Language of document : ECLI:EU:C:2020:257

Processos apensos C715/17, C718/17 e C719/17

Comissão Europeia

contra

República da Polónia e o.

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 2 de abril de 2020

«Incumprimento de Estado — Decisões (UE) 2015/1523 e (UE) 2015/1601 — Artigo 5.°, n.os 2 e 4 a 11, de cada uma dessas decisões — Medidas provisórias a favor da República Helénica e da República Italiana no domínio da proteção internacional — Situação de emergência caracterizada por um súbito afluxo de nacionais de países terceiros ao território de determinados Estados‑Membros — Recolocação desses nacionais no território dos outros Estados‑Membros — Procedimento de recolocação — Obrigação de os Estados‑Membros indicarem periodicamente e, pelo menos, de três em três meses, o número de requerentes de proteção internacional que podem ser recolocados rapidamente no seu território — Obrigações consecutivas destinadas à recolocação efetiva — Interesses dos Estados‑Membros em matéria de segurança nacional e ordem pública — Possibilidade de um Estado‑Membro invocar o artigo 72.° TFUE para não aplicar atos do direito da União revestidos de obrigatoriedade»

1.        Ação por incumprimento — Exame do mérito pelo Tribunal de Justiça — Situação a tomar em consideração — Situação no termo do prazo fixado no parecer fundamentado — Situação de cessação definitiva da aplicação do ato de direito derivado pretensamente violado após o termo do referido prazo — Ação destinada a obter a declaração de um incumprimento nessa situação — Admissibilidade

(Artigo 258.° TFUE; Decisões 2015/1523 e 2015/1601 do Conselho)

(cf. n.os 54, 57 e 62)

2.        Ação por incumprimento — Procedimento précontencioso — Objeto — Prazos fixados ao EstadoMembro — Exigência de prazos razoáveis — Critérios de apreciação

(Artigos 80.° e 258.° TFUE; Decisões 2015/1523 e 2015/1601 do Conselho)

(cf. n.os 92‑98)

3.        Direito da União Europeia — Âmbito de aplicação — Inexistência de uma reserva geral que exclua as medidas tomadas por razões de segurança pública — Competência dos EstadosMembros para tomar medidas destinadas a proteger interesses essenciais relativos à sua segurança — Ónus da prova da necessidade de recorrer a essas medidas incumbente ao EstadoMembro em causa — Aplicação em matéria de recolocação de requerentes de proteção internacional

(Artigos 36.°, 45.°, 52.°, 65.°, 72.°, 346.° e 347.° TFUE; Decisão 2015/1523 do Conselho, artigo 5.°, e Decisão 2015/1601 do Conselho, artigo 5.°)

(cf. n.os 143‑145, 147 e 152)

4.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração — Política de asilo — Estatuto de refugiado ou estatuto conferido pela proteção subsidiária — Diretiva 2011/95 — Exclusão do estatuto conferido pela proteção subsidiária — Causas de exclusão — Prática de um crime grave — Exclusão subordinada a uma avaliação individual dos factos pela autoridade competente

[Diretiva 2011/95 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 12.°, n.° 2, alínea b), e artigo 17.°, n.° 1, alínea b)]

(cf. n.° 154)

5.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração — Política de asilo — Medidas provisórias adotadas pelo Conselho a favor de EstadosMembros que se encontrem numa situação de emergência caracterizada por um súbito afluxo de nacionais de países terceiros — Recolocação desses nacionais no território dos outros EstadosMembros — Decisões 2015/1523 e 2015/1601 relativas às medidas tomadas a favor da Grécia e da Itália — Recusa de recolocação de um requerente de proteção internacional — Motivos razoáveis — Perigo para a segurança nacional ou ordem pública — Exigência de motivos coerentes, objetivos e precisos que sustentem essa suspeita — Exame caso a caso — Invocação desse motivo de forma perentória, unicamente para efeitos de prevenção geral e sem estabelecer uma relação direta com um caso individual — Inadmissibilidade

(Artigo 4.°, n.° 2, TUE; artigo 72.° TFUE; Decisão 2015/1523 do Conselho, artigo 5.°, n.os 2 e 4 a 11, e Decisão 2015/1601 do Conselho, artigo 5.° n.os 2 e 4 a 11; Diretiva 2004/38 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 27.°, n.° 2, e Diretiva 2011/95 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 12.° e 17.°)

(cf. n.os 157‑161, 172, 180, 187, 189 e dispositivo 2‑4)

Resumo

Ao recusarem proceder em conformidade com o mecanismo temporário de recolocação de requerentes de proteção internacional, a Polónia, a Hungria e a República Checa não cumpriram as suas obrigações decorrentes do direito da União. Estes EstadosMembros não podem invocar as suas responsabilidades em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna nem o pretenso funcionamento deficiente do mecanismo de recolocação para se subtraírem à aplicação desse mecanismo

No Acórdão Comissão/Polónia, Hungria e República Checa (Mecanismo temporário de recolocação de requerentes de proteção internacional) (C‑715/17, C‑718/17 e C‑719/17), proferido em 2 de abril de 2020, o Tribunal de Justiça julgou procedentes as ações por incumprimento intentadas pela Comissão contra estes três Estados‑Membros destinadas a obter a declaração de que, ao não indicar periodicamente e, pelo menos, de três em três meses, um número adequado de requerentes de proteção internacional que podiam ser recolocados rapidamente no seu respetivo território e ao não cumprir, por conseguinte, as posteriores obrigações de recolocação que lhes incumbiam, estes Estados‑Membros não cumpriram as suas obrigações decorrentes do direito da União. Por um lado, o Tribunal de Justiça concluiu pela existência de um incumprimento, no que se refere aos três Estados‑Membros em causa, de uma decisão que o Conselho tinha adotado tendo em vista a recolocação, com caráter obrigatório, a partir da Grécia e da Itália, de 120 000 requerentes de proteção internacional nos outros Estados‑Membros da União (1). Por outro lado, o Tribunal de Justiça constatou que a Polónia e a República Checa também não tinham cumprido as suas obrigações decorrentes de uma decisão anterior que o Conselho tinha adotado tendo em vista a recolocação, com caráter voluntário, a partir da Grécia e da Itália, de 40 000 requerentes de proteção internacional nos outros Estados‑Membros da União (2). A Hungria, por seu turno, não estava vinculada pelas medidas de recolocação previstas nesta última decisão.

Em setembro de 2015, tendo em conta a situação de emergência ligada à chegada de nacionais de países terceiros à Grécia e a Itália, o Conselho adotou as decisões acima referidas (a seguir «decisões de recolocação»). Em aplicação destas decisões (3), em dezembro de 2015, a Polónia indicou que 100 pessoas podiam ser recolocadas rapidamente no seu território. No entanto, não procedeu a estas recolocações nem assumiu nenhum compromisso posterior de recolocação. A Hungria, por seu turno, nunca indicou um número de pessoas que pudessem ser recolocados no seu território em aplicação da decisão de recolocação a que estava vinculada e não procedeu a nenhuma recolocação. Por último, em fevereiro e maio de 2016, a República Checa indicou, em aplicação das decisões de recolocação (4), um número correspondente a 50 pessoas que podiam ser recolocados no seu território. Doze pessoas foram efetivamente recolocadas a partir da Grécia, mas posteriormente a República Checa não assumiu mais nenhum compromisso em matéria de recolocação.

Com o presente acórdão, o Tribunal de Justiça começou por julgar improcedente o argumento invocado pelos três Estados‑Membros em causa segundo o qual as ações da Comissão eram inadmissíveis pelo facto de, na sequência do termo do período de aplicação das decisões de recolocação, ocorrido, respetivamente, em 17 e 26 de setembro de 2017, já não lhes ser possível sanar os alegados incumprimentos. A este respeito, o Tribunal de Justiça recordou que uma ação por incumprimento é admissível se a Comissão se limitar a pedir a declaração da existência do alegado incumprimento, designadamente em situações, como as que estão em causa nos presentes processos, em que o ato do direito da União cuja violação se alega deixou definitivamente de ser aplicável após o termo do prazo fixado no parecer fundamentado, a saber, 23 de agosto de 2017. Além disso, a declaração do incumprimento continua a ter um interesse material, designadamente para estabelecer a base da responsabilidade em que um Estado‑Membro pode incorrer, por incumprimento, relativamente a outros Estados‑Membros, à União ou a particulares.

Quanto ao mérito, a Polónia e a Hungria sustentavam, designadamente, que tinham o direito de não aplicar as decisões de recolocação por força do artigo 72.° TFUE, segundo o qual as disposições do Tratado FUE relativas ao espaço de liberdade, segurança e justiça, de que faz parte, nomeadamente, a política de asilo, não prejudicam o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados‑Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna. A este respeito, o Tribunal de Justiça considerou que, na medida em que o artigo 72.° TFUE constitui uma disposição derrogatória das regras gerais do direito da União, deve ser objeto de uma interpretação estrita. Assim, este artigo não confere aos Estados‑Membros o poder de derrogar disposições do direito da União através da mera invocação de interesses ligados à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna, antes lhes impondo que façam prova da necessidade de recorrer à derrogação prevista nesse artigo com o fim de exercer as suas responsabilidades nestas matérias.

Neste contexto, o Tribunal de Justiça notou que, por força das decisões de recolocação, a segurança nacional e a ordem pública deveriam ser tidas em conta ao longo de todo o procedimento de recolocação, até à transferência efetiva do requerente de proteção internacional. A este respeito, o Tribunal de Justiça entendeu que deve ser reconhecida uma ampla margem de apreciação às autoridades competentes dos Estados‑Membros de recolocação quando determinam se existem motivos razoáveis para considerar que um nacional de um país terceiro chamado a ser recolocado constitui um perigo para a sua segurança nacional ou ordem pública. Quanto a este aspeto, o Tribunal de Justiça indicou que o conceito de «perigo para a segurança nacional ou ordem pública», na aceção das decisões de recolocação (5), deve ser interpretado como abrangendo as ameaças tanto atuais como potenciais à segurança nacional ou à ordem pública. No entanto, o Tribunal de Justiça precisou que, para invocar os motivos supra indicados, as referidas autoridades deviam apoiar‑se, após um exame caso a caso, em motivos coerentes, objetivos e precisos que permitam fundamentar a suspeita de que o requerente em causa representa um perigo atual ou potencial. Por conseguinte, decidiu que o regime previsto nessas disposições se opunha a que, no âmbito do procedimento de recolocação, um Estado‑Membro invocasse de forma perentória, unicamente para efeitos de prevenção geral e sem estabelecer uma relação direta com um caso individual, o artigo 72.° TFUE para justificar uma suspensão, ou mesmo uma cessação, do cumprimento das obrigações que lhe incumbiam por força das decisões de recolocação.

Tendo‑se pronunciado em seguida sobre o fundamento, invocado pela República Checa, relativo ao funcionamento deficiente do mecanismo de recolocação em causa, o Tribunal de Justiça declarou que não se pode admitir, sob pena de permitir que seja prejudicado o objetivo de solidariedade inerente às decisões de recolocação, bem como a obrigatoriedade desses atos, que um Estado‑Membro se possa fundar na sua apreciação unilateral da alegada falta de eficácia, ou mesmo do pretenso funcionamento deficiente do mecanismo de recolocação estabelecido pelos referidos atos, para se subtrair a todas as obrigações de recolocação que lhe incumbiam por força desses mesmos atos. Por último, recordando a obrigatoriedade, desde a sua adoção e durante o seu período de aplicação, das decisões de recolocação para a República Checa, o Tribunal de Justiça indicou que este Estado‑Membro tinha de cumprir as obrigações de recolocação impostas por essas decisões independentemente do fornecimento de outro tipo de ajudas à República Helénica e à República Italiana.


1      Decisão (UE) 2015/1601 do Conselho, de 22 de setembro de 2015, que estabelece medidas provisórias no domínio da proteção internacional a favor da Itália e da Grécia (JO 2015, L 248, p. 80). A validade desta decisão foi objeto dos processos apensos C‑643/15 e C‑647/15, Eslováquia e Hungria/Conselho; v., igualmente, comunicado de imprensa n.° 91/17.


2      Decisão (UE) 2015/1523 do Conselho, de 14 de setembro de 2015, que estabelece medidas provisórias a favor da Itália e da Grécia no domínio da proteção internacional (JO 2015, L 239, p. 146).


3      Artigo 5.°, n.° 2, de cada uma dessas decisões.


4      Artigo 5.°, n.° 2, de cada uma dessas decisões.


5      Artigo 5.°, n.os 4 e 7, de cada uma dessas decisões.