Language of document : ECLI:EU:C:2024:375

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 30 de abril de 2024 (1)

Processo C650/22

Fédération internationale de football association (FIFA)

contra

BZ,

Intervenientes:

Union Royale Belge des Sociétés de Football Association ASBL (URBSFA),

SA Sporting du Pays de Charleroi,

Fédération Internationale des Footballeurs Professionnels,

Union Nationale des Footballeurs Professionnels,

Fédération Internationale des Footballeurs Professionnels, Division Europe

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour d’appel de Mons (Tribunal de Recurso de Mons, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Livre circulação de trabalhadores — Proibições de acordos — Regulamento relativo ao Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA — Rescisão antecipada de um contrato celebrado entre um clube e um jogador — Regulamento que penaliza outro clube que contrata o jogador em questão — Proibição da emissão do certificado necessário para a transferência desse jogador para o outro clube»






I.      Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial da Cour d'appel de Mons (Tribunal de Recurso de Mons, Bélgica), que tem por objeto a interpretação dos artigos 45.° e 101.° TFUE, é apresentado no âmbito de um litígio que opõe BZ, um jogador de futebol, à Fédération internationale de football association (Federação Internacional de Futebol, a seguir «FIFA»), relacionado com os danos que o jogador alega ter sofrido devido a determinadas regras da FIFA aplicáveis às relações contratuais entre jogadores e clubes.

2.        As regras em causa dizem respeito ao pagamento de compensações, à aplicação de sanções desportivas e à emissão de um certificado internacional de transferência obrigatório numa situação de alegada rescisão do contrato sem justa causa.

3.        Nas presentes conclusões, examinarei a compatibilidade das disposições controvertidas com os artigos 45.° e 101.° TFUE e com o artigo 15.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

II.    Matéria de facto, tramitação processual e questão prejudicial

A.      Partes em litígio

4.        BZ é um antigo jogador profissional de futebol que reside em Paris (França).

5.        A SA Sporting du Pays de Charleroi é um clube de futebol belga.

6.        A FIFA é uma associação fundada em 1904, em Paris. Tem sede em Zurique (Suíça) e rege‑se pelo direito suíço. Os objetivos da FIFA, enunciados no artigo 2.° dos respetivos Estatutos, são, nomeadamente, «elaborar regulamentos e disposições aplicáveis ao jogo de futebol e a matérias conexas e assegurar o seu cumprimento» (2), bem como «controlar todos os tipos de futebol associativo, tomando as medidas adequadas para impedir a violação dos Estatutos, regulamentos ou decisões da FIFA ou das leis do jogo» (3). Entre os seus órgãos contam‑se o «Congresso», que é o «órgão legislativo e instância suprema» (4), o «Conselho», que é o «órgão estratégico e de supervisão» (5) e o «Secretariado‑Geral», que é o «órgão executivo, operacional e administrativo» (6).

7.        Nos termos dos artigos 11.° e 14.° dos Estatutos da FIFA, qualquer «federação responsável pela organização e supervisão do futebol» num determinado país pode tornar‑se membro da FIFA, desde que, nomeadamente, já seja membro de uma das seis confederações continentais reconhecidas pela FIFA e referidas no artigo 22.° dos Estatutos da FIFA. Uma destas confederações é a Union des associations européennes de football (União das Federações Europeias de Futebol, a seguir «UEFA»). A referida federação deve, em primeiro lugar, comprometer‑se a respeitar os estatutos, regulamentos, diretivas e decisões da FIFA, bem como os da confederação continental de que já é membro. Na prática, a FIFA conta atualmente entre os seus membros com mais de 200 federações nacionais de futebol, as quais estão obrigadas, nos termos dos artigos 14.° e 15.° dos Estatutos da FIFA, nomeadamente, a «velar por que os seus próprios membros cumpram os Estatutos, os regulamentos, as diretivas e as decisões dos órgãos da FIFA» (7) e a assegurar que estes sejam respeitados por todas entidades envolvidas no futebol, em especial as ligas, os clubes e os jogadores profissionais. Além disso, «os clubes, as ligas ou quaisquer outros grupos filiados numa federação membro estão subordinados a essa federação e são por ela reconhecidos» (8).

B.      Disposições controvertidas

8.        Em 22 de março de 2014, a FIFA adotou um texto intitulado «Regulamento relativo ao Estatuto e Transferência de Jogadores» (a seguir «RETJ»), que entrou em vigor em 1 de agosto do mesmo ano. Esse regulamento revoga e substitui um regulamento anterior com o mesmo título.

9.        O artigo 9.°, n.° 1, do RETJ tem a seguinte redação:

«Os jogadores inscritos numa federação só podem ser inscritos numa nova federação quando esta última tiver recebido um Certificado Internacional de Transferência (daqui em diante: “CIT”) da federação anterior. O CIT é emitido gratuitamente, sem aposição de condições ou limitações temporais. Quaisquer disposições contrárias são consideradas nulas. A federação que emite o CIT deposita uma cópia na FIFA. Os procedimentos administrativos para a emissão do CIT encontram‑se definidos no ponto 8 do anexo 3 […] do presente regulamento.»

10.      O ponto 8.2, n.° 7, do anexo 3 do RETJ dispõe que «a federação anterior não emitirá o CIT se o clube anterior e o jogador profissional estiverem em litígio contratual com base nas circunstâncias estipuladas no ponto 8.2, n.° 4, alínea b), do presente anexo […]».

11.      Por sua vez, o ponto 8.2, n.° 4, alínea b), do anexo 3 do RETJ estabelece que «no prazo de sete dias a contar da data do pedido de CIT, a federação anterior deverá […] indeferir o pedido de CIT e indicar […] o motivo do indeferimento, que pode ser o facto de não ter expirado o contrato entre o clube anterior e o jogador ou o facto de não ter havido mútuo acordo relativamente à rescisão antecipada do contrato».

12.      Nos termos do artigo 17.° do RETJ:

«As seguintes disposições aplicam‑se se um contrato for rescindido sem justa causa:

1.            Em qualquer caso, a parte que rescinde o contrato fica obrigada a pagar uma compensação. Sem prejuízo do disposto no artigo 20.° e no anexo 4 relativamente à compensação por formação, e salvo convenção em contrário no contrato, a compensação por rescisão é calculada tendo em consideração a legislação do país respetivo, a especificidade do desporto, e demais critérios objetivos. Estes critérios incluem, nomeadamente, a remuneração e outros benefícios devidos ao jogador nos termos do contrato vigente e/ou do novo contrato, o período do contrato em falta até um máximo de cinco anos, custos e despesas pagos pelo clube anterior ou em que este mesmo incorreu (amortizados ao longo da vigência do contrato) e o facto de a rescisão contratual ocorrer ou não no decurso de um período protegido.

2.      O direito a compensação não pode ser cedido a terceiros. Se for exigido o pagamento de compensação ao jogador profissional, este e o novo clube são solidariamente responsáveis pelo pagamento da mesma. O montante pode ser estipulado no contrato ou acordado entre as partes.

[…]

4.      Para além da obrigação de pagar uma compensação, são aplicadas sanções desportivas a qualquer clube que se considere ter incorrido em incumprimento do contrato ou que se considere ter incitado o jogador a rescindir um contrato durante o período protegido. Presume‑se, salvo demonstração em contrário, que qualquer clube que inscreva um profissional que tenha rescindido o seu contrato sem justa causa o tenha incitado a tal rescisão. O clube ficará impedido de inscrever novos jogadores, quer nacional quer internacionalmente, por dois períodos de inscrição completos e consecutivos. O clube só poderá inscrever novos jogadores, quer nacional quer internacionalmente, a partir do período de inscrição seguinte ao cumprimento integral da sanção desportiva em questão. Em particular, o clube não poderá invocar a exceção nem as medidas provisórias previstas no artigo 6.°, n.° 1, do presente regulamento para inscrever jogadores antes desse período.»

C.      Processo principal

13.      BZ foi jogador profissional de futebol entre 2004 e 2019.

14.      Em 20 de agosto de 2013, assinou um contrato de quatro anos com o clube de futebol profissional russo Futbolny Klub Lokomotiv (a seguir «Lokomotiv Moscovo»).

15.      Em 22 de agosto de 2014, o Lokomotiv Moscovo rescindiu esse contrato e pediu à Câmara de Resolução de Litígios da FIFA (a seguir «CRL») que condenasse BZ no pagamento de uma compensação no montante 20 milhões de euros, alegando incumprimento e «rescisão do contrato sem justa causa» na aceção do artigo 17.° do RETJ. BZ deduziu então um pedido reconvencional, requerendo a condenação do Lokomotiv Moscovo no pagamento dos salários em atraso e de uma compensação de montante equivalente à remuneração que lhe seria devida por força do contrato se este não tivesse sido rescindido.

16.      Posteriormente, o BZ começou a procurar um novo clube que estivesse em condições de o contratar, o que se revelou difícil. BZ alega que essas dificuldades se deviam ao risco de o novo clube ser considerado responsável, solidariamente com o próprio jogador, pelo pagamento de qualquer compensação que viesse a ser atribuída ao Lokomotiv Moscovo.

17.      BZ afirma que, não obstante o interesse manifestado por diversos clubes, apenas recebeu uma proposta, a do Sporting du pays de Charleroi, que, em 19 de fevereiro de 2015, lhe enviou uma proposta de contratação que continha duas condições suspensivas cumulativas: 1) estar inscrito e qualificado de modo regular, o mais tardar até 30 de março de 2015, para jogar na equipa principal do Sporting du Pays de Charleroi em qualquer competição oficial organizada pela Union Royale Belge des Sociétés de Football Association ASBL (Real Federação Belga de Futebol, a seguir «URBSFA»), pela UEFA ou pela FIFA; e 2) obter (no mesmo prazo) a confirmação escrita e incondicional de que o Sporting du Pays de Charleroi não poderia ser considerado solidariamente responsável por qualquer compensação (em especial, uma compensação por rescisão do contrato) que BZ estivesse obrigado a pagar ao Lokomotiv Moscovo.

18.      Por cartas de 20 de fevereiro e 5 de março de 2015, os respetivos advogados de BZ e do Sporting du Pays de Charleroi solicitaram quer à FIFA quer à URBSFA a confirmação de que BZ poderia ser inscrito e estar qualificado de modo regular para jogar na equipa principal do Sporting du Pays de Charleroi e que não seria aplicado ao jogador o artigo 17.°, n.os 2 e 4, do RETJ.

19.      Por carta de 23 de fevereiro de 2015, a FIFA respondeu que só o órgão decisório competente, e não o seu órgão administrativo, tinha competência para aplicar as disposições do RETJ. Por seu turno, a URBSFA informou, em 6 de março de 2015, que, em conformidade com as regras da FIFA, a inscrição de BZ não podia ser feita enquanto o seu antigo clube não emitisse o CIT.

20.      Por Decisão de 18 de maio de 2015, a CRL deferiu parcialmente o pedido do Lokomotiv Moscovo, tendo fixado o montante da compensação devida por BZ em 10,5 milhões de euros e julgado improcedentes os pedidos deduzidos por este último. A CTL decidiu igualmente que o artigo 17.°, n.° 2, do RETJ não se aplicaria a BZ no futuro. Esta decisão foi confirmada em sede de recurso pelo Tribunal Arbitral do Desporto (a seguir «TAS»), em 27 de maio de 2016.

21.      Em 24 de julho de 2015, BZ foi contratado pelo clube Olympique de Marseille (França).

22.      Em 9 de dezembro de 2015, BZ intentou uma ação contra a FIFA e a URBSFA no tribunal de commerce du Hainaut, division de Charleroi (Tribunal de Comércio do Hainaut, divisão de Charleroi, Bélgica), pedindo uma indemnização por danos, ou seja, lucros cessantes de 6 milhões de euros, que afirma ter sofrido em virtude da aplicação por estas organizações das disposições controvertidas, as quais BZ considera contrárias ao direito da União.

23.      Por Sentença de 19 de janeiro de 2017, esse órgão jurisdicional julgou procedente o pedido de BZ, condenando a FIFA e a URBSFA a pagar‑lhe um montante provisório de 60 001 euros.

24.      A FIFA recorreu desta sentença para o órgão jurisdicional de reenvio. Tendo sido admitida a participar no processo na qualidade de interveniente, a URBSFA pede igualmente a reforma da Sentença de 19 de janeiro de 2017.

D.      Questão prejudicial

25.      Foi neste contexto que, por Despacho de 19 de setembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de outubro de 2022, a Cour d'appel de Mons (Tribunal de Recurso de Mons) submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão a título prejudicial:

«Devem os artigos 45.° e 101.° [TFUE] ser interpretados no sentido de que proíbem:

–        o princípio da responsabilidade solidária do jogador e do clube que pretende contratá‑lo pelo pagamento da indemnização devida ao clube com o qual foi rescindido o contrato sem justa causa, como estipulado no artigo 17.°, n.° 2, do [RETJ] da FIFA, em conjugação com as sanções desportivas previstas no artigo 17.°, n.° 4, do mesmo regulamento e com as sanções financeiras previstas no artigo 17.°, n.° 1;

–        a possibilidade de a federação da qual depende o anterior clube do jogador não emitir o [CIT], necessário para a contratação do jogador por um novo clube, se existir um litígio entre o antigo clube e o jogador (artigo 9.°, n.° 1, do RETJ da FIFA e ponto 8.2.7 do anexo 3 do referido RETJ)?»

26.      Apresentaram observações escritas a FIFA, BZ, a URBSFA, a URBSFA, a Fédération Internationale des Footballeurs Professionnels (Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol, a seguir «FIFPro») (9), a Fédération Internationale des Footballeurs Professionnels, Division Europe (FIFPro Europa), a Union Nationale des Footballeurs Professionnels (União Nacional dos Jogadores Profissionais de Futebol, a seguir «UNFP»), os Governos Grego, Francês, Italiano e Húngaro e a Comissão Europeia. A FIFA, BZ, a URBSFA, a FIFPro, a FIFPro Europa, a UNFP, o Governo Grego e a Comissão participaram na audiência, que se realizou em 18 de janeiro de 2024.

III. Apreciação

A.      Quanto à admissibilidade

27.      A FIFA e a URBSFA invocam a falta de precisão do despacho de reenvio e alegam que se deve considerar que o litígio no processo principal tem natureza «puramente interna», pelo que o presente processo deve ser julgado inadmissível. Os Governos Grego, Francês e Húngaro têm dúvidas semelhantes quanto à admissibilidade do processo.

28.      Não subscrevo este argumento. O despacho de reenvio enuncia claramente as questões jurídicas em causa. Todas as partes interessadas compreenderam perfeitamente o sentido e o contexto da questão prejudicial submetida e o contexto factual e regulamentar em que a mesma é suscitada, bem como o facto de o litígio ter uma dimensão transfronteiriça, uma vez que o jogador de futebol, de nacionalidade francesa e com domicílio em França, alegou ter sido impedido de se mudar para a Bélgica a fim de exercer a sua profissão (10).

B.      Quanto ao mérito

29.      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, determinar se os artigos 45.° e 101.° TFUE se opõem à aplicação de regras, tal como adotadas pela FIFA, que estabelecem que: 1) o jogador e o clube que o pretende contratar são solidariamente responsáveis pela compensação devida ao clube cujo contrato com o jogador foi rescindido sem justa causa; e 2) a federação à qual pertence o antigo clube do jogador tem a possibilidade de recusar a emissão do CIT necessário para a contratação do jogador por um novo clube, nos casos em que exista um litígio entre o antigo clube e o jogador.

1.      Observações metodológicas

30.      Importa recordar que o Tribunal de Justiça proferiu recentemente dois acórdãos doutrinários (arrêts de principe) relativos a regras adotadas por entidades privadas responsáveis pela organização e controlo do futebol a nível mundial, europeu e nacional (11). Estes acórdãos indicam que foi desenvolvido um esforço considerável para sintetizar e resumir jurisprudência anterior. Consequentemente, uma vez que podem basear‑se nestes acórdãos recentes, as presentes conclusões incidirão principalmente sobre as especificidades do caso em apreço (12).

31.      O Tribunal de Justiça examina regras como as disposições controvertidas tanto à luz das regras de concorrência como à luz das disposições do mercado interno (13). Assim sendo, os artigos 101.° e 45.° TFUE são, em princípio, aplicáveis ao caso em apreço. Trata‑se de uma abordagem pragmática que pode, no entanto, conduzir a potenciais situações delicadas, como procurarei demonstrar sucintamente.

32.      De acordo com a lógica dos Tratados, tanto as liberdades fundamentais como as regras da concorrência servem o objetivo de assegurar o funcionamento do mercado interno (14). A este respeito, o Protocolo (n.° 27) relativo ao mercado interno e à concorrência esclarece expressamente que o mercado interno, tal como estabelecido no artigo 3.° TUE, inclui um sistema que assegura que a concorrência não seja falseada (15). A ideia inicial dos Tratados era a de que as liberdades fundamentais visavam os EstadosMembros enquanto entidades públicas, ao passo que as regras de concorrência vinculavam as empresas privadas.

33.      No entanto, ao longo dos anos, esta separação tem vindo a esbater‑se. Muitas vezes, é difícil negar que algumas entidades privadas atuam de uma forma próxima da do Estado, quer por força do seu poder económico, quer pelo facto de adotarem «regras», ao passo que, noutras situações, os atos de um Estado assemelham‑se mais aos de uma empresa privada. O Tribunal de Justiça viu‑se, assim, obrigado a acompanhar esses desenvolvimentos e a sua jurisprudência evoluiu: por um lado, em determinadas situações, algumas das liberdades do mercado interno foram aplicadas a entidades privadas (16), enquanto, por outro, noutras situações, as ações dos Estados‑Membros foram consideradas abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da concorrência (17). Uma apreciação exaustiva e conclusiva desta questão extravasaria o âmbito das presentes conclusões.

34.      Além disso, em alguns casos, o Tribunal de Justiça considerou que o mesmo conjunto de factos estava sujeito tanto às liberdades fundamentais como às regras de concorrência. Por outras palavras, a abordagem já não correspondia a uma escolha binária (regras de concorrência ou liberdades fundamentais), mas sim paralela (ou seja, cumulativa). Tendo em conta a lógica inicial dos Tratados acima descrita, pode colocar‑se a questão das razões que levaram o Tribunal de Justiça a adotar esta abordagem. É evidente que, embora possa conduzir à situação desejável de que nenhuma regra adotada por uma entidade como a FIFA escapa ao âmbito de aplicação do direito da União, esta aplicação paralela de disposições apresenta algumas dificuldades: e se, por exemplo, uma disposição controvertida for considerada compatível com o artigo 101.° TFUE mas incompatível com o artigo 45.° TFUE, ou vice‑versa? Intuitivamente, a resposta é clara: os dois conjuntos de regras (concorrência e liberdades fundamentais) devem ser apreciados de forma autónoma, quanto ao mérito.

35.      Tomemos como exemplo o Acórdão Royal Antwerp Football Club (18) do Tribunal de Justiça e imaginemos que, ao aplicar as conclusões do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio chega a uma situação em que as disposições controvertidas 1) têm por objetivo restringir a concorrência na aceção do artigo 101.° TFUE (19) e 2) constituem uma restrição ao abrigo do artigo 45.° TFUE. Em seguida, ainda aplicando o Acórdão Royal Antwerp Football Club ao processo que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional nacional teria de concluir que uma restrição por objetivo (artigo 101.° TFUE) é proibida per se, o que impossibilita a sua apreciação à luz de outros objetivos ao abrigo da jurisprudência Wouters e o (20) (21). Simultaneamente, o órgão jurisdicional nacional poderia examinar possíveis justificações ao abrigo do artigo 45.° TFUE e até mesmo concluir que, in casu, as restrições são justificadas. Consequentemente, as disposições controvertidas seriam incompatíveis com o artigo 101.° TFUE, mas compatíveis com o artigo 45.° TFUE.

36.      Por último, importa não esquecer que existem diferenças cruciais entre as consequências jurídicas de violações das liberdades fundamentais e de violações das regras de concorrência: se o Tribunal de Justiça concluir que a FIFA violou, por exemplo, o artigo 45.° TFUE, as disposições controvertidas não podem ser aplicadas no âmbito da jurisdição da FIFA no que diz respeito ao mercado interno da UE. No entanto, continua a ser necessária a existência de um elemento transfronteiriço entre os Estados‑Membros. Em contrapartida, uma vez constatada uma violação do artigo 101.° TFUE, as disposições controvertidas não podem ser aplicadas, nem mesmo no interior de um Estado‑Membro.

37.      Não obstante, seguirei, nas presentes conclusões, a abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos doutrinários (arrêts de principe) acima referidos: examinarei tanto o artigo 45.° TFUE como o artigo 101.° TFUE.

2.      Disposições controvertidas

38.      Nesta fase, considero útil recordar rapidamente as disposições controvertidas.

39.      Nos termos do artigo 17.°, n.os 1, 2 e 4, do RETJ, o jogador e o clube que o pretenda contratar são solidariamente responsáveis pelo pagamento da compensação devida ao clube que celebrou com o jogador o contrato rescindido sem justa causa. Além disso, são aplicadas sanções desportivas e financeiras ao jogador e ao clube. Doravante, designarei estas regras por «regras relativas à compensação e a sanções».

40.      Nos termos do artigo 9.°, n.° 1, do RETJ e do ponto 8.2, n.° 7, do anexo 3 do RETJ, a federação a que pertence o antigo clube do jogador pode recusar a emissão do [CIT] necessário para a contratação do jogador por um novo clube, em caso de litígio entre o antigo clube e o jogador.

3.      Restrição ao abrigo do artigo 45.° TFUE

41.      Em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 45.° TFUE opõe‑se a qualquer medida, seja ela baseada na nacionalidade ou aplicada independentemente da nacionalidade, que seja suscetível de desfavorecer os nacionais da União que desejem exercer uma atividade económica no território de um Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de origem, impedindo‑os ou dissuadindo‑os de abandonar este último (22).

42.      Não restam dúvidas quanto ao caráter restritivo de todas as disposições controvertidas, como demonstra o facto de nenhuma das partes no presente processo tentar questionar esse caráter restritivo.

43.      Com efeito, as disposições que preveem a responsabilidade solidária do novo clube pelo pagamento da compensação por incumprimento do contrato devida pelo jogador profissional ao seu antigo clube em caso de rescisão antecipada do contrato sem justa causa são suscetíveis de desencorajar ou dissuadir os clubes de contratarem o jogador por receio de exposição a um risco financeiro. O mesmo se aplica à sanção desportiva que consiste na proibição de inscrever novos jogadores a nível nacional ou internacional, durante dois períodos de inscrição completos e consecutivos, bem como na não emissão do [CIT]. Na prática, esta sanção pode impedir um jogador de exercer a sua profissão num clube situado noutro Estado‑Membro.

44.      A este respeito, é inútil examinar se as disposições controvertidas constituem discriminação indireta contra os nacionais de outros Estados‑Membros ou se constituem um simples obstáculo à livre circulação de pessoas. O que importa é o facto de os jogadores serem, efetivamente, impedidos de se mudarem para clubes de outros Estados‑Membros. Foi precisamente o que aconteceu no caso em apreço: BZ, que possui nacionalidade francesa e exerce uma atividade remunerada, tencionava começar a trabalhar na Bélgica, Estado de que não era nacional. As disposições controvertidas impediram‑no, efetivamente, de o fazer.

4.      Quanto ao artigo 101.° TFUE

45.      Nos termos do artigo 101.°, n.° 1, TFUE, são incompatíveis com o mercado interno todos os acordos entre empresas, decisões de associações de empresas e práticas concertadas que sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno.

46.      As disposições controvertidas constituem decisões de associações de empresas na aceção do artigo 101.°, n.° 1, TFUE (23), suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros na aceção dessa mesma disposição (24). A este respeito, gostaria de sublinhar que o facto de as disposições controvertidas dizerem respeito ao que seria normalmente considerado direito do trabalho não altera esta conclusão. Em especial, o que ficou conhecido por «exceção Albany» não se aplica ao caso em apreço, pela simples razão de que as disposições controvertidas não constituem acordos coletivos entre empregadores e trabalhadores (25). Pelo contrário, como sublinha corretamente BZ, foi devido à inexistência de tais acordos que a FIFA adotou o RETJ.

47.      Em seguida, examinarei se as disposições controvertidas correspondem a um comportamento que tem por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno.

48.      BZ e a FIFPro alegam que o artigo 101.°, n.° 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que as disposições controvertidas têm por objetivo (26) restringir a concorrência na aceção do artigo 101.°, n.° 1, TFUE. O artigo 17.° e o artigo 9.°, n.° 1, do RETJ, bem como o ponto 8.2, n.° 7, do anexo 3 do mesmo, têm, à luz da sua letra, do seu contexto económico e jurídico e da sua finalidade objetiva, exatamente o objetivo e, em qualquer caso, o efeito, tanto real como potencial, de impor a todas as «empresas» que, do ponto de vista económico, são os clubes de futebol profissional filiados nas federações nacionais de futebol membros da FIFA, um conjunto de condições relativas à contratação dos serviços de jogadores de alto nível que já não estão vinculados a um clube concorrente, mas cujo contrato foi alegadamente rescindido sem justa causa, as quais são de tal modo proibitivas e dissuasivas que é forçoso considerar que limitam excessivamente ou «bloqueiam», em termos práticos e jurídicos, a possibilidade de esses clubes concorrerem entre si por esse meio. Essa restrição é particularmente significativa, visto que diz respeito a um elemento que, segundo a doutrina jurídica e económica, constitui um dos principais parâmetros da concorrência entre os clubes, uma vez que a contratação de jogadores está, ela mesma, ligada à organização e à teledifusão de competições de futebol interclubes. Além disso, estas regras limitam, da mesma forma e na mesma medida, a possibilidade de os próprios jogadores competirem.

49.      Em contrapartida, a FIFA e a URBSFA negam a existência de uma restrição na aceção do artigo 101.°, n.° 1, TFUE e centram os seus argumentos numa possível justificação das disposições controvertidas. Os Governos Grego e Húngaro apresentam uma análise semelhante. O Governo Francês remete, no essencial, a questão da restrição por objetivo ou efeito na aceção do artigo 101.°, n.° 1, TFUE para o órgão jurisdicional de reenvio (27).

50.      A Comissão considera que existe uma restrição da concorrência por efeito. Alega que não se pode considerar que as disposições controvertidas têm por objetivo restringir a concorrência, tendo em conta o seu teor, o seu contexto económico e jurídico e as suas finalidades, dado que apenas se aplicam em caso de rescisão do contrato sem justa causa e, por conseguinte, não têm impacto na possibilidade de os clubes concorrerem livremente através da contratação de jogadores tanto no termo do contrato que os vincula ao seu antigo clube como durante a vigência desse contrato, desde que essa contratação resulte de um acordo entre todos os interessados e respeite as diferentes regras temporais e materiais aplicáveis à inscrição dos jogadores.

a)      Restrição da concorrência por objetivo (artigo 101, n.° 1, TFUE)

51.      Para determinar se existe uma restrição da concorrência por objetivo ou por efeito, há que proceder, num primeiro momento, à análise do objetivo do comportamento em causa. Caso, no termo dessa análise, se verifique que esse comportamento tem um objetivo anticoncorrencial, não é necessário proceder à análise do seu efeito na concorrência. Assim, apenas no caso de não se poder considerar que o referido comportamento tem um objetivo anticoncorrencial é que é necessário proceder, num segundo momento, à análise desse efeito (28). Para se determinar, num determinado caso, se um acordo, uma decisão de uma associação de empresas ou uma prática concertada apresenta, pela sua própria natureza (29), um grau suficiente de nocividade para a concorrência para se poder considerar que tem por objetivo impedir, restringir ou falsear a concorrência, é necessário analisar, primeiro, o teor do acordo, da decisão ou da prática em causa, segundo, o contexto económico e jurídico no qual se inserem e, terceiro, as finalidades que pretendem alcançar (30).

52.      A conjugação das disposições controvertidas conduz ao seguinte cenário: o artigo 17.° do RETJ estabelece que, logo que um jogador rescinda um contrato sem justa causa, deve ser paga uma compensação e são aplicadas sanções desportivas graves. Além disso, nos termos do ponto 8.2 do anexo 3 do RETJ, esse jogador não receberá o CIT que permite a um clube convocá‑lo para um jogo.

53.      Por outras palavras, as consequências da rescisão de um contrato sem justa causa por um jogador são tão drásticas que é altamente improvável que um jogador opte por esta via. As disposições controvertidas foram concebidas para exercer um efeito dissuasor e inibidor nos jogadores. O mesmo se aplica aos clubes potencialmente interessados em aliciar jogadores propondo‑lhes novas oportunidades enquanto o respetivo contrato ainda está em vigor. O «preço» de tal operação seria extremamente elevado.

54.      Assim, pela sua própria natureza (31), as disposições controvertidas limitam a possibilidade de os jogadores mudarem de clubes e, inversamente, de os (novos) clubes contratarem jogadores, numa situação em que um jogador tenha rescindido o seu contrato sem justa causa. Como o Tribunal de Justiça reconheceu expressamente, o recrutamento de jogadores de talento constitui «um dos parâmetros essenciais da concorrência em que os clubes de futebol profissional se podem envolver» (32), o que faz dos jogadores o «fator de produção» mais importante (33) para os clubes.

55.      Assim, ao limitarem a capacidade dos clubes para recrutar jogadores, as disposições controvertidas em causa afetam necessariamente a concorrência entre clubes no mercado da aquisição de jogadores profissionais.

56.      Estes elementos constituem fortes indícios da existência de uma restrição da concorrência por objetivo. É evidente que existem outras situações em que os jogadores podem mudar de clube e ser recrutados. No entanto, tal não significa, como a Comissão sugere nas suas observações, que não exista uma restrição da concorrência por objetivo (34). Numa situação em que um contrato é rescindido sem justa causa, as disposições controvertidas foram concebidas para travar a concorrência. Não vejo como não equipar esse cenário a uma restrição da concorrência por objetivo.

b)      Restrição da concorrência por efeito (artigo 101, n.° 1, TFUE)

57.      Decorre da minha análise que deixou de ser necessário examinar se as disposições controvertidas implicam uma restrição da concorrência por efeito. Não obstante, afigura‑se‑me evidente que as disposições controvertidas, no mínimo, têm por efeito restringir a concorrência. Durante a audiência, o representante da FIFA explicou que são muito raros os casos de rescisão do contrato sem justa causa, facto que, na minha opinião, é uma demonstração inequívoca de que as disposições controvertidas têm o efeito inibidor pretendido, tal como acima descrito.

c)      Isenção (artigo 101, n.° 3, TFUE)

58.      A meu ver, é inquestionável que os requisitos de uma eventual isenção ao abrigo do artigo 101.°, n.° 3, TFUE não estão preenchidos, razão pela qual não serão examinados nas presentes conclusões (35).

d)      Conclusão sobre o artigo 101

59.      O artigo 101.°, n.° 1, TFUE opõe‑se às disposições controvertidas. Na eventualidade de o Tribunal de Justiça considerar que existe uma restrição da concorrência não por objetivo, mas por efeito, a etapa seguinte consistiria em analisar as disposições controvertidas à luz de outros objetivos ao abrigo do Acórdão Wouters e o (36), a fim de determinar se tais disposições se justificam pela prossecução de um ou mais objetivos legítimos de interesse geral desprovidos, em si mesmos, de caráter anticoncorrencial (37). A este respeito, o critério seria, no essencial, comparável ao critério da justificação previsto no artigo 45.° TFUE, o qual abordarei em seguida.

5.      Justificação

60.      Uma restrição à liberdade de circulação dos trabalhadores só pode ter lugar se, em primeiro lugar, for justificada por uma das razões enunciadas no artigo 45.°, n.° 3, TFUE (38) ou por uma razão imperiosa de interesse geral (39) e, em segundo lugar, se respeitar o princípio da proporcionalidade, ou seja, se for adequada para assegurar, de forma coerente e sistemática, a realização do objetivo prosseguido e não exceder o necessário para o alcançar (40).

a)      Identificação de uma razão imperiosa de interesse geral

61.      A FIFA e a URBSFA alegam que as disposições controvertidas visam manter a estabilidade contratual no setor do futebol profissional e, mais concretamente, garantir o cumprimento das obrigações assumidas tanto pelos jogadores como pelos clubes.

62.      Não vejo nenhum problema em aceitar estes motivos como razões imperiosas de interesse geral, dado que não constituem objetivos de natureza puramente económica (41). Além disso, tendo em conta que a estabilidade contratual supostamente contribui, em certa medida, para condições de concorrência equitativas entre os clubes, há que recordar que o Tribunal de Justiça reconheceu expressamente o objetivo de assegurar a manutenção do equilíbrio entre os clubes, preservando uma certa igualdade de oportunidades e a incerteza dos resultados (42).

b)      Proporcionalidade

63.      Em seguida, as disposições controvertidas devem respeitar o princípio da proporcionalidade, ou seja, devem ser adequadas para assegurar, de forma coerente e sistemática, a realização dos objetivos prosseguidos e não devem ir além do necessário para os alcançar. Caberá ao órgão jurisdicional de reenvio avaliar a proporcionalidade das disposições controvertidas. A este respeito, o ónus da prova da proporcionalidade das disposições controvertidas incumbe à FIFA.

1)      Adequação

64.      De um modo geral, as disposições controvertidas afiguram‑se suscetíveis de promover a estabilidade contratual e de contribuir, assim, tanto para a estabilidade da composição das equipas nas competições desportivas como para o objetivo de um certo equilíbrio entre os clubes nessas competições, preservando uma certa igualdade de oportunidades. Importa ter aqui em conta que o desporto apresenta determinadas especificidades, visto que os clubes de futebol necessitam de adversários para que o sistema funcione (43).

65.      A obrigação de o jogador e o novo clube pagarem uma compensação (44) deve incentivar os jogadores a não rescindirem os seus contratos sem justa causa e dissuadir os clubes de recrutarem um jogador que tenha rescindido prematuramente o seu contrato sem justa causa. O mesmo se passa com as sanções desportivas (45) e com o CIT (46), cuja não emissão agrava a situação de um jogador ao criar um obstáculo técnico à sua inscrição num novo clube pertencente a outra federação.

2)      Necessidade

66.      Além disso, as disposições controvertidas não devem ir além do que é necessário para alcançar o objetivo de estabilidade contratual (47).

i)      Compensação por rescisão do contrato (artigo 17.°, n.° 1, do RETJ)

67.      O pagamento de uma compensação por rescisão do contrato sem justa causa pode ser considerado razoavelmente necessário para alcançar o objetivo de estabilidade contratual. No entanto, essa compensação deve ser calculada de modo que o montante devido pela parte a quem é imputada a falta de justa causa não exceda o que possa razoavelmente ser considerado necessário para compensar a outra parte pelo prejuízo sofrido devido à rescisão do contrato e para dissuadir — no caso vertente, o jogador — de rescindir o contrato sem justa causa (48).

ii)    Responsabilidade solidária (artigo 17.°, n.° 2, do RETJ) e sanções desportivas (artigo 17.°, n.° 4, do RETJ)

68.      Embora, na perspetiva da FIFA, possa ser difícil discernir as razões que levaram à rescisão prematura do contrato do jogador profissional com o seu antigo clube, quando um jogador é recrutado por outro clube, creio que a responsabilização sistemática do novo clube vai além do que é necessário para prosseguir o objetivo legítimo, numa situação em que o novo clube não desempenhou nenhum papel na rescisão do contrato. A presunção constante do artigo 17.°, n.° 4, do RETJ de que o novo clube incitou o jogador a rescindir o contrato afigura‑se‑me excessiva, uma vez que não vejo como o novo clube poderá provar a sua «inocência». Embora se possa argumentar, como o fazem a FIFA e a Comissão, que é possível afastar a aplicação do artigo 17.°, n.° 2, do RETJ, tendo a CRL o poder de restringir a aplicação do princípio da responsabilidade solidária (49), entendo que a concessão de tal poder discricionário à CRL não proporciona a necessária segurança jurídica aos jogadores e aos clubes, pois tudo depende da viabilidade e da celeridade de um procedimento, que se afigura difícil de apurar.

iii) Certificado internacional de transferência (ponto 8.2, n.° 7, e ponto 8.2, n.° 4, alínea b), do anexo 3 do RETJ)

69.      Aqui, o ponto 8.2, n.° 7, do anexo 3 do RETJ comporta o risco de recusa da emissão do CIT com base numa simples alegação de que o jogador não respeitou as cláusulas do seu contrato e de que o clube foi obrigado a rescindir o contrato devido ao alegado incumprimento pelo jogador das suas obrigações contratuais. Mais uma vez, poder‑se‑ia defender que o sistema proporciona a flexibilidade necessária, uma vez que, em caso de litígio entre o jogador e o seu antigo clube, a FIFA pode, a pedido do novo clube e em circunstâncias excecionais, adotar medidas provisórias (50). Contudo, também aqui estes elementos se afiguram demasiado ténues para que se possa concluir que são necessários para assegurar a estabilidade contratual.

c)      Sobre o artigo 15 da Carta

70.      Dado que algumas das partes invocam o artigo 15.° da Carta, considero oportuno examinar esta disposição nas presentes conclusões.

1)      Âmbito de aplicação: artigo 51.°, n.° 1, da Carta

71.      Antes de abordar o âmbito de aplicação material do artigo 15.° da Carta, há que esclarecer, em primeiro lugar, se este artigo é, em princípio, aplicável de todo no processo perante o órgão jurisdicional de reenvio. Por outras palavras, na adoção de um texto como o RETJ, a FIFA está vinculada pela Carta, em especial pelo seu artigo 15.°?

72.      No meu entender, a resposta é afirmativa.

73.      Nos termos do artigo 51.°, n.° 1, da Carta, que define o seu âmbito de aplicação, as disposições da Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, e os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União.

74.      A FIFA não é, stricto sensu, um Estado‑Membro que aplica o direito da União.

75.      No entanto, como já expliquei anteriormente, numa situação como a do caso em apreço, entidades privadas como a FIFA são funcionalmente comparáveis não a uma instituição da União, mas sim a um Estado‑Membro que procura justificar uma restrição de uma liberdade fundamental (51). Desde o Acórdão Walrave e Koch (52), o Tribunal de Justiça tem afirmado sistematicamente que as disposições dos Tratados são aplicáveis a uma entidade como a FIFA. Esta entidade é tratada como se fosse um Estado‑Membro que procura justificar uma restrição de uma liberdade fundamental (ou, consoante o caso, uma restrição da concorrência). Consequentemente, é lógico que, em tal situação, as disposições da Carta devam ser aplicáveis a tal entidade, no sentido de que esta está vinculada pelas mesmas. Por outras palavras, se o Tribunal de Justiça não teve dúvidas em aplicar horizontalmente o artigo 45.° TFUE a uma entidade como a FIFA, o mesmo deve acontecer com a aplicação da Carta (53).

76.      Quanto à expressão «apliquem o direito da União», esta foi clarificada no acórdão do Tribunal de Justiça no processo Åkerberg Fransson (54), em que o Tribunal de Justiça se baseou nas anotações relativas à Carta e sustentou que a obrigação de respeitar os direitos fundamentais definidos no quadro da União Europeia apenas se impõe aos Estados‑Membros quando estes agem no âmbito do direito da União (55). O Tribunal de Justiça acrescentou que, uma vez que os direitos fundamentais garantidos pela Carta devem ser respeitados quando uma regulamentação nacional se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União, não podem existir situações que estejam abrangidas pelo direito da União em que os referidos direitos fundamentais não sejam aplicados. A aplicabilidade do direito da União implica a aplicabilidade dos direitos fundamentais garantidos pela Carta (56).

77.      No meu entender, esse «princípio de simetria» é plenamente consentâneo com a lógica subjacente ao artigo 51.° da Carta, que consiste em garantir que, no âmbito de aplicação do direito da União, sejam respeitados os direitos consagrados na Carta.

78.      Além disso, gostaria de recordar a jurisprudência de longa data, tanto anterior (57) como posterior (58) à entrada em vigor da Carta, segundo a qual, sempre que um Estado‑Membro invoque um motivo de justificação no contexto de uma restrição a uma liberdade fundamental, esse Estado‑Membro deve respeitar os direitos fundamentais da União.

79.      Com base no que precede, não vejo nenhuma razão para que, neste caso específico, as disposições da Carta não sejam aplicadas no sentido de que os particulares as podem invocar contra uma entidade como a FIFA (59).

80.      Por último, gostaria de fazer mais uma breve observação sobre metodologia. À luz do que precede, considero que o contexto adequado para examinar a compatibilidade das disposições controvertidas com a Carta é a análise da justificação apresentada pela FIFA e pela URBSFA. A este respeito, concordo plenamente com a opinião do advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe de que «quando o Tribunal de Justiça aprecia uma legislação nacional à luz das liberdades de circulação, a alegada violação de um direito fundamental garantido pela Carta não pode ser apreciada independentemente da questão da violação destas liberdades» (60). Bastará acrescentar que, a meu ver, esta tem sido também a abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça até à data: as questões que envolvem direitos fundamentais em casos de livre circulação são tratadas no âmbito da justificação de uma restrição (61).

2)      Requisitos materiais do artigo 15.° da Carta

81.      Nesta fase, gostaria de observar que nada na análise que se segue relativamente ao artigo 15.°, n.° 1, da Carta (62) será substancialmente diferente da análise do artigo 45.° TFUE.

82.      Em primeiro lugar, num caso como o presente, o direito económico subjetivo (fundamental e individual) previsto no artigo 45.° TFUE (63) deve ser considerado funcionalmente equivalente ao artigo 15.° da Carta (64), pelo que me limitarei às considerações expostas a seguir, por uma questão de exaustividade (65). A este respeito, tenciono chamar a atenção para potenciais problemas que deverão ser futuramente resolvidos pelo Tribunal de Justiça.

83.      Em primeiro lugar, como resulta já do texto do artigo 15.°, n.° 1, da Carta, esta disposição prevê o direito de escolher e de exercer uma profissão ou atividade profissional (66). Uma vez que as disposições controvertidas dizem respeito ao exercício da profissão de jogador de futebol, são abrangidas pelo âmbito da proteção concedida pelo artigo 15.°, n.° 1, da Carta.

84.      Em segundo lugar, relativamente à possibilidade de restringir o direito de exercer uma profissão, o artigo 52.°, n.° 1, da Carta estatui que qualquer restrição ao exercício dos direitos reconhecidos pela Carta deve estar prevista na lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos. Na observância do princípio da proporcionalidade, só podem ser impostas restrições se estas forem necessárias e se corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteger os direitos e as liberdades de terceiros.

85.      Antes de mais, há que examinar se o RETJ deve ser considerado uma «lei» na aceção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta (67). Aqui, a resposta intuitiva e, a meu ver, categoricamente convincente seria a de que, a um nível abstrato, um ato como o RETJ pode constituir uma «lei» por motivos análogos aos acima expostos em relação ao artigo 51.°, n.° 1, da Carta: uma vez que um ato da FIFA ou da URBSFA é considerado abrangido pelo âmbito de aplicação da Carta numa situação como a do caso em apreço, esse ato deve ser considerado uma «lei» na aceção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta. Por outras palavras, optaria por uma abordagem funcional da definição do conceito de «lei» e consideraria o RETJ como uma «lei material», uma vez que foi formulado e se destina a ser aplicado de forma abstrata. Embora esteja ciente da importância constitucional desta conclusão, que mereceria certamente uma análise aprofundada numa situação em que o artigo 15.° da Carta não seja, como no caso vertente, «consumido» pelo artigo 45.° TFUE, creio que se trata de uma consequência da extensão desta última disposição a entidades como a FIFA.

86.      Em seguida, as regras em causa devem ser adequadamente acessíveis e formuladas com suficiente precisão (68). Afigura‑se‑me ser este o caso do RETJ.

87.      Por último, no que respeita aos restantes elementos do critério aplicável às restrições (identificação de um motivo de justificação, proporcionalidade), dado que é funcionalmente equivalente ao previsto no artigo 45.° TFUE, remete‑se para as considerações correspondentes acima expostas nas presentes conclusões.

IV.    Conclusão

88.      Tendo em conta o que precede, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais apresentadas pela Cour d'appel de Mons (Tribunal de Recurso de Mons, Bélgica) do seguinte modo:

1)      O artigo 101.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a regras adotadas por uma federação responsável pela organização de competições de futebol a nível mundial e aplicadas tanto por essa federação como pelas federações nacionais de futebol nela filiadas, que estabelecem que um jogador e um clube que o pretenda contratar são solidariamente responsáveis pela indemnização devida ao clube cujo contrato com o jogador foi rescindido sem justa causa e que a federação a que pertence o antigo clube de um jogador tem a possibilidade de se recusar a emitir o certificado internacional de transferência, necessário para a contratação do jogador por um novo clube, se existir um litígio entre o antigo clube e o jogador, caso seja feita prova de que, por um lado, essas decisões de associações de empresas são suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros e, por outro, têm por objetivo ou efeito restringir a concorrência entre clubes de futebol profissional, a menos que, na segunda destas hipóteses, seja demonstrado, através de elementos de prova e argumentos convincentes, que se justificam pela prossecução de um ou mais objetivos legítimos e são estritamente necessários para esse fim.

2)      O artigo 45.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de regras adotadas por uma federação responsável pela organização de competições de futebol a nível mundial e aplicadas tanto por essa federação como pelas federações nacionais de futebol nela filiadas:

–        que estabelecem que um jogador e um clube que o pretenda contratar são solidariamente responsáveis pela indemnização devida ao clube cujo contrato com o jogador foi rescindido sem justa causa, a menos que se prove que é realmente possível, dentro de um prazo razoável, não aplicar este princípio quando se possa demonstrar que o novo clube não esteve envolvido na rescisão prematura e injustificada do contrato do jogador;

–        que estabelecem que a federação a que pertence o antigo clube de um jogador tem a possibilidade de se recusar a emitir o certificado internacional de transferência, necessário para a contratação do jogador por um novo clube, se existir um litígio entre o antigo clube e o jogador, a menos que se prove que podem ser tomadas medidas provisórias eficazes, reais e céleres numa situação em que exista uma mera alegação de que o jogador não cumpriu as cláusulas do seu contrato e que o clube foi obrigado a rescindir o contrato devido ao alegado incumprimento pelo jogador das suas obrigações contratuais.


1      Língua original: inglês.


2      V. artigo 2.°, alínea c), dos Estatutos da FIFA.


3      V. artigo 2.°, alínea d), dos Estatutos da FIFA.


4      V. artigo 24.°, n.° 1, dos Estatutos da FIFA.


5      V. artigo 24.°, n.° 2, dos Estatutos da FIFA.


6      V. artigo 24.°, n.° 3, dos Estatutos da FIFA.


7      V. artigo 14.°, n.° 1, alínea d), dos Estatutos da FIFA.


8      V. artigo 20.°, n.° 1, dos Estatutos da FIFA.


9      A FIFPro, a FIFPro Europa e a UNFP são federações ou «uniões» que representam os jogadores profissionais de futebol a nível mundial, europeu e francês. Estas federações pediram para intervir voluntariamente no processo principal após a decisão do órgão jurisdicional nacional de submeter o processo ao Tribunal de Justiça. O órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que as três federações requerentes devem ser consideradas partes no processo por força das regras processuais nacionais que lhes são aplicáveis. Por conseguinte, podem participar na fase escrita e oral do processo perante o Tribunal de Justiça.


10      Consequentemente, uma vez que os factos do presente caso não são factos puramente internos confinados a um único Estado‑Membro, não há necessidade de examinar as exceções enunciadas no Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten (C‑268/15, EU:C:2016:874, n.° 50).


11      V. Acórdãos de 21 de dezembro de 2023, European Superleague Company (C‑333/21, EU:C:2023:1011), e de 21 de dezembro de 2023, Royal Antwerp Football Club (C‑680/21, EU:C:2023:1010; a seguir «Acórdão Royal Antwerp Football Club»). Além disso, no mesmo dia, o Tribunal de Justiça proferiu um acórdão em que examinou regras estabelecidas por uma federação desportiva internacional no domínio da patinagem: v. Acórdão de 21 de dezembro de 2023, International Skating Union/Comissão (C‑124/21 P, EU:C:2023:1012).


12      A título de exemplo, darei como assentes muitas questões jurídicas, como o facto de as regras adotadas por entidades como a FIFA e a URBSFA, que têm, de acordo com os respetivos estatutos, o estatuto de associações de direito privado responsáveis pela organização do futebol a nível mundial, europeu ou nacional, serem abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União.


13      Considero importante referir, de passagem, que o recurso do Tribunal de Justiça às regras de concorrência e do mercado interno em paralelo é um fenómeno relativamente novo. Com efeito, no Acórdão Bosman, o Tribunal de Justiça, tendo concluído que as disposições em causa eram contrárias ao artigo 45.° TFUE, recorreu à economia judicial e considerou que «não [era] necessário» pronunciar‑se sobre a interpretação dos atuais artigos 101.° e 102.° TFUE. V. Acórdão de 15 de dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, EU:C:1995:463, n.° 138). Gostaria ainda de referir que as conclusões do advogado‑geral nesse processo abordavam tanto as regras de concorrência como as do mercado interno [v. Conclusões do advogado‑geral C. O. Lenz no processo Bosman (C‑415/93, EU:C:1995:293)].


14      V., em pormenor, Müller‑Graff, P.‑C., «Die Verfassungsziele der Europäischen Union», pontos 128 a 136, in Dauses, M. A., Handbuch des EUWirtschaftsrechts, vol. I, EL 59, C.H. Beck, Munique, 2023.


15      Esta afirmação a nível do direito primário (do qual os protocolos são parte integrante, v. artigo 51.° TUE) era necessária, uma vez que o ex‑artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE (nos termos do qual a ação da Comunidade previa «um regime que garanta que a concorrência não seja falseada no mercado interno») já não tinha correspondência nos artigos 3.° a 6.° TUE, que, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, substituíram, em substância, o artigo 3.°, n.° 1, CE.


16      V., entre muitos outros, Acórdão de 12 de dezembro de 1974, Walrave e Koch (36/74, EU:C:1974:140, n.° 17).


17      Assim, o Tribunal de Justiça sustentou que, em virtude do artigo 4.°, n.° 3, TUE, os Estados‑Membros não podiam manter em vigor legislação que permitisse a uma empresa infringir disposições do direito da concorrência da União, uma vez que tal legislação eliminava o efeito útil dessas disposições.  V. Acórdão de 1 de outubro de 1987, van Vlaamse Reisbureaus (311/85, EU:C:1987:418, n.° 10).


18      No qual tive a honra de redigir as conclusões, no que respeita ao artigo 45.° TFUE, as quais o Tribunal de Justiça seguiu, de um modo geral, no seu acórdão.


19      V. Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.os 101 a 111).


20      Acórdão de 19 de fevereiro de 2002 (C‑309/99, EU:C:2002:98).


21      V. Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.° 115). V. igualmente Acórdãos de 21 de dezembro de 2023, European Superleague Company (C‑333/21, EU:C:2023:1011, n.° 186) e de 21 de dezembro de 2023, International Skating Union (C‑124/21 P, EU:C:2023:1012, n.° 113).


22      V. Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.° 136 e jurisprudência referida). V. também Acórdãos de 27 de janeiro de 2000, Graf (C‑190/98, EU:C:2000:49, n.° 18), e de 10 de outubro de 2019, Krah (C‑703/17, EU:C:2019:850, n.° 40).


23      V., por analogia, Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.° 81).


24      V., por analogia, Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.° 83).


25      Esta exceção refere‑se a três acórdãos do Tribunal de Justiça, proferidos no mesmo dia, relativos à inscrição obrigatória em fundos de pensões setoriais. Assim, no processo Albany, uma empresa neerlandesa contestou a inscrição obrigatória de todos os trabalhadores de um determinado setor num regime complementar de pensões, alegando que tal exigência restringia a concorrência e violava o que é agora o artigo 101.° TFUE, uma vez que as empresas não podiam oferecer pensões alternativas para atraírem trabalhadores. No seu Acórdão de 21 de setembro de 1999, Albany (C‑67/96, EU:C:1999:430, n.° 59 e seguintes), o Tribunal de Justiça sustentou que, embora fosse «verdade que alguns efeitos restritivos da concorrência são inerentes aos acordos coletivos concluídos entre organizações representativas das entidades patronais e dos trabalhadores», esses acordos «devem ser considerad[os], em razão da sua natureza e do seu objeto, como não abrangid[os] pelo artigo [101.°, n.° 1, TFUE]». V. também Acórdãos de 21 de setembro de 1999, Brentjens' (C‑115/97 a C‑117/97, EU:C:1999:434, n.° 56 e seguintes), e de 21 de setembro de 1999, Drijvende Bokken (C‑219/97, EU:C:1999:437, n.° 46 e seguintes).


26      Ou, em alternativa, pelo menos por efeito.


27      O Governo Italiano não toma posição sobre esta questão.


28      V. Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.° 86 e jurisprudência referida).


29      Ou seja, «em si mesma», v. Acórdão de 11 de setembro de 2014, CB/Comissão (C‑67/13 P, EU:C:2014:2204, n.° 57).


30      V. Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.° 92 e jurisprudência referida).


31      Embora, como é evidente, esteja ciente do facto de que cabe, em última análise, ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se as disposições controvertidas revelam, pela sua própria natureza, um grau suficiente de nocividade para a concorrência para se poder considerar que têm por «objetivo» restringir a concorrência, entendo que, com base nas informações de que dispõe, o Tribunal de Justiça está em condições de orientar o órgão jurisdicional de reenvio nesta fase.


32      V. Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.° 107).


33      Subscrevo plenamente esta expressão, utilizada pela FIFPro nas suas observações escritas.


34      Em contrapartida, subscrevo a declaração da Comissão, reconhecidamente não vinculativa, constante das suas «Orientações sobre a aplicação do direito da concorrência da União às convenções coletivas relativas às condições de trabalho dos trabalhadores independentes individuais», Comunicação da Comissão (JO 2002, C 374, p. 2), onde afirma que, numa situação em que os clubes desportivos profissionais de um Estado‑Membro acordam entre si não contratar atletas do clube do outro durante a vigência dos contratos dos atletas com um dos clubes desportivos, tal acordo é suscetível de violar o artigo 101.° TFUE por objetivo, dado que restringe a concorrência entre os clubes desportivos para contratar os melhores atletas no mercado.


35      Sobre os quatro requisitos cumulativos a preencher neste contexto, v., em pormenor, Acórdão de 21 de dezembro de 2023, European Superleague Company (C‑333/21, EU:C:2023:1011, n.os 189 a 200).


36      Acórdão de 19 de fevereiro de 2002 (C‑309/99, EU:C:2002:98).


37      V. Acórdão Royal Antwerp Football Club (n.os 113 e seguintes).


38      Ordem pública, segurança pública ou saúde pública.


39      Ao longo dos anos, o Tribunal de Justiça tem utilizado terminologia diferente para descrever razões de caráter não económico como motivos de justificação, que foram (e estão a ser) desenvolvidas pela jurisprudência. V. Martucci, F., Droit du marché intérieur de l’Union européenne, Presses Universitaires de France, Paris, 2021, ponto 261. Por uma questão de simplificação, nas presentes conclusões empregarei o termo «razão imperiosa de interesse geral».


40      V., neste sentido, no essencial, Acórdãos de 15 de dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, EU:C:1995:463, n.° 104); de 16 de março de 2010, Olympique Lyonnais (C‑325/08, EU:C:2010:143, n.° 38); e de 10 de outubro de 2019, Krah (C‑703/17, EU:C:2019:850, n.° 55).


41      É jurisprudência constante que tais objetivos não podem constituir uma razão imperiosa de interesse geral suscetível de justificar uma restrição a uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado: v., a título de exemplo, Acórdão de 8 de junho de 2023, Prestige and Limousine (C‑50/21, EU:C:2023:448, n.° 70 e jurisprudência referida).


42      V. Acórdão de 15 de dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, EU:C:1995:463, n.° 106).


43      V., neste sentido, Weatherill, S., «Is Sport “Special”?», EU Law Live, 23.01.2024, https://eulawlive.com/competition‑corner/op‑ed‑is‑sport‑special‑by‑stephen‑weatherill/.


44      Artigo 17.°, n.os 1 e 2, do RETJ.


45      Artigo 17.°, n.° 4, do RETJ.


46      Ponto 8.2, n.° 7, e ponto 8.2, n.° 4, alínea b), do anexo 3 do RETJ.


47      Gostaria de reiterar que não vejo nenhuma razão para nos afastarmos da jurisprudência uniforme, a fim de conceder à FIFA um poder discricionário mais alargado do que seria normalmente o caso. V., mais pormenorizadamente, as minhas Conclusões no processo Royal Antwerp Football Club (C‑680/21, EU:C:2023:188, n.os 74 a 78).


48      Refira‑se, neste contexto, que, nos termos do artigo 17.°, n.° 1, do RETJ, os critérios a ter em conta no cálculo da compensação incluem a remuneração e outros benefícios devidos ao jogador ao abrigo do contrato vigente e/ou do novo contrato, o período do contrato em falta até um máximo de cinco anos, os custos e despesas pagos ou incorridos pelo clube anterior (amortizados ao longo da vigência do contrato) e o facto de a rescisão contratual ocorrer ou não no decurso de um período protegido.


49      Como aparentemente terá acontecido no presente processo.


50      V. ponto 8.2, n.° 7, segundo período, do anexo 3 do RETJ.


51      V. as minhas Conclusões no processo Royal Antwerp Football Club (C‑680/21, EU:C:2023:188, n.° 54). Estamos, portanto, no domínio da integração negativa, em que uma entidade pretende restringir uma liberdade fundamental para promover outra política que considera ser mais importante.


52      Acórdão de 12 de dezembro de 1974 (36/74, EU:C:1974:140, n.° 17).


53      No que diz respeito à interação entre o artigo 45.° TFUE e o artigo 15.° da Carta, este entendimento é partilhado por Kühling, J., Drechsler, S., in Pechstein, M., Nowak, C., Häde, U. (EE.), Frankfurter Kommentar zu EUV, GRC und AEUV, 2.ª ed., vol. I, Mohr Siebeck, Tübingen, 2023, art. 15 GRC, ponto 5.


54      Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.° 20).


55      V. Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.° 20).


56      V. Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.° 21). V. também, neste sentido, Acórdãos de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis (C‑201/15, EU:C:2016:972, n.° 62); de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432, n.° 63); e de 6 de outubro de 2021, ECOTEX BULGARIA (C‑544/19, EU:C:2021:803, n.° 85).


57      V. Acórdão de 18 de junho de 1991, ERT (C‑260/89, EU:C:1991:254, n.° 43).


58      Acórdão de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281, n.° 35).


59      Este entendimento é partilhado pela maior parte da doutrina: v., a título de exemplo, Kliesch, J., Der Status des Profifußballers im Europäischen Recht, Nomos, Baden‑Baden, 2017, p. 151 a 159.


60      V. Conclusões nos processos apensos SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410, n.° 142).


61      V. Acórdãos de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.° 127 e seguintes), e de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432, n.° 54 e seguintes).


62      Por uma questão de exaustividade, importa salientar que — como resulta já do próprio texto da disposição — o artigo 15.°, n.° 2, da Carta não tem conteúdo normativo próprio e é, em última análise, redundante, visto que reflete, no essencial, as liberdades fundamentais garantidas pelos artigos 45.°, 49.° e 56.° TFUE. Este facto é confirmado pelas anotações relativas ao artigo 15.° da Carta (JO 2007, C 303, p. 17). V., neste sentido, também Kühling, J., Drechsler, St., in Pechstein, M., Nowak, C., Häde, U. (EE.), Frankfurter Kommentar zu EUV, GRC und AEUV, op. cit., art. 15 GRC, ponto 11, e Streinz, R., in Streinz, R. (E.), EUV/AEUV Kommentar, C.H. Beck, Munique, 3.ª ed., 2018, art. 15 GR‑Charta, ponto 14. Também o Tribunal de Justiça tem afirmado reiteradamente que a interpretação do artigo 15.°, n.° 2, da Carta corresponde à interpretação dos artigos 45.° e 49.° TFUE, v. Acórdãos de 4 de julho de 2013, Gardella (C‑233/12, EU:C:2013:449, n.° 39); de 7 de abril de 2016, ONEm e M. (C‑284/15, EU:C:2016:220, n.° 33); e de 8 de julho de 2021, Lietuvos Respublikos sveikatos apsaugos ministerija (C‑166/20, EU:C:2021:554, n.° 32).


63      V. também Conclusões do advogado‑geral C. O. Lenz no processo Bosman (C‑415/93, EU:C:1995:293, n.° 203), onde o artigo 45.° TFUE é descrito como um «direito fundamental que é atribuído a cada trabalhador da [União] individualmente pelo Tratado».


64      V., sobre esta questão, Mantouvalou, V., Frantziou, E., in Peers, S., Hervey, T., Kenner, J., e Ward, A. (ed.), The EU Charter of Fundamental Rights: A Commentary, 2.ª ed., C.H. Beck, Hart, Nomos, 2021, art. 15, ponto 15.04.


65      Não fica excluída a possibilidade de existirem casos em que o artigo 15.° da Carta tenha um conteúdo normativo independente do do artigo 45.° TFUE. Porém, não é o que acontece numa situação como a do caso em apreço, em que a medida restringe de forma tão evidente a livre circulação.


66      V. também, neste sentido, Jarass, H.D., Charta der Grundrechte der Europäischen Union, 4.ª ed., C.H. Beck, Munique, 2021, art. 15, ponto 8.


67      V. também, neste sentido, Kliesch, J., Der Status des Profifußballers im Europäischen Recht, Nomos, Baden‑Baden, 2017, p. 279.


68      Sobre esta exigência, v. TEDH, Acórdão Sunday Times c. Reino Unido, CE:ECHR:1979:0426JUD000653874, § 49.