Language of document : ECLI:EU:C:2008:203

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

8 de Abril de 2008 (*)

«Incumprimento de Estado – Contratos públicos de fornecimento – Directivas 77/62/CEE e 93/36/CEE – Adjudicação de contratos públicos sem publicação prévia de anúncio – Não abertura à concorrência – Helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell»

No processo C‑337/05,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 15 de Setembro de 2005,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por D. Recchia e X. Lewis, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Italiana, representada por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por G. Fiengo, avvocato dello Stato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, A. Rosas, K. Lenaerts e G. Arestis, presidentes de secção, K. Schiemann, J. Makarczyk (relator), P. Kūris, E. Juhász, E. Levits e A. Ó Caoimh, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 17 de Abril de 2007,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 10 de Julho de 2007,

profere o presente

Acórdão

1        Na sua petição, a Comissão das Comunidades Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, tendo seguido uma prática, existente desde há longa data e que continua em vigor, que consiste em adjudicar directamente à Agusta SpA (a seguir «Agusta») os contratos para a aquisição de helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell, a fim de prover às necessidades de vários corpos militares e civis do Estado italiano, à margem de qualquer procedimento de abertura à concorrência, designadamente, sem observar os procedimentos previstos na Directiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento (JO L 199, p. 1), conforme alterada pela Directiva 97/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Outubro de 1997 (JO L 328, p. 1, a seguir «Directiva 93/36»), e, anteriormente, na Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público (JO 1977, L 13, p. 1; EE 17 F1 p. 29), conforme alterada e completada pelas Directivas 80/767/CEE do Conselho, de 22 de Julho de 1980 (JO L 215, p. 1; EE 17 F1 p. 83), e 88/295/CEE do Conselho, de 22 de Março de 1988 (JO L 127, p. 1, a seguir «Directiva 77/62»), a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força destas directivas.

 Quadro jurídico

2        Através da sua acção, a Comissão pede que seja declarada a existência de um incumprimento da Directiva 93/36 e, no que diz respeito ao período anterior à data da entrada em vigor desta, da Directiva 77/62. Dada a semelhança entre as disposições destas directivas e por razões de clareza, referir‑se‑á apenas a Directiva 93/36.

3        Nos termos do décimo segundo considerando da Directiva 93/36:

«[…] o processo por negociação deve ser considerado excepcional e […] deve ser aplicado unicamente a um número limitado de casos».

4        O artigo 1.° da Directiva 93/36 determina que, para efeitos da directiva:

«a)      ‘Contratos públicos de fornecimento’: são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um fornecedor (pessoa singular ou colectiva), por um lado, e uma das entidades adjudicantes definidas na alínea b), por outro, que tenham por objecto a compra, a locação financeira, a locação ou a locação‑venda, com ou sem opção de compra, de produtos. A entrega dos referidos produtos pode incluir, acessoriamente, operações de colocação e instalação;

b)      ‘Entidades adjudicantes’: o Estado, as autarquias locais e regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou um ou mais desses organismos de direito público.

[…]

d)      ‘Concursos públicos’: são concursos nacionais em que qualquer fornecedor interessado pode apresentar uma proposta;

e)      ‘Concursos limitados’: são concursos nacionais em que só os fornecedores convidados pelas entidades adjudicantes podem participar;

f)      ‘Processos por negociação’: são os processos nacionais em que as entidades adjudicantes consultam fornecedores à sua escolha, negociando as condições do contrato com um ou mais de entre eles.»

5        Nos termos do seu artigo 2.°, n.° 1, alínea b), a referida directiva não se aplica:

«Aos contratos de fornecimento que sejam declarados secretos ou cuja execução deva ser acompanhada de medidas especiais de segurança, nos termos das disposições legislativas, regulamentares e administrativas em vigor no Estado‑Membro em causa, ou quando a protecção dos interesses essenciais da segurança desse Estado o exija.»

6        O artigo 3.° da mesma directiva prevê:

«Sem prejuízo do disposto nos artigos 2.° e 4.° e no n.° 1 do artigo 5.°, a presente directiva aplica‑se a todos os produtos abrangidos pela alínea a) do artigo 1.°, incluindo os que são objecto de contratos de fornecimento celebrados por entidades adjudicantes no domínio da defesa, com excepção dos produtos a que se aplica o n.° 1, alínea b), do artigo [296.° CE].»

7        O artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 93/36 tem a seguinte redacção:

«a)      Os títulos II, III e IV e os artigos 6.° e 7.° são aplicáveis aos contratos públicos de fornecimento adjudicados:

i)       pelas entidades adjudicantes referidas na alínea b) do artigo 1.°, incluindo os contratos adjudicados pelas entidades adjudicantes referidas no anexo I no domínio da defesa, desde que digam respeito a produtos não abrangidos pelo anexo II, cujo valor estimado, sem imposto sobre o valor acrescentado (IVA), seja igual ou superior ao equivalente em [euros] a 200 000 direitos de saque especiais (DSE);

ii)      pelas entidades adjudicantes enumeradas no anexo I, cujo valor estimado, sem IVA, seja igual ou superior ao equivalente em [euros] a 130 000 DSE; no que se refere às entidades adjudicantes no domínio da defesa, a presente disposição só é aplicável aos contratos relativos aos produtos abrangidos pelo anexo II.»

8        O artigo 6.°, n.os 1 a 3, da mesma directiva dispõe:

«1.      Para celebração dos respectivos contratos públicos de fornecimento, as entidades adjudicantes aplicarão os processos definidos nas alíneas d), e) e f) do artigo 1.°, nos casos adiante enumerados.

2.      As entidades adjudicantes podem adjudicar os respectivos contratos de fornecimento por meio do processo por negociação em caso de apresentação de propostas irregulares em resposta a um concurso público ou limitado ou de propostas inaceitáveis nos termos das disposições nacionais conformes com o título IV, desde que as condições iniciais do contrato não sejam substancialmente alteradas. Em tais casos, as entidades adjudicantes publicarão um anúncio, salvo se incluírem nesse processo por negociação todas as empresas que preencham os critérios referidos nos artigos 20.° a 24.° e que, aquando do concurso público ou limitado anterior, tenham apresentado propostas em conformidade com os requisitos formais do processo de concurso.

3.      As entidades adjudicantes podem igualmente adjudicar contratos de fornecimento por meio do processo por negociação, sem publicação prévia de anúncio, nos seguintes casos:

[…]

c)      Quando se trate de produtos cujo fabrico ou entrega, devido à sua especificidade técnica ou artística, ou por razões relativas à protecção de direitos exclusivos, apenas possam ser confiados a um fornecedor determinado;

[…]

e)      Quando se trate de entregas complementares efectuadas pelo fornecedor inicial e destinadas à substituição parcial de bens fornecidos ou de instalações de uso corrente ou à ampliação de fornecimentos ou de instalações existentes, desde que a mudança de fornecedor obrigue a entidade adjudicante a adquirir material de técnica diferente que origine uma incompatibilidade ou dificuldades técnicas desproporcionadas de utilização e manutenção. A duração desses contratos, bem como a dos contratos renováveis, não pode, em regra, exceder três anos.»

9        O artigo 33.° da Directiva 93/36 tem a seguinte redacção:

«É revogada a Directiva 77/62/CEE […], sem prejuízo das obrigações dos Estados‑Membros relativas aos prazos de transposição e de aplicação indicados no anexo V.

As referências feitas às directivas revogadas devem entender‑se como sendo feitas à presente directiva e devem ser lidas de acordo com o quadro de correspondência constante do anexo VI.»

 Procedimento pré‑contencioso

10      Dado que não chegou ao conhecimento da Comissão nenhuma informação relativa à organização de um procedimento de concurso, a nível comunitário, para o fornecimento de helicópteros destinados a prover às necessidades de diferentes corpos do Estado italiano, a referida instituição considerou que esses helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell tinham sido comprados directamente, sem concurso a nível comunitário, em violação das disposições das Directivas 77/62 e 93/36. Consequentemente, em 17 de Outubro de 2003, enviou à República Italiana uma notificação para cumprir, convidando‑a a apresentar observações no prazo de 21 dias a contar da data da recepção dessa carta.

11      As autoridades italianas responderam a essa carta por telecópia de 9 de Dezembro de 2003.

12      Por entender que as autoridades italianas não tinham apresentado argumentos suficientes para refutar as observações formuladas nessa notificação, e não tendo recebido mais nenhuma comunicação por parte das mesmas, a Comissão, em 5 de Fevereiro de 2004, dirigiu um parecer fundamentado à República Italiana, convidando‑a a dar cumprimento ao parecer, no prazo de dois meses a contar da notificação deste.

13      As autoridades italianas responderam ao referido parecer fundamentado através de três cartas datadas de 5 de Abril, 13 e 27 de Maio de 2004.

14      Tendo considerado insuficientes os argumentos invocados pela República Italiana em resposta ao parecer fundamentado e tendo constatado que esta não tinha tomado nenhuma medida destinada a pôr fim à prática censurada de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento, a Comissão decidiu propor a presente acção.

 Quanto à acção

 Quanto à admissibilidade

 Argumentação das partes

15      A República Italiana entende que a acção é inadmissível, uma vez que a Comissão, no âmbito do procedimento pré‑contencioso, não pôs em causa os contratos de fornecimento de natureza militar. Apenas os fornecimentos de natureza civil foram objecto de discussão. Por conseguinte, não há correspondência entre, por um lado, as acusações formuladas no procedimento pré‑contencioso e, por outro, as formuladas no âmbito da presente acção.

16      A República Italiana considera que é igualmente inadmissível a parte da acção que tem por objecto os contratos de fornecimento celebrados para prover às necessidades do Corpo forestale dello Stato (Administração Nacional das Florestas). Com efeito, foi violado o princípio ne bis in idem, na medida em que o incumprimento relativo a esta categoria de contratos já foi examinado e apreciado pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 27 de Outubro de 2005, Comissão/Itália (C‑525/03, Colect., p. I‑9405).

17      Além disso, na sua tréplica, a República Italiana alega que, atento o carácter vago e impreciso dos factos descritos pela Comissão, tanto na notificação para cumprir como no parecer fundamentado, a acção não preenche os requisitos de coerência e precisão impostos pela jurisprudência, o que viola gravemente os direitos de defesa deste Estado‑Membro.

18      A Comissão responde que a fase pré‑contenciosa nunca teve por objecto fornecimentos de natureza militar, mas sim fornecimentos de natureza civil destinados, designadamente, a prover às necessidades de determinados corpos militares do Estado italiano. Sublinha igualmente que o processo que esteve na base do acórdão Comissão/Itália, já referido, tinha um objecto diferente do da presente acção.

 Apreciação do Tribunal

19      Resulta de jurisprudência assente que o procedimento pré‑contencioso tem por objectivo facultar ao Estado‑Membro em causa a oportunidade de, por um lado, dar cumprimento às obrigações decorrentes do direito comunitário e de, por outro, apresentar utilmente os seus meios de defesa sobre as acusações formuladas pela Comissão (v., designadamente, acórdãos de 10 de Maio de 2001, Comissão/Países Baixos, C‑152/98, Colect., p. I‑3463, n.° 23; de 15 de Janeiro de 2002, Comissão/Itália, C‑439/99, Colect., p. I‑305, n.° 10; e de 27 de Novembro de 2003, Comissão/Finlândia, C‑185/00, Colect., p. I‑14189, n.° 79).

20      A regularidade deste procedimento constitui assim uma garantia essencial pretendida pelo Tratado CE para assegurar a protecção dos direitos do Estado‑Membro em causa. Só quando esta garantia é respeitada é que o processo contraditório no Tribunal de Justiça pode permitir a este último decidir se esse Estado‑Membro não cumpriu efectivamente as obrigações cuja violação é invocada pela Comissão (v., nomeadamente, acórdão de 5 de Junho de 2003, Comissão/Itália, C‑145/01, Colect., p. I‑5581, n.° 17).

21      É à luz desta jurisprudência que se deve apreciar se a Comissão garantiu o respeito dos direitos de defesa da República Italiana no procedimento pré‑contencioso.

22      Em primeiro lugar, quanto à alegada falta de concordância entre as acusações formuladas no procedimento pré‑contencioso e as formuladas perante o Tribunal de Justiça, basta observar que o parecer fundamentado e a petição inicial, que estão redigidos em termos praticamente idênticos, assentam nas mesmas acusações. Por conseguinte, não pode prosperar o argumento da República Italiana destinado a demonstrar que as acusações formuladas no âmbito do procedimento pré‑contencioso não correspondem às formuladas nessa petição.

23      Em segundo lugar, quanto à alegada falta de clareza e de precisão, no que respeita à determinação das acusações articuladas contra a República Italiana no âmbito do procedimento pré‑contencioso, recorde‑se que, embora o parecer fundamentado referido no artigo 226.° CE deva conter uma exposição coerente e detalhada das razões que criaram na Comissão a convicção de que o Estado‑Membro interessado não cumpriu uma das obrigações que lhe incumbem por força do Tratado, a notificação para cumprir não pode estar sujeita a exigências de precisão tão estritas como aquelas a que está sujeito o parecer fundamentado, uma vez que essa notificação só pode necessariamente consistir num primeiro resumo sucinto das acusações (v., designadamente, acórdãos de 28 de Março de 1985, Comissão/Itália, 274/83, Recueil, p. 1077, n.° 21; de 16 de Setembro de 1997, Comissão/Itália, C‑279/94, Colect., p. I‑4743, n.° 15; e de 18 de Maio de 2006, Comissão/Espanha, C‑221/04, Colect., p. I‑4515, n.° 36).

24      No caso vertente, as alegações da Comissão no procedimento pré‑contencioso foram suficientemente claras para a República Italiana poder apresentar a sua argumentação de defesa, como demonstra o desenrolar dessa fase do processo.

25      Em terceiro lugar, no que diz respeito a uma pretensa violação do princípio ne bis in idem, observe‑se que o acórdão de 27 de Outubro de 2005, Comissão/Itália, já referido, foi proferido a propósito de um processo com um objecto completamente diferente, uma vez que, nesse caso, a acção da Comissão tinha por objecto um despacho do presidente do Conselho de Ministros italiano que autorizava o recurso a procedimentos de negociação, em derrogação das directivas comunitárias relativas aos contratos públicos de fornecimento, acção essa que foi julgada inadmissível na medida em que o referido despacho tinha produzido todos os seus efeitos antes de terminado o prazo fixado no parecer fundamentado. Ora, a presente acção de modo nenhum visa a reapreciação da legalidade do referido despacho, mas sim uma prática antiga do Estado italiano, que consiste em adjudicar directamente contratos para a aquisição de helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell, à margem de qualquer procedimento de abertura à concorrência a nível comunitário.

26      Por conseguinte, deve ser julgada improcedente a excepção de inadmissibilidade suscitada pela República Italiana.

 Questão de mérito

 Argumentação das partes

27      Como fundamento do seu pedido, a Comissão alega ter constatado uma prática geral que consiste em adjudicar directamente contratos para a aquisição de helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell, com o objectivo de prover às necessidades de diferentes corpos militares e civis do Estado italiano.

28      Faz referência a vários contratos celebrados durante os anos de 2000 a 2003, com o Corpo dei Vigili del Fuoco (Corpo de Bombeiros), os Carabinieri (Guarda Nacional), o Corpo forestale dello Stato (Guarda Florestal), a Guardia Costiera (Guarda Costeira), a Guardia di Finanza (Guarda Fiscal), a Polizia di Stato (Polícia Nacional), bem como com o departamento de protecção civil da Presidência do Conselho de Ministros. No que diz respeito ao período anterior ao ano de 2000, as autoridades italianas reconheceram ter comprado helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell, sem nenhum procedimento de submissão à concorrência. A Comissão refere, por fim, que as frotas dos corpos de Estado em questão são constituídas exclusivamente por helicópteros das referidas marcas e que nenhum deles foi comprado na sequência de um procedimento aberto à concorrência a nível comunitário.

29      Uma vez que estes contratos preenchem os requisitos fixados na Directiva 93/36, a Comissão considera que deveriam ter sido objecto de um concurso público ou de um concurso limitado, em conformidade com o artigo 6.° desta directiva, mas não de um procedimento de negociação.

30      A República Italiana sustenta, em primeiro lugar, que os fornecimentos destinados aos corpos militares do Estado italiano estão abrangidos pelos artigos 296.° CE e 2.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 93/36. Com efeito, segundo este Estado‑Membro, estas disposições são aplicáveis, uma vez que os helicópteros em causa são «bens de utilização dupla», ou seja, tanto podem servir para fins civis como para fins militares.

31      O referido Estado‑Membro defende em seguida que, devido à especificidade técnica dos helicópteros e ao carácter complementar dos fornecimentos em causa, podia recorrer ao procedimento de negociação, em aplicação do artigo 6.°, n.° 3, alíneas c) e e), da Directiva 93/36.

32      De uma maneira geral, sublinha que a sua prática não é diferente da que é seguida na maioria dos Estados‑Membros fabricantes de helicópteros.

33      A República Italiana alega, por último, que, até ao fim dos anos 90, as relações do Estado italiano com a Agusta podiam ser analisadas como relações «in house», na acepção do acórdão de 18 de Novembro de 1999, Teckal (C‑107/98, Colect., p. I‑8121).

 Apreciação do Tribunal

34      Importa, desde já, referir que as partes dão por assente que os valores dos contratos em causa ultrapassavam o limiar, fixado no artigo 5.°, n.° 1, alínea), da Directiva 93/36, susceptível de os fazer entrar no âmbito de aplicação desta.

35      De referir igualmente que os documentos relativos aos contratos de compra de helicópteros, anexos à contestação da República Italiana, confirmam a tese da Comissão segundo a qual a compra desses helicópteros através do procedimento de negociação constituiu uma prática constante, seguida desde há longa data.

–       Quanto à relação «in house» entre o Estado italiano e a Agusta

36      Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em conformidade com as directivas relativas à adjudicação de contratos públicos, a abertura à concorrência não é obrigatória, mesmo que o co‑contratante seja uma entidade juridicamente distinta da entidade adjudicante, quando estão preenchidos dois requisitos. Por um lado, a autoridade pública, que é uma entidade adjudicante, deve exercer sobre a entidade distinta em questão um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços e, por outro, esta entidade deve realizar o essencial da sua actividade com a ou as colectividades públicas que a detêm (v. acórdãos Teckal, já referido, n.° 50; de 11 de Janeiro de 2005, Stadt Halle e RPL Lochau, C‑26/03, Colect., p. I‑1, n.° 49; de 13 de Janeiro de 2005, Comissão/Espanha, C‑84/03, Colect., p. I‑139, n.° 38; de 10 de Novembro de 2005, Comissão/Áustria, C‑29/04, Colect., p. I‑9705, n.° 34; de 11 de Maio de 2006, Carbotermo e Consorzio Alisei, C‑340/04, Colect., p. I‑4137, n.° 33; bem como de 19 de Abril de 2007, Asemfo, C‑295/05, Colect., p. I‑2999, n.° 55).

37      Deve, por conseguinte, examinar‑se se os dois requisitos estão preenchidos no que diz respeito à Agusta.

38      Quanto ao primeiro requisito, relativo ao controlo da autoridade pública, recorde‑se que a participação, ainda que minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade na qual também participa a entidade adjudicante em causa exclui, de qualquer forma, que esta entidade adjudicante possa exercer sobre esta sociedade um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços (v. acórdão Stadt Halle e RPL Lachau, já referido, n.° 49).

39      A este respeito, como demonstra o estudo anexo à contestação, relativo às participações do Estado italiano no EFIM (Ente Partecipazioni e Finanziamento Industrie Manufatturiere), na Finmeccanica e na Agusta, esta última, que é uma sociedade de direito privado desde a sua criação, foi sempre, a partir de 1974, uma sociedade de economia mista, ou seja, uma sociedade cujo capital é composto, em parte, por participações detidas por esse Estado e, em parte, por accionistas privados.

40      Do mesmo modo, uma vez que a Agusta é uma sociedade parcialmente aberta ao capital privado e, portanto, preenche o critério enunciado no n.° 38 do presente acórdão, está excluído que o Estado italiano possa exercer sobre esta sociedade um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços.

41      Nestas condições, e sem que seja necessário examinar a questão de saber se a Agusta realiza o essencial da sua actividade com a autoridade pública adjudicante, o argumento da República Italiana relativo à existência de uma relação «in house» entre esta sociedade e o Estado italiano deve ser afastado.

–       Quanto às exigências legítimas de interesse nacional

42      Recorde‑se, a título preliminar, que nem todas as medidas que os Estados‑Membros adoptam no âmbito das exigências legítimas de interesse nacional estão subtraídas à aplicação do direito comunitário pelo simples facto de serem tomadas no interesse da segurança pública ou da defesa nacional (v., neste sentido, acórdão de 11 de Março de 2003, Dory, C‑186/01, Colect., p. I‑2479, n.° 30).

43      Com efeito, como o Tribunal de Justiça já declarou, o Tratado prevê derrogações aplicáveis em caso de situações que possam pôr em causa a segurança pública, designadamente, nos seus artigos 30.° CE, 39.° CE, 46.° CE, 58.° CE, 64.° CE, 296.° CE e 297.° CE, que dizem respeito a hipóteses excepcionais bem delimitadas. Daí não se pode inferir que há uma reserva geral, inerente ao Tratado, que exclui do âmbito de aplicação do direito comunitário quaisquer medidas tomadas por razões de segurança pública. Reconhecer a existência de tal reserva, à margem das condições específicas das disposições do Tratado, seria correr o risco de pôr em causa o carácter vinculativo e a aplicação uniforme do direito comunitário (v., neste sentido, acórdãos de 15 de Maio de 1986, Johnston, 222/84, Colect., p. 1651, n.° 26; de 26 de Outubro de 1999, Sirdar, C‑273/97, Colect., p. I‑7403, n.° 16; de 11 de Janeiro de 2000, Kreil, C‑285/98, Colect., p. I‑69, n.° 16; e Dory, já referido, n.° 31).

44      A este respeito, cabe ao Estado‑Membro que pretende invocar estas excepções provar que tais isenções não ultrapassam os limites das referidas hipóteses excepcionais (v., neste sentido, acórdão de 16 de Setembro de 1999, Comissão/Espanha, C‑414/97, Colect., p. I‑5585, n.° 22).

45      No caso presente, a República Italiana alega que as compras de helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell preenchem os requisitos legítimos de interesse nacional previstos nos artigos 296.° CE e 2.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 93/36, dado que estes helicópteros são bens de utilização dupla, ou seja, tanto podem servir para fins civis como militares.

46      Em primeiro lugar, sublinhe‑se que, por força do artigo 296.°, n.° 1, alínea b), CE, qualquer Estado‑Membro pode tomar as medidas que considere necessárias à protecção dos interesses essenciais da sua segurança e que estejam relacionadas com a produção ou o comércio de armas, munições e material de guerra, desde que, porém, essas medidas não alterem as condições da concorrência no mercado comum, no que diz respeito aos produtos não destinados a fins especificamente militares.

47      Resulta da redacção da referida disposição que os produtos em causa devem ser destinados a fins especificamente militares. Daí resulta que a compra de equipamentos, cuja utilização para fins militares não é certa, deve necessariamente observar as regras relativas à adjudicação dos contratos públicos. O fornecimento de helicópteros a corpos militares, para utilização civil, deve observar estas mesmas regras.

48      Ora, está assente que os helicópteros em causa têm, como a República Italiana admite, uma aplicação civil indubitável e uma finalidade militar possível.

49      Consequentemente, o artigo 296.°, n.° 1, alínea b), CE, para o qual remete o artigo 3.° da Directiva 93/36, não pode ser utilmente invocado pela República Italiana para justificar o recurso ao procedimento de negociação para a compra dos referidos helicópteros.

50      Em segundo lugar, o dito Estado‑Membro invoca a natureza confidencial dos dados obtidos para a produção dos helicópteros fabricados pela Agusta, para justificar a adjudicação, a essa sociedade, segundo o procedimento de negociação dos contratos. A este respeito, a República Italiana invoca o artigo 2.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 93/36.

51      No entanto, observe‑se que a República Italiana não indicou as razões por que considera que o carácter confidencial dos dados comunicados para a produção dos helicópteros fabricados pela Agusta não seria tão bem garantido se a produção fosse confiada a outras sociedades, independentemente de estas estarem estabelecidas em Itália ou noutros Estados‑Membros.

52      A este propósito, a necessidade de prever uma obrigação de confidencialidade de modo nenhum impede que se recorra a um procedimento de abertura à concorrência para a adjudicação de um contrato.

53      Consequentemente, o recurso ao artigo 2.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 93/36, para justificar a compra dos helicópteros em questão segundo o procedimento de negociação, afigura‑se desproporcionado à luz do objectivo que consiste em impedir a divulgação de informações sensíveis relativas à produção destes. Com efeito, a República Italiana não demonstrou que esse objectivo não teria podido ser alcançado no âmbito de um procedimento de abertura à concorrência conforme previsto na mesma directiva.

54      Consequentemente, o artigo 2.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 93/36 não pode ser utilmente invocado pela República Italiana para justificar o recurso ao procedimento de negociação para a compra dos referidos helicópteros.

–       Quanto às exigências de homogeneidade da frota de helicópteros

55      Para justificar o recurso ao procedimento de negociação, a República Italiana invoca igualmente o artigo 6.°, n.° 3, alíneas c) e e), da Directiva 93/36. Sustenta, por um lado, que, atenta a sua especificidade técnica, o fabrico dos helicópteros em causa só podia ser confiado à Agusta e, por outro, que era necessário assegurar a interoperabilidade da sua frota de helicópteros, a fim, designadamente, de reduzir os custos logísticos, operacionais e de formação dos pilotos.

56      Como resulta, nomeadamente, do décimo segundo considerando da Directiva 93/36, o procedimento de negociação é excepcional e só deve ser aplicado em casos taxativamente enumerados. Para esse fim, sublinhe‑se que o artigo 6.°, n.os 2 e 3, da mesma directiva enumera taxativa e expressamente as únicas excepções que permitem o recurso ao procedimento de negociação (v., neste sentido, quanto à Directiva 77/62, acórdão de 17 de Novembro de 1993, Comissão/Espanha, C‑71/92, Colect., p. I‑5923, n.° 10; quanto à Directiva 93/36, v. acórdãos Teckal, já referido, n.° 43, e de 13 de Janeiro de 2005, Comissão/Espanha, n.° 47).

57      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as derrogações às regras que têm por finalidade garantir a efectividade dos direitos reconhecidos pelo Tratado no sector dos contratos públicos devem ser objecto de interpretação estrita (v. acórdãos de 18 de Maio de 1995, Comissão/Itália, C‑57/94, Colect., p. I‑1249, n.° 23; de 28 de Março de 1996, Comissão/Alemanha, C‑318/94, Colect., p. I‑1949, n.° 13; e de 2 de Junho de 2005, Comissão/Grécia, C‑394/02, Colect., p. I‑4713, n.° 33). Sob pena de privar a Directiva 93/36 do seu efeito útil, os Estados‑Membros não podem, assim, admitir casos de recurso ao procedimento de negociação não previstos nesta directiva, ou acrescentar aos casos expressamente previstos na directiva novas condições que tenham por efeito facilitar o recurso ao referido procedimento (v., neste sentido, acórdão de 13 de Janeiro de 2005, Comissão/Espanha, já referido, n.° 48).

58      Além disso, recorde‑se que é a quem pretende invocar uma derrogação que incumbe provar que as circunstâncias excepcionais que justificam essa derrogação se verificam efectivamente (v. acórdão de 10 de Março de 1987, Comissão/Itália, 199/85, Colect., p. 1039, n.° 14, e acórdão Comissão/Grécia, já referido, n.° 33).

59      No caso vertente, deve concluir‑se que a República Italiana não demonstrou suficientemente a razão pela qual apenas os helicópteros produzidos pela Agusta seriam dotados das especificidades técnicas exigidas. Além disso, este Estado‑Membro limitou‑se a sublinhar as vantagens de uma interoperabilidade dos helicópteros utilizados pelos seus diferentes corpos. No entanto, não demonstrou de que modo uma mudança de fornecedor o teria obrigado a adquirir um material fabricado segundo uma técnica diferente, susceptível de provocar uma incompatibilidade, ou dificuldades técnicas de utilização ou de manutenção desproporcionadas.

60      Atento o exposto, deve declarar‑se que, tendo seguido uma prática, existente desde há longa data e que continua em vigor, que consiste em adjudicar directamente à Agusta os contratos para a aquisição de helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell, a fim de prover às necessidades de vários corpos militares e civis do Estado italiano, à margem de qualquer procedimento de abertura à concorrência, designadamente, sem observar os procedimentos previstos na Directiva 93/36 e, anteriormente, na Directiva 77/62, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força destas directivas.

 Quanto às despesas

61      Por força do disposto no artigo 69,° n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Italiana e tendo esta última sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      Tendo seguido uma prática, existente desde há longa data e que continua em vigor, que consiste em adjudicar directamente à Agusta SpA os contratos para a aquisição de helicópteros das marcas Agusta e Agusta Bell, a fim de prover às necessidades de vários corpos militares e civis, à margem de qualquer procedimento de abertura à concorrência, designadamente, sem observar os procedimentos previstos na Directiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento, conforme alterada pela Directiva 97/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Outubro de 1997, e, anteriormente, na Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público, conforme alterada e completada pelas Directivas 80/767/CEE do Conselho, de 22 de Julho de 1980, e 88/295/CEE do Conselho, de 22 de Março de 1988, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força destas directivas.

2)      A República Italiana é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.