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Processo C128/20

GSMB Invest GmbH & Co. KG

contra

Auto Krainer GesmbH

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landesgericht Korneuburg)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 14 de julho de 2022

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Regulamento (CE) n.° 715/2007 — Homologação dos veículos a motor — Artigo 3.°, ponto 10 — Artigo 5.°, n.os 1 e 2 — Dispositivo manipulador — Veículos a motor — Motor diesel — Emissões de poluentes — Sistema de controlo das emissões — Programa informático integrado na calculadora de controlo do motor — Válvula para recirculação dos gases de escape (válvula EGR) — Redução das emissões de óxido de azoto (NOx) limitada por uma “janela térmica” — Proibição da utilização de dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões — Artigo 5.°, n.° 2, alínea a) — Exceção a esta proibição»

1.        Aproximação das legislações — Veículos a motor — Emissões dos veículos particulares e utilitários ligeiros — Regulamento n.° 715/2007 — Dispositivo manipulador — Conceito — Dispositivo que reduz, em função da temperatura exterior e da altitude, a eficácia do sistema de recirculação dos gases poluentes dos veículos em causa durante o funcionamento e a utilização normais dos veículos — Inclusão

(Regulamento n.° 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 3.°, ponto 10, 4.°, n.° 2, e 5.°, n.° 1)

(cf. n.os 32, 33, 36, 40‑43, 46, 47, disp. 1)

2.        Aproximação das legislações — Veículos a motor — Emissões dos veículos particulares e utilitários ligeiros — Regulamento n.° 715/2007 — Obrigações dos fabricantes relativas à homologação — Proibição de utilizar dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões — Exceções — Dispositivo que assegura a proteção do motor contra danos ou um acidente e o funcionamento seguro do veículo — Alcance — Dispositivo que reduz, em função da temperatura exterior e da altitude, a eficácia do sistema de recirculação dos gases poluentes dos veículos em causa durante o seu funcionamento e utilização normais — Exclusão

[Regulamento n.° 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 5.°, n.° 2, alínea a)]

(cf. n.os 50‑56, 61‑65, 67‑70, disp. 2)

Resumo

O objetivo de garantir um elevado nível de proteção do ambiente na União Europeia manifesta‑se, nomeadamente, através da adoção de medidas destinadas a limitar as emissões de poluentes. Neste sentido, os veículos a motor foram objeto de uma regulamentação cada vez mais restritiva, em particular, com a adoção do Regulamento (CE) n.° 715/2007, relativo à homologação dos veículos a motor (1). Este regulamento visa, nomeadamente, reduzir de modo significativo as emissões de óxido de azoto (NOx) dos veículos com motor diesel a fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores limite em termos de poluição.

Os três presentes processos têm por objeto a compra de veículos equipados com um programa informático integrado na calculadora de controlo do motor que, fora de certas condições de temperatura e acima de uma certa altitude de circulação, reduz a eficácia do sistema de recirculação dos gases de escape (EGR), o que leva a ultrapassar os valores limite de emissões de NOx fixados pelo Regulamento n.° 715/2007.

Com efeito, na sequência de uma atualização do programa informático integrado na calculadora de controlo do motor, a purificação dos gases de escape é desativada a uma temperatura exterior inferior a 15 graus Celsius e a uma temperatura exterior superior a 33 graus Celsius, bem como a uma altitude de circulação superior a 1 000 metros (a seguir «janela térmica»). Fora desta janela, numa margem de 10 graus Celsius e acima de 1 000 metros de altitude, num intervalo de 250 metros, a taxa de recirculação dos gases de escape é reduzida linearmente a 0, conduzindo a um aumento das emissões de NOx superior aos valores limite fixados pelo Regulamento n.° 715/2007.

Estes três processos inserem‑se no prolongamento do Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o (Dispositivo manipulador em motor diesel) (a seguir «Acórdão CLCV) (2), no qual o Tribunal de Justiça interpretou, pela primeira vez, o conceito de «dispositivo manipulador» na aceção do Regulamento n.° 715/2007 (3) e determinou em que medida esse dispositivo é ilícito à luz da disposição deste regulamento (4), que prevê exceções à proibição de um dispositivo manipulador, entre as quais a necessidade de proteger o motor contra danos ou um acidente e de garantir o funcionamento seguro do veículo.

Foi neste contexto que os três órgãos jurisdicionais de reenvio austríacos perguntaram ao Tribunal de Justiça se um programa informático, como o que está em causa, constitui um «dispositivo manipulador» na aceção do Regulamento n.° 715/2007. Em caso afirmativo, esses órgãos jurisdicionais interrogam‑se sobre a questão de saber se esse programa informático pode ser autorizado com fundamento na exceção à proibição de tais dispositivos baseada na necessidade de proteger o motor contra danos ou acidentes e de garantir o funcionamento seguro do veículo. Por último, na hipótese de o referido programa informático não ser autorizado, esses órgãos jurisdicionais pretendem saber se a sua utilização pode conduzir à anulação da venda por não‑conformidade do veículo com o contrato, com fundamento na diretiva relativa à venda e garantias dos bens de consumo (5).

Por três acórdãos proferidos em Grande Secção, o Tribunal de Justiça conclui, antes de mais, que o programa informático em causa reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões durante o funcionamento e a utilização normais dos veículos e que constitui, assim, um «dispositivo manipulador» na aceção do Regulamento n.° 715/2007. Considera, em seguida, que um dispositivo manipulador que serve principalmente para proteger componentes, como a válvula EGR, o refrigerador EGR e o filtro de partículas diesel, não está abrangido pela exceção à proibição de tais dispositivos se o funcionamento destes elementos não afetar a proteção do motor. Por último, o Tribunal de Justiça declara que um veículo equipado com tal dispositivo não está em conformidade com o contrato de compra e venda na aceção da diretiva relativa à venda e garantias dos bens de consumo, mesmo que esteja abrangido por uma homologação CE válida, e que o defeito de que padece não pode ser qualificado de «insignificante», o que exclui, por princípio, a possibilidade de o comprador obter a declaração da nulidade do contrato.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, para determinar se o programa informático em causa constitui um «dispositivo manipulador» na aceção do Regulamento n.° 715/2007, o Tribunal de Justiça procede à interpretação do conceito de «funcionamento e [...] utilização normais» de um veículo.

A este respeito, conclui que resulta não só da redação da disposição do Regulamento n.° 715/2007 que define esse dispositivo (6) mas também do contexto em que se insere esta disposição, bem como do objetivo prosseguido por este regulamento que este conceito remete para a utilização de um veículo em condições normais de condução, isto é, não apenas para a sua utilização nas condições previstas para o teste de homologação, aplicável à época dos factos do litígio no processo principal. Este conceito remete, assim, para a utilização desse veículo em condições reais de condução, como existem habitualmente no território da União. A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que, conforme declarou no Acórdão CLCV, a instalação de um dispositivo que permite assegurar o respeito dos valores limite de emissão previstos pelo Regulamento n.° 715/2007 unicamente na fase de teste de homologação, apesar de esta fase de teste não permitir reproduzir as condições de utilização normais de um veículo, seria contrária à obrigação de assegurar uma limitação efetiva das emissões em tais condições de utilização. O mesmo sucede no que respeita à instalação de um dispositivo que apenas permite assegurar esse respeito no âmbito de uma janela térmica que, embora abranja as condições em que ocorre a fase de teste de homologação, não corresponde às condições de condução normais.

Nestas circunstâncias, o Tribunal de Justiça considera que um programa informático, como o que está em causa, que garante o respeito dos valores limite de emissão previstos pelo Regulamento n.° 715/2007 unicamente quando a temperatura exterior se situa na janela térmica, reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões em condições que se pode razoavelmente esperar que ocorram durante o funcionamento e a utilização normais dos veículos na aceção do Regulamento n.° 715/2007. Este programa informático constitui, assim, um «dispositivo manipulador» na aceção deste regulamento (7).

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça aprecia a questão de saber se um dispositivo, como o que está em causa, pode ser abrangido pela exceção à proibição de utilização dos dispositivos manipuladores relativa à necessidade de proteger o motor contra danos ou um acidentes e garantir o funcionamento seguro do veículo prevista pelo Regulamento n.° 715/2007 (8), na medida em que este dispositivo contribui para a proteção de componentes, como a válvula EGR, o refrigerador EGR e o filtro de partículas diesel.

A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que o Regulamento n.° 715/2007 prevê exceções à proibição da utilização de um dispositivo manipulador, nomeadamente quando «se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo». No que respeita, antes de mais, ao conceito de «motor», o Tribunal de Justiça sublinha que o direito da União (9) estabelece uma distinção clara entre, por um lado, o motor visado por esta exceção e, por outro, os parâmetros do sistema de controlo da poluição, que incluem os filtros de partículas e o EGR. Por conseguinte, a válvula EGR, o refrigerador EGR e o filtro de partículas diesel constituem componentes distintos do motor. No que respeita, em seguida, aos conceitos de «acidente» e de «danos», o Tribunal de Justiça entende que a acumulação de sujidade e o envelhecimento do motor não podem ser considerados um «acidente» ou um «dano» na aceção do Regulamento n.° 715/2007 (10), uma vez que esses acontecimentos são, em princípio, previsíveis e inerentes ao funcionamento normal de um veículo. Segundo o Tribunal de Justiça, apenas os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor que geram um perigo concreto durante a condução de um veículo são, assim, suscetíveis de justificar a utilização de um dispositivo manipulador, ao abrigo do Regulamento n.° 715/2007.

Tendo em conta o facto de a exceção à proibição de utilização de dispositivos manipuladores dever ser objeto de interpretação estrita, o Tribunal de Justiça considera que a «necessidade» desse dispositivo na aceção do Regulamento n.° 715/2007 só existe quando, no momento da homologação CE desse dispositivo ou do veículo com ele equipado, nenhuma outra solução técnica permite evitar riscos imediatos de danos ou de acidente no motor geradores de um perigo concreto durante a condução do veículo.

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça considera que um dispositivo manipulador que só garante o respeito dos valores limite de emissão previstos no Regulamento n.° 715/2007 quando a temperatura exterior se situa na janela térmica não pode ser abrangido pela exceção à proibição de utilização de tais dispositivos, prevista por este regulamento, pelo simples facto de esse dispositivo contribuir para a proteção de componentes, como a válvula EGR, o refrigerador EGR e o filtro para partículas diesel. No entanto, a situação é diferente se se demonstrar que o referido dispositivo responde estritamente à necessidade de evitar os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor, ocasionados por um mau funcionamento de um desses componentes, de uma gravidade tal que gerem um perigo concreto durante a condução do veículo equipado com o mesmo dispositivo. Em todo o caso, um dispositivo manipulador que deva, em condições normais de circulação, funcionar durante a maior parte do ano para que o motor seja protegido contra danos ou um acidente e para que o funcionamento seguro do veículo seja garantido não pode ser abrangido pela exceção prevista pelo Regulamento n.° 715/2007.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça precisa que a circunstância de um dispositivo manipulador na aceção do Regulamento n.° 715/2007 ter sido instalado após a entrada em circulação de um veículo, aquando de uma reparação (11), não é pertinente para apreciar se a utilização desse dispositivo é proibida, por força deste regulamento (12).

Em terceiro e último lugar, o Tribunal de Justiça aborda a questão de saber se a utilização de um programa informático proibido pode conduzir à anulação da venda por falta de conformidade do veículo com o contrato, com base na diretiva relativa à venda e garantias dos bens de consumo.

A este respeito, o Tribunal de Justiça salienta, por um lado, que os veículos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2007/46 (13) devem ser objeto de uma homologação CE e, por outro, que esta homologação só pode ser concedida se o modelo de veículo em questão cumprir as disposições do Regulamento n.° 715/2007, nomeadamente as relativas às emissões de poluentes. Além disso, nos termos da Diretiva 2007/46 (14), o fabricante, na sua qualidade de titular de um certificado de homologação CE de um veículo, deve entregar um certificado de conformidade a acompanhar cada veículo completo, incompleto ou completado, fabricado em conformidade com o modelo do veículo homologado. Este certificado é obrigatório para efeitos de matrícula, venda ou entrada em circulação de um veículo (15). Quando adquire um veículo que pertence à série de um modelo de veículo homologado e, por conseguinte, acompanhado de um certificado de conformidade, um consumidor pode razoavelmente esperar que o Regulamento n.° 715/2007 seja respeitado em relação a este veículo, mesmo que não existam cláusulas contratuais específicas.

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça entende que um veículo a motor abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 715/2007 não apresenta as «qualidades habituais que o consumidor pode razoavelmente esperar em bens do mesmo tipo» na aceção da diretiva relativa à venda e garantias dos bens de consumo (16), se, apesar de estar abrangido por uma homologação CE em vigor e puder, por conseguinte, ser utilizado na estrada, esse veículo estiver equipado com um dispositivo manipulador cuja utilização é proibida por força do Regulamento n.° 715/2007 (17).

Por último, o Tribunal de Justiça precisa que uma falta de conformidade que consiste na presença, no veículo em causa, de um dispositivo manipulador cuja utilização é proibida por força do Regulamento n.° 715/2007 não pode ser qualificada de «insignificante» (18), mesmo que o consumidor tivesse, não obstante, comprado esse veículo se tivesse tido conhecimento da existência e do funcionamento desse dispositivo.


1      Regulamento (CE) n.° 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1).


2      Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel) (C‑693/18, EU:C:2020:1040).


3      Na aceção do artigo 3.°, ponto 10, do Regulamento n.° 715/2007. Esta disposição define um «dispositivo manipulador» como «qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo».


4      Artigo 5.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 715/2007.


5      Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (JO 1999, L 171, p. 12, a seguir «diretiva relativa à venda e garantias dos bens de consumo»).


6      Artigo 3.°, ponto 10, do Regulamento n.° 715/2007.


7      Artigo 3.°, ponto 10, do Regulamento n.° 715/2007.


8      Artigo 5.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 715/2007.


9      Regulamento (CE) n.° 692/2008 da Comissão, de 18 de julho de 2008, que executa e altera o Regulamento n.° 715/2007 (JO 2008, L 199, p. 1), foi alterado pelo Regulamento (UE) n.° 566/2011 da Comissão, de 8 de junho de 2011 (JO 2011, L 158, p. 1), anexo I.


10      Artigo 5.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 715/2007.


11      Na aceção do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 1999/44.


12      Artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 715/2007.


13      Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos («Diretiva‑Quadro») (JO 2007, L 263, p. 1), conforme alterada pelo Regulamento (UE) no 1229/2012 da Comissão de 10 de dezembro de 2012 (JO 2012, L 353, p. 1).


14      Em virtude do artigo 18.°, n.° 1, da Diretiva 2007/46.


15      Em conformidade com o artigo 26.°, n.° 1, da Diretiva 2007/46.


16      Artigo 2.°, n.° 2, alínea d), da Diretiva 1999/44.


17      Artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 715/2007.


18      Em virtude do artigo 3.°, n.° 6, da Diretiva 1999/44.