Language of document : ECLI:EU:C:2024:363

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 25 de abril de 2024 (1)

Processo C159/23

Sony Computer Entertainment Europe Ltd

contra

Datel Design and Development Ltd,

Datel Direct Ltd,

JS

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Direitos de autor e direitos conexos — Proteção jurídica dos programas de computador — Diretiva 2009/24/CE — Artigo 1.° — Âmbito de aplicação — Atos sujeitos a autorização — Artigo 4.°, n.° 1 — Modificação de um programa de computador — Alteração do conteúdo das variáveis armazenadas na memória local e utilizadas durante a execução do programa»






 Introdução

1.        Por força tanto do direito da União como do direito internacional aplicável à União (2), os programas de computador devem ser protegidos como obras literárias na aceção da Convenção de Berna (3). Esta qualificação pode suscitar dúvidas. Com efeito, embora um programa de computador se possa apresentar sob a forma de um «texto», ou seja, uma lista de instruções a executar pelo computador, é um texto específico em muitos aspetos, que não se assemelha a nenhuma outra categoria de obras literárias.

2.        O destino desse programa não é ser lido ou explorado de qualquer outra maneira diretamente pelo utilizador, mas controlar o funcionamento de uma máquina capaz de processar informações, ou seja, um computador. A forma útil de um programa de computador, aquela em que esses programas são normalmente distribuídos aos utilizadores, nem sequer é legível por humanos, uma vez que se destina a ser executada pela máquina. Aliás, mesmo a forma de um programa de computador legível para humanos só é compreensível para as pessoas qualificadas, porque é formulada numa linguagem artificial (a linguagem de programação), que geralmente não é acessível aos utilizadores médios desses programas. Daí decorre uma característica particularmente importante do ponto de vista do direito de autor dos programas de computador enquanto obras protegidas, a saber, que, devido ao modo de funcionamento dos computadores, cada utilização de um programa necessita normalmente de um ou vários atos de reprodução do mesmo, atos que estão sujeitos à autorização do titular dos direitos de autor sobre esse programa.

3.        Não é de estranhar, portanto, que a proteção dos programas de computador, tal como é concebida no direito da União, difira em grande medida das regras do direito de autor «comum» e se aproxime mais de um sistema de proteção especial (4). Com efeito, este regime de proteção confere aos titulares um controlo acrescido, por um lado, sobre os atos dos utilizadores na sua esfera privada, a qual está normalmente fora do âmbito de aplicação do direito de autor, e, por outro, sobre atos que não estão normalmente abrangidos pelo monopólio do autor, como a modificação da obra pelo utilizador para as suas próprias necessidades. Este controlo é tão amplo que mesmo a simples tomada de conhecimento da obra, que é fundamental no caso normal de uma obra literária, só é permitida ao abrigo de uma exceção, em medida limitada e sujeita a condições. Por outro lado, as exceções normalmente previstas no direito de autor, a começar pela chamada exceção da «cópia privada», estão excluídas do regime de proteção dos programas de computador.

4.        No entanto, a proteção enquanto obras literárias comporta um limite intrínseco importante, a saber, que está, em princípio, limitada à forma de expressão da obra, ou seja, ao texto.

5.        No presente processo, a questão é a de saber se e, sendo caso disso, em que medida, a proteção conferida pelo direito da União aos programas de computador pode ser aplicada além do próprio texto. Por outras palavras: até que ponto se pode alargar o conceito de «texto» no caso de tais programas?

6.        Concretamente, trata‑se de saber, no contexto dos videojogos, se é permitido que terceiros criem, e que os utilizadores utilizem, sem a autorização dos titulares dos direitos de autor sobre esses jogos, programas que permitem facilitar um jogo contornando certas dificuldades concebidas pelo seu autor, comummente denominados «software de batota» (cheat software). Parece‑me que os titulares dos direitos de autor sobre estes videojogos gostariam de ter «o melhor de dois mundos», ou seja, submeter à proteção muito ampla dos programas de computador elementos que, quando muito, poderiam aspirar a uma proteção muito mais limitada ao abrigo do direito de autor «comum».

7.        Todavia, os desafios do presente processo vão além do estrito terreno dos videojogos, uma vez que podem existir, noutros setores, softwares que permitam utilizar programas de computador de maneira diferente da sua conceção original.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

8.        Nos termos do artigo 4.° do Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre Direito de Autor, adotado em Genebra em 20 de dezembro de 1996 (5):

«Os programas de computador são protegidos como obras literárias na aceção do artigo 2.° da Convenção de Berna. Essa proteção aplica‑se aos programas de computador, independentemente do seu modo ou forma de expressão.»

9.        Uma disposição análoga figura no artigo 10.°, n.° 1, do Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (6), segundo o qual:

«Os programas de computador, quer sejam expressos em código‑fonte ou em código‑objeto, serão protegidos enquanto obras literárias ao abrigo da [Convenção de Berna].»

 Direito da União

10.      O artigo 1.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2001/29/CE (7) dispõe:

«Salvo nos casos referidos no artigo 11.°, a presente diretiva não afeta de modo algum as disposições comunitárias existentes em matéria de:

a)      Proteção jurídica dos programas de computador».

11.      Nos termos do artigo 2.°, alínea a), desta diretiva:

«Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe:

a)      Aos autores, para as suas obras.»

12.      O artigo 1.° da Diretiva 2009/24/CE (8) dispõe:

«1.      De acordo com o disposto na presente diretiva, os Estados‑Membros estabelecem uma proteção jurídica dos programas de computador, mediante a concessão de direitos de autor, enquanto obras literárias, na aceção da [Convenção de Berna]. Para efeitos da presente diretiva, a expressão “programas de computador” inclui o material de conceção.

2.      Para efeitos da presente diretiva, a proteção abrange a expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador. As ideias e princípios subjacentes a qualquer elemento de um programa de computador, incluindo os que estão na base das respetivas interfaces, não são protegidos pelos direitos de autor ao abrigo da presente diretiva.

3.      Um programa de computador é protegido se for original, no sentido em que é o resultado da criação intelectual do autor. Não são considerados quaisquer outros critérios para determinar a sua suscetibilidade de proteção.

[...]»

13.      Nos termos do artigo 4.°, n.° 1, alíneas a) e b), desta diretiva:

«Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.° e 6.°, os direitos exclusivos do titular, na aceção do artigo 2.°, devem incluir o direito de efetuar ou autorizar:

a)      A reprodução permanente ou transitória de um programa de computador, seja por que meio for, e independentemente da forma de que se revestir, no todo ou em parte. Se operações como o carregamento, visualização, execução, transmissão ou armazenamento de um programa de computador carecerem dessa reprodução, essas operações devem ser submetidas a autorização do titular do direito;

b)      A tradução, adaptação, ajustamentos ou outras modificações do programa e a reprodução dos respetivos resultados, sem prejuízo dos direitos de autor da pessoa que altere o programa.»

14.      Em conformidade com o artigo 5.°, n.° 1, da referida diretiva:

«Salvo cláusula contratual específica em contrário, os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 4.° não se encontram sujeitos à autorização do titular sempre que sejam necessários para a utilização do programa de computador pelo seu legítimo adquirente de acordo com o fim a que esse programa se destina, bem como para a correção de erros.»

 Direito alemão

15.      As disposições da Diretiva 2009/24 acima referidas foram transpostas para o direito alemão, nomeadamente, nos §§ 69a e 69c da Gesetz über Urheberrecht und verwandte Schutzrechte — Urheberrechtsgesetz (Lei dos Direitos de Autor e Direitos Conexos), de 9 de setembro de 1965 (9), conforme alterada pela Lei de 23 de junho de 2021 (10).

 Factos, tramitação processual e questões prejudiciais

16.      A Sony Computer Entertainment Europe Ltd (a seguir «Sony»), sociedade estabelecida no Reino Unido, comercializa, enquanto titular da licença exclusiva para a Europa, consolas de jogos PlayStation, bem como jogos destinados a essas consolas. Até 2014, a Sony comercializava assim, nomeadamente, a PlayStationPortable (PSP) e o jogo «MotorStorm: Arctic Edge», destinado a esta consola.

17.      As sociedades Datel Design and Development Ltd e Datel Direct Ltd (a seguir, conjuntamente, «Datel»), também estabelecidas no Reino Unido, desenvolvem, produzem e distribuem softwares, nomeadamente produtos complementares das consolas de jogos da Sony, entre as quais o software «Action replay PSP», bem como um aparelho, o Tilt FX, que permite o comando da PSP por movimento no espaço.

18.      O software da Datel funciona exclusivamente com os jogos originais da Sony. A execução deste software é efetuada ligando a PSP a um computador e introduzindo na PSP uma pen USB que carrega o referido software. Depois de reiniciar a PSP, o utilizador pode selecionar nesta consola um separador adicional que permite introduzir modificações nos jogos da Sony. Entre essas modificações figuram, por exemplo, no caso do jogo «MotorStorm: Arctic Edge», opções que permitem eliminar todas as restrições no que respeita à utilização do «turbo» (booster) ou à escolha dos condutores, pois parte delas só seria normalmente ativada após a obtenção de um certo número de pontos.

19.      Em primeira instância no processo principal, a Sony pediu, em substância, que a Datel fosse proibida de comercializar os seus softwares destinados a funcionar com os jogos e as consolas da Sony. Por Sentença de 24 de janeiro de 2012, o Landgericht Hamburg (Tribunal Regional de Hamburgo, Alemanha) julgou parcialmente procedentes os pedidos da Sony. Esta sentença foi, todavia, alterada em sede de recurso pelo Oberlandesgericht Hamburg (Tribunal Regional Superior de Hamburgo, Alemanha), que negou provimento ao recurso da Sony na sua totalidade.

20.      O órgão jurisdicional de reenvio, que foi chamado a pronunciar‑se sobre um recurso de «Revision» do Acórdão do Oberlandesgericht Hamburg (Tribunal Regional Superior de Hamburgo), observa que o sucesso deste recurso depende da questão de saber se a utilização do software da Datel em causa viola o direito exclusivo de modificação de um programa de computador. Ora, este aspeto suscita incertezas quanto à interpretação do artigo 1.°, n.os 1 a 3, e do artigo 4.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2009/24.

21.      Segundo esse órgão jurisdicional, no processo principal, a Sony alega, nomeadamente, que, através dos softwares da Datel, os utilizadores modificam, de forma ilícita à luz do direito de autor, os programas de computador subjacentes aos seus jogos e que a Datel é responsável por isso. No entanto, é pacífico entre as partes que nem o software da Datel em causa, nem os seus utilizadores, acedem ou modificam de maneira nenhuma o código desses programas. Com efeito, esse software, executado ao mesmo tempo que o programa de computador da Sony, modifica apenas o conteúdo de variáveis que o programa de computador protegido inseriu na memória interna e que utiliza durante a execução desse programa.

22.      Foi nestas condições que o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O âmbito de proteção de um programa de computador decorrente do artigo 1.°, n.os 1 a 3, da Diretiva 2009/24/CE é violado quando o código‑objeto ou o código‑fonte de um programa de computador, ou a sua reprodução, não são modificados, mas outro programa em execução ao mesmo tempo que o programa de computador protegido modifica o conteúdo de variáveis que o programa de computador protegido criou na memória [interna] e utiliza na execução do programa?

2)      Ocorre uma transformação, na aceção do artigo 4.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2009/24/CE, quando o código‑objeto ou o código‑fonte de um programa de computador, ou a sua reprodução, não são modificados, mas outro programa em execução ao mesmo tempo que o programa de computador protegido modifica o conteúdo de variáveis que o programa de computador protegido criou na memória [interna] e utiliza na execução do programa?»

23.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de março de 2023. As partes no processo principal, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas. Todos se fizeram representar na audiência que teve lugar em 25 de janeiro de 2024.

 Análise

24.      O litígio no processo principal diz respeito à alegada violação do direito exclusivo da Sony, baseado no artigo 4.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2009/24, de autorizar qualquer modificação de um programa de computador cujos direitos de autor sejam detidos por essa sociedade. O órgão jurisdicional de reenvio submete duas questões prejudiciais, em seu entender independentes. No entanto, a resposta à primeira questão prejudicial determina necessariamente a que será dada à segunda. Por conseguinte, abordarei esta segunda questão apenas muito sucintamente.

25.      A título de comentário preliminar, devo observar que o processo principal e, por conseguinte, as questões prejudiciais dizem unicamente respeito às alegadas violações, por parte da Datel, dos direitos exclusivos da Sony sobre os seus programas de computador, resultantes da utilização, pelos utilizadores desses programas, do software da Datel. Estas questões não dizem respeito, portanto, às eventuais violações dos direitos da Sony cometidas pela Datel ao desenvolver o seu software, nem à responsabilidade da Datel por uma eventual violação de outros direitos da Sony diferentes dos direitos de autor, como a violação da marca ou a concorrência desleal, nem à responsabilidade dos utilizadores dos softwares controvertidos. Por conseguinte, não abordarei esses assuntos nas presentes conclusões.

26.      Em contrapartida, embora o litígio no processo principal também não diga respeito, como foi confirmado na audiência, a uma eventual violação dos direitos de autor da Sony sobre outros elementos dos seus videojogos diferentes dos programas de computador subjacentes a esses jogos, analisarei sucintamente esta questão uma vez que foi suscitada pela Comissão e discutida entre as partes na audiência.

 Quanto à primeira questão prejudicial

27.      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.°, n.os 1 a 3, da Diretiva 2009/24 deve ser interpretado no sentido de que a proteção conferida por esta diretiva ao abrigo desta disposição abrange o conteúdo das variáveis que o programa de computador protegido inseriu na memória interna do computador e que utiliza durante a sua execução, numa situação em que outro programa, que funciona ao mesmo tempo que o programa de computador protegido, modifica esse conteúdo, sem que, no entanto, o código‑objeto ou o código‑fonte deste último programa seja modificado.

28.      Por outras palavras, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que especifique o objeto da proteção conferida aos programas de computador pela Diretiva 2009/24.

 Quanto ao objeto da proteção conferida pela Diretiva 2009/24

29.      A Diretiva 2009/24 não define o conceito de «programa de computador». Segundo a exposição de motivos da Diretiva 91/250/CEE (11), diretiva que foi codificada pela Diretiva 2009/24, esta inexistência de definição explica‑se pela preocupação de evitar a eventual obsolescência de tal definição com o progresso técnico (12). Esta prudência parece supérflua, porque continua a ser perfeitamente possível remeter para a definição contida nessa exposição de motivos, segundo a qual este conceito designa «um conjunto de instruções com o objetivo de levar um instrumento de processamento da informação, um computador, a executar as suas funções» (13). Esta definição, cuja pertinência não foi de modo nenhum afetada pelo progresso técnico, constitui um ponto de partida perfeito para a análise do objeto da proteção conferida pela Diretiva 2009/24.

30.      Apesar da inexistência de uma definição legal do conceito de «programa de computador», a Diretiva 2009/24 contém um certo número de precisões relativas ao objeto e à natureza da proteção que confere.

31.      Assim, em primeiro lugar, o artigo 1.°, n.° 1, desta diretiva dispõe que os programas de computador são protegidos pelo direito de autor, enquanto obras literárias. Esta afirmação comporta consequências no que respeita tanto ao alcance como à natureza da proteção em causa.

32.      Em segundo lugar, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, da referida diretiva, a proteção abrange a expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador, com exclusão das ideias e dos princípios subjacentes a qualquer elemento de tal programa. Sendo este um princípio geral do direito de autor, é significativo que o legislador tenha considerado necessário afirmá‑lo expressamente na parte normativa da diretiva 2009/24.

33.      Por último, em terceiro lugar, o artigo 1.°, n.° 3, desta diretiva define o nível de exigência que permite beneficiar da proteção, dispondo que é protegido qualquer programa de computador que seja original, isto é, que constitua uma criação intelectual do seu autor, e que está excluída a aplicação de qualquer outro critério. Embora esta disposição não estabeleça um nível de exigências particularmente elevado para que um programa de computador possa beneficiar da proteção em causa, eliminando, nomeadamente, em conformidade com o considerando 8 da Diretiva 2009/24, qualquer avaliação dos seus méritos qualitativos ou estéticos, parece, no entanto, excluir a proteção dos elementos, considerados isoladamente, que não constituem a criação intelectual do autor do programa.

34.      Estes elementos da definição do objeto da proteção contidos na própria Diretiva 2009/24 foram desenvolvidos e precisados na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

35.      Assim, mencionando o artigo 10.°, n.° 1, do Acordo TRIPS, o Tribunal de Justiça considerou, no Acórdão Bezpečnostní softwarová asociace (14), que a proteção conferida pela Diretiva 91/250, cujas disposições pertinentes eram idênticas às da Diretiva 2009/24, inclui o programa de computador sob todas as formas que permitem reproduzi‑lo em diferentes linguagens informáticas, a saber, nomeadamente, o código‑fonte e o código‑objeto (15). Neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que uma interface do utilizador não constitui uma forma de expressão do programa de computador, mas simplesmente um elemento desse programa através do qual os utilizadores exploram as funcionalidades desse programa, e não beneficia, portanto, da proteção prevista pela Diretiva 91/250 (16).

36.      Baseando‑se nestas considerações, o Tribunal de Justiça excluiu seguidamente da proteção conferida pela Diretiva 91/250 os elementos como as funcionalidades de um programa de computador, a linguagem de programação e o formato dos ficheiros de dados usados por tal programa (17). A única exceção dizia respeito a uma situação em que fossem copiadas as partes do código‑fonte ou do código‑objeto relativas à linguagem de programação ou ao formato dos ficheiros de dados, caso em que se trataria de uma reprodução parcial do programa de computador (18). Esta precisão não diz respeito, no entanto, às funcionalidades de um programa, uma vez que a distinção entre o código (fonte ou objeto) de um programa e as suas funcionalidades é clara e precisa.

37.      Resulta desta jurisprudência que, na prática, as formas de expressão dos programas de computador protegidas ao abrigo da Diretiva 2009/24 são o código‑fonte e o código‑objeto (19), uma vez que permitem reproduzir, total ou parcialmente, o programa em causa. Em contrapartida, outros elementos de um programa de computador em sentido amplo, como, nomeadamente, as suas funcionalidades, não são protegidos por esta diretiva.

38.      Tal leitura da Diretiva 2009/24, ou da que a precedeu, no sentido de que limita a proteção ao código‑fonte e ao código‑objeto de um programa de computador, é conforme com a natureza da proteção pelo direito de autor, enquanto obras literárias, que é o regime de proteção escolhido pelo legislador da União. Esta proteção visa necessariamente o texto da obra, uma vez que, quando se trata de uma obra literária, a expressão da criação intelectual do autor se reflete no texto. Ora, no caso de um programa de computador, o texto é o código, ou seja, um conjunto estruturado de instruções segundo as quais a máquina deve efetuar as tarefas previstas pelo autor do programa.

39.      É decerto verdade que um programa de computador, em sentido lato, não pode ser reduzido ao seu código. Com efeito, o que interessa ao utilizador, e o que o incentiva a pagar o preço de aquisição de um programa de computador, não é a possibilidade de tomar conhecimento do código desse programa, possibilidade que de qualquer modo normalmente não terá, uma vez que o programa lhe é entregue unicamente sob a forma de código‑objeto, mas as funcionalidades do referido programa que permitem obter, com o auxílio do computador, um determinado resultado.

40.      No entanto, constitui precisamente a especificidade da proteção dos programas de computador pelo direito de autor o facto de ser voluntariamente limitada à expressão «literal» do programa sob a forma do código. No caso da Diretiva 2009/24, esta vontade do legislador da União transparece muito claramente no seu artigo 1.°, n.os 1 e 2, segundo o qual os programas de computador são protegidos enquanto obras literárias e esta proteção aplica‑se apenas à sua expressão, excluindo as ideias e os princípios subjacentes. Estas precisões deixam pouca margem de apreciação na interpretação das disposições desta diretiva no que diz respeito ao objeto da proteção e aos seus limites.

41.      A limitação da proteção dos programas de computador à sua expressão sob a forma de código é também conforme com o objetivo desta proteção. Este objetivo consiste em proteger os autores dos programas contra a reprodução não autorizada e a cópia destes programas, que se tornaram muito fáceis e pouco onerosas no ambiente digital, bem como contra a distribuição das cópias «pirateadas» dos mesmos. Em contrapartida, a proteção dos programas de computador não deve entravar o desenvolvimento de softwares concorrentes ou compatíveis, se não constituírem simples cópias dos programas existentes, nem a utilização dos programas pelos utilizadores legítimos na sua esfera privada (20). Por conseguinte, é lógico que o Tribunal de Justiça tenha limitado a proteção às formas de expressão que permitem a reprodução total ou parcial do programa de computador (21).

42.      É à luz destas observações que há que analisar a problemática suscitada pela primeira questão prejudicial.

 Quanto à aplicação no presente processo

43.      Recordo que a primeira questão prejudicial visa saber se a proteção dos programas de computador conferida pela Diretiva 2009/24 abrange o «conteúdo das variáveis» que esse programa introduz na memória do computador e utiliza seguidamente na sua execução. Por conseguinte, antes de mais, há que questionar o significado do termo «conteúdo das variáveis» utilizado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

44.      Como a Sony explica nas suas observações, em informática, entende‑se por «variável» uma posição na memória do computador na qual são inseridas informações, ou seja, dados, durante a execução de um programa de computador e ao qual esse programa pode aceder para utilizar essas informações na execução das suas tarefas. O código do programa define normalmente os parâmetros da variável, tais como a sua posição na memória, o seu nome, o tipo de dados que nela podem ser inseridos, etc (22). A informação concreta inserida nessa posição é denominada «valor» da variável. Embora os parâmetros da variável não se alterem durante a execução do programa, o seu valor pode mudar, em função das informações que o programa obtém do exterior, por exemplo, da parte do utilizador.

45.      Como já referi, os parâmetros das variáveis constituem elementos integrais do código do programa e, sob reserva da sua originalidade, beneficiam da proteção conferida pela Diretiva 2009/24.

46.      No entanto, resulta da exposição dos factos que estes parâmetros não são modificados pelo software da Datel em causa. O que muda é o valor das variáveis, ou seja, os dados que são inseridos nessas posições da memória do computador e que o programa da Sony toma seguidamente em consideração para executar diferentes tarefas, em conformidade com as instruções inscritas no seu código. Com o termo «conteúdo das variáveis», o órgão jurisdicional de reenvio visa, portanto, necessariamente, o valor das variáveis. Por conseguinte, a primeira questão visa saber se a Diretiva 2009/24 permite ao titular dos direitos de autor sobre um programa de computador opor‑se a que o valor das variáveis inserido na memória do computador durante a execução desse programa seja modificado, devido ao funcionamento de outro programa, relativamente ao valor que teria sido introduzido apenas em consequência do funcionamento do primeiro programa.

47.      Na minha opinião, a resposta a esta questão deve ser negativa, por várias razões.

48.      Em primeiro lugar, o valor das variáveis não constitui um elemento do código de um programa de computador. São apenas dados, externos ao código, que o computador produz e reutiliza na execução desse programa. Do mesmo modo, o conteúdo das presentes conclusões constitui um dado externo do ponto de vista do software de tratamento de texto com o auxílio do qual são redigidas. Estes dados não existem no momento da criação do programa pelo seu autor, nem durante o seu carregamento na memória do computador, porque são gerados apenas durante a execução do programa. Não são, portanto, suscetíveis de permitir a reprodução do programa, nem mesmo de uma parte dele. Ora, como já referi (23), a proteção conferida pela Diretiva 2009/24 é, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, limitada ao código dos programas de computador, porque é o código, tanto o código‑fonte como o código‑objeto, que permite reproduzir o programa.

49.      Em segundo lugar, o valor das variáveis não satisfaz o critério da originalidade previsto no artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 2009/24, porque não constitui uma criação intelectual do autor do programa. Com efeito, no caso de programas como os videojogos da Sony, o valor das variáveis em causa é o resultado do desenvolvimento do jogo e, portanto, em última análise, o resultado do comportamento do jogador. É decerto verdade que o autor concebeu as categorias das variáveis que estão gravadas, bem como as regras segundo as quais o seu valor é determinado durante o jogo. No entanto, este valor escapa, em si, ao controlo criativo do autor, porque depende necessariamente de fatores imprevisíveis antecipadamente, como o comportamento do jogador. O referido valor não pode, portanto, beneficiar da proteção conferida pelo direito de autor.

50.      Em terceiro lugar, como observa igualmente a Comissão, o valor das variáveis gerado pelo programa tem apenas caráter passageiro, temporal e provisório, uma vez que pode alterar‑se durante a execução do programa e é frequentemente reposto a zero na execução subsequente desse programa. Ora, embora o Tribunal de Justiça tenha admitido que a expressão da criação do autor não tem necessariamente de ser permanente para beneficiar da proteção conferida pela Diretiva 2001/29, exigiu, todavia, que o objeto da proteção seja identificável com suficiente precisão e objetividade (24). Na minha opinião, e contrariamente ao que sustenta a Sony, esta exigência não é satisfeita por um elemento, como o valor das variáveis gerado por um programa de computador durante a sua execução, que não só é efémero, mas também constantemente modificado, quer durante essa execução quer em cada execução consecutiva, tanto mais que essas modificações não dependem da criação do autor, mas de fatores externos, como os atos dos utilizadores da obra.

51.      Devo salientar que, no presente processo, este problema não pode ser resolvido considerando que a proteção conferida pelo direito de autor se alarga a todos os valores possíveis das variáveis contidas num programa de computador, porque, nesse caso, não haveria violação. Um software como o da Datel não modifica os parâmetros das variáveis, mas apenas o seu valor. Por conseguinte, se todos os valores possíveis fizessem parte do programa protegido, não haveria nenhuma modificação.

52.      Porém, resulta da leitura das observações da Sony que não é tanto para os valores das variáveis consideradas isoladamente que esta sociedade pretende obter proteção, mas antes para os efeitos que esses diferentes valores têm sobre o desenvolvimento do jogo ou, como a Sony declara, «a experiência do jogo criada pelo programador».

53.      Segundo a Sony, a criatividade do inventor manifesta‑se no desenvolvimento do programa no seu conjunto. Ora, é o valor das variáveis que indica, entre os diferentes desenvolvimentos possíveis do programa, o que vai ser efetivamente escolhido. Estas etapas do desenvolvimento do programa são necessárias para alcançar a realização da forma de expressão deste programa, cuja execução segue, assim, certas regras do jogo que são armazenadas no código‑fonte como resultado essencial do trabalho prestado pelo criador do jogo.

54.      Parece‑me, no entanto, que, com as expressões «experiência do jogo», «desenvolvimento do programa», «realização da forma de expressão» do programa ou ainda «regras do jogo», a Sony se refere, de facto, ao funcionamento do programa ou às ideias e princípios subjacentes a esse programa. Aliás, a Sony admite nas suas observações que, no caso em apreço, a modificação das variáveis diz respeito ao funcionamento do programa e que modificar uma variável equivale a intervir na execução do programa.

55.      Ora, contrariamente ao que sustenta a Sony, a jurisprudência referida nos n.os 35 e 36 das presentes conclusões não diz respeito «especificamente à proteção independente das funcionalidades [...] e das interfaces do utilizador», pelo que certas modificações do funcionamento do programa poderiam estar sujeitas ao monopólio do autor. Esta jurisprudência define o âmbito de aplicação da proteção conferida pela Diretiva 2009/24 excluindo, nomeadamente, as funcionalidades dos programas de computador, ou seja, as tarefas que esses programas podem levar um computador a executar e modo pelo qual serão executadas.

56.      É verdade, em contrapartida, que a jurisprudência em causa não diz respeito à modificação, como no caso em apreço, mas à reprodução ou imitação de elementos cuja proteção se pretendia. Não vejo, no entanto, nenhuma razão para não transpor esta jurisprudência para o presente processo. Com efeito, em primeiro lugar, na ausência de uma estipulação expressa, nesse sentido, no texto da Diretiva 2009/24, o objeto da proteção não pode ser diferente em função do direito exclusivo em causa. Em segundo lugar, do ponto de vista do objetivo da proteção, a modificação do modo de funcionamento de um programa de computador pelo seu utilizador legítimo é muito menos prejudicial para os interesses do titular dos direitos de autor sobre esse programa do que a reprodução das funcionalidades desse programa pelo fabricante de um programa concorrente. Não há razão, portanto, para que a proteção contra essa modificação seja mais ampla do que a prevista contra a reprodução.

57.      Por conseguinte, considero que, tendo em conta tanto a redação das disposições pertinentes da Diretiva 2009/24 como a jurisprudência pertinente (25), não constitui uma violação dos direitos de autor sobre um programa de computador o facto de um utilizador legítimo desse programa modificar, ao utilizar o programa e sem alterar o seu código, o modo de funcionamento do referido programa, de uma maneira que não é conforme com as intenções do seu criador, com ou sem a ajuda de um software de terceiros. Do mesmo modo, o autor de um romance policial não pode proibir o leitor de ir ao fim do romance para verificar quem é o assassino, ainda que isso possa estragar o prazer da leitura e aniquilar os esforços do autor para manter o suspense. A proteção pedida pela Sony é, aliás, ilusória: um jogador pode simplesmente não querer ou não ser capaz de progredir no jogo da forma imaginada pelo seu autor e o jogo não evoluirá como previsto. Tratar‑se‑ia então também de uma ingerência nos direitos do titular?

58.      Por último, a Sony alega, e parece‑me que é aí que reside o problema, que o programa da Datel em causa «se enxerta no [da Sony] de forma parasitária». No entanto, há que observar que este argumento visa sobretudo uma questão de direito da concorrência desleal. Em contrapartida, no que diz respeito ao direito de autor, embora este proteja contra a contrafação e a pirataria, não protege de maneira nenhuma contra a utilização da obra de outrem como base para a própria criação, desde que não haja reprodução ilícita da obra protegida.

 Proposta de resposta

59.      Decorre do exposto que, na minha opinião, o artigo 1.°, n.os 1 a 3, da Diretiva 2009/24 deve ser interpretado no sentido de que a proteção conferida por esta diretiva ao abrigo desta disposição não abrange o conteúdo das variáveis que o programa de computador protegido inseriu na memória interna do computador e que utiliza durante a execução desse programa, numa situação em que outro programa, que funciona ao mesmo tempo que o programa de computador protegido, modifica esse conteúdo, sem que, no entanto, o código‑objeto ou o código‑fonte deste último programa seja modificado.

 Quanto à segunda questão prejudicial

60.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, na situação descrita na primeira questão prejudicial, se trata de um ato sujeito ao direito exclusivo do autor ao abrigo do artigo 4.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2009/24, a saber, um ato de modificação de um programa de computador. Em conformidade com as explicações contidas no pedido de decisão prejudicial, esta segunda questão é independente da resposta que vier a ser dada à primeira. Trata‑se, portanto, de saber se pode haver uma modificação de um programa de computador, não obstante o facto de o conteúdo das variáveis não ser objeto da proteção conferida pela Diretiva 2009/24.

61.      A resposta à segunda questão, formulada deste modo, só pode ser negativa. O alcance dos direitos exclusivos ao abrigo da Diretiva 2009/24 não pode ser mais amplo do que o objeto da proteção conferida por esta diretiva. Por outras palavras, quando o artigo 4.°, n.° 1, alínea b), da referida diretiva se refere a «modificações do programa [de computador]», há necessariamente que entender por «programas de computador» os elementos protegidos ao abrigo do artigo 1.° da mesma diretiva. A resposta à segunda questão prejudicial decorre, portanto, diretamente da que vier a ser dada à primeira, pelo que não há necessidade de responder separadamente à segunda questão.

 Observações complementares

62.      Gostaria de completar a minha análise do presente processo com algumas observações relativas, por um lado, às circunstâncias do litígio no processo principal e, por outro, às questões suscitadas nas observações da Comissão.

 Quanto à pessoa responsável pela modificação

63.      Se, apesar da resposta que proponho que seja dada à primeira questão prejudicial, o Tribunal de Justiça vier a considerar que a proteção conferida pela Diretiva 2009/24 abrange o conteúdo das variáveis em causa no litígio no processo principal, deve, na minha opinião, para dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta completa e útil para a resolução desse litígio, debruçar‑se sobre a questão de saber quem seria responsável por uma eventual violação dos direitos de autor sobre essas variáveis resultante da utilização de um software como o da Datel.

64.      Com efeito, o litígio no processo principal opõe a Sony e a Datel e diz respeito à responsabilidade da Datel. No entanto, esta responsabilidade não decorre de uma violação dos direitos de autor da Sony no desenvolvimento do software pela Datel, mas da modificação não autorizada do programa de computador da Sony, é certo com o auxílio desse software, mas pelos utilizadores do referido programa de computador, a maior parte dos quais são, sem dúvida, legítimos adquirentes, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24. Por conseguinte, são, em princípio, esses utilizadores que deveriam ser responsabilizados, uma vez que são eles que cometem o ato sujeito à autorização, a saber, a modificação do programa de computador. A Datel limita‑se a entregar‑lhes a ferramenta necessária, sob a forma do seu software.

65.      As partes foram interrogadas sobre este aspeto durante a audiência. A Sony e a Comissão consideram que o Tribunal de Justiça deve alargar o círculo de pessoas responsáveis aos fabricantes de software, como a Datel, por analogia com a sua jurisprudência relativa ao direito de comunicação ao público, relativa ao artigo 3.° da Diretiva 2001/29.

66.      É certo que, nesta jurisprudência, o Tribunal de Justiça considerou diretamente responsáveis pelas violações do direito à comunicação ao público certas categorias de intermediários no processo de comunicação, relativamente aos quais se poderia alegar que eram, quando muito, apenas indiretamente responsáveis (26). Com efeito, o Tribunal de Justiça considerou que essas «interv[inham], com pleno conhecimento das consequências do seu comportamento, para dar aos seus clientes acesso a uma obra protegida, designadamente quando, sem essa intervenção, esses clientes não poderiam, em princípio, desfrutar da obra difundida», o que caracteriza, segundo o Tribunal de Justiça, um «ato de comunicação» (27). Assim, o Tribunal de Justiça pôde declarar que realizam um ato de comunicação os gerentes de diferentes estabelecimentos equipados com aparelhos de televisão acessíveis ao público (28), as pessoas que colocam na Internet hiperligações para conteúdos não livremente acessíveis, ou distribuem equipamentos com tais hiperligações pré‑instaladas (29), ou, ainda, pessoas que gerem um sítio Internet de partilha de conteúdos que contribui para os atos ilegais de comunicação ao público (30).

67.      No entanto, há que tomar em conta a especificidade do direito de comunicação ao público e dos atos por ele abrangidos. Com efeito, uma comunicação ao público exige a presença de duas partes, o autor da comunicação e o público. Um intermediário (31) que facilita uma comunicação, que de outro modo seria impossível ou extremamente difícil, ou alarga o círculo dos membros do público que têm acesso à obra, realizando assim uma comunicação secundária destinada a um público novo, dá desse modo acesso aos objetos protegidos a um determinado público. Existe, portanto, uma confusão entre os papéis respetivos de diferentes intervenientes e um risco acrescido para os interesses substanciais dos titulares dos direitos de autor. Foi neste contexto, e a fim de garantir aos titulares um elevado nível de proteção exigido pela Diretiva 2001/29, que o Tribunal de Justiça admitiu a responsabilidade direta de tais pessoas em certas situações.

68.      No presente processo, não se trata do direito de comunicação ao público, mas do direito de autorizar «outras modificações» de um programa de computador, um direito específico da Diretiva 2009/24 que não tem equivalente na Diretiva 2001/29. Ora, atos de modificação, pelo menos atos como os que estão em causa no processo principal, não concedem aos utilizadores o acesso à obra protegida, dado que estes já têm acesso à mesma, na maioria dos casos de forma lícita. Estes atos também não necessitam da presença de duas partes, uma vez que os utilizadores os praticam no seu foro interno, no âmbito da utilização dos programas de computador da Sony. Por conseguinte, não pode existir um intermediário e a Datel não é um intermediário. O facto de o software da Datel em causa ser especialmente concebido para funcionar com os programas de computador da Sony e de permitir aos utilizadores modificá‑los (32) não altera esta conclusão. Os papéis são claramente repartidos e os interesses dos titulares dos direitos de autor sobre os programas de computador são suficientemente preservados, nomeadamente devido ao modo de distribuição desses programas que hoje em dia está amplamente difundido, a saber, as licenças de utilização e as estipulações contratuais que vinculam os utilizadores. Por outro lado, como já referi, a Diretiva 2009/24 não tem por objetivo proteger esses titulares contra o fabrico e a utilização dos softwares compatíveis com os seus, mas contra a contrafação e a pirataria.

69.      Não existe, portanto, uma analogia simples entre a situação no presente processo e as situações analisadas pelo Tribunal de Justiça nos processos relativos ao direito de comunicação ao público. Também não me parece desejável que o Tribunal de Justiça se esforce por estabelecer essa analogia, uma vez que os desafios relativos aos dois direitos exclusivos em causa são muito diferentes. Assim, na hipótese de o Tribunal de Justiça vir a considerar que a proteção conferida pela Diretiva 2009/24 abrange o conteúdo das variáveis em causa no caso em apreço, deverá também, na minha opinião, chamar a atenção do órgão jurisdicional de reenvio para o facto de que só são diretamente responsáveis por eventuais violações dos direitos de autor sobre esse conteúdo os utilizadores dos softwares que permitem alterá‑lo, só podendo ser imputada aos fabricantes desses softwares, como a Datel, uma responsabilidade secundária que, no entanto, não está harmonizada no direito da União e, por conseguinte, só pode resultar do direito nacional.

 Quanto à proteção ao abrigo da Diretiva 2001/29

70.      Nas suas observações, a Comissão considera necessário analisar um aspeto que não foi suscitado no pedido de decisão prejudicial, a saber, a eventual proteção de elementos, diferentes do próprio programa de computador, dos videojogos da Sony, como os elementos gráficos, sonoros, visuais e textuais, até mesmo a sua «estrutura narrativa» (33). A Comissão baseia‑se na jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual os videojogos constituem material complexo, cujos elementos, diferentes do próprio programa de computador, podem ser protegidos ao abrigo da Diretiva 2001/29 (34) e que podem beneficiar de tal proteção, nomeadamente, as interfaces do utilizador dos programas de computador (35).

71.      É decerto um exercício intelectual interessante que a Comissão assim nos oferece. Proponho, no entanto, que este aspeto não seja analisado, pelas seguintes razões.

72.      Primeiro, o objeto do litígio no processo principal é limitado a uma alegada violação dos direitos de que a Sony dispõe ao abrigo da Diretiva 2009/24, único ato do direito da União cuja interpretação é solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio. É verdade que a questão de saber se este objeto poderia ser alargado a fim de englobar a Diretiva 2001/29 foi debatida entre as partes na audiência. Porém, todas as questões relacionadas com esta diretiva são hipotéticas e sem utilidade certa para a solução do litígio.

73.      Segundo, visto que a violação dos direitos baseados na Diretiva 2001/29 não foi invocada no processo principal, não sabemos que elementos dos videojogos da Sony estariam eventualmente em questão, nem em que consistiria a eventual violação. As hipóteses da Comissão a este respeito são, portanto, puramente teóricas e não se baseiam nas pretensões e nos argumentos invocados no presente processo.

74.      Terceiro, na minha opinião, é muito provável que, tal como uma eventual violação dos direitos baseados na Diretiva 2009/24, a violação dos direitos baseados na Diretiva 2001/29, numa configuração como a do caso em apreço, seja imputável diretamente aos utilizadores dos videojogos e só de forma indireta a um fabricante de software como a Datel. Todas as observações que apresentei nos n.os 63 a 69 das presentes conclusões permanecem válidas.

75.      Por último, em quarto lugar, não partilho da convicção da Comissão de que seria cometida uma violação do direito de reprodução, protegido ao abrigo do artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29, devido à utilização do software da Datel pelos legítimos adquirentes dos videojogos da Sony.

76.      Com efeito, no que respeita aos elementos gráficos desses jogos, é verdade que são reproduzidos nos ecrãs de computador dos utilizadores durante a execução do programa. No entanto, nomeadamente no caso da atribuição dessa reprodução aos utilizadores (36), não vejo motivos para excluir, como o faz a Comissão, a aplicação a esta reprodução da exceção prevista no artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29. O Tribunal de Justiça já declarou que é abrangida por esta disposição a reprodução de uma obra no ecrã durante a receção de emissões de televisão num círculo privado (37). Ora, tal como a reprodução no ecrã de uma emissão de televisão, a reprodução dos elementos gráficos de um videojogo no monitor do computador preenche também as condições do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29. Tem, com efeito, caráter temporário e transitório, constitui uma parte integrante e essencial de um processo tecnológico, tem apenas como objetivo permitir uma utilização legítima da obra (38), e não tem, em si, significado económico, dado que o legítimo adquirente de um videojogo já pagou o preço da sua aquisição.

77.      No que diz respeito, em contrapartida, à «estrutura narrativa» do videojogo, parece‑me até difícil falar, nestas circunstâncias, de uma «reprodução». Embora esta estrutura seja talvez alterada pelo legítimo adquirente do jogo durante a sua utilização, tal não põe em causa, todavia, os direitos exclusivos do titular dos direitos de autor ao abrigo da Diretiva 2001/29.

78.      Proponho, portanto, que se limite a análise no presente processo apenas à interpretação da Diretiva 2009/24.

 Conclusão

79.      À luz de todas as considerações precedentes, proponho que se dê a seguinte resposta às questões prejudiciais submetidas pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha):

O artigo 1.°, n.os 1 a 3, da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador,

deve ser interpretado no sentido de que:

a proteção conferida por esta diretiva ao abrigo desta disposição não abrange o conteúdo das variáveis que o programa de computador protegido inseriu na memória interna do computador e que utiliza durante a execução desse programa, numa situação em que outro programa, que funciona ao mesmo tempo que o programa de computador protegido, modifica esse conteúdo, sem que, no entanto, o código‑objeto ou o código‑fonte deste último programa seja modificado.


1      Língua original: francês.


2      V. n.os 8, 9 e 12 das presentes conclusões.


3      Convenção para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, assinada em Berna, em 9 de setembro de 1886, na sua versão resultante do Ato de Paris de 24 de julho de 1971 (a seguir «Convenção de Berna»).


4      Um regime desse tipo tinha, aliás, sido contemplado a nível internacional, antes de ser escolhida a proteção pelo direito de autor; v. «Dispositions types sur la protection du logiciel», Le Droit d’auteur, Revue mensuelle de l’Organisation Mondiale de la Propriété Intellectuelle (OMPI), 1978, n.° 1, p. 7.


5      Tratado aprovado pela Decisão 2000/278/CE do Conselho, de 16 de março de 2000, relativo à aprovação, em nome da Comunidade Europeia, do Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre direito de autor e do Tratado da OMPI sobre prestações e fonogramas (JO 2000, L 89, p. 6).


6      Acordo que figura no anexo 1 C do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC), assinado em Marraquexe em 15 de abril de 1994 e aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) (JO 1994, L 336, p. 1, a seguir «Acordo TRIPS»).


7      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10).


8      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO 2009, L 111, p. 16).


9      BGBl. 1965 I, p. 1273.


10      BGBl. 2021 I, p. 1858.


11      Diretiva do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO 1991, L 122, p. 42).


12      COM(88) 816, ponto 1.1 (JO 1989, C 91, p. 4).


13      COM(88) 816, ponto 1.1 (JO 1989, C 91, p. 4). Uma definição semelhante figurava já nas disposições‑tipo sobre a proteção do software da OMPI de 1978, (v. nota 4 das presentes conclusões).


14      Acórdão de 22 de dezembro de 2010 (C‑393/09, EU:C:2010:816, n.os 33 a 35 e 38).


15      Simplificando, o código‑fonte de um programa de computador é a forma desse programa escrita numa linguagem de programação e legível para humanos. O código‑objeto, produzido a partir do código‑fonte pelo chamado processo de «compilação», é a forma do programa legível e executável pelo computador. No comércio, os programas são normalmente distribuídos unicamente sob a forma de código‑objeto, que é, portanto, ilegível para humanos.


16      Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace (C‑393/09, EU:C:2010:816, n.os 41 e 42).


17      Acórdão de 2 de maio de 2012, SAS Institute (C‑406/10, EU:C:2012:259, n.os 35 a 39 e n.° 1 da parte decisória).


18      Acórdão de 2 de maio de 2012, SAS Institute (C‑406/10, EU:C:2012:259, n.° 43).


19      Bem como, em conformidade com o artigo 1.°, n.° 1, segundo período, desta diretiva, certos materiais de conceção, o que é irrelevante para o presente processo.


20      V., nomeadamente, pontos 1.3 e 3.6 a 3.13 da exposição de motivos da proposta da Diretiva 91/250. A mesma ideia é expressa, de forma muito sucinta, no considerando 2 da Diretiva 2009/24.


21      V. n.° 35 das presentes conclusões.


22      Os pormenores dependem, nomeadamente, da linguagem de programação utilizada.


23      V. n.os 35 a 37 das presentes conclusões.


24      Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo (C‑310/17, EU:C:2018:899, n.° 40).


25      V. n.os 35 e 36 das presentes conclusões.


26      V. Conclusões do advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe nos processos apensos YouTube e Cyando (C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2020:586, n.os 66 a 93).


27      V., nomeadamente, Acórdão de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando (C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503, n.° 68).


28      V., nomeadamente, Acórdãos de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764); de 31 de maio de 2016, Reha Training (C‑117/15, EU:C:2016:379); e de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o. (C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631).


29      V., nomeadamente, Acórdãos de 8 de setembro de 2016, GS Media (C‑160/15, EU:C:2016:644), e de 26 de abril de 2017, Stichting Brein (C‑527/15, EU:C:2017:300).


30      V., nomeadamente, Acórdãos de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456), e de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando (C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503).


31      Não tomo em conta na presente análise os casos em que o Tribunal de Justiça constatou a existência de atos diretos de comunicação, uma vez que é pacífico no presente processo que a Datel não pratica ela própria os atos controvertidos.


32      Se o Tribunal de Justiça vier a considerar que existe uma modificação de um programa de computador na aceção da Diretiva 2009/24.


33      Este último elemento reflete as pretensões da Sony de obter a proteção da «experiência do jogo», do «desenvolvimento do programa», da «realização da forma de expressão» do programa ou, ainda, das «regras do jogo» (v. n.os 52 e 53 das presentes conclusões).


34      Acórdão de 23 de janeiro de 2014, Nintendo e o. (C‑355/12, EU:C:2014:25, n.° 23).


35      Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace (C‑393/09, EU:C:2010:816, n.° 46).


36      V. n.° 74 das presentes conclusões.


37      Acórdão de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o. (C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631, n.° 6 da parte decisória).


38      Este aspeto pode parecer controverso, visto que, como foi confirmado na audiência, os contratos de licença entre a Sony e os adquirentes dos seus programas de computador incluem uma cláusula que proíbe a utilização de softwares como o da Datel. No entanto, a Diretiva 2001/29, contrariamente ao artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24, não contém disposições que permitam ao titular dos direitos de autor limitar contratualmente a utilização pessoal da obra pelo seu legítimo adquirente ou no círculo privado deste. A reprodução no ecrã do computador de elementos gráficos de um videojogo por esse adquirente é, assim, em princípio, lícita, a não ser que se conceda a esses elementos a proteção reservada pela Diretiva 2009/24 apenas aos programas de computador em sentido estrito.