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Processo T388/19

Carles Puigdemont i Casamajó e Antoni Comín i Oliveres

contra

Parlamento Europeu

 Acórdão do Tribunal Geral (Sexta Secção alargada) de 6 de julho de 2022

«Direito institucional — Membro do Parlamento — Recusa do Presidente do Parlamento de reconhecer a qualidade de deputado europeu e os direitos associados a candidatos eleitos — Recurso de anulação — Ato não suscetível de recurso — Inadmissibilidade»

Recurso de anulação — Atos suscetíveis de recurso — Conceito — Atos que produzem efeitos jurídicos vinculativos — Apreciação à luz do conteúdo do ato, do contexto da sua adoção e das competências do seu autor — Verificação dos poderes dos membros do Parlamento — Requisitos prévios para o exercício do mandato de deputado europeu estabelecidos pelo direito nacional — Reclamações com origem nas disposições do direito nacional — Incompetência do Parlamento — Recusa do Presidente do Parlamento de reconhecer a qualidade de deputado europeu e os direitos associados a candidatos eleitos — Exclusão — Inadmissibilidade

(Artigo 263.° TFUE, Ato relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal direto, artigo 12.°)

(cf. n.os 74‑77, 82‑84, 96‑106, 114, 118, 121, 129, 146, 147, 179‑181, 185‑188)

Resumo

O recurso de C. Puigdemont i Casamajó e A. Comín i Oliveres contra a recusa de o antigo presidente do Parlamento lhes reconhecer a qualidade de deputados europeus e os direitos associados é inadmissível

Os recorrentes, C. Puigdemont i Casamajó e A. Comín i Oliveres, apresentaram‑se como candidatos às eleições para o Parlamento Europeu realizadas em Espanha em 26 de maio de 2019. Na sequência dessas eleições, a lista conduzida pelos recorrentes obteve 1 018 435 votos e obteve dois lugares no Parlamento.

Em 29 de maio de 2019, o Presidente do Parlamento em funções nessa data deu ao secretário‑geral da instituição uma instrução interna destinada, por um lado, a recusar a todos os candidatos eleitos em Espanha o acesso ao «Welcome village» e à assistência fornecida pela instituição aos candidatos recentemente eleitos ao Parlamento e, por outro, a suspender a sua acreditação até que o Parlamento tivesse recebido oficialmente confirmação da sua eleição, em conformidade com o artigo 12.° do Ato Eleitoral (1).

Em 13 de junho de 2019, a Junta Electoral Central (comissão eleitoral central, Espanha) adotou uma decisão relativa à proclamação dos deputados eleitos para o Parlamento nas eleições organizadas em 26 de maio de 2019 (2). Essa decisão indicava que, de acordo com o artigo 224.°, n.° 1, da lei eleitoral espanhola (3), a comissão eleitoral central tinha procedido à proclamação dos candidatos eleitos mencionados nominativamente, entre os quais figuravam os recorrentes. Precisava igualmente que a sessão em que os candidatos eleitos prestariam juramento de respeitar a Constituição espanhola, exigido pelo artigo 224.°, n.° 2, da lei eleitoral espanhola, teria lugar em 17 de junho de 2019.

Em 15 de junho de 2019, o juiz de instrução do Tribunal Supremo (Tribunal, Espanha) indeferiu um pedido dos recorrentes de revogação dos mandados de detenção nacionais emitidos contra eles pelos tribunais penais espanhóis para poderem ser julgados no âmbito do processo penal contra eles instaurado (4) pelo Ministério Público espanhol, pelo Abogado del Estado (Procurador do Estado) e pelo partido político VOX.

Em 17 de junho de 2019, a Comissão Eleitoral Central notificou ao Parlamento a lista dos candidatos eleitos em Espanha, na qual não figuravam os nomes dos recorrentes. Em 20 de junho, recusou, em substância, aos recorrentes a possibilidade de prestarem o juramento exigido de respeitar a Constituição espanhola através de uma declaração escrita feita em notário ou por intermédio de mandatários designados por ato notarial, com o fundamento de que esse juramento ou promessa é um ato que deve ser efetuado pessoalmente perante a Comissão Eleitoral Central. No mesmo dia, a Comissão Eleitoral Central comunicou ao Parlamento uma decisão em que declarava que os recorrentes não tinham prestado o juramento acima referido e declarava vagos os lugares que lhes tinham sido atribuídos no Parlamento, bem como a suspensão de todas as prerrogativas que lhes pudessem advir devido às suas funções até prestarem esse juramento.

Em 27 de junho de 2019, o antigo presidente do Parlamento enviou uma carta aos recorrentes, informando‑os, em substância, de que não podia considerá‑los futuros membros do Parlamento, uma vez que os seus nomes não constavam da lista dos candidatos eleitos comunicada oficialmente pelas autoridades espanholas.

Na sequência dessa carta, os recorrentes interpuseram recurso de anulação no Tribunal Geral, em substância, por um lado, da instrução de 29 de maio de 2019 do antigo presidente do Parlamento Europeu que lhes recusou o benefício do serviço de acolhimento e de assistência oferecido aos novos deputados europeus, bem como a concessão de uma acreditação temporária e, por outro, da recusa de o antigo Presidente do Parlamento lhes reconhecer a qualidade de deputados europeus, contida na carta de 27 de junho de 2019.

O Parlamento, apoiado pelo Reino de Espanha, invocou, a título principal, a inadmissibilidade do recurso, com fundamento na falta de clareza da petição quanto a determinados atos cuja anulação é pedida e na inexistência de atos recorríveis.

Decidindo em secção alargada, o Tribunal Geral julga o recurso inadmissível na medida em que não tem por objeto atos recorríveis nos termos do artigo 263.° TFUE.

Apreciação do Tribunal Geral

O Tribunal Geral começa por recordar a jurisprudência constante segundo a qual são considerados atos recorríveis na aceção do artigo 263.° TFUE todos os atos adotados pelas instituições, independentemente da sua natureza ou da sua forma, que se destinem a produzir efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses do recorrente, alterando de maneira caracterizada a sua situação jurídica (5). Em contrapartida, estão excluídos da fiscalização jurisdicional prevista no artigo 263.° TFUE os atos que não produzam efeitos jurídicos vinculativos, como os atos preparatórios, os atos confirmativos e os atos de mera execução, as meras recomendações e pareceres, bem como, em princípio, as instruções internas (6). Por último, a aptidão de um ato para produzir efeitos jurídicos e, portanto, para ser objeto de recurso de anulação ao abrigo do artigo 263.° TFUE implica que se examine a sua substância e se apreciem os referidos efeitos à luz de critérios objetivos, tais como o conteúdo desse ato, tendo em conta, se for caso disso, o contexto da sua adoção e os poderes da instituição da União que dele é autora (7).

Em primeiro lugar, examinando o caráter de ato recorrível da recusa de o antigo Presidente do Parlamento reconhecer aos recorrentes a qualidade de deputados europeus, constante da carta de 27 de junho de 2019, o Tribunal considera que essa recusa não é um ato que produza efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses dos recorrentes, na aceção da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça (8). É inadmissível, portanto, o recurso de anulação dessa recusa.

Primeiro, o Tribunal Geral salienta que resulta dos termos da carta de 27 de junho de 2019 que o antigo Presidente do Parlamento apenas registou a situação jurídica dos recorrentes da qual tinha sido oficialmente informado pelas autoridades espanholas através das comunicações de 17 e 20 de junho de 2019. Além disso, essa carta indicava expressamente que a posição expressa pelo antigo Presidente do Parlamento poderia evoluir em função de novas informações recebidas das autoridades espanholas. Por conseguinte, segundo o Tribunal Geral, essa carta excluía expressamente qualquer caráter decisório e definitivo da posição do antigo Presidente do Parlamento que aí se exprimia.

Em segundo lugar, o Tribunal Geral examina se a recusa do antigo Presidente do Parlamento de reconhecer aos recorrentes a qualidade de deputados europeus esteve na origem dos efeitos jurídicos invocados por estes últimos, entre os quais a impossibilidade de assumirem as suas funções, de exercerem o seu mandato e de ocuparem o seu lugar no Parlamento. Para este efeito, o Tribunal Geral verifica se o antigo Presidente do Parlamento era competente para pôr em causa a comunicação de 17 de junho de 2019, pela qual as autoridades espanholas lhe comunicaram oficialmente a lista dos candidatos eleitos nas eleições de 26 de maio de 2019, que não mencionava os nomes dos recorrentes, apesar de os seus nomes constarem da proclamação oficial de 13 de junho de 2019.

A este respeito, o Tribunal Geral recorda que, no que respeita à eleição dos deputados europeus, o Ato Eleitoral institui uma repartição de competências entre o Parlamento e os Estados‑Membros. Por um lado, sem prejuízo do disposto no Ato Eleitoral, o processo eleitoral rege‑se, em cada Estado‑Membro, pelas disposições nacionais (9). Por outro lado, após ter recordado a redação do artigo 12.° do Ato Eleitoral (10), o Tribunal Geral indica que esse artigo exclui expressamente a competência do Parlamento para se pronunciar sobre as reclamações com origem nas disposições do direito nacional, como o requisito previsto no artigo 224.°, n.° 2, da lei eleitoral espanhola, mesmo quanto o Ato Eleitoral faz uma remissão para esse direito. Daqui resulta que, para efeitos da verificação dos poderes dos seus membros, o Parlamento se deve basear na lista dos candidatos eleitos oficialmente comunicada pelas autoridades nacionais, a qual, por hipótese, é elaborada tendo em conta os resultados proclamados oficialmente e após essas autoridades terem resolvido eventuais reclamações baseadas na aplicação do direito nacional. Por conseguinte, o antigo Presidente do Parlamento não era competente para fiscalizar o mérito da exclusão de certos candidatos eleitos da lista comunicada oficialmente pelas autoridades espanholas em 17 de junho de 2019, que refletia os resultados oficiais das eleições de 26 de maio de 2019, conforme estabelecidos, sendo caso disso, após resolução das eventuais reclamações suscitadas com base no direito nacional.

Em face do exposto, o Tribunal Geral conclui que a impossibilidade de os recorrentes assumirem as suas funções, de exercerem o seu mandato e de ocuparem os seus lugares no Parlamento não decorre da recusa do antigo Presidente do Parlamento fr lhes reconhecer a qualidade de deputados europeus, contida na carta de 27 de junho de 2019, mas sim da aplicação do direito espanhol, como refletida nas comunicações da Comissão Eleitoral Central de 17 e 20 de junho de 2019, face às quais o antigo Presidente do Parlamento e, mais genericamente, o Parlamento não dispunham de qualquer margem de apreciação.

Em segundo lugar, examinando o caráter de ato recorrível da instrução de 29 de maio de 2019, o Tribunal Geral considera que, tendo em conta o seu conteúdo, o seu caráter provisório e o contexto da sua adoção, essa instrução não produziu efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses dos recorrentes na aceção da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça (11). Por conseguinte, o recurso de anulação dessa instrução é inadmissível.

Com efeito, segundo o Tribunal Geral, essa instrução não teve por efeito impedir os recorrentes de efetuarem as diligências administrativas necessárias à sua entrada em funções e ao exercício do seu mandato e, portanto, não esteve na origem da impossibilidade de os recorrentes exercerem os direitos relativos à sua qualidade de deputados europeus a partir da abertura da primeira sessão após as eleições, ou seja, a partir de 2 de julho de 2019.


1      Ato relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal direto, anexo à Decisão 76/787/CECA, CEE, Euratom do Conselho, de 20 de setembro de 1976 (JO 1976, L 278, p. 1), conforme alterado pela Decisão 2002/772/CE, Euratom do Conselho, de 25 de junho de 2002 e de 23 de setembro de 2002 (JO 2002, L 283, p. 1) (a seguir «Ato Eleitoral»). O artigo 12.° do Ato Eleitoral dispõe o seguinte: «O Parlamento [...] verificará os poderes dos representantes [...]. Para o efeito, registará os resultados proclamados oficialmente pelos Estados‑Membros e deliberará sobre as reclamações que possam eventualmente ser feitas com base nas disposições do presente Ato, com exceção das disposições nacionais para que ele remete.»


2      Boletín Oficial del Estado n.° 142, de 14 de junho de 2019, p. 62477 (a seguir «proclamação de 13 de junho de 2019»).


3      Lei orgánica 5/1985 de Régimen Electoral General (lei orgânica 5/1985, que aprova o regime eleitoral geral), de 19 de junho de 1985 (Boletín Oficial del Estado n.° 147, de 20 de junho de 1985, p. 19110) (a seguir «lei eleitoral espanhola»).


4      Este processo penal tinha sido instaurado nos tribunais penais espanhóis por factos relacionados, nomeadamente, com infrações de «sedição» e «desvio de fundos públicos».


5      Acórdãos de 11 de novembro de 1981, IBM/Comissão (60/81, EU:C:1981:264, n.° 9); e de 26 de janeiro de 2010, Internationaler Hilfsfonds/Comissão (C‑362/08 P, EU:C:2010:40, n.° 51).


6      V. Acórdão de 12 de setembro de 2006, Reynolds Tobacco e o./Comissão (C‑131/03 P, EU:C:2006:541, n.° 55 e jurisprudência referida), e Despacho de 14 de maio de 2012, Sepracor Pharmaceuticals (Ireland)/Comissão (C‑477/11 P, não publicado, EU:C:2012:292, n.° 52 e jurisprudência referida); v., igualmente, neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 1995, Nutral/Comissão (C‑476/93 P, EU:C:1995:401, n.° 30).


7      V. Acórdão de 20 de fevereiro de 2018, Bélgica/Comissão (C‑16/16 P, EU:C:2018:79, n.° 32 e jurisprudência referida).


8      V. supra, nota 5.


9      Nos termos do artigo 8.°, primeiro parágrafo, do Ato Eleitoral.


10      V. supra, nota 1.


11      V. supra, nota 5.