Language of document : ECLI:EU:T:2011:68

Processo T‑110/07

Siemens AG

contra

Comissão Europeia

«Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Mercado relativo aos projectos de mecanismos de comutação isolados a gás – Decisão que declara uma infracção ao artigo 81.° CE e ao artigo 53.° do Acordo EEE – Repartição do mercado – Efeitos no mercado comum – Conceito de infracção continuada – Duração da infracção – Prescrição – Coimas – Proporcionalidade – Circunstâncias agravantes – Papel de líder – Circunstâncias atenuantes – Cooperação»

Sumário do acórdão

1.      Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Prática concertada – Infracção à concorrência – Critérios de apreciação – Objecto anticoncorrencial – Verificação suficiente

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Acordo EEE, artigo 53.°, n.° 1)

2.      Direito comunitário – Princípios – Direitos fundamentais – Presunção de inocência – Procedimento em matéria de concorrência – Aplicabilidade

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; artigo 6.°, n.° 2, UE)

3.      Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão que declara a existência de uma infracção – Meio de provaRecurso a um conjunto de indícios

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

4.      Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Acordos entre empresas – Prova da infracção – Apresentação pela Comissão de declarações de outras empresas arguidas – Admissibilidade

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Acordo EEE, artigo 53.°)

5.      Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Acordos entre empresas – Prova da infracção – Apreciação do valor probatório de um documento – Critérios

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

6.      Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão que declara a existência de uma infracção – Ónus da prova da infracção e da respectiva duração a cargo da Comissão

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Comunicação 2002/C 45/03 da Comissão)

7.      Concorrência – Procedimento administrativo – Respeito dos direitos de defesa – Comunicação de acusações – Apresentação de provas adicionais após o envio da comunicação de acusações – Admissibilidade – Requisitos

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 25.°)

8.      Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão que declara a existência de uma infracção – Ónus da prova da infracção e da respectiva duração a cargo da Comissão – Alcance do ónus da prova

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 25.°)

9.      Concorrência – Procedimento administrativo – Respeito dos direitos de defesa – Alcance do princípio – Limites – Direito de a empresa interrogar as testemunhas de acusação – Exclusão

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

10.    Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Participação de uma empresa num cartel

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

11.    Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Infracção – Carácter único da infracção – Critérios de apreciação

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Acordo EEE, artigo 53.°; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 25.°, n.° 2)

12.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão, ponto 1 A, quarto e sexto parágrafo)

13.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Inexistência de uma lista vinculativa ou taxativa de critérios

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2)

14.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Margem de apreciação reservada à Comissão – Aumento do nível geral das coimas

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2)

15.    Concorrência – Coimas – Decisão que aplica coimas – Dever de fundamentação – Alcance

(Artigo 25.°3 CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2)

16.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Papel de líder ou de instigador da infracção

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão, ponto 2, terceiro travessão)

17.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Papel de líder da infracção

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

18.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Não aplicação ou redução da coima em contrapartida da cooperação da empresa arguida

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2; Comunicação 2002/C 45/03 da Comissão, pontos 22 e 29)

1.      Para apreciar se uma prática concertada é proibida pelo artigo 81.°, n.° 1, CE, a apreciação dos seus efeitos concretos é supérflua quando se verifique que tem por objectivo impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado. Isto vale também, por analogia, no âmbito do artigo 53.°, n.° 1, do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE).

(cf. n.° 40)

2.      O princípio da presunção de inocência, tal como resulta, nomeadamente, do artigo 6.°, n.° 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem, o qual faz parte dos direitos fundamentais que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, aliás reafirmada pelo artigo 6.°, n.° 2, UE, constituem princípios gerais do direito comunitário.

Atenta a natureza das infracções em causa, bem como a natureza e grau de severidade das sanções a elas ligadas, o princípio da presunção de inocência aplica‑se, designadamente, aos processos relativos a violações das regras de concorrência aplicáveis às empresas, susceptíveis de conduzir à aplicação de coimas ou de sanções pecuniárias compulsórias. Em sede de recurso de anulação de uma decisão que aplica uma coima, é necessário ter esse princípio em conta. A existência de uma dúvida no espírito do julgador deve beneficiar a empresa destinatária da decisão que declara a existência de uma infracção. O julgador não pode, pois, concluir que a Comissão fez prova bastante da existência da infracção em causa se subsistir ainda no seu espírito uma dúvida sobre essa questão, nomeadamente no quadro de um recurso de anulação de uma decisão que aplica uma coima.

(cf. n.os 44‑45)

3.      Em matéria de concorrência, é necessário que a Comissão apresente provas precisas e concordantes para demonstrar a existência da infracção e para basear a firme convicção de que as infracções alegadas constituem restrições da concorrência sensíveis na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE. No entanto, cada uma das provas apresentadas pela Comissão não tem necessariamente de satisfazer esses critérios relativamente a cada elemento da infracção. Basta que o conjunto de indícios invocado pela instituição, apreciado globalmente, satisfaça essa exigência. A existência de uma prática ou de um acordo anti‑concorrencial pode, pois, ser inferida de um determinado número de coincidências e de indícios que, considerados no seu todo, podem constituir, na falta de outra explicação coerente, a prova de uma violação das normas da concorrência.

Quando a Comissão se apoia unicamente na conduta das empresas em causa no mercado para concluir pela existência de uma infracção, basta a estas últimas demonstrar a existência de circunstâncias que dêem uma explicação diferente dos factos provados pela Comissão e que desse modo permitam substituir a explicação da Comissão que levou a concluir pela existência de uma violação das normas comunitárias da concorrência por outra explicação plausível dos factos. Por conseguinte, a existência de uma explicação alternativa dos factos só é pertinente quando a Comissão se apoia unicamente na conduta das empresas em causa no mercado. Assim, tal explicação não é pertinente a partir do momento em que a existência da infracção não é simplesmente presumida, mas demonstrada por provas. Além disso, por força do princípio da livre administração da prova, todos os meios de prova são admissíveis para provar uma infracção, de modo que a existência de uma explicação alternativa não é pertinente quando uma infracção é suficientemente provada, através de provas distintas das provas documentais.

(cf. n.os 46‑49, 51)

4.      No que respeita aos meios de prova que podem ser invocados para demonstrar a violação do artigo 81.° CE e do artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE), o princípio que prevalece no direito comunitário é o da livre administração da prova. Em particular, nenhuma disposição nem nenhum princípio geral de direito comunitário proíbe a Comissão de invocar contra uma empresa as declarações de outras empresas acusadas. Se não fosse assim, o ónus da prova de comportamentos contrários aos artigos 81.° CE e 82.° CE, que incumbe à Comissão, seria insustentável e incompatível com a missão de vigilância da boa aplicação dessas disposições que lhe é atribuída pelo Tratado.

(cf. n.° 50)

5.      Em matéria de concorrência, o único critério pertinente para apreciar as provas apresentadas reside na sua credibilidade. Segundo as regras geralmente aplicáveis em matéria de prova, a credibilidade e, portanto, o valor probatório de um documento dependem da sua origem, das circunstâncias da sua elaboração, do seu destinatário e do carácter prudente e fiável do seu conteúdo. Importa, designadamente, atribuir grande importância ao facto de ter sido elaborado um documento em conexão imediata com os factos ou por testemunho directo desses factos. Além disso, as declarações que vão contra interesses do declarante devem, em princípio, ser consideradas elementos de prova particularmente fiáveis.

Assim, em princípio, há que qualificar como elemento de grande valor probatório um depoimento de uma pessoa que, durante quase toda a vigência do cartel, foi um dos representantes de um dos principais agentes no âmbito desse cartel e foi, portanto, uma testemunha directa das circunstâncias que expôs no seu depoimento.

(cf. n.os 54, 75)

6.      Em matéria de concorrência, o facto de requerer o benefício da aplicação da Comunicação relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis, a fim de obter uma redução do montante da coimas, não cria necessariamente um incentivo à apresentação de elementos de prova deformados. Com efeito, qualquer tentativa de induzir a Comissão em erro pode pôr em causa a sinceridade bem como a integridade da cooperação do requerente e, portanto, pôr em risco a possibilidade de este beneficiar plenamente da comunicação sobre a cooperação.

No entanto, na medida em que sejam impugnadas por outras empresas igualmente acusadas de terem celebrado o acordo comum, as declarações de uma empresa arguida por violação das normas comunitárias da concorrência devem ser apoiadas por outros elementos de prova para poderem constituir prova bastante da existência e do alcance desse acordo comum.

(cf. n.os 65‑66)

7.      A comunicação de acusações deve permitir que os interessados tomem efectivamente conhecimento do comportamento que lhes é imputado pela Comissão, sendo esta exigência respeitada quando a decisão final não impute aos interessados infracções diferentes das referidas na comunicação de acusações e apenas considere factos sobre os quais os interessados tenham tido a oportunidade de se pronunciar. Assim, embora seja verdade que as infracções imputadas a uma empresa numa decisão não podem ser diferentes das enunciadas na comunicação de acusações, tal não acontece com os factos tomados em consideração, dado que, em relação a estes últimos, basta que as empresas interessadas tenham a possibilidade de se pronunciar sobre todos os factos que lhes são imputados. Com efeito, como foi decidido, nenhuma disposição impede a Comissão de comunicar às partes, após o envio da comunicação de acusações, novos documentos que considere apoiarem a sua tese, sem prejuízo de dar às empresas o tempo necessário para apresentarem o seu ponto de vista sobre o assunto.

(cf. n.os 86‑87)

8.      É à parte ou à autoridade que alega uma violação das regras da concorrência que cabe provar essa violação fazendo prova bastante dos factos constitutivos de uma infracção e, por outro, compete à empresa que invoca um meio de defesa contra a declaração da existência de uma infracção fazer prova de que se encontram preenchidos os pressupostos de aplicação desse meio de defesa, devendo então a referida autoridade recorrer a outros elementos de prova.

O princípio geral segundo o qual a Comissão tem que fazer prova de todos os elementos constitutivos da infracção, incluindo a duração, e susceptíveis de ter influência nas suas conclusões definitivas quanto à gravidade da infracção não é posto em causa pelo facto de a empresa em causa ter alegado a prescrição, cujo ónus de prova, em princípio, é dessa empresa.

Com efeito, a invocação de tal fundamento de defesa implica necessariamente a determinação da duração da infracção e da data de cessação da mesma. Ora, estas circunstâncias não podem justificar, por si só, uma inversão do ónus da prova a este respeito desfavorável à empresa em causa. Por um lado, a duração de uma infracção, conceito que implica que seja conhecida a sua data final, constitui um dos elementos essenciais da infracção, cujo ónus da prova incumbe à Comissão, independentemente do facto de a contestação destes elementos fazer igualmente parte do fundamento de defesa relativo à prescrição. Por outro lado, esta conclusão justifica‑se atendendo ao facto de a não‑prescrição do procedimento instaurado pela Comissão, nos termos do artigo 25.° do Regulamento n.° 1/2003, constituir um critério legal objectivo que decorre do princípio da segurança jurídica e, portanto, uma condição da validade de qualquer decisão que aplique uma sanção. Com efeito, o seu respeito impõe‑se à Comissão mesmo que não seja invocado um fundamento de defesa pela empresa a esse respeito.

Contudo, essa repartição do ónus da prova pode variar na medida em que os elementos de facto invocados por uma parte podem ser susceptíveis de obrigar a outra parte a fornecer uma explicação ou uma justificação, sob pena de se poder concluir que foi feita a prova. Designadamente, quando, como neste caso, a Comissão prova a existência de um acordo, incumbe à empresa que nele tomou parte provar que dele se distanciou, prova essa que deve demonstrar uma vontade clara e levada ao conhecimento das outras empresas participantes de se subtrair ao acordo.

(cf. n.os 173‑176)

9.      O princípio fundamental do respeito pelos direitos de defesa princípio exige que as empresas e as associações de empresas afectadas por um inquérito da Comissão sejam colocadas em condições de, logo na fase do procedimento administrativo, darem utilmente a conhecer o seu ponto de vista sobre a realidade e a pertinência dos factos, acusações e circunstâncias alegados pela Comissão. Assim, a resposta de uma empresa à comunicação de acusações da Comissão não pode ser invocada para acusar outra empresa arguida no inquérito quando esta não tiver tido acesso à resposta antes da adopção da decisão pela Comissão.

Em contrapartida, o referido princípio não exige que seja facultada a essas empresas a possibilidade de, na fase administrativa do processo, interrogarem as testemunhas ouvidas pela Comissão.

(cf. n.os 189, 199)

10.    O facto de não se distanciar publicamente de uma infracção na qual a empresa em causa participou ou de não a denunciar às autoridades administrativas tem por efeito incentivar a continuidade da infracção e compromete a sua descoberta, pelo que essa aprovação tácita pode ser qualificada de cumplicidade ou de modo passivo de participação na infracção.

(cf. n.° 222)

11.    Vários critérios são adequados para determinar o carácter único de uma infracção ao artigo 81.° e ao artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE), a saber, a identidade ou a diversidade dos objectivos das práticas em causa, a identidade dos produtos e dos serviços abrangidos, a identidade das empresas que nela participaram e a identidade das regras da sua execução. A identidade das pessoas singulares implicadas por conta das empresas e a identidade do âmbito de aplicação geográfica das práticas em causa são outros critérios pertinentes.

Em particular, quanto ao conceito de objectivo comum das práticas anticoncorrenciais, a questão de saber se um conjunto de acordos e práticas contrários ao artigo 81.°, n.° 1, CE constitui uma infracção única e continuada é, pelo contrário, uma questão que depende unicamente de factores objectivos, entre os quais o objectivo comum dos referidos acordos e práticas. Este último é um critério que deve ser apreciado apenas na perspectiva do conteúdo destes acordos e práticas e não deve ser confundido com a intenção subjectiva das diferentes empresas de participarem num cartel único e continuado. Pelo contrário, esta intenção subjectiva não pode nem deve ser tomada em consideração, a não ser no âmbito da apreciação da participação individual de uma empresa nesse acordo único e continuado. A esse respeito, basta que, quando a empresa em causa, após ter-se retirado, tiver retomado a sua participação no cartel, estivesse ciente de que participava no mesmo cartel que anteriormente. Basta mesmo que essa empresa estivesse consciente dos critérios essenciais, acima mencionados, que justificavam a declaração do carácter único da infracção, para que lhe possa ser oposto este carácter único, mesmo admitindo que ela própria não tivesse concluído pela sua existência.

(cf. n.os 241, 246, 253)

12.    No ponto 1 A, quarto e sexto parágrafos, as orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do artigo 15.º, n.° 2, do Regulamento n.° 17 e do artigo 65.º, n.° 5, do Tratado CECA dispõem que se tome em consideração a capacidade económica efectiva de os autores da infracção causarem um prejuízo importante aos outros operadores e que se tenha em conta o peso específico de cada empresa na concorrência, nomeadamente se existir uma disparidade considerável em termos de dimensão das empresas que cometeram uma infracção. Em contrapartida, as orientações não dispõem que a capacidade económica efectiva das empresas ou o peso específico do seu comportamento devam ser apreciados à luz de um critério específico, como a sua quota de mercado relativa ao produto em causa no Espaço Económico Europeu (EEE) ou no mercado interno. Assim sendo, a Comissão é livre de aplicar, neste domínio, um critério apropriado na perspectiva das circunstâncias de cada caso específico.

(cf. n.° 279)

13.    A gravidade das infracções deve ser determinada em função de um grande número de elementos, como as circunstâncias específicas do caso, o seu contexto e o carácter dissuasivo das coimas, sem que tenha sido fixada uma lista vinculativa ou taxativa de critérios a tomar obrigatoriamente em consideração. Entre os elementos que podem entrar na apreciação da gravidade das infracções figuram o comportamento de cada uma das empresas, o papel desempenhado por cada uma delas na determinação das práticas concertadas, o benefício que puderam retirar dessas práticas, a sua dimensão e o valor das mercadorias em causa, bem como o risco que infracções deste tipo representam para os objectivos da Comunidade.

Daí resulta, por um lado, que é permitido, com vista à determinação da coima, atender quer ao volume de negócios global da empresa, que constitui uma indicação, ainda que aproximativa e imperfeita, da sua dimensão e do seu poder económico, quer à parte desse volume que provém das mercadorias objecto da infracção e que, portanto, pode dar uma indicação da amplitude desta. Daí resulta, por outro lado, que não se pode atribuir nem a um nem a outro desses volumes uma importância desproporcionada relativamente aos outros elementos de apreciação e, por conseguinte, que a fixação de uma coima adequada não pode ser o resultado de um simples cálculo baseado no volume de negócios global. É particularmente assim quando as mercadorias em causa representam apenas uma pequena fracção desse volume.

O enunciado dos elementos susceptíveis de entrar na apreciação da gravidade de uma infracção, indicados no n.° 242 do referido acórdão, não é vinculativo nem taxativo. Portanto, a Comissão é livre de tomar em consideração outros elementos ou de atribuir menor importância a um dos elementos enunciados no referido n.° 242, ou mesmo de não o tomar sequer em consideração, se isso lhe parecer apropriado perante as circunstâncias de um caso concreto.

Por outro lado, o conceito de «valor das mercadorias em causa» deve ser entendido como uma medida que indica a parte do volume de negócios global das empresas em causa proveniente dos produtos objecto do cartel e não como reportando‑se à dimensão do mercado destes produtos no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE).

(cf. n.os 286‑288)

14.    A prática decisória anterior da Comissão não serve só por si de quadro jurídico às coimas em matéria de concorrência. A Comissão dispõe, no âmbito do Regulamento n.° 1/2003, de uma margem de apreciação na fixação do montante das coimas, a fim de orientar o comportamento das empresas no sentido do cumprimento das regras da concorrência. Assim sendo, o facto de a Comissão ter aplicado, no passado, coimas de certo nível a determinados tipos de infracções não a priva da possibilidade de aumentar esse nível, nos limites indicados no Regulamento n.° 1/2003, se isso for necessário para assegurar a execução da política comunitária da concorrência. A aplicação eficaz das regras comunitárias da concorrência exige, pelo contrário, que a Comissão possa em qualquer altura adaptar o nível das coimas às necessidades dessa política.

Daqui resulta que as empresas arguidas num procedimento administrativo que pode dar origem a uma coima não podem adquirir a confiança legítima de que a Comissão não ultrapassará o nível das coimas praticado anteriormente. Por conseguinte, as referidas empresas devem contar com a possibilidade de, a todo o momento, a Comissão poder decidir aumentar o nível do montante das coimas em relação ao aplicado no passado.

(cf. n.os 290‑291)

15.    Quanto ao cálculo do montante das coimas aplicadas pela Comissão por infracção ao direito comunitário da concorrência, os requisitos da formalidade essencial que constitui o dever de fundamentação estão preenchidos quando a Comissão indica, na sua decisão, os elementos de apreciação que lhe permitiram medir a gravidade e a duração da infracção, não tendo a obrigação de apresentar, na referida decisão, uma exposição pormenorizada ou os elementos quantificados relativos ao modo de cálculo da coima.

Em especial, a indicação dos números que foram tidos em conta, designadamente quanto ao efeito dissuasor pretendido, no exercício do poder de apreciação da Comissão na fixação das coimas, é uma faculdade que se pretende seja usada pela Comissão, mas que ultrapassa o exigido pelo dever de fundamentação.

(cf. n.os 311‑312)

16.    Para ser qualificada de «líder», uma empresa deve ter representado uma força motriz significativa para o cartel ou ter assumido uma responsabilidade particular e concreta no seu funcionamento. Essa circunstância deve ser apreciada de um ponto de vista global à luz do contexto do caso concreto. A qualificação de «líder» foi designadamente acolhida pela jurisprudência quando se provou que a empresa assumiu as funções de coordenador do acordo e, designadamente, organizou e dotou de pessoal o secretariado responsável pela execução concreta do acordo, ou quando a referida empresa desempenhou um papel fulcral no funcionamento concreto do cartel, por exemplo, organizando numerosas reuniões, recolhendo e distribuindo as informações no cartel, assumindo a representação de determinados membros no âmbito do cartel, encarregando‑se a maior parte das vezes de formular propostas relativas ao seu funcionamento. Além disso, é inteiramente possível que seja atribuída simultaneamente a duas ou mais empresas a qualidade de líder, designadamente no âmbito de um cartel que envolva um grande número de participantes.

Por outro lado, como resulta do próprio teor do ponto 2, terceiro travessão, das orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do artigo 15.º, n.° 2, do Regulamento n.° 17 e do artigo 65.º, n.° 5, do Tratado CECA, importa distinguir o conceito de «líder» do de «instigador» de uma infracção. Com efeito, enquanto o papel de instigador respeita ao momento da criação ou do alargamento de um acordo, o papel de líder respeita ao seu funcionamento. Assim sendo, o líder e o instigador de uma infracção não se encontram numa situação comparável, de modo que, o facto de tratar diversamente uma empresa qualificada de instigador do cartel e o líder desse cartel não constitui uma violação do princípio de igualdade de tratamento.

(cf. n.os 337, 345, 348)

17.    Mesmo que a Comissão se tenha abstido erradamente de qualificar uma empresa como líder de um cartel, apesar do papel significativo por ela desempenhado nesse cartel, essa ilegalidade, cometida a favor de outrem, não justificava que se julgue procedente o fundamento de anulação da decisão da Comissão. Com efeito, o respeito do princípio da igualdade de tratamento ou da não discriminação deve ser conciliado com o respeito do princípio da legalidade, o que implica que ninguém pode invocar a seu favor uma ilegalidade cometida a favor de outrem.

(cf. n.° 358)

18.    A redução do montante das coimas em caso de cooperação por parte das empresas que participaram em infracções ao direito comunitário da concorrência tem fundamento na consideração de que essa cooperação facilita a tarefa da Comissão de detectar a existência de uma infracção e, eventualmente, de pôr‑lhe termo.

Como é mencionado no n.° 29 da Comunicação relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis, esta criou expectativas legítimas nas quais se basearam as empresas que desejavam informar a Comissão da existência de um cartel. Atenta a confiança legítima que as empresas que pretendiam colaborar com a Comissão podiam retirar dessa comunicação, a Comissão está, portanto, obrigada a respeitá‑la ao apreciar a cooperação de uma empresa, no âmbito da determinação do montante da sua coima.

Dentro dos limites fixados pela comunicação sobre a cooperação, a Comissão tem um amplo poder de apreciação para avaliar se os elementos de prova comunicados por uma empresa apresentam ou não um valor acrescentado na acepção do n.° 22 da comunicação sobre a cooperação e se há que conceder-lhe uma redução nos termos dessa comunicação.

(cf. n.os 374‑376)