Language of document : ECLI:EU:C:2019:204

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

14 de março de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Concorrência — Artigo 101.o TFUE — Reparação do prejuízo causado por um cartel proibido por este artigo — Determinação das entidades responsáveis pela reparação — Sucessão de entidades jurídicas — Conceito de “empresa” — Critério da continuidade económica»

No processo C‑724/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia), por Decisão de 19 de dezembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de dezembro de 2017, no processo

Vantaan kaupunki

contra

Skanska Industrial Solutions Oy,

NCC Industry Oy,

Asfaltmix Oy,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev (relator), presidente da secção, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Segunda Secção, E. Levits, M. Berger e P. G. Xuereb, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: L. Carrasco Marco, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 16 de janeiro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Vantaan kaupunki, por N. Mickelsson e O. Hyvönen, asianajajat,

–        em representação da Skanska Industrial Solutions Oy, por A. P. Mentula e T. Väätäinen, asianajajat,

–        em representação da NCC Industry Oy, por I. Aalto‑Setälä, M. Kokko, M. von Schrowe e H. Koivuniemi, asianajajat,

–        em representação da Asfaltmix Oy, por S. Hiltunen, A. Laine e M. Blomfelt, asianajajat,

–        em representação do Governo finlandês, por J. Heliskoski e S. Hartikainen, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por S. Fiorentino, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por C. Vollrath, H. Leupold, G. Meessen e M. Huttunen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 6 de fevereiro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 101.o TFUE e do princípio da efetividade do direito da União à luz das normas aplicáveis na ordem jurídica finlandesa às ações de indemnização por violação do direito da concorrência da União.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Vantaan kaupunki (Cidade de Vantaa, Finlândia) à Skanska Industrial Solutions Oy, à NCC Industry Oy e à Asfaltmix Oy relativamente à reparação do prejuízo resultante de um cartel no mercado do asfalto na Finlândia.

 Quadro jurídico

3        Por força da secção 2, § 1, da Vahingonkorvauslaki 412/1974 (Lei 412/1974, sobre a indemnização dos danos), a pessoa que, dolosa ou negligentemente, causar dano a outra é obrigada a reparar o dano.

4        Nos termos da secção 6, § 2, dessa lei, se o prejuízo foi causado por duas ou mais pessoas, ou se duas ou mais pessoas tiverem de reparar o mesmo prejuízo, estas são responsáveis solidariamente.

5        De acordo com o direito finlandês das sociedades anónimas, cada sociedade anónima é uma entidade jurídica autónoma, com o seu próprio património e a sua própria responsabilidade.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

6        Na Finlândia, entre 1994 e 2002, operou um cartel no mercado do asfalto (a seguir «cartel em causa»). Este cartel, relativo à repartição dos mercados, aos preços e à apresentação de propostas para os contratos a preço fixo, abrangia a totalidade desse Estado‑Membro e era suscetível de afetar também o comércio entre os Estados‑Membros. A Lemminkäinen Oyj, a Sata‑Asfaltti Oy, a Interasfaltti Oy, a Asfalttineliö Oy e a Asfaltti‑Tekra Oy, nomeadamente, participaram no referido cartel.

7        Em 22 de março de 2000, a Asfaltti‑Tekra, cuja denominação social, a partir de 1 de novembro de 2000, passou a ser Skanska Asfaltti Oy, adquiriu todas as ações da Sata‑Asfaltti. Em 23 de janeiro de 2002, esta última sociedade foi dissolvida na sequência de um processo de liquidação voluntária, no âmbito do qual as suas atividades comerciais foram transferidas, a partir de 13 de dezembro de 2000, para a Skanska Asfaltti. Esta última participou também no cartel em causa. Em 9 de agosto de 2017, a denominação social desta sociedade passou a ser Skanska Industrial Solutions (a seguir «SIS»).

8        A Interasfaltti era uma filial a 100 % da Oy Läntinen Teollisuuskatu 15. Em 31 de outubro de 2000, a NCC Finland Oy adquiriu todas as ações da Läntinen Teollisuuskatu 15. Em 30 de setembro de 2002, a Interasfaltti foi objeto de fusão com a Läntinen Teollisuuskatu 15, que foi simultaneamente redenominada Interasfaltti. Em 1 de janeiro de 2003, a NCC Finland foi dividida em três novas sociedades. Uma delas, a NCC Roads Oy, tornou‑se titular de todas as ações da Interasfaltti. Em 31 de dezembro de 2003, a Interasfaltti foi dissolvida na sequência de um processo de liquidação voluntária, no âmbito do qual as suas atividades comerciais foram transferidas, a partir de 1 de fevereiro de 2003, para a NCC Roads. Em 1 de maio de 2016, a denominação social desta sociedade passou a ser NCC Industry (a seguir «NCC»).

9        Em 20 de junho de 2000, a Siilin Sora Oy, cuja denominação social, a partir de 17 de outubro de 2000, passou a ser Rudus Asfaltti Oy, adquiriu todas as ações da Asfalttineliö. Em 23 de janeiro de 2002, a Asfalttineliö foi dissolvida na sequência de um processo de liquidação voluntária, no âmbito do qual as suas atividades comerciais foram transferidas, a partir de 16 de fevereiro de 2001, para a Rudus Asfaltti. Em 10 de janeiro de 2014, a denominação social desta última sociedade passou a ser Asfaltmix.

10      Em 31 de março de 2004, o kilpailuvirasto (Autoridade da Concorrência, Finlândia) propôs que fossem aplicadas sanções pecuniárias a sete sociedades. Por Acórdão de 29 de setembro de 2009, o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia), em aplicação do critério da continuidade económica, reconhecido pelo Tribunal na sua jurisprudência, condenou, nomeadamente, a SIS, pelo seu próprio comportamento e pelo da Sata‑Asfaltti, a NCC, pelo comportamento da Interasfaltti, e a Asfaltmix, pelo comportamento da Asfalttineliö, a sanções pecuniárias por violação da kilpailunrajoituslaki (Lei contra as restrições de concorrência) e do artigo 81.o CE (atual artigo 101.o TFUE).

11      Com base nesse acórdão do Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo), a Cidade de Vantaa, que tinha celebrado com a Lemminkäinen contratos a preço fixo, no setor do asfalto, para os anos de 1998 a 2001, intentou, em 2 de dezembro de 2009, no käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância, Finlândia), uma ação de indemnização contra, nomeadamente, a SIS, a NCC e a Asfaltmix, afirmando que essas três sociedades são solidariamente responsáveis pelo sobrecusto que teve de suportar aquando da realização de trabalhos de asfaltagem, devido à sobrefaturação dos contratos a preço fixo resultante do cartel em causa. A SIS, a NCC e a Asfaltmix retorquiram que não eram responsáveis pelos danos causados pelas sociedades juridicamente autónomas que participaram nesse cartel e que o pedido de indemnização devia ter sido apresentado no âmbito dos processos de liquidação dessas últimas sociedades.

12      O käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância) condenou a SIS no pagamento de uma indemnização, pelo seu próprio comportamento e pelo comportamento da Sata‑Asfaltti, a NCC, pelo comportamento da Interasfaltti, e a Asfaltmix, pelo comportamento da Asfalttineliö. Este órgão jurisdicional considerou que, numa situação como a que está em causa no processo principal, na prática, era impossível ou excessivamente difícil uma pessoa lesada por uma infração ao direito da concorrência da União obter, ao abrigo do direito da responsabilidade e do direito das sociedades finlandesas, a indemnização do prejuízo sofrido devido a essa infração. O referido órgão jurisdicional considerou que, para assegurar a efetividade do artigo 101.o TFUE, havia que aplicar o critério da continuidade económica à imputação da responsabilidade pela indemnização desse prejuízo da mesma maneira que no que respeita à aplicação de coimas.

13      O hovioikeus (Tribunal de Recurso, Finlândia), onde foi interposto recurso, considerou que o princípio da efetividade não podia pôr em causa as características fundamentais do regime finlandês da responsabilidade civil e que o critério da continuidade económica, aplicado em matéria de imposição de coimas, não podia, na falta de modalidades ou de disposições mais precisas, ser transposto para as ações de indemnização. Por conseguinte, este tribunal negou provimento aos pedidos da Cidade de Vantaa na medida em que eram dirigidos contra a SIS, pelo comportamento da Sata‑Asfaltti, e bem assim contra a NCC e a Asfaltmix.

14      A Cidade de Vantaa recorreu em cassação da decisão do hovioikeus (Tribunal de Recurso) para o Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia).

15      Este último órgão jurisdicional salienta que o direito finlandês não prevê regras de imputação da responsabilidade por danos causados por uma infração ao direito da concorrência da União numa situação como a que está em causa no processo principal. As regras de responsabilidade civil constantes do direito finlandês assentam no princípio segundo o qual apenas é responsável a entidade jurídica que causou o prejuízo. No que respeita às pessoas coletivas, é possível derrogar esse princípio afastando a autonomia da pessoa coletiva. No entanto, essa via só é possível quando os operadores em causam se tenham servido da estrutura de grupo, das relações entre as empresas ou do controlo por parte do acionista, de uma forma censurável ou artificial, que tenha conduzido à fuga à responsabilidade legal.

16      O órgão jurisdicional de reenvio observa que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que qualquer pessoa pode pedir a reparação do prejuízo sofrido devido a uma infração ao artigo 101.o TFUE, quando exista um nexo de causalidade entre esse prejuízo e a referida infração, e que incumbe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro fixar as modalidades de exercício desse direito.

17      No entanto, não resulta claramente dessa jurisprudência que a determinação das pessoas chamadas a indemnizar tal prejuízo deva ser feita com base numa aplicação direta do artigo 101.o TFUE ou nos termos das modalidades fixadas pela ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro.

18      Na hipótese de se ter de determinar as pessoas responsáveis pela reparação de um prejuízo causado por uma infração ao artigo 101.o TFUE em aplicação direta desse artigo, seria necessário, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, especificar quais as pessoas a quem é possível imputar a responsabilidade dessa infração.

19      A este propósito, seria possível considerar quer a responsabilidade da pessoa que violou as regras do direito da concorrência quer a da «empresa», na aceção do artigo 101.o TFUE, que violou essas regras. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que quando uma empresa constituída por várias pessoas coletivas viola as regras de concorrência, lhe cabe, segundo o princípio da responsabilidade pessoal, responder por essa infração. É possível, em aplicação desta jurisprudência, imputar a responsabilidade de uma infração ao artigo 101.o TFUE à entidade que prosseguiu as atividades comerciais da entidade que cometeu essa infração, quando esta última entidade deixou de existir.

20      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, na hipótese de não se ter de determinar as pessoas responsáveis pela reparação de um prejuízo causado por uma infração ao artigo 101.o TFUE em aplicação direta desse artigo, dever‑se‑ia proceder à imputação da responsabilidade do prejuízo resultante do cartel em causa com base nas regras do direito finlandês e do princípio da efetividade do direito da União.

21      A este respeito, este órgão jurisdicional pergunta se o referido princípio implica que a responsabilidade da infração ao direito da concorrência da União deve ser imputada à sociedade que retomou o capital e prosseguiu as atividades comerciais da sociedade dissolvida, que tinha participado no cartel. Pôr‑se‑ia então a questão de saber se o princípio da efetividade se opõe a uma regulamentação nacional como a descrita no n.o 15 do presente acórdão e, em caso de resposta afirmativa, se é possível considerar que a sociedade que prosseguiu as atividades comerciais da sociedade que participou no cartel só deve ser responsabilizada se a primeira dessas sociedades sabia ou devia saber, no momento da aquisição do capital da segunda, que esta tinha cometido tal infração.

22      Nestas condições, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A pessoa responsável pela reparação dos danos causados por um comportamento contrário ao artigo 101.o TFUE é determinada através da aplicação direta deste artigo ou à luz das regras nacionais?

2)      No caso de os responsáveis pela reparação dos danos serem determinados diretamente com base no artigo 101.o TFUE: respondem pelos danos aqueles que são abrangidos pelo conceito de “empresa” previsto nessa disposição? Para determinar os sujeitos obrigados a pagar uma indemnização, aplicam‑se os mesmos princípios que o Tribunal de Justiça aplicou em processos em matéria de coimas para determinar os responsáveis e segundo os quais a responsabilidade pode ser baseada, em especial, no facto de pertencerem à mesma entidade económica ou na continuidade económica?

3)      No caso de os responsáveis pela reparação dos danos serem determinados à luz das regras nacionais: viola o requisito da efetividade consagrado no direito da União uma regulamentação nacional nos termos da qual uma sociedade que, após ter adquirido todas as ações de uma sociedade envolvida num cartel proibido pelo artigo 101.o TFUE, dissolve esta última sociedade e prossegue as suas atividades, não responde pelos danos causados pelo comportamento restritivo da concorrência por parte da sociedade dissolvida, apesar de a obtenção de uma indemnização por parte da sociedade dissolvida ser praticamente impossível ou excessivamente difícil? O requisito da efetividade opõe‑se a uma interpretação do direito interno de um Estado‑Membro que subordina a responsabilidade pelo dano à condição de a referida restruturação da empresa ter ocorrido de forma ilegal ou artificial para contornar a obrigação de reparação dos danos causados pelas infrações ao direito da concorrência, ou de outra forma desleal ou, pelo menos, que a sociedade, no momento da reestruturação, tivesse ou devesse ter conhecimento da infração ao direito da concorrência?»

 Quanto às questões prejudiciais

23      Com a primeira e a segunda questão, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 101.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que todas as ações das sociedades que participaram num cartel proibido por esse artigo foram adquiridas por outras sociedades, que dissolveram essas primeiras sociedades e prosseguiram as suas atividades comerciais, as sociedades adquirentes podem ser consideradas responsáveis pelo prejuízo causado por esse cartel.

24      A este respeito, há que recordar que o artigo 101.o, n.o 1, e o artigo 102.o TFUE produzem efeitos diretos nas relações entre os particulares e criam direitos na esfera jurídica destes, que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger (Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o., C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 20 e jurisprudência referida).

25      É jurisprudência constante que a plena eficácia do artigo 101.o TFUE e, em particular, o efeito útil da proibição enunciada no seu n.o 1 seriam postos em causa se não fosse possível a qualquer pessoa pedir a reparação do prejuízo que lhe tivesse sido causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou falsear o jogo da concorrência (Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o., C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 21 e jurisprudência referida).

26      Assim, qualquer pessoa tem o direito de pedir a reparação do prejuízo sofrido quando haja um nexo de causalidade entre o referido prejuízo e um cartel ou uma prática proibida pelo artigo 101.o TFUE (Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o., C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 22 e jurisprudência referida).

27      Na verdade, na falta de regulamentação da União na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades do exercício do direito de pedir a reparação do prejuízo resultante de um cartel ou de uma prática proibida pelo artigo 101.o TFUE, desde que sejam respeitados os princípios da equivalência e da efetividade (v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o., C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 24 e jurisprudência referida).

28      No entanto, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 60 a 62 das suas conclusões, a questão da determinação da entidade obrigada a reparar o prejuízo causado por uma infração ao artigo 101.o TFUE é diretamente regulada pelo direito da União.

29      Com efeito, resulta da redação do artigo 101.o, n.o 1, TFUE que os autores dos Tratados escolheram utilizar o conceito de «empresa» para designar o autor de uma violação da proibição enunciada nessa disposição (v., neste sentido, Acórdão de 27 de abril de 2017, Akzo Nobel e o./Comissão, C‑516/15 P, EU:C:2017:314, n.o 46).

30      Além disso, é jurisprudência constante que o direito da concorrência da União visa as atividades das empresas (v., neste sentido, Acórdãos de 11 de dezembro de 2007, ETI e o., C‑280/06, EU:C:2007:775, n.o 38 e jurisprudência referida, e de 18 de dezembro de 2014, Comissão/Parker Hannifin Manufacturing e Parker‑Hannifin, C‑434/13 P, EU:C:2014:2456, n.o 39 e jurisprudência referida).

31      Ora, uma vez que a responsabilidade do prejuízo resultante das infrações às regras de concorrência da União tem caráter pessoal, incumbe à empresa que viola essas regras responder pelo prejuízo causado pela infração.

32      Resulta das considerações expostas que as entidades obrigadas a reparar o prejuízo causado por um cartel ou por uma prática proibida pelo artigo 101.o TFUE são as empresas, na aceção desta disposição, que participaram nesse cartel ou nessa prática.

33      Esta interpretação não é posta em causa pelo argumento da Comissão Europeia, apresentado na audiência, segundo o qual resulta do artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014, L 349, p. 1), nos termos do qual os Estados‑Membros asseguram que as empresas que infringem o direito da concorrência por meio de um comportamento conjunto sejam solidariamente responsáveis pelos danos causados pela infração ao direito da concorrência, que compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro determinar a entidade que é obrigada a reparar esse prejuízo, em conformidade com os princípios da equivalência e da efetividade.

34      Com efeito, esta disposição da Diretiva 2014/104, diretiva que não é, aliás, aplicável ratione temporis aos factos em causa no processo principal, respeita, não à determinação das entidades obrigadas a reparar esse prejuízo mas à repartição da responsabilidade entre as referidas entidades e, logo, não confere poderes aos Estados‑Membros para procederem a essa determinação.

35      Pelo contrário, a referida disposição confirma, como fez o artigo 1.o da Diretiva 2014/104, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», no seu n.o 1, primeiro período, que os responsáveis pelo prejuízo causado por uma infração ao direito da concorrência da União são precisamente as «empresas» que cometeram essa infração.

36      Feita esta precisão, há que recordar que o conceito de «empresa», na aceção do artigo 101.o TFUE, abrange qualquer entidade que exerça uma atividade económica, independentemente do estatuto jurídico dessa entidade e do seu modo de financiamento (Acórdão de 11 de dezembro de 2007, ETI e o., C‑280/06, EU:C:2007:775, n.o 38 e jurisprudência referida).

37      Este conceito, inserido nesse contexto, deve ser entendido no sentido de que designa uma unidade económica, mesmo que, do ponto de vista jurídico, essa unidade económica seja constituída por várias pessoas singulares ou coletivas (Acórdão de 27 de abril de 2017, Akzo Nobel e o./Comissão, C‑516/15 P, EU:C:2017:314, n.o 48 e jurisprudência referida).

38      Tratando‑se de uma situação de reestruturação empresarial como a que está em causa no processo principal, em que a entidade que cometeu a infração ao direito da concorrência da União deixou de existir, importa recordar que quando uma entidade que cometeu essa infração é objeto de uma alteração jurídica ou organizacional, esta alteração não tem necessariamente por efeito criar uma nova empresa isenta de responsabilidade pelos comportamentos contrários às regras de concorrência da precedente entidade, se, do ponto de vista económico, houver identidade entre esta e a nova entidade (v., neste sentido, Acórdãos de 11 de dezembro de 2007, ETI e o., C‑280/06, EU:C:2007:775, n.o 42; de 5 de dezembro de 2013, SNIA/Comissão, C‑448/11 P, não publicado, EU:C:2013:801, n.o 22; e de 18 de dezembro de 2014, Comissão/Parker Hannifin Manufacturing e Parker‑Hannifin, C‑434/13 P, EU:C:2014:2456, n.o 40).

39      Assim, não é incompatível com o princípio da responsabilidade pessoal imputar a responsabilidade de uma infração a uma sociedade na sua qualidade de sociedade absorvente da sociedade que cometeu a infração, quando esta última deixou de existir (Acórdão de 5 de dezembro de 2013, SNIA/Comissão, C‑448/11 P, não publicado, EU:C:2013:801, n.o 23 e jurisprudência referida).

40      Além disso, o Tribunal de Justiça precisou que se pode revelar necessário, para efeitos da aplicação eficaz das regras de concorrência da União, imputar a responsabilidade pela infração a estas regras ao adquirente da empresa que cometeu essa infração, quando esta última empresa deixe de existir devido ao facto de ter sido absorvida por este adquirente, que retoma, na qualidade de sociedade absorvente, os seus ativos e os seus passivos, incluindo as suas responsabilidades por causa da infração ao direito da União (Acórdão de 5 de dezembro de 2013, SNIA/Comissão, C‑448/11 P, não publicado, EU:C:2013:801, n.o 25).

41      A este propósito a Asfaltmix alega, em substância, que, tendo a jurisprudência recordada nos n.os 36 a 40 do presente acórdão sido desenvolvida no contexto da imposição, pela Comissão, de coimas a título do artigo 23.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1), esta jurisprudência não é aplicável a uma ação de indemnização como a que está em causa no processo principal.

42      Este argumento não pode ser acolhido.

43      Com efeito, como foi lembrado no n.o 25 do presente acórdão, o direito de qualquer pessoa pedir a reparação do prejuízo causado por um cartel ou uma prática proibida pelo artigo 101.o TFUE garante a plena eficácia desse artigo, em particular, o efeito útil da proibição enunciada no seu n.o 1.

44      Efetivamente, este direito reforça o caráter operacional das regras de concorrência da União e é suscetível de desencorajar os acordos ou práticas, frequentemente dissimulados, suscetíveis de restringir ou falsear o jogo da concorrência, contribuindo assim para a manutenção de uma concorrência efetiva na União (Acórdão de 5 de junho de 2014, Kone e o., C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 23 e jurisprudência referida).

45      Assim, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 80 das suas conclusões, as ações de indemnização por incumprimento das regras de concorrência da União fazem parte integrante do sistema de aplicação dessas regras, que visa reprimir os comportamentos anticoncorrenciais das empresas e dissuadi‑las de adotar tais comportamentos.

46      Deste modo, se as empresas responsáveis pelo prejuízo causado por uma infração às regras de concorrência da União pudessem escapar à sua responsabilidade pelo simples facto de a sua identidade ter sido alterada na sequência de reestruturações, cessões ou outras alterações jurídicas ou organizacionais, o objetivo prosseguido por este sistema e o efeito útil das referidas regras ficariam comprometidos (v., por analogia, Acórdão de 11 de dezembro de 2007, ETI e o., C‑280/06, EU:C:2007:775, n.o 41 e jurisprudência referida).

47      De onde resulta que o conceito de «empresa», na aceção do artigo 101.o TFUE, que constitui um conceito autónomo do direito da União, não pode ter um alcance diferente no contexto da imposição, pela Comissão, de coimas a título do artigo 23.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1/2003 e no contexto das ações de indemnização por violação das regras de concorrência da União.

48      No processo principal, resulta das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a SIS, a NCC e a Asfaltmix adquiriram todas as ações, respetivamente, da Sata‑Asfaltti, da Interasfaltti e da Asfalttineliö, sociedades que participaram no cartel em causa, e, seguidamente, por ocasião de processos de liquidação voluntária que decorreram durante os anos de 2000, 2001 e 2003, assumiram o conjunto das atividades comerciais respetivas destas últimas sociedades e dissolveram‑nas.

49      Afigura‑se, assim, sob reserva de uma apreciação definitiva pelo órgão jurisdicional de reenvio à luz de todos os elementos relevantes, que, do ponto de vista económico, há identidade entre a SIS, a NCC e a Asfaltmix, por um lado, e, respetivamente, a Sata‑Asfaltti, a Interasfaltti e a Asfalttineliö, por outro, tendo estas três últimas sociedades deixado de existir enquanto pessoas coletivas.

50      Nestas condições, há que considerar que a SIS, a NCC e a Asfaltmix, na qualidade de sucessores, respetivamente, da Sata‑Asfaltti, da Interasfaltti e da Asfalttineliö, assumiram a responsabilidade destas últimas sociedades a título do prejuízo causado pelo cartel em causa, por terem garantido, enquanto pessoas coletivas, a continuidade económica das referidas sociedades.

51      Tendo em conta as considerações expostas, há que responder à primeira e à segunda questão que o artigo 101.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que todas as ações das sociedades que participaram num cartel proibido por esse artigo foram adquiridas por outras sociedades, que dissolveram essas primeiras sociedades e prosseguiram as suas atividades comerciais, as sociedades adquirentes podem ser responsabilizadas pelo prejuízo causado por esse cartel.

52      À luz da resposta dada à primeira e à segunda questão, não há que responder à terceira questão.

 Quanto ao pedido de limitação dos efeitos do presente acórdão no tempo

53      Na audiência, a NCC pediu ao Tribunal de Justiça que limitasse os efeitos do presente acórdão no tempo, na hipótese de considerar que o critério da continuidade económica é aplicável à determinação das pessoas obrigadas a reparar o prejuízo causado por uma infração às regras de concorrência da União.

54      Em apoio do seu pedido, a NCC alegou que esta interpretação era imprevisível, confere efeito retroativo a essas regras e tem consequências inesperadas para a atividade das empresas.

55      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a interpretação que este faz de uma norma de direito da União, no exercício da competência que lhe confere o artigo 267.o TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz, inclusive às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação, se se encontrarem também reunidas as condições que permitem submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma (Acórdão de 22 de setembro de 2016, Microsoft Mobile Sales International e o., C‑110/15, EU:C:2016:717, n.o 59 e jurisprudência referida).

56      Só a título excecional é que o Tribunal de Justiça pode, aplicando o princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica da União, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição por si interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa‑fé. Para que essa limitação possa ser decidida, é necessário que estejam preenchidos dois critérios essenciais, a saber, a boa‑fé dos meios interessados e o risco de perturbações graves (Acórdão de 22 de setembro de 2016, Microsoft Mobile Sales International e o., C‑110/15, EU:C:2016:717, n.o 60 e jurisprudência referida).

57      Mais especificamente, o Tribunal de Justiça só recorreu a esta solução em circunstâncias bem precisas, nomeadamente quando existia um risco de repercussões económicas graves devidas, em especial, ao grande número de relações jurídicas constituídas de boa‑fé com base na regulamentação considerada validamente em vigor e quando se verificava que os particulares e as autoridades nacionais tinham sido levados a adotar um comportamento não conforme com o direito da União em virtude de uma incerteza objetiva e importante quanto ao alcance das disposições do direito da União, incerteza para a qual tinham eventualmente contribuído os próprios comportamentos adotados por outros Estados‑Membros ou pela Comissão (Acórdão de 22 de setembro de 2016, Microsoft Mobile Sales International e o., C‑110/15, EU:C:2016:717, n.o 61 e jurisprudência referida).

58      No caso em apreço, não tendo a NCC fundamentado de forma nenhuma as suas alegações, não demonstrou que os critérios referidos no n.o 56 do presente acórdão estão preenchidos no presente processo.

59      Pelo que não há que limitar os efeitos do presente acórdão no tempo.

 Quanto às despesas

60      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

O artigo 101.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que todas as ações das sociedades que participaram num cartel proibido por esse artigo foram adquiridas por outras sociedades, que dissolveram essas primeiras sociedades e prosseguiram as suas atividades comerciais, as sociedades adquirentes podem ser consideradas responsáveis pelo prejuízo causado por esse cartel.

Assinaturas


*      Língua do processo: finlandês.