Language of document : ECLI:EU:T:2011:69

Processos T‑117/07 e T‑121/07

Areva e o.

contra

Comissão Europeia

«Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Mercado dos projectos de mecanismos de comutação isolados a gás – Decisão que declara uma infracção ao artigo 81.° CE e ao artigo 53.° do Acordo EEE – Direitos de defesa – Dever de fundamentação – Imputabilidade do comportamento ilícito – Duração da infracção – Coimas – Responsabilidade solidária pelo pagamento da coima – Circunstâncias agravantes – Papel de líder – Circunstâncias atenuantes – Cooperação»

Sumário do acórdão

1.      Concorrência – Regras comunitárias – Empresa – Conceito – Unidade económica

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

2.      Concorrência – Regras comunitárias – Infracções – Imputação – Pessoa jurídica responsável pela exploração da empresa no momento da infracção – Excepções

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

3.      Concorrência – Regras comunitárias – Infracção cometida por uma filial – Imputação à sociedade‑mãe em face dos laços económicos e jurídicos que as unem

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

4.      Actos das instituições – Fundamentação – Dever – Alcance – Fundamento relativo à falta ou insuficiência da fundamentação – Fundamento relativo à inexactidão da fundamentação – Distinção

(Artigo 253.° CE)

5.      Direito comunitário – Princípios gerais de direito – Não retroactividade das disposições penais – âmbito de aplicação – Concorrência

(Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 15.°, n.° 4, e n.° 1/2003, artigo 23.°, n.° 5)

6.      Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Acordos entre empresas – Prova da duração da infracção a cargo da Comissão

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 15.°, n.° 2, e n.° 1/2003, artigo 23.°, n.° 3)

7.      Concorrência – Procedimento administrativo – Prescrição em matéria de procedimentos – Início da contagem

(Artigo 81.° CE; Acordo EEE, artigo 53.°; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 25.°)

8.      Actos das instituições – Fundamentação – Dever – Alcance

(Artigo 253.° CE)

9.      Concorrência – Coimas – Responsabilidade solidária pelo pagamento – Requisitos

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Acordo EEE, artigo 53.°)

10.    Concorrência – Coimas – Responsabilidade solidária pelo pagamento – Alcance

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Acordo EEE, artigo 53.°)

11.    Concorrência – Coimas – Responsabilidade solidária pelo pagamento – Possibilidade de cada um dos devedores interpor recurso de anulação dessa decisão

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Acordo EEE, artigo 53.°)

12.    Concorrência – Regras comunitárias – Infracções – Imputação – Princípio da individualização das penas – Alcance

(Artigo 81.°, n.° 1 CE)

13.    Direito comunitário – Princípios – Direito a uma protecção jurisdicional efectiva – Consagração na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e reafirmação na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°)

14.    Concorrência – Princípios – Decisão da Comissão que declara a existência de uma infracção – Fiscalização jurisdicional efectiva das decisões da Comissão – Tribunal independente e imparcial – Competência de plena jurisdição

(Artigos 81.° CE, 229.° CE e 230.° CE; Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 17.°, e n.° 1/2003, artigo 31.°)

15.    Concorrência – Regras comunitárias – Carácter de ordem pública

(Artigo 81.° CE; Acordo EEE, artigo 53.°)

16.    Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão que declara a existência de uma infracção e aplica uma coima – Dever de respeito do princípio das competências atribuídas

(Artigos 5.° CE e 81.° CE; Acordo EEE, artigo 53.°; Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 15.°, n.° 2, e n.° 1/2003, artigos 7.°, n.° 1, e 23.°, n.° 2)

17.    Concorrência – Procedimento administrativo – Respeito dos direitos de defesa – Comunicação de acusações – Carácter provisório – Abandono das acusações que se revelem infundadas face a certas sociedades que leve a um agravamento da posição da sociedade que se mantém destinatária da decisão recorrida – Admissibilidade face ao exercício do seu direito de audiência

(Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 19.°, n.° 1, e n.° 1/2003, artigo 27.°, n.° 1)

18.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Papel de líder ou de instigador da infracção – Conceito

(Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 15.°, n.° 2, e n.° 1/2003, artigo 23.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão, pontos 2 e 3)

19.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Papel de líder da infracção – Papel desempenhado sucessivamente por diferentes empresas e pelas sociedades que as dirigem

(Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 15.°, n.° 2, e n.° 1/2003, artigo 23.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão, ponto 2)

20.    Concorrência – Coimas – Montante – Poder de apreciação da Comissão – Fiscalização jurisdicional – Competência de plena jurisdição

(Artigo 229.° CE; Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 17.°, e n.° 1/2003, artigo 31.°)

21.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Tomada em consideração do volume de negócios mundial realizado no último ano completo de infracção e relativo aos produtos e serviços a que esta se refere

(Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 15.°, n.° 2, e n.° 1/2003, artigo 23.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão, ponto 1 A)

1.      No direito da concorrência, o conceito de empresa deve ser interpretado no sentido de que designa uma unidade económica do ponto de vista do objecto da infracção. Ao proibir as empresas, nomeadamente, de celebrarem acordos ou de participarem em práticas concertadas susceptíveis de afectar o comércio entre Estados‑Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear o jogo da concorrência no interior do mercado comum, o n.° 1 do artigo 81.° CE dirige‑se a entidades económicas constituídas cada uma numa organização unitária de elementos pessoais, materiais e incorpóreos, que prossegue, de forma duradoura, um objectivo económico determinado, organização esta que pode concorrer para a prática de uma das infracções previstas nesta disposição.

(cf. n.° 63)

2.      Em matéria de concorrência, de acordo com o princípio da responsabilidade pessoal, segundo o qual uma pessoa só pode ser responsabilizada pelos seus próprios actos, cabe, em princípio, à pessoa que dirigia a empresa no momento em que esta participou na infracção responder por ela, mesmo que, na data da adopção da decisão que dá por provada a infracção, essa empresa esteja sob a responsabilidade ou direcção de outra pessoa.

Em certas circunstâncias excepcionais, a jurisprudência admite a possibilidade de uma excepção ao princípio da responsabilidade pessoal pela aplicação do critério da continuidade económica, de acordo com o qual uma infracção às normas de concorrência pode ser imputada ao sucessor económico de uma pessoa colectiva sua autora, mesmo quando esta não tenha deixado de existir à data da adopção da decisão que dá por provada essa infracção, para que o efeito útil dessas normas não seja comprometido pelas alterações introduzidas, nomeadamente, na forma jurídica das sociedades em causa.

A Comissão pode não seguir o critério dito «da continuidade económica» e responsabilizar pessoalmente pela participação de uma empresa na infracção a sociedade‑mãe que dirigiu directamente essa empresa antes de a transferir para filiais exclusivas ou quase exclusivas, até à data em que essas filiais e a referida empresa tenham acabado por ser cedidas a outro grupo.

(cf. n.os 65‑66, 72, 78)

3.      Em matéria de concorrência, cabe, em princípio, à Comissão, com base num conjunto de elementos de facto, entre os quais, em particular, o eventual poder de direcção exercido pela sociedade‑mãe sobre a sua filial, demonstrar que a sociedade‑mãe exerceu efectivamente uma influência determinante no comportamento da sua filial no mercado. Contudo, resulta de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral que a Comissão pode razoavelmente presumir que uma filial cujo capital é detido a 100% pela sua sociedade‑mãe aplica, no essencial, as instruções que lhe são dadas por ela e que essa presunção de responsabilidade implica que a Comissão não tem de verificar se a sociedade‑mãe exerceu efectivamente esse poder de direcção sobre a sua filial. Quando, na comunicação de acusações, a Comissão indica a sua intenção de responsabilizar pessoalmente uma sociedade‑mãe por uma infracção imputável à sua filial invocando a presunção de responsabilidade decorrente da detenção da totalidade do capital da filial pela sua sociedade‑mãe, cabe à sociedade‑mãe que tencione contestar a sua responsabilidade apresentar no procedimento administrativo ou, quando muito, perante o juiz da União, elementos suficientemente probatórios para ilidir a presunção, demonstrando que, apesar da detenção da totalidade do seu capital pela sua sociedade‑mãe, a filial determinava de forma realmente autónoma a sua linha de acção no mercado.

A Comissão deve estar em condições de ter em conta, na sua decisão, as respostas das empresas em causa à comunicação de acusações. A este respeito, não só deve poder aceitar ou rejeitar os argumentos das empresas em causa, mas também proceder à sua própria análise dos factos alegados por elas, seja para abandonar as acusações que se revelem infundadas seja para aperfeiçoar ou completar, quanto aos factos e quanto ao direito, a sua argumentação de apoio às acusações que mantém. É esse o caso quando a decisão da Comissão se baseia não só na presunção de responsabilidade resultante da detenção da totalidade do capital das filiais pela sociedade‑mãe mas também em elementos de facto apresentados no procedimento administrativo e que demonstrem que:

‑ no grupo, a organização operacional primava sobre a estrutura jurídica e que as actividades dos projectos em causa eram dirigidas, ao mais alto nível, pela sociedade‑mãe e pelas suas antecessoras,

‑ seis membros do conselho de administração das sociedades filiais tinham sido, simultânea ou consecutivamente, membros do conselho de administração das sociedades de cúpula do grupo, antes da sua posterior cessão a um novo grupo,

‑ a nomeação pela sociedade‑mãe de um novo membro do conselho de administração das suas filiais com actividade no sector em causa alicerçava a conclusão de que a primeira tinha exercido uma influência determinante sobre as segundas, e

‑ quanto às operações de reestruturação intragrupo, a mudança de nome comercial das filiais com actividade no sector em causa, ocorrida imediatamente depois da cessão intergrupos, atesta a sua integração no grupo.

De igual modo, a Comissão pode considerar que a delegação de funções de ordem comercial não podia libertar a sociedade‑mãe das suas responsabilidades, pois ela própria admitia que, à data da infracção, tinha de aprovar qualquer projecto de proposta para os projectos em causa que excedessem um certo limite ou que implicassem certos riscos substanciais para o grupo.

(cf. n.os 86‑87, 91, 97, 116, 144)

4.      Quanto ao dever de fundamentação da Comissão, nomeadamente quando adopta uma decisão que declara uma infracção às normas da concorrência, a alegação de falta ou insuficiência de fundamentação deve distinguir‑se da alegação de inexactidão dos fundamentos da decisão. Este último aspecto insere‑se na análise da legalidade da decisão quanto ao mérito e não na preterição de formalidades essenciais, pelo que não pode constituir uma violação do artigo 253.° CE.

(cf. n.° 88)

5.      O princípio da irretroactividade das disposições penais é um princípio comum a todos os ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros, consagrado igualmente pelo artigo 7.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, e faz parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito o juiz da União garante. Embora resulte do artigo 15.°, n.° 4, do Regulamento n.° 17 e do artigo 23.°, n.° 5, do Regulamento n.° 1/2003 que as decisões da Comissão que aplicam coimas por violação do direito da concorrência não têm carácter penal, é um facto que a Comissão é obrigada a respeitar os princípios gerais do direito da União, nomeadamente o da irretroactividade, em qualquer procedimento administrativo susceptível de dar origem a sanções previstas no direito da concorrência.

Esse respeito exige que as regras de imputação a pessoas, singulares ou colectivas, das infracções ao direito da concorrência correspondam às que vigoravam à data da prática da infracção. Quando várias pessoas podem ser pessoalmente responsabilizadas pela participação de uma única e mesma empresa, na acepção do direito da concorrência, numa infracção, devem ser consideradas solidariamente responsáveis por essa infracção. Além disso, podem ser pessoal e solidariamente responsabilizadas pela participação de uma única e mesma empresa numa infracção a pessoa sob cuja responsabilidade ou direcção a empresa estivesse directamente colocada no momento da prática da infracção e a pessoa que, por exercer efectivamente um poder de controlo sobre a primeira e determinar o seu comportamento no mercado, dirigisse indirectamente essa mesma empresa no momento em que a infracção foi cometida.

(cf. n.os 131‑134)

6.      No que respeita à duração de uma infracção às regras de concorrência, o princípio da segurança jurídica impõe que, na falta de elementos de prova que permitam determiná‑la directamente, a Comissão invoque, pelo menos, elementos de prova relativos a factos suficientemente próximos no tempo, de modo a poder‑se razoavelmente admitir que essa infracção perdurou ininterruptamente entre duas datas precisas. Quanto aos meios de prova, é frequente as actividades que as práticas e acordos anticoncorrenciais implicam decorrerem de forma clandestina, as reuniões realizarem‑se secretamente, a maior parte das vezes num país terceiro, e a documentação correspondente ser reduzida ao mínimo. Mesmo que a Comissão descubra documentos que atestem de forma explícita um contacto ilegítimo entre operadores, como as actas de uma reunião, esses documentos serão normalmente fragmentários e esparsos, pelo que se revela frequentemente necessário reconstituir certos detalhes por deduções. Na maioria dos casos, a existência de uma prática ou de um acordo anticoncorrencial deve ser inferida de um determinado número de coincidências e de indícios que, considerados no seu todo, podem constituir, na falta de outra explicação coerente, a prova de uma violação das regras de concorrência. No âmbito de uma infracção que se estende por vários anos, o facto de as manifestações do acordo ocorrerem em períodos diferentes, podendo ser separados por lapsos de tempo mais ou menos longos, não tem incidência quanto à existência desse acordo, desde que as diferentes acções que fazem parte dessa infracção prossigam uma única finalidade e se inscrevam no âmbito de uma infracção com carácter único e continuado.

Daqui resulta que, na medida em que, em conjunto, os acordos contrários às normas da concorrência tinham vocação para produzir efeitos entre a data de entrada em vigor de um deles e a data do final de validade de outro, a Comissão podia acertadamente considerar que esses acordos constituíam um indício de que a infracção prosseguiu, de forma ininterrupta, durante todo o período em causa. Assim, as repetidas provas de manifestações do acordo, bem como o conjunto de indícios reunidos pela Comissão de que as actividades em que a empresa em causa participou no âmbito do acordo continuaram durante todo o período em questão devem ser considerados uma prova suficiente de que o acordo continuou de forma ininterrupta entre as datas apuradas pela decisão da Comissão.

(cf. n.os 164‑166, 176‑177)

7.      Nos termos do artigo 25.° do Regulamento n.° 1/2003, o poder da Comissão de aplicar uma sanção por uma infracção ao artigo 81.° CE e ao artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu prescreve em cinco anos. A prescrição começa a correr a partir do dia em que a infracção tenha sido cometida. Todavia, em relação às infracções continuadas ou reiteradas, a prescrição começa a correr no dia em que a infracção tiver cessado.

(cf. n.° 188)

8.      Não se pode criticar a Comissão por não ter fundamentado especialmente a decisão de aplicar uma coima a pagar solidariamente pelas duas sociedades, em caso de infracção às normas da concorrência, tendo em conta o facto de estas já não formarem uma entidade económica única na data da adopção dessa decisão, uma vez que, na sua opinião, isso não o impede. Com efeito, a Comissão não tem de incluir na decisão uma fundamentação precisa quanto a um certo número de aspectos que se lhe apresentem como manifestamente despropositados, sem significado ou claramente secundários para a sua apreciação.

(cf. n.° 200)

9.      A solidariedade pelo pagamento das coimas devidas por uma infracção ao artigo 81.° CE e ao artigo 53.° do Acordo EEE é um efeito jurídico que decorre, de pleno direito, das disposições substantivas desses artigos.

A solidariedade no pagamento de uma coima devida por várias pessoas pela participação de uma empresa numa infracção ao artigo 81.° CE e ao artigo 53.° do Acordo EEE resulta de cada uma dessas pessoas poder ser responsabilizada pessoalmente pela participação da empresa na infracção. A unidade do comportamento da empresa no mercado justifica, para efeitos de aplicação do direito da concorrência, que as sociedades ou, mais em geral, os sujeitos de direito que possam ser pessoalmente responsabilizados sejam obrigados solidariamente. A solidariedade no pagamento das coimas aplicadas por causa de uma infracção ao artigo 81.° CE e ao artigo 53.° do Acordo EEE, na medida em que ajuda a garantir a cobrança efectiva das coimas, participa no objectivo de dissuasão que é geralmente prosseguido pelo direito da concorrência, no respeito do princípio ne bis in idem, princípio fundamental do direito da União, igualmente consagrado no artigo 4.° do Protocolo n.° 7 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, que proíbe, por uma mesma infracção ao direito da concorrência, punir mais de uma vez um mesmo comportamento da empresa no mercado através de sujeitos de direito que possam ser pessoalmente responsabilizados.

O facto de as responsabilidades pessoais de várias sociedades pela participação de uma mesma empresa numa infracção não serem idênticas não obsta a que lhes seja aplicada uma coima solidariamente, uma vez que a solidariedade no pagamento da coima só abrange o período da infracção em que formavam uma unidade económica e constituíam, portanto, uma empresa, na acepção do direito da concorrência.

(cf. n.os 204‑206)

10.    Na medida em que o fundamento relativo a uma violação do princípio da segurança jurídica pode ser interpretado como uma excepção de ilegalidade arguida contra as regras em matéria de solidariedade no pagamento das coimas no caso de infracção às regras de concorrência, pelo facto de essas regras serem fonte de incerteza quanto ao pagamento da coima, à determinação do devedor da obrigação de pagamento e à situação jurídica dos co‑devedores solidários, esse fundamento implica uma decisão sobre a própria legalidade do regime da «solidariedade no pagamento das coimas» no direito da concorrência e verificar se os direitos e obrigações dele resultantes podem ser conhecidos com suficiente precisão pelas sociedades punidas.

A este propósito, do mesmo modo que o conceito de «empresa», na acepção do direito da concorrência, do qual mais não é que um efeito de pleno direito, o conceito de «solidariedade no pagamento das coimas» é um conceito autónomo que se deve interpretar com base nos objectivos e no sistema do direito da concorrência, no qual participa, e, sendo caso disso, nos princípios gerais que decorrem do conjunto dos sistemas jurídicos nacionais. Na falta de indicação em sentido contrário na decisão em que a Comissão aplica uma coima solidariamente a várias sociedades pelo comportamento ilícito de uma empresa, imputa‑lhes esse comportamento em partes iguais. Além disso, as sociedades condenadas solidariamente numa coima são obrigadas ao pagamento de uma coima única, cujo montante é calculado com referência ao volume de negócios da empresa em causa.

Daqui resulta que cada sociedade está obrigada ao pagamento da totalidade do montante da coima face à Comissão e que o pagamento efectuado por uma delas é liberatório para todas face à Comissão. As sociedades a que seja aplicada uma coima solidariamente e que, salvo indicação em contrário na decisão que a aplica, incorrem em igual responsabilidade na prática da infracção, devem, em princípio, contribuir em partes iguais para o pagamento da coima aplicada por essa infracção. Consequentemente, a sociedade que, tendo sido eventualmente acusada pela Comissão, pague a totalidade do montante da coima pode, com base na própria decisão da Comissão, exercer o direito de regresso sobre os seus co‑devedores solidários, cada uma pela sua quota‑parte. Embora, desse modo, a decisão de aplicação de uma coima solidariamente a várias sociedades não permita determinar, a priori, qual delas será efectivamente chamada a pagar o montante da coima à Comissão, não obsta a que cada uma dessas sociedades possa conhecer, sem ambiguidade, a quota‑parte do montante da coima que lhe cabe e exercer o seu direito de regresso sobre os seus co‑devedores solidários pelas quantias que pagou para além da sua quota‑parte.

(cf. n.os 213, 215)

11.    A solidariedade no pagamento das coimas no direito da concorrência não obsta ao direito de cada uma das sociedades punidas interpor recurso de anulação da decisão pela qual a Comissão lhes aplicou uma coima solidariamente.

(cf. n.° 217)

12.    O princípio da individualidade das penas e das sanções, que é aplicável em qualquer procedimento administrativo susceptível de levar a sanções por força do direito da concorrência, impõe que uma pessoa só seja punida por factos que lhe sejam individualmente imputados. É esse o caso quando duas sociedades foram punidas, devido à participação de uma empresa na infracção, por factos que lhes foram individualmente imputados pela Comissão, pela responsabilidade que lhes cabe enquanto dirigentes, directos ou indirectos, da empresa.

(cf. n.os 219‑220)

13.    A exigência de fiscalização jurisdicional constitui um princípio geral de direito da União, que decorre das tradições constitucionais comuns dos Estados‑Membros e que foi igualmente consagrada nos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. O direito à tutela jurisdicional efectiva foi ainda reafirmado no artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

(cf. n.° 224)

14.    A exigência de fiscalização jurisdicional efectiva aplica‑se, nomeadamente, a qualquer decisão da Comissão que declare e puna uma infracção ao direito da concorrência. De acordo com o artigo 17.° do Regulamento n.° 17 e o artigo 31.° do Regulamento n.° 1/2003, o Tribunal Geral, na acepção do artigo 229.° CE, conhece com plena jurisdição dos recursos interpostos das decisões em que tenha sido fixada uma coima pela Comissão e pode suprimir, reduzir ou aumentar a coima aplicada.

No âmbito dos recursos baseados no artigo 230.° CE, a fiscalização da legalidade de uma decisão da Comissão que imputa a pessoas singulares ou colectivas uma infracção ao direito da concorrência e que, por isso, lhes aplica uma coima deve ser considerada uma fiscalização jurisdicional efectiva dessa decisão. A intensidade da fiscalização exercida pelo juiz da União e, portanto, o carácter efectivo dos recursos interpostos das decisões em que a Comissão declara uma infracção às normas de concorrência e fixa uma coima são ainda reforçados pela competência de plena jurisdição conferida ao Tribunal Geral nessa matéria. Para além da simples fiscalização da legalidade, que só permite negar provimento ao recurso de anulação ou anular o acto impugnado, a competência de plena jurisdição de que dispõe habilita o juiz da União a revogar o acto impugnado, mesmo sem anulação, tendo em conta todas as circunstâncias de facto, a fim de, por exemplo, alterar o montante da coima aplicada.

(cf. n.os 225‑227)

15.    O artigo 81.° CE e, por analogia, o artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE) constituem disposições de ordem pública, indispensáveis ao desempenho das missões confiadas à Comunidade Europeia e ao EEE, pelo que a responsabilidade e a sanção em que incorrem as sociedades em caso de violação dessas disposições não podem ser deixadas à sua livre disposição.

(cf. n.° 229)

16.    Por força do artigo 5.° CE, a Comunidade Europeia actua dentro dos limites das competências e objectivos que lhe são conferidos pelo Tratado. Assim, só dispõe de competências atribuídas.

Quando a Comissão abre um procedimento para a adopção de uma decisão de verificação de uma infracção ao artigo 81.° CE e ao artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, só ela tem competência, nos termos do artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 ou do artigo 7.°, n.° 1, e do artigo 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003, para declarar essa infracção e aplicar coimas às empresas que, de forma dolosa ou negligente, nela tenham participado. Sob pena de violar o princípio das competências atribuídas, a Comissão não pode delegar em terceiros os poderes que lhe são conferidos por essas disposições.

Não se pode considerar que, num caso determinado, a Comissão delegou num juiz nacional ou num árbitro uma parte dos poderes que lhe são conferidos para declarar e punir essas infracções, quando a Comissão determinou, na decisão adoptada nesse mesmo caso, a parte da respectiva responsabilidade de duas sociedades distintas na participação da empresa em causa na infracção e, portanto, a respectiva quota‑parte no montante da coima em cujo pagamento estão solidariamente obrigadas face à Comissão.

(cf. n.os 233‑234, 236)

17.    A comunicação de acusações constitui um documento preparatório cujas apreciações de facto e de direito têm natureza puramente provisória. Por esta razão, a Comissão pode, e deve mesmo, atender a elementos que resultem do procedimento administrativo, com o fim de, designadamente, abandonar acusações que se tenham revelado infundadas. Assim, quando uma sociedade punida por violações do direito da concorrência tenha tido a possibilidade de apresentar utilmente o seu ponto de vista a respeito do abandono pela Comissão, na decisão recorrida, de uma acusação que tinha antes dirigido contra outras sociedades, para as responsabilizar solidariamente com a primeira pela participação de uma única e mesma empresa numa infracção, antes da adopção dessa decisão, os direitos de defesa dessa primeira empresa não foram violados por causa da discordância entre a comunicação de acusações e a decisão impugnada.

(cf. n.os 248‑249, 262)

18.    O papel de líder desempenhado por uma ou mais empresas no âmbito de um acordo deve ser tido em conta para efeitos do cálculo do montante da coima, na medida em que as empresas que tenham desempenhado tal papel devem assumir uma particular responsabilidade face às outras empresas. Para ser qualificada de líder de um cartel, uma empresa deve ter representado uma força motriz significativa para o cartel ou ter assumido uma responsabilidade particular e concreta no seu funcionamento. É esse o caso quando uma empresa desempenhou um papel de líder da infracção ao assumir as funções de «secretário europeu» do cartel, funções que lhe conferiam o papel de líder na coordenação do cartel e, de qualquer modo, no seu funcionamento concreto e, mais em particular, quando esse «secretário europeu» era o ponto de contacto entre os membros do acordo e desempenhava um papel crucial no seu funcionamento concreto, na medida em que facilitava a troca de informações no cartel, centralizava, compilava e trocava com os outros membros do acordo informações essenciais ao seu funcionamento concreto, nomeadamente as informações relativas a determinados projectos particularmente importantes, na medida em que organizava e assegurava o secretariado das reuniões de trabalho e na medida em que, ocasionalmente, mudava os códigos que serviam para dissimular essas reuniões ou esses contactos.

(cf. n.os 280, 283, 287)

19.    Em matéria de concorrência, no caso de uma infracção de longa duração ao longo da qual diversas empresas, sob a direcção de diferentes sociedades, desempenharam sucessivamente, por períodos determinados, o papel de líder da infracção, os princípios da igualdade de tratamento e da proporcionalidade exigem que seja aplicada às sociedades que tenham dirigido uma ou mais empresas que tenham desempenhado, sob a sua direcção, o papel de «líder da infracção» uma majoração diferente do montante de base da sua coima quando o período em que essa ou essas empresas desempenharam, sob a sua direcção, esse papel seja substancialmente diferente. O papel de líder é relativo ao funcionamento do acordo e que, ao contrário do papel de instigador da infracção, se inscreve necessariamente num certo período. Portanto, há que ter em conta que pode ser imputado a uma sociedade que tenha dirigido uma das empresas que participaram no acordo o papel motor desempenhado por esta no funcionamento do acordo durante, no máximo, um pouco mais de um quarto do período de infracção quando a outra sociedade, que dirigiu outra empresa participante no acordo, pode ser imputado o papel motor desempenhado por esta no funcionamento do acordo durante perto de três quartos desse período.

Daí resulta que a Comissão violou os princípios da igualdade de tratamento e da proporcionalidade ao aplicar uma majoração idêntica do montante de base da coima a sociedades que desempenharam, através de empresas que dirigiam, o papel de líder do cartel, apesar de os períodos em que a ou as empresas em causa exerceram, sob a sua direcção, as funções de «secretário europeu» do acordo serem substancialmente diferentes.

Em contrapartida, mesmo admitindo que a Comissão tivesse feito uma aplicação ilegal dos critérios relativos à qualificação de líder da infracção ao não proceder a essa qualificação contra uma empresa, a despeito do papel significativo desempenhado por esta no acordo, essa ilegalidade, cometida a favor de outrem, não justificaria que se julgassem procedentes as alegações de violação do princípio da igualdade de tratamento ou da não discriminação.

(cf. n.os 307‑308, 311‑312)

20.    A competência de plena jurisdição conferida ao juiz da União pelo artigo 17.° do Regulamento n.° 17 e pelo artigo 31.° do Regulamento n.° 1/2003 permite‑lhe, para além da mera fiscalização da legalidade da sanção, substituir a apreciação da Comissão pela sua e, consequentemente, suprimir, reduzir ou agravar a coima aplicada quando a questão do seu montante estiver sujeita à sua apreciação. No âmbito desta apreciação, importa que a majoração pelo papel de líder da infracção desempenhado pela empresa em causa seja fixada num nível que garanta o seu carácter dissuasor.

(cf. n.os 318‑319)

21.    No caso de aplicação de coimas a várias sociedades pela participação de empresas, colocadas sob a sua direcção, numa infracção às normas da concorrência e ao determinar os respectivos montantes, a Comissão não se afasta do método de cálculo enunciado nas orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° CECA, não vai além do quadro jurídico das sanções definido pelo artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e pelo artigo 23.° do Regulamento n.° 1/2003 nem viola o princípio da proporcionalidade ao decidir basear‑se, em princípio, no volume de negócios mundial relativo aos projectos em causa realizado por cada empresa no último ano completo de infracção, para efeitos de apreciar a sua dimensão e o seu poder económico relativos no momento da infracção. É especialmente esse o caso quando a Comissão considera que, tendo em conta o carácter mundial do acordo, importa tomar como base de comparação da importância relativa de cada empresa a parte do volume de negócios mundial relativa aos projectos abrangidos pelo cartel, parte detida por cada empresa no último ano completo de participação da empresa na infracção, uma vez que essa base de comparação é susceptível de reflectir fielmente a capacidade de cada empresa para prejudicar gravemente os outros operadores no território do Espaço Económico Europeu e de fornecer uma indicação da sua contribuição para a eficácia do acordo no seu conjunto ou, pelo contrário, da instabilidade que teria reinado no interior do cartel se ela não tivesse participado.

(cf. n.os 360, 362)