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Processo T272/21

Carles Puigdemont i Casamajó, Antoni Comín i Oliveres e Clara Ponsatí i Obiols

contra

Parlamento Europeu

 Acórdão do Tribunal Geral (Sexta Secção alargada) de 5 de julho de 2023

«Direito institucional – Membro do Parlamento – Privilégios e imunidades – Decisão de levantamento da imunidade parlamentar – Artigo 9.° do Protocolo n.° 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União – Competência da autoridade que emitiu o pedido de levantamento da imunidade – Segurança jurídica – Erro manifesto de apreciação – Alcance da fiscalização do Parlamento – Procedimento de análise do pedido de levantamento da imunidade – Direitos de defesa – Imparcialidade»

1.      Privilégios e imunidades da União Europeia – Membros do Parlamento Europeu – Imunidade – Pedido de levantamento da imunidade – Requisitos – Verificação pelo Parlamento – Alcance

(Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, artigos 8.° e 9.°; Regimento do Parlamento Europeu, artigos 5.°, n.° 2, 6.°, 9.°, n.os 5 e 6)

(cf. n.os 99, 100‑106, 129, 130)

2.      Privilégios e imunidades da União Europeia – Membros do Parlamento Europeu – Imunidade – Pedido de levantamento da imunidade – Poder de apreciação do Parlamento – Fiscalização jurisdicional – Alcance

(Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, artigo 9.°)

(cf. n.º 116)

3.      Privilégios e imunidades da União Europeia – Membros do Parlamento Europeu – Imunidade – Pedido de levantamento da imunidade – Requisitos – Verificação pelo Parlamento – Exame do caráter justificado do processo penal nacional e da culpabilidade do deputado em causa – Exclusão – Competência das autoridades nacionais

(Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, artigo 9.°; Regimento do Parlamento Europeu, artigo 9.°, n.° 7)

(cf. n.os 141, 180)

4.      Privilégios e imunidades da União Europeia – Membros do Parlamento Europeu – Imunidade – Pedido de levantamento da imunidade – Procedimento de apreciação desse pedido – Decisão sobre o referido pedido – Princípio da imparcialidade – Aplicabilidade desse princípio a essa decisão – Alcance do referido princípio

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 41.°; Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, artigo 9.°; Regimento do Parlamento Europeu, artigo 9.°)

(cf. n.os 221‑227, 241‑256)

Resumo

Os três recorrentes apresentaram a sua candidatura às eleições para o Parlamento Europeu realizadas em Espanha em 26 de maio de 2019, na sequência das quais, em 13 de junho de 2019, o primeiro e o segundo recorrentes foram proclamados eleitos. Em 20 de junho de 2019, a Junta Electoral Central (Comissão Eleitoral Central, Espanha) comunicou ao Parlamento uma decisão na qual declarava que estes últimos não tinham prestado o juramento de cumprir a Constituição espanhola exigido pela lei eleitoral espanhola (1) e, por conseguinte, declarou a vaga dos seus lugares no Parlamento. Em 27 de junho de 2019, o Presidente do Parlamento então em funções informou o primeiro e segundo recorrentes de que não podia tratá‑los como futuros membros do Parlamento.

Em 14 de outubro e 4 de novembro de 2019, o juiz de instrução da Secção Penal do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) emitiu um mandado de detenção nacional, um mandado de detenção europeu e um mandado de detenção internacional contra cada recorrente, para que pudessem ser julgados no âmbito do processo penal instaurado contra eles por factos relativos, designadamente, consoante as pessoas em causa, a infrações de rebelião, de sedição e de desvio de fundos públicos.

Na sessão plenária de 13 de janeiro de 2020, o Parlamento registou, na sequência do Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Junqueras Vies (2), a eleição dos primeiro e segundo recorrentes para o Parlamento com efeitos a partir de 2 de julho de 2019. Em 16 de janeiro de 2020, o Vice‑Presidente do Parlamento comunicou em sessão plenária os pedidos apresentados pelo Presidente do Supremo Tribunal em 13 de janeiro anterior, relativos ao levantamento da imunidade do primeiro e segundo recorrentes, e remeteu‑os à Comissão dos Assuntos Jurídicos do Parlamento.

Em 10 de fevereiro de 2020, na sequência da saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia, ocorrida em 31 de janeiro de 2020, o Parlamento registou a eleição da terceira recorrente como deputada com efeitos a partir de 1 de fevereiro de 2020. Em 13 de fevereiro de 2020, o Vice‑Presidente do Parlamento comunicou em sessão plenária o pedido transmitido pelo Presidente do Supremo Tribunal em 10 de fevereiro de 2020, destinado ao levantamento da imunidade da terceira recorrente, e remeteu esse pedido à Comissão dos Assuntos Jurídicos do Parlamento.

Por três decisões de 9 de março de 2021 (3), o Parlamento levantou a imunidade prevista no artigo 9.°, primeiro parágrafo, alínea b), do Protocolo n.° 7 (4) dos três recorrentes, que interpuseram então recurso de anulação dessas três decisões no Tribunal Geral.

Decidindo em secção alargada, o Tribunal Geral nega provimento ao recurso dos recorrentes, o que o leva, em especial, a pronunciar‑se sobre a aplicabilidade do princípio da imparcialidade a uma decisão sobre um pedido de levantamento da imunidade de um deputado europeu e sobre o alcance desse princípio, bem como sobre o exame a efetuar pelo Parlamento quando lhe é submetido esse pedido.

Apreciação do Tribunal Geral

Em primeiro lugar, no que respeita à exigência de imparcialidade, consagrada no artigo 41.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que se impõe às instituições no desempenho das suas missões, o Tribunal Geral recorda que se destina a garantir a igualdade de tratamento que está na base da União. Visa, nomeadamente, evitar situações de eventuais conflitos de interesses no que respeita a funcionários e agentes que atuam por conta dessas instituições. Impõe‑se igualmente aos membros do Parlamento quando intervêm no âmbito da adoção de decisões pertencentes às funções administrativas do Parlamento. O Tribunal Geral considera que também se impõe aos membros do Parlamento que, enquanto membros da Comissão dos Assuntos Jurídicos, participam na fase de instrução de um pedido de levantamento da imunidade, apesar do caráter político da decisão sobre esse pedido. Precisa, porém, que esta exigência deve necessariamente ter em conta o facto de esses membros não serem, por definição, politicamente neutros, o que os distingue dos funcionários e dos agentes que atuam por conta das instituições, órgãos e organismos da União.

O Tribunal refere igualmente que a Comissão dos Assuntos Jurídicos é um órgão político, cuja composição visa refletir a pluralidade existente no Parlamento. Esta comissão designa, no seu seio, o relator segundo um sistema de rotação igualitária entre os grupos políticos. Daí resulta que, embora a missão de relator seja confiada a um deputado pertencente a um determinado grupo político, esse deputado atua no âmbito de uma comissão cuja composição reflete o equilíbrio dos grupos políticos no Parlamento.

O Tribunal Geral considera que, neste contexto, a imparcialidade de um deputado que intervém nessa fase de instrução, como o relator, não pode, em princípio, ser apreciada à luz da sua ideologia política nem à luz de uma comparação entre a sua ideologia política e a do deputado visado pelo pedido de levantamento da imunidade. Em especial, o facto de o relator pertencer a um partido político nacional ou a um grupo político constituído no Parlamento, quaisquer que sejam os valores e ideias por estes apresentados, e mesmo admitindo que estas sejam suscetíveis de revelar sensibilidades a priori desfavoráveis à situação do deputado visado pelo pedido de levantamento da imunidade, não tem, em princípio, incidência na apreciação da imparcialidade do relator.

O Tribunal conclui daí que, no caso, o facto de o relator pertencer ao grupo político europeu dos Conservadores e Reformistas Europeus, que inclui igualmente os deputados, membros do partido político VOX, na origem do processo penal instaurado contra os recorrentes, não tem, em princípio, incidência na apreciação da sua imparcialidade. A este respeito, o Tribunal considera que a situação particular dos deputados membros do referido partido não se pode estender, por princípio, a todos os membros do grupo político dos Conservadores e Reformistas Europeus pelo simples facto de partilharem afinidades políticas, dado pertencerem ao mesmo grupo. Neste contexto, o facto de o deputado, futuro relator dos processos de levantamento da imunidade dos recorrentes, ter manifestado o seu apoio às ideias do partido político VOX relativas, em particular, à situação política da Catalunha e à sua oposição às ideias políticas defendidas pelos recorrentes, não basta para caracterizar uma violação do princípio da imparcialidade.

Após referir a não invocação, pelos recorrentes, de um interesse pessoal do relator nos processos em causa ou de um preconceito de ordem pessoal deste último, dissociável da sua ideologia política, o Tribunal Geral julga improcedente a alegação de falta de imparcialidade do relator.

Em segundo lugar, no que respeita ao exame a efetuar pelo Parlamento quando lhe é submetido um pedido de levantamento da imunidade, o Tribunal lembra que o Parlamento deve, num primeiro momento, verificar se os factos que estão na origem desse pedido são suscetíveis de estar abrangidos pelo artigo 8.° do Protocolo n.° 7, enquanto disposição especial. Em caso afirmativo, o Parlamento deve declarar que o levantamento da imunidade é impossível. Só se essa instituição concluir pela negativa é que lhe cabe verificar, num segundo momento, se o deputado em causa beneficia da imunidade prevista no artigo 9.° do referido protocolo para os factos em causa e, se for esse o caso, decidir se há que levantar ou não essa imunidade com fundamento no artigo 9.°, terceiro parágrafo, desse protocolo.

A esse respeito, o Tribunal Geral observa que, nas decisões recorridas, o Parlamento referiu que os factos na origem dos pedidos de levantamento da imunidade não estavam abrangidos pelo artigo 8.° do Protocolo n.° 7.

Em seguida, quanto à questão de saber se os recorrentes beneficiavam da imunidade prevista no artigo 9.° no respeitante aos factos em causa, o Tribunal Geral considera que, uma vez que, no âmbito dos seus poderes relativos às imunidades, o Parlamento deve assegurar a sua efetividade, este considerou implícita mas necessariamente que, nas circunstâncias do caso, só a imunidade prevista no artigo 9.°, primeiro parágrafo, alínea b), do Protocolo n.° 7 constituía um obstáculo à detenção dos recorrentes e à sua entrega às autoridades espanholas em aplicação dos mandados de detenção europeus controvertidos.

A este respeito, o Tribunal Geral refere que, nas decisões recorridas, o Parlamento tomou nota do facto de o direito espanhol, conforme interpretado pelos órgãos jurisdicionais nacionais, não conferir imunidade aos recorrentes no respeitante aos factos em causa. O Tribunal Geral considera que, uma vez que a extensão e o alcance da imunidade prevista no artigo 9.°, primeiro parágrafo, alínea a), do Protocolo n.° 7 são determinados pelo direito nacional, foi com razão que o Parlamento se baseou no direito nacional tal como interpretado pelos tribunais nacionais. O Tribunal Geral entende ainda que os recorrentes não demonstraram que essa consideração estava errada.

O Tribunal Geral declara, além disso, que o silêncio das decisões recorridas relativamente à imunidade prevista no artigo 9.°, segundo parágrafo, do Protocolo n.° 7, que diz respeito à imunidade dos membros do Parlamento quando se dirigem ou regressam do local de reunião do Parlamento, não é suscetível de lhes conferir um caráter ambíguo, uma vez que a imunidade prevista nessa disposição não conferia aos recorrentes uma proteção autónoma face àquela de que beneficiavam nos termos do artigo 9.°, primeiro parágrafo.

Por último, o Tribunal Geral precisa que não compete ao Parlamento, quando examina a questão de saber se há que levantar a imunidade de um dos seus membros, apreciar a legalidade dos atos adotados pelas autoridades judiciárias durante o processo nacional em causa, como, no caso, os mandados de detenção nacionais e europeus. Com efeito, esta questão é da exclusiva competência das autoridades nacionais.


1      Artigo 224.°, n.° 2, da Ley orgánica 5/1985 de régimen electoral general (Lei Orgânica 5/1985, relativa ao regime eleitoral geral), de 19 de junho de 1985 (BOE n.° 147, de 20 de junho de 1985, p. 19110).


2      Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Junqueras Vies (C‑502/19, EU:C:2019:1115).


3      Decisões P9_TA (2021) 0059, P9_TA (2021) 0060 e P9_TA (2021) 0061 do Parlamento Europeu, de 9 de março de 2021.


4      Este artigo do Protocolo (n.° 7) relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia (JO 2010, C 83, p. 266) dispõe que, enquanto durarem as sessões do Parlamento Europeu, os seus membros beneficiam, no território de qualquer outro Estado‑Membro, da isenção de qualquer medida de detenção e de qualquer procedimento penal.