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Processo C237/21

S.M.

contra

Generalstaatsanwaltschaft München

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht München)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 22 de dezembro de 2022

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União Europeia — Artigos 18.° e 21.° TFUE — Pedido dirigido a um Estado‑Membro por um Estado terceiro com vista à extradição de um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, que exerceu o seu direito de livre circulação no primeiro desses Estados‑Membros — Pedido apresentado para cumprimento de uma pena privativa de liberdade — Proibição de extradição aplicada apenas aos cidadãos nacionais — Restrição à livre circulação — Justificação assente na prevenção da impunidade — Proporcionalidade»

1.        Cidadania da União — Disposições do Tratado — Âmbito de aplicação pessoal — Nacional de um EstadoMembro que possui igualmente a nacionalidade de um Estado terceiro — Inclusão

(Artigos 18.° e 21.° TFUE)

(cf. n.° 31)

2.        Cidadania da União — Direito de livre circulação e de livre permanência no território dos EstadosMembros — Pedido dirigido a um EstadoMembro por um Estado terceiro com vista à extradição de um cidadão da União, nacional de outro EstadoMembro, que exerceu o seu direito de livre circulação no primeiro EstadoMembro — Pedido de extradição para cumprimento de uma pena privativa de liberdade — Proibição de extradição aplicada apenas aos cidadãos nacionais do Estado requerido — Restrição à livre circulação dos cidadãos da União que residem de modo permanente no EstadoMembro requerido — Justificação assente na prevenção da impunidade — Proporcionalidade — EstadoMembro requerido que permite cumprir no seu território uma pena ordenada no estrangeiro — Obrigação de assegurar aos cidadãos da União que residem de modo permanente no seu território a possibilidade de cumprirem a sua pena no seu território nas mesmas condições que os seus nacionais

(Artigos 18.° e 21.° TFUE)

(cf. n.os 33‑36, 39‑42)

3.        Cidadania da União — Direito de livre circulação e de livre permanência no território dos EstadosMembros — Pedido dirigido a um EstadoMembro por um Estado terceiro com vista à extradição de um cidadão da União, nacional de outro EstadoMembro, que exerceu o seu direito de livre circulação no primeiro EstadoMembro — Pedido de extradição para cumprimento de uma pena privativa de liberdade — EstadoMembro requerido que proíbe a extradição dos seus nacionais para cumprimento de uma pena e que permite cumprir no seu território essa pena ordenada no estrangeiro — Não conformidade eventual de uma recusa de extradição com as obrigações que incumbem ao EstadoMembro requerido por força da Convenção Europeia de Extradição — Direito automático e absoluto, para a pessoa procurada, de não ser extraditada para fora da União Europeia — Inexistência

(Artigos 18.° e 21.° TFUE)

(cf. n.° 47)

4.        Cidadania da União — Direito de livre circulação e de livre permanência no território dos EstadosMembros — Pedido dirigido a um EstadoMembro por um Estado terceiro com vista à extradição de um cidadão da União, nacional de outro EstadoMembro, que exerceu o seu direito de livre circulação no primeiro EstadoMembro — Pedido de extradição para cumprimento de uma pena privativa de liberdade — EstadoMembro requerido que proíbe a extradição dos seus nacionais para cumprimento de uma pena e que permite cumprir no seu território essa pena ordenada no estrangeiro, desde que esse Estado terceiro dê o seu consentimento — Obrigação de esse EstadoMembro procurar ativamente este consentimento utilizando os mecanismos de cooperação e de assistência em matéria penal de que dispõe

(Artigos 18.° e 21.° TFUE)

(cf. n.os 48‑50, 56 e disp.)

5.        Cidadania da União — Direito de livre circulação e de livre permanência no território dos EstadosMembros — Pedido dirigido a um EstadoMembro por um Estado terceiro com vista à extradição de um cidadão da União, nacional de outro EstadoMembro, que exerceu o seu direito de livre circulação no primeiro EstadoMembro — Pedido de extradição para cumprimento de uma pena privativa de liberdade — EstadoMembro requerido que proíbe a extradição dos seus nacionais para cumprimento de uma pena e que permite cumprir no seu território essa pena ordenada no estrangeiro, desde que esse Estado terceiro dê o seu consentimento — Direito de o EstadoMembro requerido proceder à extradição de um cidadão da União que reside de modo permanente no seu território na falta de consentimento do Estado terceiro — Requisito — Obrigação de verificação das garantias previstas no artigo 19.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

(Artigos 18.° e 21.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 19.°)

(cf. n.os 53‑55, 56 e disp.)

Resumo

S.M., de nacionalidades croata, bósnia e sérvia, vive na Alemanha desde 2017 e aí trabalha desde 2020. Em novembro de 2020, as autoridades da Bósnia‑Herzegovina pediram à República Federal da Alemanha que extraditasse S.M. para cumprimento de uma pena privativa de liberdade contra si ordenada por um tribunal bósnio.

A Generalstaatsanwaltschaft München (Procuradoria‑Geral de Munique, Alemanha) pediu, com base no Acórdão Raugevicius (1), que a extradição de S.M. fosse declarada inadmissível.

Segundo o Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique, Alemanha), órgão jurisdicional de reenvio, a procedência desse pedido depende da questão de saber se os artigos 18.° e 21.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que preveem a não extradição de um cidadão da União Europeia, mesmo que, à luz dos tratados internacionais, o Estado‑Membro requerido (2) seja obrigado a proceder à sua extradição.

Esta questão não teve resposta no Acórdão Raugevicius, uma vez que, no processo que deu origem a esse acórdão, o Estado‑Membro requerido estava autorizado, à luz dos tratados internacionais aplicáveis, a não extraditar o nacional lituano em causa para fora da União. Em contrapartida, no presente processo, a Alemanha está obrigada, relativamente à Bósnia‑Herzegovina, a extraditar S.M., em aplicação da Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris, em 13 de dezembro de 1957. Com efeito, em conformidade com o artigo 1.° desta convenção, a Alemanha e a Bósnia‑Herzegovina estão reciprocamente obrigadas a entregar as pessoas procuradas pelas autoridades judiciárias do Estado requerente para cumprimento de uma pena. A este respeito, a declaração feita pela Alemanha ao abrigo do artigo 6.° da referida convenção, relativa à proteção contra a extradição dos seus «nacionais», restringe este termo apenas às pessoas que possuem a nacionalidade alemã.

Assim, o Tribunal de Justiça não abordou no Acórdão Raugevicius a questão de saber se a necessidade de prever medidas menos restritivas do que a extradição pode implicar que o Estado‑Membro requerido viole as suas obrigações decorrentes do direito internacional.

Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a interpretação dos artigos 18.° e 21.° TFUE. Pergunta, em substância, se estes artigos se opõem a que um Estado‑Membro, perante um pedido de extradição apresentado por um Estado terceiro para cumprimento de uma pena privativa de liberdade de um nacional de outro Estado‑Membro que reside de modo permanente no primeiro Estado‑Membro, cujo direito nacional proíbe apenas a extradição dos seus nacionais para fora da União e prevê a possibilidade de essa pena ser cumprida no seu território desde que o Estado terceiro o consinta, proceda à extradição desse cidadão da União, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem em aplicação de uma convenção internacional, quando não possa efetivamente levar a cabo a execução dessa pena na falta de tal consentimento.

No seu acórdão, o Tribunal de Justiça responde que os artigos 18.° e 21.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que:

– impõem ao Estado‑Membro requerido, nessas circunstâncias, que procure ativamente o consentimento do Estado terceiro, autor do pedido de extradição, para que a pena do nacional de um outro Estado‑Membro, que reside de modo permanente no Estado‑Membro requerido, seja cumprida no território deste, utilizando todos os mecanismos de cooperação e de assistência em matéria penal de que dispõe no quadro das suas relações com esse Estado terceiro;

– na falta desse consentimento, não se opõem a que, nessas circunstâncias, o Estado‑Membro requerido proceda à extradição desse cidadão da União, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem em aplicação de uma convenção internacional, desde que essa extradição não viole os direitos garantidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (3).

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça recorda que, no Acórdão Raugevicius, que, como no litígio no processo principal, dizia respeito a um pedido de extradição proveniente de um Estado terceiro que não celebrou um acordo de extradição com a União, declarou que, se, na falta de regras de direito da União que regulam a extradição de nacionais dos Estados‑Membros para Estados terceiros, os Estados‑Membros são competentes para adotar tais regras, essa competência deve ser exercida no respeito do direito da União, e nomeadamente dos artigos 18.° e 21.°, n.° 1, TFUE.

Enquanto nacional croata que reside legalmente na Alemanha, S.M. tem o direito, na sua qualidade de cidadão da União, de invocar o artigo 21.°, n.° 1, TFUE e está abrangido pelo âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.° TFUE. O facto de possuir igualmente a nacionalidade do país terceiro, autor do pedido de extradição, não o pode impedir de invocar os direitos e liberdades conferidos pelo estatuto de cidadão da União, nomeadamente os garantidos pelos artigos 18.° e 21.°TFUE.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça salienta que as regras de um Estado‑Membro relativas à extradição que introduzem, como no litígio no processo principal, um tratamento diferente consoante a pessoa procurada tenha a nacionalidade desse Estado‑Membro ou a de outro Estado‑Membro, são suscetíveis de afetar a liberdade de circulação e de permanência dos nacionais de outros Estados‑Membros que residam legalmente no território do Estado requerido, na medida em que impliquem não lhes conceder a proteção contra a extradição reservada aos nacionais deste último Estado‑Membro.

Por conseguinte, numa situação como a do litígio no processo principal, a desigualdade de tratamento que consiste em permitir a extradição de um nacional de um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro requerido constitui uma restrição à liberdade já referida, que só pode ser justificada se assentar em considerações objetivas e for proporcionada ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional.

O objetivo legítimo de evitar o risco de impunidade das pessoas que cometeram uma infração permite justificar uma medida restritiva da liberdade prevista no artigo 21.° TFUE, desde que esta medida seja necessária para a proteção dos interesses que visa garantir e que esses objetivos não possam ser alcançados através de medidas menos restritivas.

Ora, no caso de um pedido de extradição para cumprimento de uma pena privativa de liberdade, a possibilidade, quando esta exista no direito do Estado‑Membro requerido, de a pena cujo cumprimento é objeto do pedido de extradição ser cumprida no território do Estado‑Membro requerido constitui uma medida alternativa à extradição, menos atentatória do exercício do direito à livre circulação e à permanência de um cidadão da União que tenha a sua residência permanente nesse Estado‑Membro. Por conseguinte, em aplicação dos artigos 18.° e 21.° TFUE, esse nacional de outro Estado‑Membro, residente permanente do Estado‑Membro requerido, deve poder cumprir a sua pena no território desse Estado‑Membro nas mesmas condições que os nacionais deste último.

Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça sublinha, porém, que a jurisprudência resultante do Acórdão Raugevicius não consagrou um direito automático e absoluto, para os cidadãos da União, de não serem extraditados para fora da União. O Tribunal de Justiça precisa igualmente que, quando uma regra nacional introduz, como no litígio no processo principal, uma diferença de tratamento entre os nacionais do Estado‑Membro requerido e os cidadãos da União que aí residem de modo permanente ao proibir apenas a extradição dos primeiros, esse Estado‑Membro está obrigado a procurar ativamente [a existência de] uma medida alternativa à extradição, menos atentatória do exercício dos direitos e liberdades que os artigos 18.° e 21.° TFUE conferem a esses cidadãos, quando são visados por um pedido de extradição emitido por um Estado terceiro.

Assim, quando a aplicação dessa medida alternativa à extradição consiste em os cidadãos da União que residem de modo permanente no Estado‑Membro requerido poderem cumprir a sua pena nesse Estado‑Membro nas mesmas condições que os nacionais deste, mas essa aplicação está sujeita ao consentimento do Estado terceiro autor do pedido de extradição, os artigos 18.° e 21.° TFUE impõem ao Estado‑Membro requerido que procure ativamente o consentimento desse Estado terceiro, utilizando todos os mecanismos de cooperação e de assistência em matéria penal de que dispõe no quadro das suas relações com o referido Estado terceiro.

Se esse Estado terceiro consentir que a pena seja cumprida no território do Estado‑Membro requerido, este último está em condições de permitir ao cidadão da União que é objeto do pedido de extradição e que reside de modo permanente no seu território de aí cumprir a pena que lhe foi aplicada no Estado terceiro, autor do pedido de extradição, e assegurar um tratamento idêntico ao reservado aos seus nacionais.

Nesse caso, a aplicação dessa medida alternativa à extradição pode igualmente permitir ao Estado‑Membro requerido exercer as suas competências em conformidade com as obrigações que o vinculam a esse Estado terceiro em aplicação de uma convenção internacional. Com efeito, o consentimento desse Estado terceiro quanto ao cumprimento, no Estado‑Membro requerido, da totalidade da pena visada pelo pedido de extradição, pode tornar supérflua a execução desse pedido.

Se, em contrapartida, não for obtido o consentimento desse Estado terceiro, a medida alternativa à extradição exigida pelos artigos 21.° e 18.° TFUE não pode ser aplicada. Nesta hipótese, esse Estado‑Membro pode proceder à extradição da pessoa em questão, em conformidade com as suas obrigações resultantes da Convenção Europeia de Extradição, dado que a recusa dessa extradição não permitiria evitar o risco de impunidade dessa pessoa.

Nesse caso, constituindo a extradição da pessoa em questão, à luz desse objetivo, uma medida necessária e proporcionada, a restrição do direito de circulação e de permanência decorrente da extradição para cumprimento de uma pena é justificada. No entanto, o Estado‑Membro requerido deve verificar se essa extradição não compromete a proteção conferida pelo artigo 19.°, n.° 2, da Carta contra qualquer risco sério de ser sujeito no Estado terceiro, autor do pedido de extradição, à pena de morte, à tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes.


1      No Acórdão de 13 de novembro de 2018, Raugevicius (C 247/17, EU:C:2018:898, a seguir «Acórdão Raugevicius»), o Tribunal de Justiça interpretou o artigo 18.° TFUE (que consagra o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade) e o artigo 21.° TFUE (que garante, no seu n.° 1, o direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros) no sentido em que, perante um pedido de extradição, apresentado por um Estado terceiro, de um cidadão da União que exerceu o seu direito à livre circulação, para cumprimento de uma pena privativa de liberdade, o Estado‑Membro requerido, cujo direito nacional proíbe a extradição dos seus nacionais para fora da União para cumprimento de uma pena e prevê a possibilidade de essa pena ordenada no estrangeiro ser cumprida no seu território, está obrigado a assegurar a esse cidadão da União, desde que resida de modo permanente no território do Estado‑Membro em questão, um tratamento idêntico ao que reserva aos seus nacionais em matéria de extradição.


2      Estado‑Membro a quem é submetido um pedido de extradição.


3      A seguir «Carta».