Language of document : ECLI:EU:C:2023:885

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 16 de novembro de 2023 (1)

Processo C316/22

Gabel Industria Tessile SpA,

Canavesi SpA

contra

A2A Energia SpA,

Energit SpA,

Agenzia delle Dogane e dei Monopoli,

sendo interveniente:

Agenzia delle Dogane e dei Monopoli

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Como (Tribunal de Primeira Instância de Como, Itália)]

«Reenvio prejudicial — Artigo 288.o TFUE — Efeito direto das diretivas — Efeito direto horizontal — Efeito direto vertical — Critério Foster — Entidades que são consideradas uma emanação do Estado — Diretiva 2008/118/CE — Fornecedor de eletricidade — Restituição de impostos pagos em violação do direito da União — Autonomia processual — Princípio da efetividade»






I.      Introdução

1.        Poucos temas têm fascinado tanto as várias gerações de juristas da União como o efeito direto das diretivas. Este tema tem sido objeto de longos debates (e, em certa medida, de grande controvérsia), tanto nas instituições da União como em fóruns académicos, desde a década de 1960 (2) até à atualidade (3).

2.        No passado, vários doutos advogados‑gerais aconselharam o Tribunal de Justiça a reconhecer não só o efeito direto vertical mas também o efeito direto horizontal das diretivas que não foram transpostas (4), para «curar» (pelo menos parcialmente) a ordem jurídica da União do que foi reconhecidamente descrito como uma «doença infantil» do direito da União (5). Todavia, a jurisprudência do Tribunal de Justiça manteve‑se bastante estável relativamente a este assunto. Desde os Acórdãos Marshall e Faccini Dori, o Tribunal de Justiça tem repetidamente declarado que uma diretiva não pode, por si só, criar obrigações na esfera jurídica de um particular e não pode ser, portanto, invocada, enquanto tal, contra essa pessoa (6).

3.        Ao mesmo tempo, porém, o Tribunal de Justiça procurou atenuar, de diversas formas, os efeitos negativos que a inexistência do efeito direto horizontal das diretivas pode produzir relativamente aos particulares. Em especial, o Tribunal de Justiça: i) impôs aos órgãos jurisdicionais nacionais e a outras autoridades nacionais equivalentes, uma obrigação geral, de interpretar o direito nacional, na medida do possível, em conformidade com as disposições das diretivas não transpostas (7); ii) interpretou de forma lata o conceito de «Estado‑Membro» e as suas emanações neste domínio, de modo que abrangesse diversos organismos e entidades que devem, assim, ser tidos em consideração (8); iii) aceitou o efeito direto em certas situações triangulares peculiares que envolviam duas partes particulares e uma parte pública (9); iv) aceitou o efeito direto de certas disposições da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e de certos princípios gerais de direito, dos quais uma diretiva pode constituir uma manifestação (10); e v) aligeirou os requisitos para o sucesso de uma ação de responsabilidade contra os Estados‑Membros que não transpuseram diretivas (11).

4.        O presente processo proporciona ao Tribunal de Justiça a oportunidade de refletir, em termos gerais, sobre o estado do direito neste domínio e de esclarecer alguns aspetos da sua jurisprudência.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

5.        O artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE (12), aplicável à data dos factos (13), previa:

«Os Estados‑Membros podem cobrar, por motivos específicos, [impostos indiretos diferentes dos impostos especiais de consumo] sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, desde que esses impostos sejam conformes com as normas fiscais da [União] aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto, regras estas que não incluem as disposições relativas às isenções.»

B.      Direito nacional

6.        O artigo 5.o do Decreto Legislativo 2 febbraio 2007, n.o 26, Attuazione della direttiva 2003/96/CE che ristruttura il quadro comunitario per la tassazione dei prodotti energetici e dell’elettricità (Decreto Legislativo n.o 26/2007, de 2 de fevereiro de 2007, que transpõe a Diretiva 2003/96/CE que reestrutura o quadro comunitário de tributação dos produtos energéticos e da eletricidade) (14), alterou o artigo 6.o do Decreto Legge 28 novembre 1988, n.o 511, Disposizioni urgenti in materia di finanza regionale e locale (Decreto‑Lei n.o 511/1988, de 28 de novembro de 1988, que aprova disposições urgentes em matéria de finanças regionais e locais) (15), que impõe um imposto provincial adicional ao imposto especial de consumo sobre a eletricidade (a seguir «adicional»).

7.        O artigo 2.o do Decreto Legislativo 14 marzo 2011, n.o 23, Disposizioni in materia di federalismo fiscale municipale (Decreto‑Lei n.o 23/2011, de 14 de março de 2011, que aprova disposições em matéria de federalismo fiscal municipal) (16) previa que, a partir de 2012, o imposto adicional deixava de ser aplicado nas regiões com estatuto ordinário. Posteriormente, o artigo 4.o do Decreto Legge 2 marzo 2012, n.o 16, Disposizioni urgenti in materia di semplificazioni tributarie, di efficientamento e potenziamento delle procedure di accertamento (Decreto‑Lei n.o 16/2012, de 2 de março de 2012, que aprova disposições urgentes em matéria de simplificação fiscal, de eficiência e reforço dos procedimentos de liquidação) (17) revogou totalmente o adicional a partir de 1 de abril de 2012.

8.        O artigo 14.o do Decreto Legislativo 26 ottobre 1995, n.o 504, Testo Unico Accise (Decreto Legislativo n.o 504/1995, de 26 de outubro de 1995, versão consolidada da Lei relativa a Impostos Especiais de Consumo) (18) prevê, no n.o 1, que «[o] imposto especial de consumo é reembolsado quando tiver sido indevidamente pago», no n.o 2, que «o reembolso deve ser pedido, sob pena de caducidade, no prazo de dois anos a contar da data do pagamento ou da data em que o respetivo direito possa ser exercido», e, no n.o 4, que «[n]o caso de, no termo de um processo judicial, o sujeito obrigado ao pagamento do imposto especial de consumo ser condenado a restituir a terceiros montantes indevidamente cobrados na sequência da repercussão do imposto especial de consumo, o reembolso é pedido pela pessoa obrigada referida, sob pena de caducidade, no prazo de 90 dias a contar do trânsito em julgado da decisão que ordena a restituição dos montantes».

III. Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

9.        As demandantes no processo principal (a Gabel Industria Tessile S.p.A. e a Canavesi S.p.A.) são empresas que celebraram individualmente com uma das demandadas (a A2A Energia S.p.A. e a Energit S.p.A., respetivamente) um contrato de fornecimento de eletricidade no seu local de produção e lhes pagaram a contrapartida devida, incluindo os montantes cobrados, a título de imposto adicional, relativamente ao período de 2010‑2011.

10.      Em 2020, as demandantes intentaram uma ação contra as demandadas, no Tribunale di Como (Tribunal de Primeira Instância de Como, Itália), pedindo a restituição dos montantes pagos a título de imposto adicional, devido à incompatibilidade das disposições nacionais que instituíram esse imposto com o direito da União.

11.      O Tribunale di Como (Tribunal de Primeira Instância de Como) declara que, na sequência dos Acórdãos do Tribunal de Justiça proferidos nos processos Undis Servizi e Messer France (19), a Corte suprema di Cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália) decidiu que o imposto adicional era contrário ao artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2008/118/CE.

12.      O processo principal faz parte — acrescenta o Tribunale di Como (Tribunal de Primeira Instância de Como) — de um conjunto de litígios em curso relativos ao destino dos montantes indevidamente pagos no período compreendido entre o prazo concedido aos Estados‑Membros para estarem em conformidade com a Diretiva 2008/118 e o momento em que o legislador italiano decidiu a cessação da aplicação do imposto adicional. A este respeito, as instâncias inferiores de Itália adotaram duas orientações diferentes.

13.      Segundo a primeira orientação, os pedidos devem ser julgados improcedentes, uma vez que, sendo as demandadas empresas privadas, a não aplicação das disposições nacionais relevantes equivaleria a conceder um efeito direto horizontal às disposições da Diretiva 2008/118. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que a não aplicação das disposições nacionais teria por efeito criar uma nova obrigação na esfera dos particulares: a restituição ao utilizador final dos montantes cobrados como impostos ilegais. Pelo contrário, de acordo com a segunda orientação, os pedidos devem ser julgados procedentes, uma vez que, se bem entendo, o princípio da efetividade pode obrigar os órgãos jurisdicionais nacionais a aplicarem as disposições de uma diretiva não transposta mesmo num litígio entre particulares.

14.      Assim, tendo dúvidas quanto à interpretação dos princípios e das disposições relevantes do direito da União, o Tribunale di Como (Tribunal de Primeira Instância de Como) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) O sistema das fontes do direito da União Europeia em geral e, especificamente, o artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE, opõe‑se a que o órgão jurisdicional nacional, num litígio entre particulares, não aplique uma disposição do direito interno contrária a uma disposição clara, precisa e incondicional de uma diretiva não transposta ou não corretamente transposta, com a consequência de impor uma obrigação adicional a um particular, quando isso constitua, segundo o sistema normativo nacional […] o pressuposto para que este último possa invocar contra o Estado os direitos que lhe são conferidos pela referida diretiva?

2) O princípio da efetividade opõe‑se a uma legislação nacional […] que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado o reembolso do imposto indevido, reconhecendo‑lhe apenas a faculdade de intentar uma ação cível de repetição do indevido contra o sujeito passivo, único com legitimidade para obter o reembolso da Administração Fiscal, quando o fundamento exclusivo de ilegalidade do imposto, ou seja, a incompatibilidade com uma diretiva da União, só puder ser invocado na relação entre a pessoa obrigada ao pagamento e a Administração Fiscal mas não na relação entre o primeiro e o consumidor final, impedindo assim, de facto, que o reembolso se concretize ou, para garantir o cumprimento do princípio referido, deve reconhecer‑se, nesse caso, a legitimidade direta do consumidor final relativamente ao Estado, em caso de impossibilidade ou dificuldade excessiva em obter do fornecedor o reembolso do imposto indevidamente pago?»

15.      Em 17 de maio de 2023, o Tribunal de Justiça dirigiu um pedido de esclarecimentos ao órgão jurisdicional de reenvio, relativo aos procedimentos nacionais de repetição do indevido, ao qual este respondeu por carta de 31 de maio de 2023.

16.      Foram apresentadas observações escritas pelo Governo Espanhol e pela Comissão Europeia, que também apresentaram alegações orais na audiência de 13 de setembro de 2023.

IV.    Análise

A.      Quanto à primeira questão: efeito horizontal e vertical das diretivas

17.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o direito da União se opõe a que um órgão jurisdicional nacional não aplique, num litígio entre dois particulares, uma disposição de direito nacional contrária a uma disposição clara, precisa e incondicional de uma diretiva não transposta, mesmo que tal seja necessário para que o demandante possa invocar os direitos que lhe são conferidos por essa diretiva.

18.      Se for interpretada de forma literal, a resposta a esta questão será, pelas razões explicitadas adiante, bastante simples. No entanto, resulta da decisão de reenvio que o órgão jurisdicional de reenvio pretendeu suscitar várias questões relativas ao efeito direto das diretivas que vão além da mera redação da questão. Nos pontos seguintes, tentarei, portanto, tratar de todas estas questões.

1.      Quanto ao efeito direto horizontal das diretivas ao abrigo do direito da União e do direito nacional

19.      Em primeiro lugar, abordarei a questão suscitada expressamente pela primeira questão prejudicial: é permitido a um órgão jurisdicional nacional aplicar as disposições de uma diretiva não transposta num litígio entre particulares?

20.      Num acórdão recente relativo às disposições de uma diretiva não transposta, o Tribunal de Justiça começou por confirmar que «um órgão jurisdicional nacional não é obrigado, ao abrigo apenas do direito da União, a não aplicar uma disposição do seu direito nacional contrária a uma disposição do direito da União se esta última disposição for desprovida de efeito direto». Em seguida, declarou que esse princípio não prejudica, todavia, d«[…]a possibilidade de esse órgão jurisdicional, bem como de qualquer autoridade administrativa nacional competente, afastar, ao abrigo do direito interno, qualquer disposição do direito nacional contrária a uma disposição do direito da União desprovida de tal efeito» (20).

21.      Simplificando, isto significa que o direito da União não obriga os órgãos jurisdicionais nacionais a desaplicarem as disposições nacionais contrárias às disposições do direito da União que não tenham efeito direto nos litígios entre particulares, mas também não se opõe a que os órgãos jurisdicionais nacionais o façam, se o direito nacional o previr. Por outras palavras, os órgãos jurisdicionais nacionais podem atribuir às diretivas um efeito direto horizontal, com base no direito nacional.

22.      Na audiência, o Governo Espanhol opôs‑se à referida posição, com o fundamento de que a mesma introduziria alguma forma de desigualdade entre os particulares.

23.      Contudo, creio que se verifica o contrário. Quando muito, é a falta de transposição das diretivas que cria situações de desigualdade: i) a nível da União, uma vez que os particulares podem ou não gozar dos direitos que lhes são conferidos pelo direito da União em função, por exemplo, do Estado‑Membro em que vivem ou trabalham, e ii) a nível nacional, entre, por um lado, os particulares que podem fazer valer os seus direitos por agirem contra entidades públicas e, por outro, os particulares que, apesar de invocarem as mesmas normas da União, não podem fazer valer os seus direitos por agirem contra entidades privadas. Assim, a aplicação horizontal de diretivas não transpostas — se fosse permitida pelo direito nacional — eliminaria uma fonte de diferenciação injusta (21). Em termos mais gerais, reforçaria igualmente o efeito útil (effet utile) das diretivas em causa.

24.      Com efeito, não vejo nenhuma razão plausível para que o direito da União seja interpretado no sentido de obstar a que o ordenamento jurídico nacional de um Estado‑Membro prossiga uma aplicação mais completa e eficaz das disposições do direito da União que, se não fosse a própria omissão desse Estado‑Membro, teriam sido de aplicação geral (22).

25.      Assim, embora um órgão jurisdicional nacional não possa atribuir efeito direto horizontal às diretivas com base no direito nacional, como já foi referido, o direito da União não o obriga a fazê‑lo. Tal levanta a seguinte questão: deve o Tribunal de Justiça repensar a sua jurisprudência relativa a esta questão?

2.      Quanto à regra principal: inexistência de efeito direto horizontal obrigatório das diretivas

26.      Na minha opinião, seria inútil discutir se o Tribunal de Justiça deve repensar a sua jurisprudência sobre esta matéria.

27.      Não há dúvida de que podem ser encontrados argumentos (e contra‑argumentos) válidos tanto a favor como contra o reconhecimento do efeito direto horizontal das diretivas. No entanto, apesar da complexidade da questão, que exigiria uma longa análise jurídica para ser tratada de forma adequada, tem‑se facilmente a impressão de que já foi tudo dito (23).

28.      Na parte que me toca, basta dizer que, por um lado, reconheço a força dos argumentos apresentados pelos anteriores advogados‑gerais contra a natureza «excecional» das diretivas. Entenderam que existem sólidas razões de princípio para atribuir efeito direto às diretivas, sem qualquer distinção quanto ao estatuto do demandado. Na opinião dos referidos advogados‑gerais, tal permitiria, nomeadamente: i) eliminar as numerosas incoerências que decorreram do desenvolvimento progressivo da jurisprudência sobre esta matéria; ii) impedir os órgãos jurisdicionais nacionais de recorrerem a interpretações questionáveis do direito nacional a fim de assegurar a conformidade com o direito da União; iii) reforçar o direito do particular à ação e, em termos mais gerais, reforçar a eficácia do direito da União; e iv) evitar a discriminação entre diferentes particulares e assegurar condições de igualdade de concorrência entre empresas públicas e privadas (24).

29.      Contudo, por outro lado, devo admitir que existem vários argumentos que militam contra o reconhecimento do efeito direto horizontal das diretivas. O artigo 288.oTFUE estabelece uma distinção incontestável entre os vários instrumentos jurídicos nele previstos. Ao contrário dos regulamentos, que são descritos como «obrigatório[s] em todos os seus elementos e diretamente aplicáve[is] em todos os Estados‑Membros», as diretivas destinam‑se a «vincula[r] o Estado‑Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.» Por conseguinte, considero que a jurisprudência do Tribunal de Justiça visa principalmente preservar as características especiais (25) e a importância constitucional (26) desta forma de legislação, que reflete o elemento «federal» da ordem jurídica da União (27).

30.      É certo que a ordem jurídica da União em 2023 é bastante diferente daquela no âmbito da qual o Tribunal de Justiça proferiu os seus Acórdãos Marshall e Faccini Dori (28). Com efeito, os Tratados de Amesterdão, de Nice e, sobretudo, de Lisboa alteraram significativamente o panorama institucional e constitucional do direito da União. Todavia, parece‑me que as alterações introduzidas no (atual) artigo 288.o TFUE, tendo em conta o debate específico que teve lugar durante a Convenção sobre o Futuro da Europa 2002‑2003 (29) e as conferências intergovernamentais que se lhe seguiram (30), não corroboram a ideia de que os redatores dos Tratados pretenderam alterar a diferença fundamental entre regulamentos e diretivas.

31.      Assim, à luz da jurisprudência muito recente sobre este assunto, incluindo da Grande Secção (31), duvido que o Tribunal de Justiça esteja inclinado a repensar, e muito menos a inverter, a sua jurisprudência constante relativa a esta questão. Parece‑me que, pelo menos por enquanto, para utilizar uma expressão idiomática proveniente do ténis, a bola está do lado dos Estados‑Membros: a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre esta questão é clara e do conhecimento destes e, caso considerem que a situação não é satisfatória, podem corrigi‑la através da alteração dos Tratados (32).

32.      Dito isto, o facto de o direito da União não obrigar os órgãos jurisdicionais nacionais a reconhecerem o efeito direto horizontal das diretivas seria irrelevante para o processo principal, se se considerasse que os litígios envolvem um particular (o consumidor) e uma entidade que agiu como emanação do Estado (o prestador). Embora não tenha sido expressamente suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, esta questão foi debatida no decurso do processo no Tribunal de Justiça.

3.      Quanto ao efeito direto vertical e ao conceito de «EstadoMembro»

33.      Desde os Acórdãos Van Duyn e Ratti (33), o Tribunal de Justiça tem repetidamente declarado que seria incompatível com o efeito vinculativo que o (atual) artigo 288.o TFUE atribui às diretivas excluir a possibilidade de os particulares invocarem as obrigações impostas aos Estados‑Membros por esses instrumentos. Em especial, o Tribunal de Justiça considerou que não se pode permitir que os Estados‑Membros tirem proveito da sua própria falta de transposição de uma diretiva (34). Consequentemente, os particulares podem invocar validamente — em apoio dos seus pedidos ou em sua defesa — disposições claras, precisas e incondicionais de diretivas não transpostas, no âmbito de litígios com as autoridades do Estado‑Membro que não procedeu à transposição (efeito direto vertical).

34.      Ao longo dos anos, o Tribunal de Justiça esclareceu que o acima exposto é válido qualquer que seja a qualidade exata em que a autoridade pública aja (a de empregador ou a de autoridade pública) e independentemente de essa autoridade ter alguma responsabilidade efetiva pela falta de transposição da diretiva em causa por parte do Estado‑Membro (35).

35.      Ainda mais importante para o presente processo, o Tribunal de Justiça adotou um conceito amplo de «Estado‑Membro» neste contexto. Segundo jurisprudência assente, as disposições incondicionais e suficientemente precisas de uma diretiva podem ser invocadas contra organismos ou entidades que devem ser equiparados ao Estado, «quer porque são pessoas coletivas de direito público que fazem parte do Estado em sentido amplo», quer, quando são de direito privado, porque «estão sujeitos à autoridade ou ao controlo de uma autoridade pública» ou, em alternativa, «foram encarregados, por essa autoridade, de exercer uma missão de interesse público e foram dotados, para esse efeito, de [alguns] poderes exorbitantes» («critério Foster») (36).

36.      No presente processo, resulta dos autos que as demandadas no processo principal não são organismos de direito público. No entanto, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se se enquadram numa das outras duas situações alternativas relativas às entidades de direito privado (37). É assim não só porque o Tribunal de Justiça não dispõe de todos os elementos necessários para proceder a essa apreciação, mas também, e acima de tudo, porque, para que essa apreciação seja exata, pode revelar‑se necessário interpretar disposições ou princípios de direito nacional.

37.      A fim de ajudar o órgão jurisdicional de reenvio, farei algumas breves considerações sobre o tipo de apreciação que este deve efetuar.

38.      Em princípio, concordo com o Governo Espanhol que o facto de decidir se uma determinada entidade cumpre o «critério Foster» exige normalmente uma avaliação casuística, na qual sejam tidas em conta todas as circunstâncias relevantes relacionadas com a organização e a atividade dessa entidade.

39.      Por exemplo, para determinar se uma entidade privada está «sujeit[a] à autoridade ou ao controlo de uma autoridade pública», o órgão jurisdicional deve examinar a capacidade do Estado para exercer, direta ou indiretamente, uma influência dominante no processo de tomada de decisão dessa entidade; se não a exercer nas suas atividades quotidianas, pelo menos nas escolhas e decisões estratégicas mais importantes.

40.      Para o efeito, afigura‑se importante tomar em consideração, com base na legislação relevante e nas regras internas da entidade, elementos como: i) a estrutura de propriedade; ii) a existência de direitos especiais de voto ou de veto a favor de uma outra entidade; iii) a composição dos órgãos de direção e os procedimentos para a sua nomeação; iv) o tipo de atividades exercidas; v) o(s) objetivo(s) prosseguido(s) pela entidade; e vi) a forma de financiamento da entidade (38). Assim, o simples facto de o Estado (ou outra autoridade pública) deter uma participação numa sociedade, como entendo ser o caso das demandadas no processo principal, não é, por si só, determinante para saber se o Estado tem controlo sobre essa sociedade.

41.      No que respeita à decisão da questão de saber se uma entidade pública foi encarregada, por uma autoridade pública, «de exercer uma missão de interesse público» e foi dotada de «poderes exorbitantes» para esse efeito, gostaria de referir o seguinte.

42.      Em primeiro lugar, a apreciação da questão de saber se uma entidade privada deve ser equiparada ao Estado não deve, a meu ver, ser efetuada tendo em conta (exclusivamente) a natureza geral e as atividades da entidade em causa. Com efeito, o que é particularmente relevante é saber se o «critério Foster» está preenchido relativamente à própria relação que deu origem ao litígio em causa. De facto, é possível que uma entidade privada exerça uma ou várias atividades de interesse público, para as quais goza de poderes exorbitantes, ao mesmo tempo que desenvolve outras atividades com fins puramente comerciais e em condições normais de concorrência com outras empresas (39).

43.      Além disso, os dois elementos de «interesse público» e «poderes exorbitantes» são claramente cumulativos: ambos devem estar presentes para que uma entidade seja considerada uma emanação do Estado. Estes elementos devem igualmente estar ligados, no sentido de que os poderes exorbitantes devem ter sido concedidos à entidade em causa «para [o] efeito» de lhe permitir prosseguir eficazmente o interesse público (40).

44.      Além disso, os objetivos que se podem considerar prosseguidos no «interesse público» irão variar, naturalmente, de Estado‑Membro para Estado‑Membro. No entanto, este conceito reflete necessariamente a ideia de que a atividade da entidade não deve ser exercida em benefício exclusivo (ou predominante) dos seus proprietários ou acionistas, mas em benefício da sociedade no seu conjunto. É igualmente razoável pensar que a atribuição de uma missão de serviço público deve resultar de um ato legislativo ou administrativo (41).

45.      Por último, a existência de «poderes exorbitantes» deve ser identificada através da comparação das normas que regem a relação que deu origem ao litígio em causa com as que regem a relação entre particulares. A entidade em causa e a sua contraparte estão em pé de igualdade ou, pelo menos, numa posição comparável na sua relação? Poderia a entidade em causa impor unilateralmente alguma obrigação ou limitar os direitos da sua contraparte?

46.      Para concluir este ponto com uma nota mais geral, gostaria de acrescentar que, na minha opinião, o «critério Foster» não pode ser aplicado de forma demasiado ampla (42). No mundo atual, a maior parte das atividades económicas está, de uma forma ou de outra, fortemente regulamentada. Além disso, numerosas entidades (como as organizações não governamentais) procuram atingir objetivos de interesse público, apesar de não estarem de modo algum ligadas ao Estado; e, da mesma forma, muitas empresas são propriedade (total ou parcial) do Estado, mas não prosseguem qualquer objetivo público.

47.      Por conseguinte, a menos que a distinção horizontal/vertical seja reduzida a uma mera formalidade, é essencial que se considere, no âmbito de litígios como os que estão pendentes no órgão jurisdicional de reenvio, que as entidades privadas só agiram como uma emanação do Estado quando o controlo «público» sobre essas entidades ou a natureza pública das suas atividades possam ser claramente discernidos. A tentação de seguir «atalhos» para ajudar os consumidores e/ou para encontrar uma solução pragmática e justa para litígios que, com base no quadro processual relevante, parece ser demasiado complicada pode ser compreensível, mas seria, em última análise, pouco aconselhável.

4.      Necessidade de preservar a efetividade como uma exceção à regra principal?

48.      No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se igualmente sobre a questão de saber se, numa situação como a que está em causa no processo principal, ou seja, em que as demandantes se deparam com obstáculos processuais significativos para invocar os seus direitos, o princípio da efetividade da União pode ser interpretado no sentido de que obriga, a título excecional, os órgãos jurisdicionais nacionais a aplicarem as disposições de diretivas não transpostas mesmo nos litígios entre particulares.

49.      Não creio que assim seja. O princípio da efetividade [entendido como efeito útil (43)] tem sido frequentemente utilizado pelo Tribunal de Justiça como um instrumento interpretativo que permite, por um lado, excluir as interpretações das disposições da União que prejudicariam a sua validade, as tornariam redundantes ou conduziriam a resultados absurdos e, por outro lado, dar preferência a interpretações que garantam que as disposições em causa têm «pleno efeito», ou seja, a capacidade de alcançar o objetivo prosseguido pelo legislador da União (44).

50.      Pelo contrário, o princípio da efetividade não pode, a meu ver, ser utilizado como um meio de «maximizar» o alcance e o efeito de uma disposição da União, a ponto de ir além da intenção clara do legislador, ou de contornar os princípios constitucionais básicos da ordem jurídica da União.

51.      Além disso, a criação de uma exceção suplementar (45), definida de forma vaga, à regra da inexistência de efeito horizontal para os casos de extrema ratio (uma espécie de «quando nada mais funciona») só aumentaria, a meu ver, a insegurança jurídica (46). Trata‑se de um domínio que, no estado atual do direito, é qualificado por alguns observadores como sendo de grande complexidade (47) ou padecendo de falta de coerência (48). É verdade que algumas das críticas não são infundadas. Por conseguinte, hesitaria em sugerir um alargamento do número ou do alcance das exceções, uma vez que tal ocorreria em detrimento da previsibilidade, da coerência e do rigor intelectual do sistema.

52.      À luz do exposto, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão prejudicial no sentido de que i) o direito da União não obriga os órgãos jurisdicionais nacionais a não aplicarem as disposições nacionais contrárias às disposições do direito da União que não tenham efeito direto nos litígios entre particulares, mas não se opõe a que os órgãos jurisdicionais nacionais o façam, se o direito nacional o previr; e ii) as disposições incondicionais e suficientemente precisas de uma diretiva podem ser invocadas contra organismos ou entidades de direito privado quando estejam sujeitos à autoridade ou ao controlo de uma autoridade pública ou, em alternativa, quando tenham sido encarregados, por essa autoridade, de exercer uma missão de interesse público e tenham sido dotados, para esse efeito, de alguns poderes exorbitantes.

B.      Quanto à segunda questão: autonomia processual nacional e restituição de impostos ilegais

53.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da efetividade se opõe a uma legislação nacional que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado o reembolso do imposto indevido, reconhecendo‑lhe apenas a faculdade de intentar uma ação cível de repetição do indevido contra o prestador — que cobrou o imposto por conta do Estado e é a única entidade com legitimidade para obter o reembolso da Administração Fiscal — quando o fundamento de ilegalidade do imposto é a sua incompatibilidade com o direito da União e este fundamento não puder ser validamente invocado na ação contra o prestador.

54.      Esta questão decorre da situação específica em causa no processo principal, que, se bem entendo, pode ser resumida da seguinte forma: i) as demandantes são consumidores que pagaram um imposto a um prestador que cobrou esse imposto por conta do Estado, o qual foi posteriormente considerado incompatível com o direito da União; ii) em circunstâncias como as ora aqui em causa, o direito nacional prevê o reembolso de impostos indevidos através de um procedimento em duas fases: em primeiro lugar, o consumidor deve pedir a restituição do imposto pelo prestador (perante um tribunal cível) e, em seguida, esse prestador pode pedir o reembolso ao Estado (perante um tribunal administrativo); e iii) afigura‑se que os consumidores não podem invocar as disposições da Diretiva 2008/118 perante o órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que a Itália não transpôs corretamente esta diretiva e que as demandadas parecem ser sociedades privadas.

55.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se uma situação como a do processo principal deve ser considerada uma situação em que o consumidor se vê confrontado com uma dificuldade ou uma impossibilidade excessiva de obter a restituição de um imposto indevido, o que poderia assim justificar a sua capacidade de agir diretamente contra o Estado (e não contra o prestador que cobrou o imposto).

56.      Devo referir, desde já, que, apesar dos esclarecimentos prestados pelo órgão jurisdicional de reenvio em resposta a uma pergunta do Tribunal de Justiça, nem todos os elementos do sistema nacional que rege a restituição de impostos indevidos são para mim completamente claros. Por conseguinte, considero lamentável que nem as partes no processo principal, nem, o que considero particularmente infeliz, o Governo Italiano tenham considerado oportuno participar no presente processo.

57.      Por exemplo, pergunto‑me se são necessários dois processos judiciais em todas as circunstâncias para garantir que nem o consumidor nem o prestador tenham de suportar o encargo do imposto indevido. Considero esta exigência bastante problemática. Cumpre recordar, a este respeito, que, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, TUE, a obrigação de «toma[r] todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União» é imposta a todas as autoridades dos Estados‑Membros e não apenas às autoridades judiciárias.

58.      Como o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão Costanzo, «preenchidas as condições exigidas pela jurisprudência do tribunal para as normas de uma diretiva poderem ser invocadas pelos particulares perante os tribunais nacionais, todos os órgãos da administração, incluindo as entidades descentralizadas […] têm o dever de aplicar aquelas disposições» (49). Na minha opinião, as disposições do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2008/118 são suficientemente claras, precisas e incondicionais para que possam ser invocadas («verticalmente») por um particular contra as autoridades públicas, incluindo as administrativas, como a Administração Fiscal.

59.      Mais importante ainda, não é claro para mim quais são as vias de recursos jurisdicionais, se é que existem, à disposição dos particulares que pedem a restituição de impostos indevidos, caso o procedimento normal, previsto no artigo 14.o do Decreto Legislativo n.o 504/1995, se vier a revelar insuficiente para alcançar esse resultado.

60.      A este respeito, gostaria de recordar que o Tribunal de Justiça tem repetidamente declarado que o direito de obter o reembolso dos impostos cobrados num Estado‑Membro em violação do direito da União é a consequência e o complemento dos direitos conferidos aos particulares pelas disposições do direito da União que proíbem tais impostos. Assim, em princípio, o Estado‑Membro tem de reembolsar os tributos cobrados em violação do direito da União. Na falta de regulamentação da União em matéria de pedidos de restituição de impostos, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado‑Membro estabelecer as condições em que esses pedidos podem ser apresentados. No entanto, este princípio está sujeito ao respeito dos princípios da equivalência e da efetividade. Em especial, os Estados‑Membros devem assegurar que as condições de exercício da ação de repetição do indevido sejam fixadas de modo que o encargo económico do imposto indevido possa ser neutralizado (50).

61.      Com base nestes princípios, o Tribunal de Justiça considerou que um Estado‑Membro se pode, em princípio, opor a um pedido de reembolso de um imposto indevidamente pago apresentado pelo comprador final sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais. Tal depende de o comprador que tiver efetivamente suportado o encargo poder, nos termos do direito interno, exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o prestador. Contudo, se o reembolso pelo prestador se revelar impossível ou excessivamente difícil, o princípio da efetividade exige que o comprador tenha a possibilidade de dirigir o seu pedido de reembolso diretamente contra as autoridades fiscais e que, para o efeito, o Estado‑Membro preveja os meios e modalidades processuais necessários (51).

62.      Parece‑me que estas considerações são pertinentes para o caso em apreço. No entanto, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio decidir se as regras processuais nacionais em causa são de molde a que, numa situação como a do processo principal, um consumidor considere impossível ou excessivamente difícil obter o reembolso do imposto indevidamente pago.

63.      A meu ver, a condição de «dificuldade excessiva» não pode ser apreciada em abstrato, mas deve ser analisada em relação à situação específica de cada demandante. Esse demandante é «forçado» a seguir um ou mais procedimentos que, devido à sua complexidade, duração e/ou custo, lhe criam um encargo excessivo, tendo em conta o valor das quantias que poderiam ser reembolsadas? Além disso, um advogado prudente teria conhecimento da existência (bem como das perspetivas razoáveis de êxito) desses procedimentos ou parecer‑lhe‑ia que estas vias de recurso são de viabilidade incerta?

64.      Se, à luz desta análise, o órgão jurisdicional de reenvio chegasse à conclusão de que as demandantes no processo principal se veem efetivamente confrontadas com uma situação de impossibilidade prática ou de dificuldade excessiva, o princípio da efetividade da União, que, neste caso, coincide com o direito à ação (52), exigiria que estes consumidores pudessem agir diretamente contra o Estado para obter a restituição do imposto indevido.

65.      No processo instaurado contra o Estado, os consumidores teriam então «dois trunfos na manga». Por um lado, poderiam alegar que a regra processual que os impede de agir diretamente contra o Estado deveria ser declarada inaplicável por ser contrária ao princípio da efetividade da União e, por outro lado, poderiam invocar as disposições da Diretiva 2008/118, uma vez que o litígio é de natureza «vertical».

66.      Tendo em conta o exposto, cumpre responder à segunda questão que o direito da União não se opõe a uma legislação nacional que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado o reembolso de um imposto cobrado em violação do direito da União, reconhecendo‑lhe apenas a faculdade de repetição do indevido junto do prestador que o cobrou por conta do Estado. No entanto, se o reembolso pelo prestador se revelar impossível ou excessivamente difícil, o princípio da efetividade exige que o consumidor possa apresentar o seu pedido de reembolso diretamente às autoridades fiscais.

V.      Conclusão

67.      Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais apresentadas pelo Tribunale di Como (Tribunal de Primeira Instância de Como, Itália) do seguinte modo:

1)      O direito da União não obriga os tribunais nacionais a não aplicarem as disposições nacionais contrárias às disposições do direito da União que não tenham efeito direto nos litígios entre particulares, mas não se opõe a que os órgãos jurisdicionais nacionais o façam, se o direito nacional o previr. No entanto, as disposições incondicionais e suficientemente precisas de uma diretiva podem ser invocadas contra organismos ou entidades de direito privado quando estejam sujeitos à autoridade ou ao controlo de uma autoridade pública ou, em alternativa, quando foram encarregados, por essa autoridade, de exercer uma missão de interesse geral e foram dotados, para esse efeito, de alguns poderes exorbitantes;

2)      O direito da União não se opõe a uma legislação nacional que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado o reembolso de um imposto cobrado em violação do direito da União, reconhecendo‑lhe apenas a faculdade de repetição do indevido junto do prestador que o cobrou por conta do Estado. No entanto, se o reembolso pelo prestador se revelar impossível ou excessivamente difícil, o princípio da efetividade exige que o consumidor possa apresentar o seu pedido de reembolso diretamente às autoridades fiscais.


1      Língua original: inglês.


2      V., com numerosas referências a documentos contemporâneos, Rasmussen, M., «How to enforce European law? A new history of the battle over the direct effect of Directives, 1958‑1987», European Law Journal, 2017, p. 290.


3      Para uma contribuição muito recente sobre o assunto, v. Bobek, M., «Why Is It Better to Treat Every Provision of a Directive as a (Horizontally) Directly Effective One», International Journal of Comparative Labour Law and Industrial Relations, 2023, p. 1.


4      V., nomeadamente, Conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven no processo Marshall (C‑271/91, EU:C:1993:30, n.o 12); Conclusões do advogado‑geral C. O. Lenz no processo Faccini Dori (C‑91/92, EU:C:1994:45, n.os 43 a 73); e Conclusões do advogado‑geral F.G. Jacobs no processo Vaneetveld (C‑316/93, EU:C:1994:32, n.os 18 a 34). V., também, as considerações de passagem nas Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:492, n.o 150) e nas Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo Cresco Investigation (C‑193/17, EU:C:2018:614, n.o 145).


5      Pescatore, P., «The doctrine of “direct effect”: An infant disease of community law», European Law Review, 1983, p. 155.


6      Acórdãos de 26 de fevereiro de 1986, Marshall (152/84, EU:C:1986:84, n.o 48), e de 14 de julho de 1994, Faccini Dori (C‑91/92, EU:C:1994:292, n.o 20). Mais recentemente, v. Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Thelen Technopark Berlin (C‑261/20, EU:C:2022:33, n.o 32).


7      V., nomeadamente, Acórdão de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.os 110 a 118).


8      V., infra, n.os 35 a 47 das presentes conclusões.


9      V., nomeadamente, Acórdãos de 30 de abril de 1996, CIA Security International (C‑194/94, EU:C:1996:172), e de 28 de janeiro de 1999, Unilever (C‑77/97, EU:C:1999:30).


10      V., nomeadamente, Acórdãos de 22 de novembro de 2005, Mangold (C‑144/04, EU:C:2005:709, n.os 75 a 77), e de 6 de novembro de 2018, Bauer e Willmeroth (C‑569/16 e C‑570/16, EU:C:2018:871, n.os 80 a 91).


11      V., por exemplo, Acórdão de 8 de outubro de 1996, Dillenkofer e o. (C‑178/94, C‑179/94 e C‑188/94 a C‑190/94, EU:C:1996:375, n.o 27). V., também, Acórdão de 14 de julho de 1994, Faccini Dori (C‑91/92, EU:C:1994:292, n.o 27). Sobre esta questão, v., contudo, Szpunar, M., «Direct Effect of Community Directives in National Courts — Some Remarks Concerning Recent Developments», Natolin European Centre, 2003, p. 4.


12      JO 2009, L 9, p. 12.


13      A Diretiva 2008/118 já não está em vigor, tendo sido revogada pela Diretiva (UE) 2020/262 do Conselho, de 19 de dezembro de 2019, que estabelece o regime geral dos impostos especiais de consumo (JO 2020, L 58, p. 4).


14      GURI n.o 68, de 22 de março de 2007.


15      GURI n.o 280, de 29 de novembro de 1988.


16      GURI n.o 67, de 23 de março de 2011.


17      GURI n.o 52, de 2 de março de 2012.


18      GURI n.o 279, de 29 de novembro de 1995.


19      Acórdãos de 8 de dezembro de 2016 (C‑553/15, EU:C:2016:935) e de 25 de julho de 2018 (C‑103/17, EU:C:2018:587), respetivamente.


20      Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Thelen Technopark Berlin (C‑261/20, EU:C:2022:33, n.o 33). O sublinhado é meu.


21      Com efeito, de acordo com a jurisprudência, as disposições das diretivas «podem ser invocadas contra o Estado, qualquer que seja a qualidade em que aja este último, a de empregador ou a de autoridade pública» (o sublinhado é meu). V., nomeadamente, Acórdãos de 26 de fevereiro de 1986, Marshall (152/84, EU:C:1986:84, n.o 42), e de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313, n.o 17).


22      Afinal, se uma das razões para recusar o efeito direto horizontal das diretivas é preservar a margem de manobra dos Estados‑Membros na transposição de certas normas da União para o direito nacional (v., infra, n.o 29 das presentes conclusões), é lógico que os Estados‑Membros tenham a liberdade de renunciar a essa prerrogativa.


23      Cf. Editorial, «Is there more to say about the direct effect of Directives?», European Law Review, 2018, p. 621.


24      V. conclusões referidas, supra, na nota de rodapé 4.


25      No fim de contas, se se reconhecesse efeito direto horizontal às diretivas, não pareceria restar qualquer diferença significativa entre este instrumento e os regulamentos.


26      V., neste sentido, Acórdão de 22 de janeiro de 2019, Cresco Investigation (C‑193/17, EU:C:2019:43, n.o 72 e jurisprudência referida): «Com efeito, alargar a invocabilidade das diretivas não transpostas, ou incorretamente transpostas, ao domínio das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à União o poder de criar, com efeito imediato, deveres na esfera jurídica dos particulares, quando esta só tem essa competência nas áreas em que lhe é atribuído o poder de adotar regulamentos.»


27      Cf. Dickon, J., «Directives in EU Legal Systems: Whose Norms Are They Anyway?», European Law Journal, 2011, p. 190.


28      V. nota de rodapé 6, supra.


29      V., nomeadamente, Relatório Final do Grupo de Trabalho IX sobre a Simplificação, 29 de novembro de 2002, CONV 424/02, pp. 3 a 6; e Piris, J‑C., «The Constitution for Europe — A Legal Analysis», 2006, Cambridge University Press, pp. 70 a 73.


30      V., por exemplo, Piris, J‑C., «The Lisbon Treaty — A Legal and Political Analysis», 2010, Cambridge University Press, pp. 92 a 94.


31      V. Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Thelen Technopark Berlin (C‑261/20, EU:C:2022:33, n.o 32). V., também, Acórdãos de 22 de janeiro de 2019, Cresco Investigation (C‑193/17, EU:C:2019:43, n.o 72), e de 7 de agosto de 2018, Smith (C‑122/17, EU:C:2018:631, n.o 42).


32      Como fizeram ao alterar o (atual) quarto parágrafo do artigo 263.o TFUE, após a prolação dos Acórdãos de 25 de julho de 2002, Unión de Pequeños Agricultores/Conselho (C‑50/00 P, EU:C:2002:462), e de 1 de abril de 2004, Comissão/Jégo‑Quéré (C‑263/02 P, EU:C:2004:210).


33      Acórdãos de 4 de dezembro de 1974, Van Duyn (41/74, EU:C:1974:133), e de 5 de abril de 1979, Ratti (148/78, EU:C:1979:110).


34      Em conformidade com o princípio do «estoppel» (ou nemo potest venire contra factum proprium).


35      V. jurisprudência referida na nota de rodapé 21, supra.


36      V., nomeadamente, Acórdãos de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:313, n.o 18), e de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.os 33 a 35).


37      V., por exemplo, Acórdãos de 14 de setembro de 2000, Collino e Chiappero (C‑343/98, EU:C:2000:441, n.o 24); de 24 de janeiro de 2012, Dominguez (C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 40); e de 12 de dezembro de 2013, Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 31).


38      V., por analogia, Acórdãos de 24 de novembro de 1982, Comissão/Irlanda (249/81, EU:C:1982:402, n.os 10 a 15); de 16 de maio de 2002, França/Comissão (C‑482/99, EU:C:2002:294, n.o 55); e de 5 de novembro de 2002, Comissão/Alemanha (C‑325/00, EU:C:2002:633, n.os 14 a 21). V., também, Conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven no processo Foster e o. (C‑188/89, EU:C:1990:188, p. 21).


39      Do mesmo modo, conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:492, n.o 141).


40      Ibidem, n.o 49.


41      Ibidem, n.os 143 a 146.


42      V., do mesmo modo, a análise efetuada nas conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:623, n.os 35 a 44).


43      Na apreciação da segunda questão prejudicial, tratarei da «efetividade» no sentido de «ação».


44      V., neste sentido, Acórdãos de 4 de outubro de 2001, Itália/Comissão (C‑403/99, EU:C:2001:507, n.os 27, 28 e 37) e de 22 de fevereiro de 2022, Openbaar Ministerie (Tribunal estabelecido por lei no Estado‑Membro de emissão) (C‑562/21 PPU e C‑563/21 PPU, EU:C:2022:100, n.o 95).


45      Refiro‑me à jurisprudência relativa ao chamado efeito horizontal incidental das diretivas, referida supra, no n.o 3 das presentes conclusões.


46      Sobre a necessidade de conciliar o effet utile e a segurança jurídica neste domínio, v. Skouris, V. «Effet Utile versus Legal Certainty: The Case Law of the Court of Justice on the Direct Effect of Directives», European Business Law Review, 2009, p. 241.


47      Cf. Craig, P., «The Legal Effect of Directives: Policy, Rules and Exceptions», European Law Review, 2009, pp. 376 e 377; e Bobek, M., «Why Is It Better to Treat Every Provision of a Directive as a (Horizontally) Directly Effective One», International Journal of Comparative Labour Law and Industrial Relations, 2023, p. 10.


48      V., por exemplo, Editorial Comments, «Horizontal direct effect — A law of diminishing coherence?», Common Market Law Review, 2006, p. 1; e Dashwood, A., «From Van Duyn to Mangold via Marshall: Reducing Direct Effect to Absurdity?», Cambridge Yearbook of European Legal Studies, 2007, p. 81.


49      Acórdão de 22 de junho de 1989 (103/88, EU:C:1989:256, n.o 31). O sublinhado é meu.


50      V., nomeadamente, Acórdão de 20 de outubro de 2011, Danfoss e Sauer‑Danfoss (C‑94/10, EU:C:2011:674, n.os 20 a 25 e jurisprudência referida).


51      Ibidem, n.os 27 e 28. V., também, Acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C‑35/05, EU:C:2007:167, n.os 41 e 42).


52      Sobre esta questão, de forma exaustiva e com outras referências, v. Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo An tAire Talmhaíochta Bia agus Mara, Éire agus an tArd‑Aighne (C‑64/20, EU:C:2021:14, n.os 38 a 46).