Language of document : ECLI:EU:C:2024:395

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

8 de maio de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Recursos próprios da União Europeia — Programa nacional cofinanciado pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) — Ajudas concedidas por contrato em execução desse programa — Proteção dos interesses financeiros da União — Regulamento (CE) n.o 2988/95 — Âmbito de aplicação — Procedimento por irregularidades — Artigo 3.o — Prazo de prescrição do procedimento — Conceito de “ato que interrompe a prescrição” — Princípio da proporcionalidade — Pedido de reembolso de ajudas indevidamente pagas, baseado no direito privado de um Estado‑Membro»

No processo C‑734/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), por Decisão de 17 de outubro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de novembro de 2022, no processo

Republik Österreich

contra

GM,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Piçarra (relator), presidente de secção, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de GM, por L. Peissl e J. Reich‑Rohrwig, Rechtsanwälte,

–        em representação do Governo Austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e E. Samoilova, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por F. Blanc, B. Hofstötter e A. Sauka, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o do Regulamento (CE, Euratom) n.o 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (JO 1995, L 312, p. 1), e do princípio da proporcionalidade.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a República da Áustria a GM, uma pessoa singular, relativamente ao prazo de prescrição aplicável a um pedido de reembolso das ajudas indevidamente pagas a esta última.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O terceiro e quarto considerandos do Regulamento n.o 2988/95 enunciam:

«[…] importa combater em todos os domínios os atos lesivos dos interesses financeiros das Comunidades [Europeias];

[…] a eficácia da luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros das Comunidades exige a criação de um quadro jurídico comum a todos os domínios abrangidos pelas políticas comunitárias.»

4        O artigo 1.o deste regulamento dispõe:

«1.      Para efeitos da proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, é adotada uma regulamentação geral em matéria de controlos homogéneos e de medidas e sanções administrativas relativamente a irregularidades no domínio do direito comunitário.

2.      Constitui irregularidade qualquer violação de uma disposição de direito comunitário que resulte de um ato ou omissão de um agente económico que tenha ou possa ter por efeito lesar o orçamento geral das Comunidades ou orçamentos geridos pelas Comunidades, quer pela diminuição ou supressão de receitas provenientes de recursos próprios cobradas diretamente por conta das Comunidades, quer por uma despesa indevida.»

5        O artigo 3.o desse regulamento prevê:

«1.      O prazo de prescrição do procedimento é de quatro anos a contar da data em que foi praticada a irregularidade referida no n.o 1 do artigo 1.o Todavia, as regulamentações setoriais podem prever um prazo mais reduzido, que não pode ser inferior a 3 anos.

O prazo de prescrição relativo às irregularidades continuadas ou repetidas corre desde o dia em que cessou a irregularidade. O prazo de prescrição no que se refere aos programas plurianuais corre em todo o caso até ao encerramento definitivo do programa.

A prescrição do procedimento é interrompida por qualquer ato, de que seja dado conhecimento à pessoa em causa, emanado da autoridade competente tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade. O prazo de prescrição corre de novo a contar de cada interrupção.

Todavia, a prescrição tem lugar o mais tardar na data em que termina um prazo igual ao dobro do prazo de prescrição sem que a autoridade competente tenha aplicado uma sanção, exceto nos casos em que o procedimento administrativo tenha sido suspenso em conformidade com o n.o 1 do artigo 6.o

[…]

3.      Os Estados‑Membros conservam a possibilidade de aplicar um prazo mais longo que os previstos respetivamente nos n.os 1 e 2.»

 Direito austríaco

6        O § 1478 do Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «ABGB»), sob a epígrafe «Prazo de prescrição — Generalidades», prevê um prazo de prescrição de trinta anos por «simples não utilização de um direito que, em si, podia ter sido exercido».

7        Nos termos do § 1489 do ABGB:

«Qualquer ação de indemnização prescreve após três anos a contar da data em que a vítima tem conhecimento do dano e da identidade do seu autor, quer o dano tenha sido causado devido à violação de uma obrigação contratual quer não tenha relação com um contrato. Se a vítima não teve conhecimento do dano ou da identidade do seu autor ou se o dano resultar de uma ou mais infrações penais que só podem ser praticadas intencionalmente e são passíveis de uma pena privativa de liberdade superior a um ano, o direito de ação só se extingue após trinta anos.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8        Em execução do Österreichischer Programm für umweltgerechte Landwirtschaft (Programa austríaco para uma agricultura sustentável), cofinanciado pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), ao abrigo do Regulamento (CE) n.o 1698/2005 do Conselho, de 20 de setembro de 2005, relativo ao apoio ao desenvolvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) (JO 2005, L 277, p. 1), e gerido pela Agrarmarkt Austria (Serviço austríaco de Fiscalização dos Mercados Agrícolas, a seguir «AMA»), a República da Áustria propunha ajudas financeiras para o período compreendido entre 2007 e 2013. Estas ajudas eram pagas através de contratos de direito privado celebrados entre este Estado‑Membro e os requerentes das referidas ajudas, com base em compromissos plurianuais assumidos por estes últimos.

9        Por ocasião de um controlo efetuado em 2013 a GM, que tinha beneficiado dessa ajuda, a AMA constatou uma divergência entre as superfícies que tinham sido objeto de um pedido de ajuda e as superfícies efetivamente elegíveis. Por conseguinte, foi pedido a GM que reembolsasse os prémios recebidos de 2008 a 2010 e de 2012 a 2013.

10      Após ter enviado a GM um relatório de auditoria e dois avisos de cobrança datados respetivamente de 26 de março e 26 de junho, e avisos de pagamento de 11 de maio e 12 de novembro de 2015, a AMA enviou‑lhe, em 16 de dezembro de 2015, uma notificação para cumprir sob pena de «ações judiciais».

11      Em 26 de abril de 2019, perante a falta de pagamento por parte de GM, a República da Áustria intentou, no órgão jurisdicional cível de primeira instância, uma ação destinada à sua condenação no reembolso das ajudas indevidamente pagas, acrescidas de juros, à qual GM opôs a prescrição dessa mesma ação.

12      Este órgão jurisdicional limitou o objeto do processo cível que lhe foi submetido à questão da prescrição da ação em causa. Em aplicação do artigo 3.o do Regulamento n.o 2988/95, declarou que, no caso em apreço, o prazo de prescrição do procedimento de quatro anos, previsto por esse regulamento, tinha começado a correr em 1 de janeiro de 2014, mas tinha sido interrompido nomeadamente pelos avisos de pagamento e a notificação para cumprir de 11 de maio, 12 de novembro e 16 de dezembro de 2015 e que, assim, essa ação não tinha prescrito.

13      O tribunal em que GM interpôs recurso decidiu que o Regulamento n.o 2988/95 não era aplicável e que, por força do § 1489 do ABGB, a ação tinha prescrito.

14      A República da Áustria interpôs então recurso de «Revision» desta última decisão no Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), que é o órgão jurisdicional de reenvio, alegando que o prazo de prescrição de quatro anos, previsto no artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95, deve ser aplicado aos pedidos de reembolso em causa e que os avisos de pagamento mencionados no n.o 10 do presente acórdão devem ser qualificados de «atos emanados da autoridade competente tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade», tendo por efeito interromper esse prazo de prescrição, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, desse regulamento. A ação de reembolso não tinha, assim, prescrito. Se o referido regulamento não fosse aplicável, havia então que aplicar o prazo de prescrição de trinta anos previsto no § 1478 do ABGB.

15      GM afirma que o Regulamento n.o 2988/95 não é aplicável na medida em que apenas cobre os direitos que devem ser garantidos «por instrumentos de direito público». Ora, as ajudas em causa foram pagas em aplicação de um contrato de direito privado regido pelo direito nacional. Tendo já expirado o prazo de três anos previsto no § 1489 do ABGB no momento da propositura da ação em primeira instância, esta tinha prescrito. Admitindo que esse regulamento seja aplicável, a ação tinha prescrito, de qualquer modo. Com efeito, os pedidos e avisos de pagamento não podem ser qualificados de atos tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do referido regulamento.

16      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a solução do litígio que lhe foi submetido depende da questão de saber se o prazo de prescrição de quatro anos, previsto no artigo 3.o do Regulamento n.o 2988/95, é aplicável quando uma ajuda cofinanciada pela União Europeia não foi concedida por um «ato administrativo de poder público», e o processo de recuperação dessa ajuda é, portanto, da alçada do direito privado. Entende que, se esta disposição fosse aplicável, GM não poderia invocar o prazo de prescrição de três anos, previsto no § 1489 do ABGB, assim como a República da Áustria não poderia invocar o prazo de prescrição de trinta anos, previsto no § 1478 do ABGB, uma vez que este último prazo não respeita o princípio da proporcionalidade.

17      Nestas condições, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 3.o do Regulamento [n.o 2988/95] é diretamente aplicável aos pedidos através dos quais a República da Áustria reclama, por via cível, o reembolso das ajudas que concedeu contratualmente aos requerentes, no âmbito de um programa que constitui uma medida agroambiental ao abrigo do Regulamento [n.o 1698/2005], porque o beneficiário da ajuda incumpriu as obrigações contratuais?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve o artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do [Regulamento n.o 2988/95] ser interpretado no sentido de que também se verifica um ato de instrução ou de instauração de um procedimento por irregularidade interruptivo da prescrição quando, após o primeiro pedido extrajudicial de reembolso, a entidade que concede a ajuda exige novamente o pagamento ao beneficiário, incluindo reiteradamente, e o interpela extrajudicialmente, em vez de fazer valer o seu direito ao reembolso por via judicial?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, a aplicação de um prazo de prescrição de 30 anos previsto no direito civil nacional aos pedidos de reembolso referidos na primeira questão é compatível com o direito da União, em especial com o princípio da proporcionalidade?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão prejudicial

18      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 deve ser interpretado no sentido de que o prazo de prescrição de quatro anos que prevê é diretamente aplicável a um pedido de reembolso de ajudas, cofinanciadas pela União, que é regido por disposições do direito privado de um Estado‑Membro.

19      Importa recordar que, devido à sua própria natureza e à sua função no sistema das fontes do direito da União, as disposições dos regulamentos produzem, regra geral, um efeito imediato nas ordens jurídicas nacionais, sem que seja necessário que as autoridades nacionais tomem medidas de aplicação (Acórdãos de 24 de junho de 2004, Handlbauer, C‑278/02, EU:C:2004:388, n.o 25, e de 7 de abril de 2022, IFAP, C‑447/20 e C‑448/20, EU:C:2022:265, n.o 88).

20      O artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 instaura um prazo geral de prescrição de quatro anos em matéria de instauração de procedimento por irregularidade, que corre a partir da data em que é cometida a irregularidade. Nos termos do artigo 1.o, n.o 2, desse regulamento, o conceito de irregularidade visa «qualquer violação de uma disposição de direito [da União] que resulte de um ato ou omissão de um agente económico que tenha ou possa ter por efeito lesar o orçamento geral [da União]».

21      Este artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, especifica também que esse prazo de prescrição de quatro anos é aplicável na falta de «regulamentações setoriais», ou seja, as adotadas ao nível da União e não a nível nacional, que prevejam «um prazo mais reduzido, que não pode ser inferior a três anos» (v., neste sentido, Acórdãos de 29 de janeiro de 2009, Josef Vosding Schlacht‑, Kühl‑ und Zerlegebetrieb e o., C‑278/07 a C‑280/07, EU:C:2009:38, n.o 44, e de 22 de dezembro de 2010, Corman, C‑131/10, EU:C:2010:825, n.o 41).

22      Nada na redação desta disposição indica que a aplicação do prazo de prescrição de quatro anos que prevê depende da natureza jurídica dos instrumentos a que as autoridades nacionais recorrem para proteger os interesses financeiros da União e corrigir as irregularidades detetadas.

23      Além disso, uma interpretação da referida disposição que fizesse depender a aplicação do Regulamento n.o 2988/95 da natureza jurídica, pública ou privada, dos instrumentos a que as autoridades nacionais recorrem para proteger os interesses financeiros da União limita o efeito útil desse regulamento cujo objetivo consiste, como enunciam, em substância, os seus terceiro e quarto considerados, em combater em todos os domínios os atos lesivos desses interesses financeiros graças à criação de um quadro jurídico comum a todos os domínios abrangidos pelas políticas da União.

24      De onde decorre que, na falta de «regulamentações setoriais», o artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do referido regulamento deve ser interpretado no sentido de que o prazo geral de prescrição de quatro anos que prevê se aplica aos pedidos de reembolso de uma ajuda apresentados devido a um incumprimento, pelo beneficiário dessa ajuda, de uma obrigação contratual a que está sujeito e que implica a violação de uma disposição do direito da União que tem ou teria por efeito lesar o orçamento geral da União.

25      Esta interpretação é corroborada pela sistemática do Regulamento n.o 2988/95. Com efeito, esse artigo 3.o figura no título I desse regulamento, relativo aos «Princípios gerais», e não no título II do referido regulamento, relativo especificamente às «Medidas e sanções administrativas».

26      Tendo em conta os fundamentos acima expostos, há que responder à primeira questão que o artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 deve ser interpretado no sentido de que o prazo de prescrição de quatro anos que prevê é diretamente aplicável a um pedido de reembolso de ajudas, cofinanciadas pela União, que é regido por disposições do direito privado de um Estado‑Membro.

 Quanto à terceira questão prejudicial

27      Com a sua terceira questão, que importa examinar em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da proporcionalidade deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação, com base no artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2988/95, de um prazo de prescrição de trinta anos, instaurado por uma disposição de direito privado de um Estado‑Membro, a pedidos de reembolso de ajudas cofinanciadas pela União.

28      Nos termos do artigo 3.o, n.o 3, desse regulamento, os Estados‑Membros conservam a faculdade de prever prazos de prescrição mais longos que o prazo mínimo de quatro anos previsto no n.o 1 desse artigo. Com efeito, o legislador da União não quis uniformizar os prazos aplicáveis na matéria e, por conseguinte, a entrada em vigor do Regulamento n.o 2988/95 não pode ter por consequência obrigar os Estados‑Membros a reduzir a quatro meses os prazos de prescrição que, na falta de regras do direito da União anteriormente existente na matéria, aplicaram no passado. Embora os Estados‑Membros disponham de um amplo poder de apreciação quanto à fixação de prazos de prescrição mais longos aplicáveis num caso de irregularidade lesiva dos interesses financeiros da União (Acórdão de 17 de setembro de 2014, Cruz & Companhia, C‑341/13, EU:C:2014:2230, n.os 54 e 55), tais prazos devem, todavia, respeitar os princípios gerais do direito da União, entre os quais figura o princípio da proporcionalidade (v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2017, Glencore Céréales France, C‑584/15, EU:C:2017:160, n.o 72).

29      Em conformidade com este princípio, tal prazo não deve ir manifestamente além do necessário para atingir o objetivo de proteção dos interesses financeiros da União (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de março de 2011, AJD Tuna, C‑221/09, EU:C:2011:153, n.o 79; de 5 de maio de 2011, Ze Fu Fleischhandel e Vion Trading, C‑201/10 e C‑202/10, EU:C:2011:282, n.o 38, e de 7 de abril de 2022, IFAP, C‑447/20 e C‑448/20, EU:C:2022:265, n.o 116).

30      O Tribunal de Justiça declarou que, com vista a atingir o objetivo de proteção dos interesses financeiros da União, a aplicação de um prazo de prescrição decenal resultante de uma disposição do direito privado nacional não é contrária ao princípio da proporcionalidade. No entanto, à luz deste objetivo, para o qual o Regulamento n.o 2988/95 instaurou um prazo de prescrição de quatro anos para permitir às autoridades nacionais a atuação contra uma irregularidade lesiva dos seus interesses financeiros e que pode conduzir, nomeadamente, à recuperação de um benefício indevidamente recebido, afigura‑se que um prazo de prescrição de trinta anos excede o que é necessário a uma administração diligente (Acórdão de 17 de setembro de 2014, Cruz & Companhia, C‑341/13, EU:C:2014:2230, n.os 60 e 61).

31      Com efeito, os Estados‑Membros têm, por força do artigo 4.o, n.o 3, TUE, uma obrigação de diligência geral, que implica tomar as medidas destinadas a remediar as irregularidades com prontidão e impõe à Administração Nacional verificar a regularidade dos pagamentos que realiza e que oneram o orçamento da União. Nestas condições, admitir que os Estados‑Membros podem conceder às suas Administrações um prazo para agir muito mais longo do que o previsto no artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 poderia encorajar as autoridades nacionais a adiar o procedimento por «irregularidades», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, desse regulamento, expondo os operadores, por um lado, a um longo período de incerteza jurídica e, por outro, ao risco de já não terem a possibilidade de fazer prova da regularidade das operações em causa após esse período (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2014, Cruz & Companhia, C‑341/13, EU:C:2014:2230, n.o 62).

32      De onde decorre que, quando a aplicação de um prazo de prescrição de direito comum ao reembolso das ajudas indevidamente recebidas se revelar desproporcionada em face do objetivo de proteção dos interesses financeiros da União, essa regra deve ser afastada e aplicado o prazo geral de prescrição previsto no artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 (v., neste sentido, Acórdão de 5 de maio de 2011, Ze Fu Fleischhandel e Vion Trading, C‑201/10 e C‑202/10, EU:C:2011:282, n.o 51).

33      Tendo em conta os fundamentos acima expostos, há que responder à terceira questão que o princípio da proporcionalidade deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação, com base no artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2988/95, de um prazo de prescrição de trinta anos, instaurado por uma disposição de direito privado de um Estado‑Membro, a pedidos de reembolso de ajudas cofinanciadas pela União.

 Quanto à segunda questão prejudicial

34      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «ato tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade», emanado da autoridade competente, de que seja dado conhecimento à pessoa em causa, que tem por efeito interromper a «prescrição do procedimento», cobre atos extrajudiciais tais como um relatório de auditoria, um aviso de cobrança, um aviso de pagamento ou uma notificação para cumprir.

35      Em conformidade com essa disposição, a prescrição do procedimento pode ser interrompida por qualquer ato, de que seja dado conhecimento à pessoa em causa, emanado da autoridade competente tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade.

36      Importa salientar que esta disposição não prevê um regime jurídico diferente consoante os atos sejam adotados pela autoridade competente no âmbito de um processo judicial ou no âmbito de um processo extrajudicial.

37      Além disso, ao adotar o artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95, o legislador da União instituiu uma regra geral de prescrição mediante a qual pretendia, por um lado, definir um prazo mínimo aplicado em todos os Estados‑Membros e, por outro, renunciar à possibilidade de recuperar montantes indevidamente recebidos do orçamento da União depois de decorrido um período de quatro anos posterior à prática dessa irregularidade que afeta os pagamentos controvertidos (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de setembro de 2014, Cruz & Companhia, C‑341/13, EU:C:2014:2230, n.o 49, e de 3 de outubro de 2019, Westphal, C‑378/18, EU:C:2019:832, n.o 28).

38      Tal prazo de prescrição tem, pois, por função garantir a segurança jurídica. Essa função é posta em causa se esse prazo puder ser interrompido por qualquer ato de controlo de ordem geral da Administração Nacional sem relação com suspeitas de irregularidades relativamente a operações circunscritas com suficiente precisão (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2004, Handlbauer, C‑278/02, EU:C:2004:388, n.o 40, e de 11 de junho de 2015, Pfeifer & Langen, C‑52/14, EU:C:2015:381, n.o 41).

39      Daí resulta que, para poder ser qualificado de ato tendo em vista instruir ou instaurar um procedimento suscetível de interromper a prescrição do procedimento, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95, tal ato deve circunscrever com suficiente precisão as operações sobre as quais recaem as suspeitas de irregularidade. Este pressuposto de precisão não exige, porém, que esse ato mencione a possibilidade de aplicar ao beneficiário da ajuda em causa uma sanção ou uma medida administrativa em particular (Acórdão de 11 de junho de 2015, Pfeifer & Langen, C‑52/14, EU:C:2015:381, n.o 43).

40      Assim, um relatório enviado pela autoridade competente, que evidencia uma irregularidade para a qual o beneficiário da ajuda contribuiu com uma operação precisa, e que lhe pede informações complementares a respeito dessa operação ou lhe aplica uma sanção relacionada com a referida operação, constitui um ato suficientemente preciso tendo em vista instruir ou instaurar um procedimento por irregularidade, e pode, portanto, interromper o prazo de prescrição do procedimento, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de dezembro de 2011, Chambre de commerce et d’industrie de l’Indre, C‑465/10, EU:C:2011:867, n.o 61, e de 11 de junho de 2015, Pfeifer & Langen, C‑52/14, EU:C:2015:381, n.o 42).

41      Do mesmo modo, uma carta que informa o beneficiário de uma ajuda, cofinanciada a partir do FEADER, do caráter ilegal dessa ajuda pode também interromper o prazo de prescrição do procedimento, previsto no artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, desse regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 5 de março de 2019, Eesti Pagar, C‑349/17, EU:C:2019:172, n.os 24 e 127).

42      Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se os atos extrajudiciais em causa no processo principal circunscrevem com suficiente precisão as operações sobre as quais recaem suspeitas de irregularidades e, logo, se se enquadram no conceito de «ato tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade» referido no artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do referido regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 11 de junho de 2015, Pfeifer & Langen, C‑52/14, EU:C:2015:381, n.os 46 e 47).

43      Tendo em conta os fundamentos acima expostos, há que responder à segunda questão que o artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «ato tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade», emanado da autoridade competente, e de que seja dado conhecimento da pessoa em causa, que tem por efeito interromper a «prescrição do procedimento», cobre atos extrajudiciais tais como um relatório de auditoria, um aviso de cobrança, um aviso de pagamento ou uma notificação para cumprir, desde que esses atos permitam ao seu destinatário tomar conhecimento, com suficiente precisão, das operações sobre as quais recaem suspeitas de irregularidades.

 Quanto às despesas

44      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

1)      O artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento (CE, Euratom) n.o 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias,

deve ser interpretado no sentido de que:

o prazo de prescrição de quatro anos que prevê é diretamente aplicável a um pedido de reembolso de ajudas, cofinanciadas pela União Europeia, que é regido por disposições do direito privado de um EstadoMembro.

2)      O princípio da proporcionalidade deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe à aplicação, com base no artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2988/95, de um prazo de prescrição de trinta anos, instaurado por uma disposição de direito privado de um EstadoMembro, a pedidos de reembolso de ajudas cofinanciadas pela União Europeia.

3)      O artigo 3.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 2988/95

deve ser interpretado no sentido de que:

o conceito de «ato tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade», emanado da autoridade competente, e de que seja dado conhecimento da pessoa em causa, que tem por efeito interromper a «prescrição do procedimento», cobre atos extrajudiciais tais como um relatório de auditoria, um aviso de cobrança, um aviso de pagamento ou uma notificação para cumprir, desde que esses atos permitam ao seu destinatário tomar conhecimento, com suficiente precisão, das operações sobre as quais recaem suspeitas de irregularidades.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.