Language of document : ECLI:EU:C:2000:199

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

11 de Abril de 2000 (1)

«Livre prestação de serviços - Regras de concorrência aplicáveis às empresas - Judocas - Regulamentações desportivas que prevêem quotas nacionais e processos de selecção pelas federações nacionais para a participação em torneios internacionais»

Nos processos apensos C-51/96 e C-191/97,

que têm por objecto pedidos dirigidos ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), pelo Tribunal de première instance de Namur (Bélgica), destinados a obter, nos litígios pendentes neste órgão jurisdicional entre

Christelle Deliège

e

Ligue francophone de judo et disciplines associées ASBL,

Ligue belge de judo ASBL,

Union européenne de judo (C-51/96)

e entre

Christelle Deliège

e

Ligue francophone de judo et disciplines associées ASBL,

Ligue belge de judo ASBL,

François Pacquée (C-191/97),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE), 60.°, 66.°, 85.° e 86.° do Tratado CE (actuais artigos 50.° CE, 55.° CE, 81.° CE e 82.° CE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J. C. Moitinho de Almeida, D. A. O. Edward e L. Sevón, presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn, J.-P. Puissochet, G. Hirsch, P. Jann e H. Ragnemalm (relator), juízes,

advogado-geral: G. Cosmas,


secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação de C. Deliège, por L. Misson e B. Borbouse, advogados no foro de Liége,

-    em representação da Ligue francophone de judo et disciplines associées ASBL, por C. Dabin-Serlez e B. Lietar, advogados no foro de Wavre,

-    em representação la Ligue belge de judo ASBL, por G. de Smedt e L. Carle, advogados no foro de Lokeren, bem como por H. van Houtte e F. Louis, advogados no foro de Bruxelas, e em representação da Ligue belge de judo e de F. Pacquée, por G. de Smedt (C-191/97),

-    em representação do Governo belga, por J. Devadder, consultor geral no Serviço Jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Comércio Externo e da Cooperação para o Desenvolvimento (C-51/96 e C-191/97), e por R. Foucard, director-geral do Serviço jurídico do mesmo ministério (C-191/97), na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo alemão, por E. Röder, Ministerialrat no Ministério federal da Economia e S. Maass, Regierungsrätin no mesmoministério (C-151/96), bem como por E. Röder e C.-D. Quassowski, Regierungsdirektor no mesmo ministério (C-191/97), na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo helénico, por G. Kanellopoulos, consultor jurídico adjunto no Conselho Jurídico do Estado, e P. Mylonopoulos, consultor jurídico adjunto no Serviço Jurídico especial - Secção de Direito Europeu do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo espanhol, por L. Pérez de Ayala Becerril, abogado del Estado, na qualidade de agente (C-191/97),

-    em representação do Governo francês, por C. de Salins, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e A. de Bourgoing, encarregada de missão na mesma direcção, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo italiano, pelo professor U. Leanza, chefe do Serviço do Contencioso Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, assistido por D. Del Gaizo, avvocato dello Stato (C-151/96),

-    em representação do Governo neerlandês, por A. Bos, consultor jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros (C-151/96), e J. G. Lammers, consultor jurídico substituto no mesmo ministério (C-191/97), na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo austríaco, por W. Okresek, Ministerialrat no Ministério dos Negócios Estrangeiros (C-51/96), e C. Stix-Hackl, Gesandte no mesmo ministério (C-191/97), na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo finlandês, por T. Pynnä, valtionasiamies, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo sueco, por E. Brattgård, departementsråd no Departamento do Comércio Externo do Ministério dos Negócios Estrangeiros (C-151/96), e L. Nordling, rättschef no mesmo departamento (C-191/97), na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo norueguês, por B. B. Ekeberg, chefe interina do serviço no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por A. Caeiro, consultor jurídico, e W. Wils, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações de C. Deliège, representada por L. Misson e B. Borbouse, da Ligue francophone de judo et disciplines associées ASBL, representada por B. Lietar, da Ligue belge de judo ASBL e de S. Pacquée, representados por L. Carle, F. Louis e T. Geurts, advogado no foro de Termonde, do Governo belga, representado por A. Snoecx, consultor na Direcção-Geral dos Assuntos Jurídicos no Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Comércio Externo e da Cooperação para o Desenvolvimento, na qualidade de agente, do Governo dinamarquês, representado por J. Molde, chefe de divisão no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo helénico, representado por G. Kanellopoulos, do Governo espanhol, representado por N. Díaz Abad, Abogado del Estado, na qualidade de agente, do Governo francês, representado por A. de Bourgoing, do Governo italiano, representado por D. Del Gaizo, do Governo neerlandês, representado por M. A. Fierstra, consultor jurídico adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo finlandês, representado por T. Pynnä, do Governo sueco, representado por A. Kruse, departementsråd no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, e da Comissão, representada por W. Wils, na audiência de 23 de Fevereiro de 1999,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 18 de Maio de 1999,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por despacho de 16 de Fevereiro de 1996 (C-51/96), entrado no Tribunal de Justiça em 21 de Fevereiro de 1996, e por decisão de 14 de Maio de 1997 (C-191/97), entrada no Tribunal de Justiça em 20 de Maio de 1997, o Tribunal de première instance de Namur (Bélgica) decidindo, respectivamente, em processo de medidas provisórias e quanto ao mérito, submeter, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE),duas questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE), 60.°, 66.°, 85.° e 86.° do Tratado CE (actuais artigos 50.° CE, 55.° CE, 81.° CE e 82.° CE).

2.
    Estas questões foram suscitadas no âmbito de litígios que opõem C. Deliège à Ligue francophone de judo et disciplines associées ASBL (a seguir «LFJ»), à Ligue belge de judo ASBL (a seguir «LBJ») e ao presidente desta, François Pacquée, acerca da recusa de a seleccionarem para participar no torneio internacional de judo de Paris, na categoria de menos de 52 Kg.

As regras de organização e de selecção do judo

3.
    O judo, desporto de combate individual, é organizado à escala mundial pela Federação Internacional de Judo (a seguir «FIJ»). A nível europeu, existe uma federação denominada União Europeia de Judo (a seguir «UEJ»), que agrupa as diferentes federações nacionais. A federação belga é a LBJ, que se ocupa essencialmente das competições internacionais e faz a selecção dos atletas com vista à sua participação nos torneios internacionais. A LBJ é composta por duas ligas regionais, a Vlaamse Judofederatie (a seguir «VJF») e a LFJ. Os membros da LBJ são as duas ligas regionais, bem como os clubes que fazem parte destas últimas. Os judocas são filiados num clube que é, ele mesmo, membro da liga regional, a qual passa aos filiados a licença necessária para participar em cursos ou em competições. O detentor de uma licença é obrigado a cumprir todas as obrigações impostas pela liga regional, através dos seus estatutos e dos seus regulamentos.

4.
    Tradicionalmente, os atletas são classificados em função do seu sexo e de sete categorias de peso, ou seja, um total de catorze categorias diferentes. Na sua assembleia técnica e desportiva de Amesterdão, em 5 de Fevereiro de 1994, e no seu congresso ordinário de Nicósia, em 9 de Abril de 1994, o comité director da UEJ adoptou regras relativas à participação nos torneios europeus ditos de categoria A. Os referidos torneios, tal como os campeonatos da Europa de Maio de 1996, permitiam obter pontos para a classificação nas listas europeias que podiam determinar as qualificações para os jogos olímpicos de Atlanta de 1996. Estava previsto que apenas as federações nacionais podiam inscrever os seus atletas e que, por cada federação europeia, podiam ser inscritos nas referidas listas sete judocas de cada sexo, ou seja, em princípio, um judoca por categoria. Todavia, se nenhum atleta fosse designado numa categoria, era possível inscrever dois judocas noutra categoria, sem nunca exceder o limite de sete homens e sete mulheres. Tal como foi exposto pela LFJ na audiência do Tribunal de Justiça, a nacionalidade do judoca não tinha qualquer incidência neste contexto, apenas sendo tida em consideração a sua filiação na federação nacional.

5.
    Em conformidade com os critérios de selecção para os jogos olímpicos de Atlanta, adoptados pela FIJ em 19 de Outubro de 1993, em Madrid, eram designadamente qualificados para estes jogos, em cada categoria, os oito primeiros judocas dos últimos campeonatos do mundo, bem como um certo número de judocas por cada continente (para a Europa, nove homens e cinco mulheres em cada categoria), a determinar com base nos resultados obtidos por cada judoca no decurso de um certo número de torneios durante o período pré-olímpico. Para este efeito, a UEJ precisou, na assembleia de Amesterdão e no congresso de Nicósia já referidos, que seriam tidos em consideração os três melhores resultados obtidos em torneios da categoria A e em campeonatos da Europa seniores, durante o período compreendido entre os campeonatos do mundo de 1995 e os campeonatos da Europa de 1996. Previu igualmente que seriam qualificadas as federações e não os judocas pessoalmente.

Os litígios nos processos principais e as questões prejudiciais

6.
    C. Deliège pratica judo desde 1983 e, desde 1987, tem obtido excelentes resultados na categoria de menos 52 Kg, entre os quais diversos títulos de campeã da Bélgica, um título de campeã da Europa e um título de campeã do mundo de atletas com menos de 19 anos, bem como vitórias e classificações prestigiosas em torneios internacionais. Subsiste entre as partes no processo principal um desacordo quanto ao estatuto de C. Deliège, pois esta última pretende que exerce o judo a título profissional ou semi-profissional, ao passo que a LBJ e a LFJ alegam que o judo é um desporto que, na Europa e, em especial, na Bélgica, é praticado por amadores.

7.
    C. Deliège alega que, desde 1992, os responsáveis da LFJ e da LBJ entravaram de modo abusivo o desenrolar da sua carreira. Queixa-se, nomeadamente, de ter sido impedida de participar nos jogos olímpicos de Barcelona de 1992 e de não ter sido seleccionada para os campeonatos do mundo de 1993 nem para os campeonatos da Europa de 1994. Em Março de 1995, C. Deliège foi informada de que não tinha sido pré-seleccionada para os jogos olímpicos de Atlanta. Em Abril de 1995, quando se preparava para participar nos campeonatos da Europa, que deviam decorrer em Maio, foi excluída da equipa belga a favor de uma atleta filiada na VJF. Em Dezembro de 1995, foi impedida de participar no torneio internacional de categoria A de Basileia.

8.
    A LFJ alega que C. Deliège entrou, por diversas vezes, em conflito com os treinadores, seleccionadores ou responsáveis da LFJ e da LBJ e que é pouco disciplinada, tendo, nomeadamente, sido objecto de uma sanção de suspensão temporária de todas as actividades federativas. Além disso, teve dificuldades de ordem desportiva, pois a Bélgica dispunha de, pelo menos, quatro judocas de alto-nível na categoria de menos de 52 Kg A LBJ indica que as decisões relativas à selecção dos atletas com vista à participação nos diferentes torneios e campeonatos são tomadas pela Comissão Desportiva Nacional, órgão constituído paritariamente por membros da VJF e da LFJ.

9.
    Os factos que se encontram directamente na origem dos processos principais dizem respeito à participação no torneio internacional de categoria A de Paris, de 10 e 11 de Fevereiro de 1996. Tendo a LBJ seleccionado dois outros atletas que, segundo C. Deliège, tinham obtido resultados desportivos menos brilhantes que os seus, esta última intentou, em 26 de Janeiro de 1996, um processo de medidas provisórias no Tribunal de première instance de Namur.

Processo C-51/96

10.
    C. Deliège pediu ao Tribunal de première instance de Namur, em processo de medidas provisórias, que fosse ordenado à LFJ e à LBJ que cumprissem todas as formalidades necessárias para a sua participação no torneio de Paris e que fosse reenviada ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial relativa ao carácter ilícitodas regras adoptadas pela UEJ quanto ao número limitado de atletas por federação nacional e quanto às autorizações federais para a participação em torneios individuais de categoria A, à luz dos artigos 59.°, 60.°, 66.°, 85.° e 86.° do Tratado. Por citação de 9 de Fevereiro de 1996, C. Deliège chamou à acção, como garante, a UEJ e pediu ao juiz das medidas provisórias a quem foi submetido o litígio que ordenasse a todos os organizadores do torneios de categoria A que aceitassem, a título provisório, qualquer inscrição sua, quer ela tivesse sido seleccionada ou não pela sua federação nacional.

11.
    Por despacho de 6 de Fevereiro de 1996, o juiz das medidas provisórias do Tribunal de première instance de Namur indeferiu o pedido formulado por C. Deliège, no que concerne à sua participação no torneio de Paris, mas proibiu a LBJ e a LFJ de tomarem qualquer decisão que implicasse a não selecção da recorrente para qualquer competição futura, até que as partes chegassem de novo a acordo sobre os outros pedidos.

12.
    Por despacho de 16 de Fevereiro de 1996, o mesmo juiz julgou, em primeiro lugar, inadmissível o pedido de intervenção provocada apresentado contra a UEJ.

13.
    Seguidamente, o juiz de reenvio indicou que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o exercício de um desporto é abrangido pelo direito comunitário na medida em que possa constituir uma actividade económica na acepção do artigo 2.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 2.° CE). Devido à evolução recente da prática desportiva, a distinção entre um amador e um atleta profissional atenuou-se. Os desportistas de alto-nível podem receber, para além de bolsas ou de outros auxílios, rendimentos mais elevados, devido à notoriedade de que gozam, pelo que fornecem prestações de carácter económico.

14.
    Segundo o juiz de reenvio, C. Deliège pretende ter uma aparência de direito bastante para ser considerada como uma prestadora de serviços na acepção dos artigos 59.°, 60.° e 66.° do Tratado. A exigência sistemática de uma quota e de uma selecção a nível nacional parece constituir um entrave ao livre exercício de uma prestação de carácter económico. De resto, não pode razoavelmente sustentar-se que o acesso às competições reinvindicado por C. Deliège leve a permitir a qualquer pessoa participar em qualquer torneio, pois a competição pode ser aberta a toda e qualquer desportista que preencha critérios objectivos de aptidão, como demonstra a experiência de outros desportos comparáveis.

15.
    Tendo, nomeadamente, em conta, a proximidade dos jogos olímpicos de Atlanta e da relativa brevidade de uma carreira desportista de alto-nível, o juiz nacional considerou, portanto, que o pedido de C. Deliège de que ele submetesse uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça tinha uma «aparente pertinência». O facto de nenhuma acção quanto ao mérito da questão ter sido proposta não constituía obstáculo a que tal questão fosse reenviada. Esta questão poderia ser concebida como um elemento de solução do litígio no processo de medidasprovisórias ou como uma medida de instrução adequada para acelerar um processo quanto ao mérito, cuja propositura parecia estar nas intenções da recorrente.

16.
    Por conseguinte, o juiz do processo de medidas provisórias do Tribunal de première instance de Namur submeteu ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«Um regulamento que exige que um atleta profissional, semi-profissional ou candidato a esse estatuto, tenha uma autorização ou seja seleccionado pela sua federação nacional para poder entrar numa competição internacional e que prevê quotas nacionais de inscrição ou competições daquele tipo, é ou não contrário ao Tratado de Roma, nomeadamente aos artigos 59.° a 66.°, bem como aos artigos 85.° e 86.°?»

17.
    Finalmente, quanto ao arranjo de uma situação de espera, o juiz de reenvio verificou que os pedidos feitos por C. Deliège contra a LBJ e a LFJ não podiam ser deferidos. No entanto, considerou que era conveniente assegurar à recorrente protecção contra um prejuízo grave, através do arranjo de uma situação de espera que não prejudicasse os interesses dos outros desportistas.

18.
    Enquanto se esperava a propositura de uma acção quanto ao mérito da questão, proibiu, portanto, a LBJ e a LFJ de praticarem qualquer acto tendente a restringir ou a impedir a livre prática pela recorrente da sua actividade de judoca, nomeadamente em competições nacionais ou internacionais, que não fosse objectivamente justificada, quer pela avaliação da sua aptidão física ou do seu comportamento, quer pela apreciação relativa do seu mérito em relação ao de outros atletas concorrentes. Esta medida devia deixar de produzir efeitos um mês após a prolação do despacho, se não fosse intentada por C. Deliège uma acção quanto ao mérito da questão.

Processo C-191/97

19.
    Por citações de 27 de Fevereiro e de 1 de Março de 1996, C. Deliège propôs uma acção quanto ao mérito da questão contra a LFJ, a LBJ e F. Pacquée, no Tribunal de première instance de Namur. Nesta acção, pedia-se que este último, em primeiro lugar, declarasse que o sistema de selecção dos judocas para os torneios internacionais, tal como está organizado pelos regulamentos das duas federações referidas, é ilegal, por conferir a estas um poder susceptível de entravar o direito dos judocas à livre prestação de serviços e à liberdade profissional destes desportistas; em segundo lugar, que reenviasse ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial; em terceiro lugar que esquematizasse uma situação de espera no caso de essa questão ser reenviada e, em último lugar, que condenasse a LFJ e a LPJ a pagarem-lhe o montante de 30 milhões de BEF, a título de indemnização por prejuízos.

20.
    Na sua decisão, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que existia um risco evidente de ver o Tribunal de Justiça declarar inadmissível a questão reenviada no processo C-51/96, pelo facto de o juiz das medidas provisórias ter esvaziado inteiramente o pedido que lhe fora feito. Decidiu, portanto, que não havia que esperar o acórdão do Tribunal de Justiça neste primeiro processo e que, sendo incerta a resposta à questão colocada no processo que tinha que decidir, lhe competia reenviar ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão a título prejudicial.

21.
    Quanto ao pedido de C. Deliège de que fosse organizada uma situação de espera, pareceu-lhe muito difícil, ou mesmo impossível, organizar na prática uma tal situação respeitando o interesse de todas as partes, não tendo a interessada proposto qualquer medida concreta a esta respeito.

22.
    Foi nestas condições que o Tribunal de première instance de Namur suspendeu a instância e reenviou ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«A obrigatoriedade, para um atleta profissional ou semi-profissional ou candidato a uma actividade profissional ou semi-profissional, de possuir uma autorização da sua federação para poder alinhar numa competição internacional que não opõe equipas nacionais, está ou não em contradição com o Tratado de Roma, designadamente com os artigos 59.°, 85.° e 86.° desse Tratado?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça para responder às questões prejudiciais e quanto à admissibilidade destas

23.
    A LFJ, a LBJ, F. Pacquée, os Governos belga, helénico e italiano e a Comissão contestaram, por razões diversas, a competência do Tribunal de Justiça para responder à questão submetida no processo C-151/96 e a admissibilidade desta questão, no todo ou em parte.

24.
    Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio deu resposta a todos os pedidos da recorrente e, deste modo, decidiu o litígio. Estando o processo principal terminado na data em que foi reenviada a questão para o Tribunal de Justiça, a resposta a esta já não tem interesse para o órgão jurisdicional de reenvio. Nestas circunstâncias, resulta dos acórdãos de 21 de Abril de 1988, Fratelli Pardini (338/85, Colect., p. 2041), e de 4 de Outubro de 1995, Society for the Protection of Unborn Children Ireland (C-159/90, Colect., p. I-4685) que o Tribunal não é competente para lhe dar resposta.

25.
    Seguidamente, a questão tem um carácter hipotético e diz respeito a uma matéria - o desporto amador - que não é abrangida pelo direito comunitário.

26.
    Finalmente, o juiz nacional não definiu de modo suficiente o quadro factual e regulamentar em que a questão se suscita, exigência que se impõe muito particularmente no domínio da concorrência, que é caracterizada por situações defacto e de direito complexas (acórdão de 26 de Janeiro de 1993, Telemarsicabruzzo e o., C-320/90 a C-322/90, Colect., p. I-393).

27.
    A competência do Tribunal de Justiça para dar resposta a toda ou a parte da questão prejudicial submetida no processo C-191/97 e a admissibilidade desta questão são também contestadas pela LFJ, a LBJ e F. Pacquée, bem como pelo Governo helénico e pela Comissão. Estes alegaram, nomeadamente, que o juiz de reenvio não forneceu indicações bastantes quanto ao quadro factual e regulamentar, que a questão diz respeito a uma matéria alheia ao direito comunitário, que os direitos de defesa da UEJ e da FIJ foram ignorados e que a questão submetida tem um carácter hipotético, por se referir a encontros que não os que decorrem entre equipas nacionais.

28.
    Em primeiro lugar, há que salientar que o problema de saber se as questões submetidas pelo órgão jurisdicional nacional dizem respeito a uma matéria alheia ao direito comunitário, quer por o desporto amador estar fora do âmbito do Tratado, quer por os encontros visados pelo referido órgão jurisdicional oporem equipas nacionais, faz parte do mérito das questões submetidas e não da admissibilidade destas.

29.
    Em segundo lugar quanto à alegada violação dos direitos de defesa da FIJ e da UFJ, não compete ao Tribunal de Justiça verificar se a decisão de reenvio foi tomada em conformidade com as regras nacionais de organização e de processo judiciais (v., nomeadamente, acórdãos de 11 de Julho de 1996, SFEI e o., C-39/94, Colect., p. I-3547, n.° 24, e de 5 de Junho de 1997, Celestini, C-105/94, Colect., p. I-2971, n.° 20). Segue-se que o Tribunal de Justiça não tem que se pronunciar sobre a questão de saber se a FIJ e a UEJ deveriam ter sido chamadas à demanda nos processos principais.

30.
    Em terceiro lugar, deve recordar-se que, em conformidade com uma jurisprudência constante, a necessidade de fazer uma interpretação do direito comunitário que seja útil para o juiz nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que se baseiam essas questões. Estas exigências são particularmente válidas em certos domínios, como o da concorrência, caracterizados por situações de facto e de direito complexas (v., nomeadamente, acórdãos Telemarsicabruzzo e o., já referido, n.os 6 e 7; de 21 de Setembro de 1999, Albany, C-67/96, Colect., p. I-0000, n.° 39, e Brentjens', C-115/97 a C-117/97, Colect., p. I-0000, n.° 38).

31.
    As informações fornecidas nas decisões de reenvio devem não apenas permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis, mas também dar aos Governos dos Estados-Membros e às outras partes interessadas a possibilidade de apresentarem observações em conformidade com o artigo 20.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça. Incumbe ao Tribunal de Justiça velar por que esta possibilidade seja salvaguardada, tendo em conta o facto de, por força da disposição referida, apenasserem notificadas às partes interessadas as decisões de reenvio (v., nomeadamente, despachos de 23 de Março de 1995, Saddik, C-458/93, Colect., p. I-511, n.° 13; acórdãos já referidos, Albany, n.° 40, e Brentjens', n.° 39).

32.
    No que concerne ao processo C-191/97, que é conveniente examinar em primeiro lugar, resulta, por um lado, das observações apresentadas pelas partes no processo principal, pelos Governos dos Estados-Membros, pelo Governo Norueguês e pela Comissão, em conformidade com a referida disposição do Estado CE do Tribunal de Justiça, que as informações contidas na decisão de reenvio lhe permitiram tomar utilmente posição sobre a questão submetida ao Tribunal de Justiça, na medida em que esta diz respeito às regras do Tratado relativas à livre prestação de serviços.

33.
    Além disso, mesmo que os Governos helénico, espanhol e italiano tenham podido considerar as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio não lhes permitiam tomar posição sobre a questão de saber se a recorrente no processo principal exerce uma actividade económica na acepção do Tratado, importa sublinhar que estes governos e as outras partes interessadas estavam em condições de observações com base nas descrições factuais do referido órgão jurisdicional.

34.
    De resto, as informações contidas na decisão de reenvio foram completadas pelos elementos resultantes dos autos enviados pelo órgão jurisdicional nacional e das observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça. O conjunto destes elementos, retomado no relatório para audiência, foi levado ao conhecimento dos Governos dos Estados-Membros e das outras partes interessadas com vista à audiência, no decurso a qual puderam, eventualmente, completar as suas observações (v. também neste sentido, acórdãos já referidos Albany, n.° 43, e Brentjens', n.° 42).

35.
    Por outro lado, as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional nacional, completadas, na medida do necessário, pelos elementos referidos, dão ao Tribunal de Justiça um conhecimento suficiente do quadro factual e regulamentar do litígio no processo principal para poder interpretar as regras do Tratado relativas à livre prestação de serviços à luz da situação que constitui objecto deste litígio.

36.
    Em contrapartida, na medida em que a questão submetida incide sobre as regras de concorrência aplicável às empresas, o Tribunal não se considera suficientemente esclarecido para dar indicações quanto à definição do ou dos mercados em causa no processo principal. A decisão de reenvio também não mostra mais claramente quais são a natureza e o número das empresas que exercem a sua actividade no ou nos mercados. Além disso, as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio não permitem ao Tribunal pronunciar-se utilmente quanto à existência e à importância das trocas entre Estados-Membros ou quanto à possibilidade de estas serem afectadas pelas regras de selecção dos judocas.

37.
    É forçoso, portanto, declarar que a decisão de reenvio não contém indicações suficientes para cumprir as exigências recordadas nos n.os 30 e 31 do presente acórdão quanto às regras da concorrência.

38.
    No que concerne à questão suscitada no processo C-51/96, o despacho de reenvio também não contém indicações suficientes para permitir ao Tribunal de Justiça pronunciar-se utilmente sobre a interpretação das regras da concorrência aplicáveis às empresas. Em contrapartida, as informações fornecidas pelo referido despacho, eventualmente completadas pelos elementos contidos nas observações escritas apresentadas nos termos do artigo 20.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça e retomadas no relatório para audiência, bem como as indicações resultantes da decisão de reenvio no processo C-191/97 permitiram às partes interessadas tomar posição sobre a interpretação das regras relativas à livre prestação de serviços e ao Tribunal de Justiça ter um conhecimento suficiente do quadro factual e regulamentar para poder utilmente pronunciar-se a este respeito.

39.
    Não obstante a sua formulação ligeiramente diferente, as questões suscitadas nos dois processos principais são, em substância, idênticas e, nestas condições, não é necessário examinar desde já os argumentos que põem em causa de modo específico a admissibilidade da questão do processo C-51/96.

40.
    Resulta do que precede que o Tribunal deve responder às questões suscitadas na medida em que incidam sobre a interpretação das regras do Tratado relativas à livre prestação de serviços. Em contrapartida, as referidas questões são inadmissíveis na medida em que digam respeito à interpretação das regras da concorrência aplicáveis às empresas.

Quanto à interpretação do artigo 59.° do Tratado

41.
    A título preliminar, há que recordar que, tendo presentes os objectivos da Comunidade, a prática de desportos só é abrangida pelo direito comunitário na medida em que constitua uma actividade económica na acepção do artigo 2.° do Tratado (v. acórdãos de 12 de Dezembro de 1974, Walrave e Koch, 36/74, Colect., p. 595, n.° 4, e de 15 de Dezembro de 1995, Bosman, C-415/93, Colect., p. I-4921, n.° 73). De resto, o Tribunal de Justiça reconheceu que a actividade desportiva se reveste de uma importância social considerável na Comunidade (v. acórdão Bosman, já referido, n.° 106).

42.
    Esta jurisprudência é ainda confortada pela Declaração n.° 29 relativa ao desporto, que consta em anexo ao acto final da conferência que adoptou o texto do Tratado de Amsterdão, que salienta o significado social do desporto e convida, nomeadamente, as instituições da União Europeia a terem muito especialmente em conta as características particulares do desporto amador. Em especial, esta declaração é coerente com a referida jurisprudência, na medida em que diz respeito a situações em que o exercício do desporto constitui uma actividade económica.

43.
    Cabe recordar que as disposições do Tratado em matéria de livre circulação de pessoas não se opõem a regulamentações ou práticas que excluam os jogadores estrangeiros da participação em determinados encontros, por razões que não sejam económicas mas inerentes à natureza e ao contexto específicos destes encontros e que interessam unicamente ao desporto como tal, como acontece com os encontros entre equipas nacionais de diferentes países. O Tribunal de Justiça salientou, no entanto, que esta restrição do âmbito do Tratado deve ser mantida dentro dos limites do seu próprio objecto e não pode ser invocada para deles excluir toda uma actividade desportiva (acórdãos de 14 de Julho de 1976, Donà, 13/76, Colect., p. 545, n.os 14 e 15, e Bosman, já referido, n.os 76 e 127).

44.
    Ora, as regras de selecção em causa no processo principal não se referem a encontros que oponham equipas ou selecções nacionais de diferentes países, incluindo apenas nacionais do Estado de que a federação que os seleccionou depende, tais como jogos olímpicos ou certos campeonatos do mundo ou da Europa, antes reservam a participação, por federação nacional, em certos outros encontros internacionais de alto-nível aos atletas filiados na federação em causa, independentemente da sua nacionalidade. A simples circunstância de as classificações obtidas pelos atletas nestas competições serem tomadas em conta para determinar os países que poderão inscrever representantes nos jogos olímpicos não pode justificar a equiparação destes a encontros entre equipas nacionais que podem escapar ao âmbito do direito comunitário.

45.
    A LFJ sustentou, nomeadamente, que as associações e federações desportivas têm o direito de determinar livremente as condições de acesso a competições que dizem respeito apenas a desportistas amadores.

46.
    A este respeito, importa salientar que a simples circunstância de uma associação ou federação desportiva qualificar unilateralmente como amadores os atletas que delas são membros não é, por si só, susceptível de excluir que estes exerçam actividades económicas na acepção do artigo 2.° do Tratado.

47.
    Quanto à natureza das regras em litígio, resulta dos acórdãos já referidos, Walrave e Koch (n.os 17 e 18) e Bosman (n.os 82 e 83) que as disposições comunitárias em matéria de livre circulação das pessoas e de serviços não regulam apenas a acção das autoridades públicas, antes se estendem também às regulamentações de outra natureza destinadas a disciplinar, de modo colectivo, o trabalho assalariado e as prestações de serviços. Com efeito, a abolição dos obstáculos à livre circulação de pessoas e à livre prestação de serviços entre os Estados-Membros seria comprometida se a abolição das barreiras de origem estatal pudesse ser neutralizada por obstáculos resultantes do exercício da sua autonomia jurídica por associações ou organismos de direito privado.

48.
    Segue-se que o Tratado, nomeadamente os seus artigos 59.°, 60.° e 66.°, é susceptível de ser aplicado às actividades desportivas e às regras adoptadas pelas associações desportivas, tais como as que estão em causa no processo principal.

49.
    Tendo em conta o que precede e os debates que decorreram perante o Tribunal de Justiça, importa verificar se uma actividade como a exercida por C. Deliège é susceptível de constituir uma actividade económica na acepção do artigo 2.° do Tratado e, mais especialmente, uma prestação de serviços na acepção do artigo 59.° do mesmo Tratado.

50.
    No quadro da cooperação instituída pelo processo prejudicial entre o juiz nacional e o Tribunal, cabe ao primeiro determinar e apreciar os factos do processo (v., nomeadamente, acórdão de 3 de Junho de 1986, Kempf, 139/85, Colect., p. 1741, n.° 12) e ao Tribunal de Justiça fornecer ao órgão jurisdicional nacional os elementos de interpretação necessários para lhe permitir decidir o litígio (acórdão de 22 de Maio de 1990, Alimenta, C-332/88, Colect., p. I-2077, n.° 9).

51.
    A este respeito, importa declarar, antes de mais, que a decisão de reenvio no processo C-191/97 evoca, nomeadamente, bolsas pagas em função dos resultados desportivos anteriores e contratos de patrocínio directamente ligados aos resultados obtidos pelo atleta. De resto, C. Deliège alegou perante o Tribunal, apresentando certos documentos em apoio das suas afirmações, que tinha recebido, devido às suas prestações desportivas, bolsas da Comunidade Francesa da Bélgica e do Comité Olímpico e Interfederal Belga e que tinha sido patrocinada por uma instituição bancária e por um construtor de automóveis.

52.
    Seguidamente, quanto às noções de actividade económica e de prestação de serviços na acepção dos artigos 2.° e 59.°, respectivamente, do Tratado, há que salientar que elas definem o âmbito de uma das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado e, a este título, não podem ser interpretadas restritivamente (v., neste sentido, acórdão de 23 de Março de 1982, Levin, 53/81, Recueil, p. 1035, n.° 13).

53.
    No que diz mais especialmente respeito à primeira destas noções, resulta de uma jurisprudência constante (acórdãos Donà, já referido, n.° 12, e de 5 de Outubro de 1988, Steymann, 196/87, Colect., p. 6159, n.° 10) que uma prestação de trabalho assalariado ou uma prestação de serviços remunerados deve ser encarada como uma actividade económica na acepção do artigo 2.° do Tratado.

54.
    Todavia, tal como o Tribunal decidiu nomeadamente nos acórdãos já referidos Levin (n.° 17) e Steymann (n.° 13), as actividades exercidas devem ser reais e efectivas e não de natureza tal que se possam considerar como puramente marginais e acessórias.

55.
    Quanto à prestação de serviços, resulta do artigo 60.°, primeiro parágrafo, do Tratado que, na acepção desta disposição, se consideram como prestações de serviços as prestações realizadas normalmente mediante remuneração, na medidaem que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas.

56.
    A este respeito, deve dizer-se que as actividades desportivas e, nomeadamente, a participação de um atleta de alto-nível numa competição internacional são susceptíveis de implicar a prestação de diversos serviços distintos, embora estreitamente interligados, que podem ser abrangidos pelo artigo 59.° do Tratado, mesmo que alguns destes serviços não sejam pagos por quem deles beneficia (v. acórdão de 26 de Abril de 1988, Bond van Adverteerders e o., 352/85, Colect., p. 2085, n.° 16).

57.
    A título de exemplo, o organizador dessa competência oferece ao atleta a possibilidade de exercer a sua actividade desportiva comparando-se com outros competidores e, correlativamente, os atletas, através da sua participação na competição, permitem ao organizador apresentar um espectáculo desportivo a que o público pode assistir, que emissores de programas de televisivos podem retransmitir e que podem interessar a anunciantes publicitários e patrocinadores. Além disso, o atleta fornece aos seus próprios patrocinadores uma prestação publicitária que encontra o seu suporte na própria actividade desportiva.

58.
    Finalmente, no que respeita às objecções feitas nas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, segundo as quais, por um lado, os processos principais dizem respeito a uma situação puramente interna e, por outro, que certas manifestações internacionais escapam ao âmbito territorial do Tratado, deve recordar-se que as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços não são aplicáveis a actividades em que todos os elementos se circunscrevem ao território de um único Estado-Membro (v., em último lugar, acórdãos de 9 de Setembro de 1999, RI.SAN., C-108/98, Colect., p. I-0000, n.° 23, e de 21 de Outubro de 1999, Jägerskiöld, C-97/98, Colect., p. I-0000, n.° 42). Todavia, um elemento de exterioridade pode nomeadamente resultar da circunstância de um atleta participar numa competição num Estado-Membro que não aquele onde ele se encontra estabelecido.

59.
    Cabe ao juiz nacional apreciar, com base nestes elementos de interpretação,se as actividades desportivas de C. Deliège, nomeadamente a sua participação entre meios internacionais, constitui uma actividade económica na acepção do artigo 2.° do Tratado e, mais especialmente, uma prestação de serviços na acepção do artigo 59.° do mesmo Tratado.

60.
    Supondo que a actividade de C. Deliège possa ser qualificada como prestação de serviços, é conveniente examinar se as regras de selecção constituem uma restrição à livre prestação de serviços, na acepção do artigo 59.° do Tratado.

61.
    A este respeito, deve salientar-se que, diferentemente das regras aplicáveis no processo Bosman, já referido, as regras de selecção em causa no processo principalnão determinam as condições de acesso ao mercado do trabalho de desportistas profissionais nem incluem cláusulas de nacionalidade que limitem o número de nacionais de outros Estados-Membros que podem participar numa competição.

62.
    C. Deliège, de nacionalidade belga, não pretende, de resto, que a escolha feita pela LBJ, que não a seleccionou para participar no torneio, tenha sido feita em função da sua nacionalidade.

63.
    Além disso, tal como se salientou no n.° 44 do presente acórdão, tais regras de selecção não dizem respeito a um torneio cujo objecto seja confrontar equipas nacionais mas um torneio em que, uma vez seleccionados, os atletas concorrem por sua própria conta.

64.
    Neste contexto, basta dizer que, embora regras de selecção como as que estão em causa no processo principal tenham inevitavelmente por feito limitar o número de participantes num torneio, tal limitação é inerente ao decurso de uma competição desportiva internacional de alto-nível, que implica forçosamente a adopção de certas regras ou de certos critérios de selecção. Tais regras não podem, portanto, ser consideradas em si mesmas como constitutivas de uma restrição à livre prestação de serviços proibida pelo artigo 59.° do Tratado.

65.
    De resto, a adopção, para fins de um torneio desportivo internacional, de um sistema de escolha dos participantes em relação a outro deve basear-se num grande número de considerações estranhas à situação pessoal de um qualquer atleta, tais como a natureza, a organização e o financiamento do desporto em causa.

66.
    Embora um sistema de escolha possa mostrar-se mais favorável para com uma categoria de atletas do que para outra, não pode, desse simples facto, deduzir-se que a adopção de tal sistema constitua uma restrição à livre prestação de serviços.

67.
    Por conseguinte, compete naturalmente às entidades em causa, tais como os organizadores dos torneios, as federações desportivas ou ainda as associações de atletas profissionais, adoptar as regras adequadas e efectuar a selecção em virtude destas.

68.
    A este respeito, é conveniente admitir que a atribuição dessa missão às federações nacionais, no seio das quais se encontram normalmente reunidas o conhecimento e a experiência necessários, constitui o reflexo da organização escolhida na maior parte das disciplinas desportivas, que repousa, em princípio, na existência de uma federação em cada país. Além disso, deve salientar-se que as regras de selecção em causa no processo principal se aplicam tanto às competições organizadas no interior da Comunidade como aos torneios que decorrem no exterior desta e dizem respeito simultaneamente a nacionais dos Estados-Membros e a nacionais de países terceiros.

69.
    Há, portanto, que responder às questões submetidas que uma regra que exige a um atleta profissional ou semi-profissional ou candidato a uma actividade profissional ou semi-profissional que possua uma autorização da sua federação para poder alinhar numa competição internacional de alto-nível que não opõe equipas nacionais, desde que resulte de uma necessidade inerente à organização dessa competição, não constitui em si própria uma restrição à livre prestação de serviços proibida pelo artigo 59.° do Tratado.

Quanto às despesas

70.
    As despesas efectuadas pelos Governos belga, dinamarquês, alemão, helénico, espanhol, francês, italiano, neerlandês, austríaco, finlandês, sueco e norueguês, e da Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Tribunal de première instance de Namur por despacho de 16 de Fevereiro de 1996 e por decisão de 14 de Maio de 1997 declara:

Uma regra que exige a um atleta profissional ou semi-profissional ou candidato a uma actividade profissional ou semi-profissional que possua uma autorização da sua federação para poder alinhar numa competição internacional de alto-nível que não opõe equipas nacionais, desde que resulte de uma necessidade inerente à organização dessa competição, não constitui em si própria uma restrição à livre prestação de serviços proibida pelo artigo 59.° do Tratado (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE).

Rodríguez Iglesias
Moitinho de Almeida
Edward

Sevón                Kapteyn                    Puissochet

Hirsch

Jann
Ragnemalm

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 11 de Abril de 2000.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: francês.