse regulamento, os «[d]ireitos e obrigações que constituam um instrumento financeiro». Ora, como resulta do considerando 30 do referido regulamento, os instrumentos financeiros para efeitos do Regulamento Roma I são os referidos no artigo 4.o da Diretiva 2004/39, entre os quais figuram os CFD, tal como previsto no ponto 9 da secção C do anexo I dessa diretiva.

64      Embora, na verdade, resulte do considerando 7 do Regulamento Roma I que o âmbito de aplicação material e as disposições desse regulamento devem ser coerentes em relação ao Regulamento n.o 44/2001, que foi substituído pelo Regulamento n.o 1215/2012, daqui não decorre, todavia, que as disposições do Regulamento n.o 1215/2012 devam ser interpretadas à luz das do Regulamento Roma I. Em nenhum caso a coerência desejada pelo legislador da União pode conduzir a que se dê às disposições do Regulamento n.o 1215/2012 uma interpretação estranha ao seu sistema e aos seus objetivos (v., neste sentido, Acórdão de 16 de janeiro de 2014, Kainz, C‑45/13, EU:C:2014:7, n.o 20).

65      Ora, há que reconhecer que o Regulamento Roma I e o Regulamento n.o 1215/2012 têm objetivos diferentes. Enquanto o Regulamento Roma I é aplicável, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis, para determinar o direito material aplicável, o Regulamento n.o 1215/2012 visa fixar as regras que permitem determinar a jurisdição competente para decidir sobre um litígio em matéria civil e comercial, nomeadamente sobre um contrato celebrado entre um profissional ou um comerciante e uma pessoa que atua com fins alheios à sua atividade profissional, de forma a proteger, nesse caso, esta última (v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2019, Pillar Securitisation, C‑694/17, EU:C:2019:345, n.o 42).

66      A este respeito, na medida em que, tal como referido nos n.os 48 e 49 do presente acórdão, instrumentos financeiros como os CFD são abrangidos pelo âmbito de aplicação dos artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012, o facto de recusar ao consumidor uma proteção processual pelo simples facto de essa proteção não lhe ser fornecida em matéria de conflitos de leis seria contrário aos objetivos desse regulamento.

67      Consequentemente, a exclusão dos instrumentos financeiros do âmbito de aplicação do artigo 6.o do Regulamento Roma I é irrelevante para a qualificação de uma pessoa como «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

68      Em segundo lugar, no que diz respeito à relevância, para efeitos desta qualificação, do facto de esta pessoa ser um «cliente não profissional», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39, importa recordar que esta disposição define o «cliente não profissional» como sendo «um cliente que não é um cliente profissional». Nos termos do ponto 11 desse artigo 4.o, n.o 1, um cliente profissional é «um cliente que satisfaz os critérios estabelecidos no anexo II» da referida diretiva.

69      De acordo com a secção I do anexo II da Diretiva 2004/39, para os efeitos dessa diretiva consideram‑se profissionais em relação a todos os serviços e atividades de investimento e instrumentos financeiros, em primeiro lugar, as entidades que necessitam de ser autorizadas ou regulamentadas para operar nos mercados financeiros, como as instituições de crédito ou as empresas de investimento, em segundo lugar, as grandes empresas que satisfaçam dois dos três critérios, ou seja, um balanço total de 20 000 000 de euros, um volume de negócios líquido de 40 000 000 de euros e fundos próprios que atinjam os 2 000 000 de euros, em terceiro lugar, entidades ou instituições públicas como os governos nacionais, os bancos centrais ou o Banco Mundial e, em quarto lugar, outros investidores institucionais. As entidades incluídas numa destas quatro categorias podem, no entanto, solicitar ser tratadas como não profissionais.

70      Em aplicação da secção II do anexo II da Diretiva 2004/39, os clientes, para além dos referidos na secção I dessa diretiva, podem, a seu pedido, ser tratados como profissionais. Para poder ser tratado como um profissional o cliente, relativamente ao qual não se pode presumir que possui conhecimentos e experiência comparáveis aos dos clientes profissionais, deve ser objeto de uma avaliação prévia adequada. A atribuição da qualidade de cliente profissional pressupõe assim que se verificou que eram respeitados, no mínimo, dois dos três critérios entre os quais figuram, em primeiro lugar, o facto de ter efetuado transações, com um volume significativo, com uma frequência média de 10 transações por trimestre durante os últimos quatro trimestres, em segundo lugar, o facto de a dimensão da sua carteira de instrumentos financeiros exceder 500 000 EUR ou, em terceiro lugar, o facto de ter ocupado um cargo profissional, durante pelo menos um ano, no setor financeiro.

71      Dito isto, deve notar‑se que o «cliente», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 10, da Diretiva 2004/39, independentemente da sua qualidade de «cliente profissional» ou de «cliente não profissional», é entendido como «qualquer pessoa singular ou coletiva a quem uma empresa de investimento presta serviços de investimento e/ou serviços auxiliares».

72      Assim sendo, diferentemente do «consumidor», que, como resulta do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, é uma pessoa singular, o «cliente não profissional», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39 pode também ser uma pessoa coletiva.

73      Em particular, tal como referido pelo advogado‑geral no ponto 85 das suas conclusões, os clientes não profissionais podem ser entidades jurídicas que não preencheram dois dos três critérios que lhes permitiam ser equiparadas a clientes profissionais e ser tratadas como tais em aplicação das disposições da secção II do anexo II da Diretiva 2004/39, ou entidades jurídicas que, embora consideradas clientes profissionais, requereram tratamento como não profissionais nos termos da secção I do anexo II da Diretiva 2004/39.

74      Daqui também decorre que a qualificação de «cliente não profissional», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, pontos 10 e 12, da Diretiva 2004/39, não está sujeita à ausência de atividade comercial da pessoa em causa, ao contrário da qualificação de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

75      Além disso, a qualificação de «consumidor» e a de «cliente não profissional», previstas nestas disposições, prosseguem objetivos diferentes.

76      Com efeito, a primeira destas qualificações confere, como resulta do n.o 64 do presente acórdão, uma proteção na determinação do tribunal competente para decidir sobre um litígio em matéria civil e comercial, enquanto a segunda visa proteger, como resulta das disposições da secção I do anexo II da Diretiva 2004/39, um investidor, nomeadamente no que respeita ao alcance das informações que a empresa de investimento é obrigada a fornecer‑lhe.

77      Consequentemente, embora não se possa excluir que um «cliente não profissional», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39, possa ser qualificado de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, se for uma pessoa singular que atue fora de qualquer atividade comercial, não existe uma correspondência perfeita entre estes dois conceitos, tendo em conta as diferenças quanto ao seu alcance e aos objetivos prosseguidos pelas disposições que os preveem.

78      Daqui decorre que a qualidade de «cliente não profissional» de uma pessoa, na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39, é, enquanto tal, em princípio, irrelevante para efeitos da sua qualificação como «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

79      Tendo em conta as considerações expostas, importa responder à questão submetida que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa singular que, nos termos de um contrato como o CFD, celebrado com uma sociedade de corretagem, efetue operações no mercado FOREX por intermédio dessa sociedade, deve ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa disposição, se a celebração desse contrato não for abrangida pela atividade profissional dessa pessoa, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Para efeitos desta qualificação, por um lado, não têm, enquanto tais, em princípio, pertinência, fatores como o valor das operações efetuadas ao abrigo de contratos como os CFD, a dimensão dos riscos de perdas financeiras associados à conclusão de tais contratos, os eventuais conhecimentos ou experiência da referida pessoa no domínio dos instrumentos financeiros ou o seu comportamento ativo no âmbito de tais operações, e, por outro, o facto de os instrumentos financeiros não serem abrangidos pelo artigo 6.o do Regulamento Roma I ou de essa pessoa ser um «cliente não profissional» na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39 é, enquanto tal, em princípio, irrelevante.

 Quanto às despesas

80      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa singular que, nos termos de um contrato como o contrato financeiro por diferença, celebrado com uma sociedade de corretagem, efetue operações no mercado internacional de câmbio FOREX (Foreign Exchange) por intermédio dessa sociedade, deve ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa disposição, se a celebração desse contrato não for abrangida pela atividade profissional dessa pessoa, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Para efeitos desta qualificação, por um lado, não têm, enquanto tais, em princípio, pertinência, fatores como o valor das operações efetuadas ao abrigo de contratos como os contratos financeiros por diferença, a dimensão dos riscos de perdas financeiras associados à conclusão de tais contratos, os eventuais conhecimentos ou experiência da referida pessoa no domínio dos instrumentos financeiros ou o seu comportamento ativo no âmbito de tais operações, e, por outro, o facto de os instrumentos financeiros não serem abrangidos pelo artigo 6.o do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), ou de essa pessoa ser um «cliente não profissional», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ponto 12, da Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa aos mercados de instrumentos financeiros, que altera as Diretivas 85/611/CEE e 93/6/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 93/22/CEE do Conselho é, enquanto tal, em princípio, irrelevante.

Assinaturas


*      Língua do processo: checo.