Language of document : ECLI:EU:C:2021:182

Processo C344/19

D. J.

contra

Radiotelevizija Slovenija

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vrhovno sodišče Republike Slovenije)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 9 de março de 2021

«Reenvio prejudicial – Proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores – Organização do tempo de trabalho – Diretiva 2003/88/CE – Artigo 2.° – Conceito de “tempo de trabalho” – Período de prevenção em regime de disponibilidade contínua – Trabalho específico relativo à manutenção de radiodifusores de televisão situados longe das zonas habitadas – Diretiva 89/391/CEE – Artigos 5.° e 6.° – Riscos psicossociais – Obrigação de prevenção»

1.        Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Limites – Competência do juiz nacional – Determinação e apreciação dos factos do litígio – Aplicação das disposições interpretadas pelo Tribunal de Justiça

(Artigo 267.° TFUE)

(cf. n.° 23)

2.        Política social – Proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores – Organização do tempo de trabalho – Tempo de trabalho – Conceito – Período de prevenção em regime de disponibilidade contínua – Inclusão – Requisito – Restrições impostas ao trabalhador durante o referido período que afetam objetivamente e muito significativamente a sua faculdade de gerir o seu tempo e de se dedicar aos seus próprios interesses – Critérios de apreciação

(Diretiva 2003/88 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 2.°, ponto 1)

(cf. n.os 32‑40, 43‑54, 66 e disp.)

3.        Política social – Proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores – Diretiva 2003/88 relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho – Âmbito de aplicação – Remuneração – Exclusão – Alcance – Modalidades de remuneração dos períodos de prevenção – Aplicação do direito nacional

(Diretiva 2003/88 do Parlamento Europeu e do Conselho)

(cf. n.os 57‑59)

4.        Política social – Proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores – Diretiva 89/391 relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho – Obrigação de a entidade patronal assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores em todos os aspetos relacionados com o trabalho – Instituição de períodos de prevenção que constituam um risco em razão da sua duração ou da sua frequência – Inadmissibilidade – Qualificação de “períodos de descanso” na aceção da Diretiva 2003/88 – Inexistência de incidência

(Diretiva 2003/88 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 2.°, ponto 2; Diretiva 89/391 do Conselho, artigos 5.°, n.º 1, e 6.°)

(cf. n.os 61‑65)

Resumo

Um período de prevenção em regime de disponibilidade contínua só constitui, na sua totalidade, tempo de trabalho quando as limitações impostas ao trabalhador afetam muito significativamente a sua faculdade de gerir, durante esse período, o seu tempo livre

As dificuldades organizacionais que um período de prevenção pode gerar para o trabalhador e que são consequência de elementos naturais ou da livre escolha deste não são pertinentes

No processo C‑344/19, um técnico especializado estava encarregado de assegurar o funcionamento, durante vários dias consecutivos, de centros de transmissão para televisão, situados na montanha na Eslovénia. Efetuava, além das suas doze horas de trabalho normal, serviços de prevenção de seis horas por dia, em regime de disponibilidade contínua. Durante esses períodos, não estava obrigado a permanecer no centro de transmissão em causa, mas tinha de estar contactável por telefone e poder regressar ao referido centro no prazo de uma hora, se necessário. Na prática, tendo em conta a situação geográfica dos centros de transmissão, dificilmente acessíveis, tinha de aí permanecer durante os seus serviços de prevenção, num alojamento de serviço disponibilizado pela sua entidade patronal, sem grandes possibilidades de atividades de lazer.

No processo C‑580/19, um funcionário exercia atividades de bombeiro na cidade de Offenbach am Main (Alemanha). A este título, devia, além do seu tempo de serviço regular, cumprir regularmente períodos de prevenção em regime de disponibilidade contínua. Durante esses períodos, não estava obrigado a estar presente num local determinado pela sua entidade patronal, mas devia estar contactável e poder chegar, em caso de alarme, à zona urbana da cidade no prazo de 20 minutos, com o seu uniforme de intervenção e o veículo de serviço posto à sua disposição.

Os dois interessados consideravam que, devido às restrições que os períodos de prevenção implicavam, os seus períodos de prevenção em regime de disponibilidade contínua deviam ser reconhecidos, na sua totalidade, como tempo de trabalho e ser remunerados em conformidade, independentemente do facto de terem ou não prestado um trabalho concreto durante esses períodos. Após os seus pedidos em primeira e segunda instância terem sido julgados improcedentes, o primeiro interessado interpôs recurso de revision no Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal, Eslovénia). O segundo, por seu lado, intentou uma ação no Verwaltungsgericht Darmstadt (Tribunal Administrativo de Darmstadt, Alemanha), na sequência da recusa da sua entidade patronal em deferir o seu pedido.

Chamado a pronunciar‑se a título prejudicial por esses órgãos jurisdicionais, o Tribunal de Justiça precisa, nomeadamente, em dois acórdãos proferidos em formação de Grande Secção, em que medida os períodos de prevenção em regime de disponibilidade contínua podem ser qualificados de «tempo de trabalho» ou, pelo contrário, de «período de descanso» à luz da Diretiva 2003/88 (1).

Apreciação do Tribunal de Justiça

A título preliminar, o Tribunal de Justiça recorda que o período de prevenção de um trabalhador deve ser qualificado de «tempo de trabalho» ou de «período de descanso» na aceção da Diretiva 2003/88, uma vez que estes dois conceitos se excluem mutuamente. Por outro lado, um período durante o qual não é efetivamente exercida nenhuma atividade pelo trabalhador em benefício da sua entidade patronal não constitui necessariamente um «período de descanso». Assim, resulta nomeadamente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um período de prevenção deve automaticamente ser qualificado de «tempo de trabalho» quando o trabalhador tem a obrigação, durante esse período, de permanecer no seu local de trabalho, distinto do seu domicílio, e de aí ficar à disposição da entidade patronal.

Feitas estas precisões, o Tribunal de Justiça declara, em primeiro lugar, que os períodos de prevenção, incluindo em regime de disponibilidade contínua, estão igualmente abrangidos, na sua totalidade, pelo conceito de «tempo de trabalho» quando as restrições impostas ao trabalhador durante esses períodos afetam objetivamente e muito significativamente a sua faculdade de gerir livremente o tempo durante o qual os seus serviços profissionais não são solicitados e de se dedicar aos seus próprios interesses. Pelo contrário, se não existirem tais restrições, apenas o tempo correspondente à prestação do trabalho que é, se for caso disso, efetivamente realizado durante esses períodos deve ser considerado «tempo de trabalho».

A este respeito, o Tribunal de Justiça indica que, para avaliar se um período de prevenção constitui «tempo de trabalho», só podem ser tomadas em consideração as limitações impostas ao trabalhador, seja pela regulamentação nacional, por uma convenção coletiva ou pela sua entidade patronal. Em contrapartida, as dificuldades organizacionais que um período de prevenção pode gerar para o trabalhador e que são a consequência de elementos naturais ou da livre escolha deste não são pertinentes. É, por exemplo, o caso do caráter pouco propício ao lazer da zona de que o trabalhador não pode, na prática, afastar‑se durante um período de prevenção em regime de disponibilidade contínua.

Além disso, o Tribunal de Justiça salienta que cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais efetuar uma apreciação global de todas as circunstâncias do caso em apreço para verificar se um período de prevenção em regime de disponibilidade contínua deve ser qualificado de «tempo de trabalho», uma vez que esta qualificação não é, com efeito, automática quando não existe uma obrigação de permanecer no local de trabalho. Para o efeito, por um lado, é necessário ter em conta o caráter razoável do prazo de que dispõe o trabalhador para retomar as suas atividades profissionais a partir do momento em que a sua entidade patronal solicita a sua intervenção, o que, regra geral, implica que se desloque ao seu local de trabalho. Todavia, o Tribunal de Justiça salienta que as consequências desse prazo devem ser apreciadas de maneira concreta, tendo em conta não apenas as outras limitações impostas ao trabalhador, como a obrigação de estar munido de um equipamento específico quando tem de se apresentar no seu local de trabalho, mas também as facilidades que lhe são concedidas. Tais facilidades podem, por exemplo, consistir na disponibilização de um veículo de serviço que permita exercer direitos derrogatórios do Código da Estrada. Por outro lado, os órgãos jurisdicionais nacionais devem igualmente ter em conta a frequência média das intervenções realizadas por um trabalhador durante os seus períodos de prevenção, quando a mesma possa ser objetivamente estimada.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça salienta que o modo de remuneração dos trabalhadores pelos períodos de prevenção não está abrangido pela Diretiva 2003/88. Por conseguinte, esta diretiva não se opõe a uma regulamentação nacional, uma convenção coletiva de trabalho ou uma decisão de uma entidade patronal que, para efeitos da sua remuneração, tenha em conta de forma diferente os períodos durante os quais são realmente efetuadas prestações de trabalho e aqueles durante os quais não é prestado nenhum trabalho efetivo, mesmo quando esses períodos devam ser considerados, na sua totalidade, «tempo de trabalho». Quanto à remuneração dos períodos de prevenção que, inversamente, não podem ser qualificados de «tempo de trabalho», a Diretiva 2003/88 também não se opõe ao pagamento de uma quantia destinada a compensar os inconvenientes causados ao trabalhador por esses períodos.

Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça salienta que o facto de um período de prevenção que não pode ser qualificado de «tempo de trabalho» ser considerado «período de descanso» não tem incidência nas obrigações específicas previstas pela Diretiva 89/391 (2) e que incumbem às entidades patronais. Em especial, estas não podem instaurar períodos de prevenção que representem, pela sua extensão ou frequência, um risco para a segurança ou a saúde dos trabalhadores, e isso independentemente do facto de estes períodos serem qualificados de «períodos de descanso» na aceção da Diretiva 2003/88.


1      Artigo 2.°, ponto 1, da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9).


2      Artigos 5.° e 6.° da Diretiva 89/391/CEE do Conselho, de 12 de junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho (JO 1989, L 183, p. 1).