Language of document : ECLI:EU:T:2010:517

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção)

15 de Dezembro de 2010 (*)

«Acordos, decisões e práticas concertadas – Abuso de posição dominante – Decisão de rejeição de uma denúncia – Recusa dos fabricantes de relógios suíços de fornecerem peças sobressalentes aos reparadores de relógios independentes – Interesse comunitário – Mercado relevante – Mercado primário e mercado de pós‑venda – Dever de fundamentação – Erro manifesto de apreciação»

No processo T‑427/08,

Confédération européenne des associations d’horlogers‑réparateurs (CEAHR), com sede em Bruxelas (Bélgica), representada por P. Mathijsen, advogado,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada inicialmente por X. Lewis e F. Ronkes Agerbeek, e em seguida por F. Ronkes Agerbeek e F. Castilla Contreras, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por:

Richemont International SA, com sede em Bellevue (Suíça), representada por J. Ysewyn, advogado, e H. Crossley, solicitor,

interveniente,

que tem por objecto a anulação da Decisão C (2008) 3600 da Comissão, de 10 de Julho de 2008, que rejeita a denúncia apresentada pela recorrente no processo COMP/E‑1/39097,

O TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção),

composto por: O. Czúcz (relator), presidente, I. Labucka e K. O’Higgins, juízes,

secretário: K. Pocheć, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 3 de Fevereiro de 2010,

profere o presente

Acórdão

 Factos na origem do litígio

1        A recorrente, Confédération européenne des associations d’horlogers‑réparateurs (CEAHR), é uma associação sem fins lucrativos constituída por sete associações nacionais de seis Estados‑Membros que representa os interesses dos reparadores de relógios independentes.

2        Em 20 de Julho de 2004, a recorrente apresentou uma denúncia à Comissão das Comunidades Europeias contra diversas empresas, entre as quais a interveniente, activas no sector do fabrico de relógios (a seguir «fabricantes de relógios suíços»), revelando a existência de um acordo ou de uma prática concertada entre elas e fazendo prova da existência de um abuso de posição dominante decorrente da recusa destes fabricantes de continuarem a abastecer os reparadores de relógios independentes de peças sobressalentes.

3        Por ofício de 28 de Abril de 2005, a Comissão deu a conhecer à recorrente a sua posição provisória relativamente à denúncia (a seguir «posição provisória»). Referiu que, no termo da sua investigação, não tinha encontrado nenhum elemento que provasse a existência de uma prática concertada ou de um acordo entre os fabricantes de relógios de luxo. Além disso, considerou que não existia um mercado distinto dos serviços de reparação e manutenção, mas que o fornecimento desses serviços constituía uma característica do mercado dos relógios de luxo, o qual era muito concorrencial. Consequentemente, concluiu que os factos expostos na denúncia não violavam os artigos 81.° CE e 82.° CE.

4        Por carta de 20 de Julho de 2005, a recorrente apresentou à Comissão as suas observações em resposta à posição provisória, nas quais reiterava que a recusa dos fabricantes de relógios suíços de continuarem a fornecer peças sobressalentes constituía uma infracção às regras comunitárias da concorrência.

5        Por ofício de 13 de Dezembro de 2007, a Comissão informou a recorrente de que, nos termos do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 773/2004 da Comissão, de 7 de Abril de 2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] (JO L 123, p. 18), após a análise dos elementos de facto e de direito apresentados pela recorrente na sua denúncia e nas suas outras observações, mantinha a sua conclusão preliminar de que não existia interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação sobre as alegadas infracções. Por carta de 30 de Janeiro de 2008, a recorrente respondeu a este ofício mantendo a sua posição inicial.

6        Em 10 de Julho de 2008, a Comissão adoptou a decisão C (2008) 3600, pela qual rejeitou a denúncia invocando a inexistência de interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação sobre as alegadas infracções (a seguir «decisão recorrida»).

7        A Comissão baseou esta conclusão quanto à inexistência de interesse comunitário suficiente em quatro considerações principais.

8        Em primeiro lugar, a Comissão afirmou que a denúncia dizia respeito, quando muito, a um mercado ou a um segmento de mercado de dimensão limitada e, por conseguinte, a sua importância económica era também limitada (decisão recorrida n.° 8).

9        Em segundo lugar, a Comissão acrescentou que, com base nas informações de que dispunha, não podia concluir pela existência de um acordo ou de uma prática concertada anticoncorrenciais entre os fabricantes de relógios suíços e que, em especial, era improvável que os sistemas de distribuição selectiva postos em prática por estes não estivessem abrangidos pela isenção por categoria concedida pelo Regulamento (CE) n.° 2790/1999 da Comissão, de 22 de Dezembro de 1999, relativo à aplicação do n.° 3 do artigo 81.° [CE] a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas (JO L 336, p. 21) (decisão recorrida, n.° 43).

10      Em terceiro lugar, a Comissão afirmou que tinha analisado o mercado primário dos relógios de luxo e de prestígio, bem como dois mercados de pós‑venda, a saber, o das peças sobressalentes e o dos serviços de reparação e manutenção de relógios de luxo e de prestígio, e que chegou à conclusão prima facie de que esses dois mercados de pós‑venda não constituíam mercados distintos e que, por conseguinte, não parecia existir qualquer posição dominante, de forma que a questão da existência de um abuso não era pertinente (decisão recorrida, n.° 44).

11      Em quarto lugar, a Comissão afirmou que, tendo em conta a sua apreciação das alegadas infracções, se afigurava que, mesmo no caso de uma afectação de recursos suplementares à instrução da denúncia, a probabilidade de demonstrar uma infracção às regras da concorrência continuaria a ser reduzida, de forma que essa afectação seria desproporcionada (decisão recorrida, n.os 8 e 45). Acrescentou que, em qualquer caso, na hipótese de as infracções às regras comunitárias da concorrência poderem ser demonstradas, as autoridades de concorrência ou os órgãos jurisdicionais nacionais, com competência para aplicarem os artigos 81.° CE e 82.° CE, pareciam estar bem posicionados para apreciar essas infracções (decisão recorrida, n.° 8).

 Tramitação processual e pedidos das partes

12      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 24 de Setembro de 2008, a recorrente interpôs o presente recurso.

13      Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 27 de Janeiro de 2009, a Richemont International pediu que fosse admitida a sua intervenção no presente processo em apoio dos pedidos da Comissão. Por despacho de 30 de Março de 2009, o presidente da Quarta Secção do Tribunal Geral admitiu essa intervenção.

14      A interveniente apresentou as suas alegações e as outras partes apresentaram observações sobre as mesmas nos prazos estabelecidos.

15      Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal Geral (Quarta Secção) decidiu dar início à fase oral do processo. No âmbito das medidas de organização do processo, convidou as partes a responder por escrito a determinadas questões e a apresentar determinados documentos. As partes atenderam a esse pedido no prazo estabelecido.

16       Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões do Tribunal Geral na audiência de 3 de Fevereiro de 2010. Na audiência, a recorrente pediu que fosse desentranhada dos autos uma passagem da resposta da Comissão a uma questão escrita do Tribunal, alegando que continha uma argumentação independente da questão colocada e que, além disso, era nova em relação aos argumentos apresentados pela Comissão na decisão recorrida, na contestação e na tréplica.

17      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão recorrida;

–        condenar a Comissão nas despesas;

–        condenar a interveniente nas despesas por ela efectuadas por causa da intervenção.

18      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

19      A interveniente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas por ela efectuadas.

 Questão de direito

20      Em apoio do seu recurso a recorrente invoca cinco fundamentos. O primeiro fundamento, dividido em duas partes, baseia‑se, por um lado, na apreciação errada da existência de um interesse comunitário e, por outro, nas ilegalidades relativas à conclusão de que a dimensão do mercado em causa na denúncia e, consequentemente, a sua importância económica são limitadas. O segundo fundamento baseia‑se na definição errada do mercado relevante. O terceiro e quarto fundamentos baseiam‑se, respectivamente, na violação do artigo 81.° CE e do artigo 82.° CE. O quinto fundamento baseia‑se no desvio de poder resultante da invocação tardia da falta de interesse comunitário, na desvirtuação do conteúdo da petição e na falta de objectividade da investigação da Comissão.

21      Deve‑se observar que os fundamentos que sustentam a conclusão da Comissão de que não existe interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação da denúncia, são contestados pela recorrente não só no primeiro fundamento, como também no segundo, terceiro e quarto fundamentos. Assim, o Tribunal Geral considera útil examinar, em primeiro lugar, a segunda parte do primeiro fundamento, relativa à dimensão do mercado em causa na denúncia e à sua importância económica e só apreciar a primeira parte do primeiro fundamento, relativa à existência de um interesse comunitário suficiente, depois ter decidido quanto à procedência do segundo, terceiro e quarto fundamentos.

1.     Quanto à dimensão do mercado em causa na denúncia e a sua importância económica

 Argumentos das partes

22      A recorrente alega que a Comissão invocou, no n.° 8 da decisão recorrida, em apoio da sua conclusão de que não existe um interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação, que a denúncia dizia respeito apenas a um (segmento de) mercado «de dimensão limitada e, por conseguinte, [que] a sua importância económica [era] também limitada». Todavia, a Comissão não identificou esse mercado, não quantificou a sua dimensão e não descreveu a sua importância económica, violando assim o seu dever de fundamentação. Do mesmo modo, não teve em conta o facto referido pela recorrente no âmbito do procedimento administrativo de que a prática dos fabricantes de relógios suíços afecta os relojoeiros independentes nos 27 Estados‑Membros e que essa prática ameaça de extinção toda uma profissão artesanal.

23      A Comissão, apoiada pela interveniente, afirma que a análise completa e a fundamentação da sua posição relativamente à inexistência de um interesse comunitário suficiente figuram não só na parte introdutiva da decisão recorrida criticada pela recorrente, como também em toda a decisão recorrida e, em especial, nos n.os 12 a 26. Nestes últimos números são claramente identificados o mercado primário relevante (o dos relógios de luxo ou de prestígio) e os mercados de pós‑venda (o dos serviços de reparação e manutenção dos referidos relógios e o das peças sobressalentes para esses relógios).

24      A Comissão acrescenta que a declaração que consta do n.° 8 da decisão recorrida de que o mercado é de dimensão limitada e, por conseguinte, a sua importância económica é também limitada, é corroborada pela afirmação que figura no mesmo número segundo a qual resulta das informações recebidas que «os serviços pós‑venda relativos aos relógios de luxo ou de prestígio representam apenas, quantitativamente, uma parte insignificante do volume de negócios global correspondente às vendas de relógios de luxo ou de prestígio, ao passo que se deve ter em atenção que [os referidos relógios] só representam um determinado segmento do mercado global dos relógios».

25      A Comissão acrescenta que a falta de fundamentação alegada resulta do desacordo da recorrente com a sua definição do mercado relevante. Na opinião da Comissão, os dois mercados de pós‑venda devem ser analisados conjuntamente com o mercado primário, a saber, o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio (decisão recorrida, n.° 16), com o qual estão intimamente relacionados. É referido na decisão recorrida que, sendo o mercado primário concorrencial, os mercados de pós‑venda também o são (decisão recorrida, n.° 18), de forma que não era necessário determinar a dimensão e a importância económica dos mercados de pós‑venda, dado que estes não são os únicos mercados que são objecto da avaliação da concorrência. O facto de a recorrente não concordar com esta definição do mercado não significa que a decisão recorrida esteja insuficientemente fundamentada a esse respeito.

 Apreciação do Tribunal Geral

26      Segundo a jurisprudência, a Comissão, investida pelo artigo 85.°, n.° 1, CE da missão de velar pela aplicação dos artigos 81.° CE e 82.° CE, é chamada a definir e a pôr em prática a política da concorrência da União, dispondo para esse efeito de um poder discricionário para o tratamento das denúncias (acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 26 de Janeiro de 2005, Piau/Comissão, T‑193/02, Colect., p. II‑209, n.° 80, e de 12 de Julho de 2007, AEPI/Comissão, T‑229/05, não publicado na Colectânea, n.° 38).

27      Quando, ao exercer esse poder discricionário, a Comissão decide atribuir graus de prioridade diferentes às denúncias que lhe são apresentadas, pode não apenas adoptar a ordem pela qual as denúncias serão examinadas mas ainda rejeitar uma denúncia por falta de interesse comunitário suficiente para a prossecução da análise do processo (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 14 de Fevereiro de 2001, Sodima/Comissão, T‑62/99, Colect., p. II‑655, n.° 6; v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 24 de Janeiro de 1995, Tremblay e o./Comissão, T‑5/93, Colect., p. II‑185, n.os 59 e 60).

28      O poder discricionário da Comissão, não é, no entanto, ilimitado. A Comissão deve, no exercício do seu poder discricionário, ter em consideração todos os elementos de direito e de facto pertinentes a fim de decidir do seguimento a dar à denúncia. Mais especialmente, a Comissão é obrigada a examinar atentamente todos os elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pelo denunciante (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2001, IECC/Comissão, C‑450/98 P, Colect., p. I‑3947, n.° 57 e jurisprudência citada). Do mesmo modo, a Comissão está sujeita a uma obrigação de fundamentação quando recusa prosseguir o exame de uma denúncia, devendo essa fundamentação ser suficientemente precisa e detalhada para colocar o Tribunal em condições de exercer um controlo efectivo sobre o exercício pela Comissão do seu poder discricionário de definição das prioridades (acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1999 Ufex e o./Comissão, C‑119/97 P, Colect., p. I‑1341, n.os 89 a 91, e acórdão Sodima/Comissão, já referido no n.° 27 supra, n.os 41 e 42).

29      No caso em apreço, nos n.os 8 e 9 da decisão recorrida, a Comissão declarou o seguinte:

«8      Em especial, a Comissão observa que a denúncia diz respeito, quando muito, a um (segmento de) mercado de dimensão limitada e, por conseguinte, a sua importância económica também é limitada. É verdade que apesar de ter enviado diversos questionários aos fabricantes de relógios, foi difícil obter estatísticas e números precisos relativamente à dimensão dos mercados – primários ou secundários – objecto da denúncia. No entanto, tendo em conta as informações recebidas pela Comissão, verifica‑se imediatamente que a dimensão dos serviços pós‑venda relativos aos relógios de luxo ou de prestígio representam apenas uma parte insignificante do volume de negócios global correspondente à venda de relógios de luxo ou de prestígio, quando se deve ter em atenção que os referidos relógios só representam um determinado segmento do mercado global dos relógios. Além disso, a apreciação prima facie dos argumentos da denunciante não forneceu informações credíveis com base nas quais se possa concluir nesta fase pela existência de eventuais infracções ao direito da concorrência no caso vertente. Também se afigura improvável que sejam detectadas infracções depois de se terem afectado mais recursos à investigação. Por último, ainda que fosse possível demonstrar as infracções no presente processo, as autoridades ou os órgãos jurisdicionais nacionais parecem estar bem posicionados para conduzir a investigação ou para apreciar essas infracções. Ambos têm o poder e o dever de aplicar os artigos 81.°[CE] e 82.° [CE].

9      Consequentemente, à luz das considerações que precedem, afigura‑se desproporcionado afectar os recursos limitados da Comissão na prossecução da investigação sobre o processo. Assim, a Comissão chegou à conclusão de que a denúncia deve ser rejeitada por falta de interesse comunitário com base num impacto limitado dos eventuais efeitos das alegadas infracções no funcionamento do mercado comum, na complexidade da investigação necessária e na reduzida probabilidade de se obterem provas das infracções.»

30      Em primeiro lugar, deve‑se analisar a acusação da recorrente segundo a qual a Comissão não teve em conta a circunstância referida na denúncia de que as práticas objecto dessa denúncia abrangem todo o território da União Europeia.

31      Antes de mais, deve‑se observar que a afirmação da recorrente na sua denúncia quanto à extensão geográfica das práticas em causa não foi posta em causa pela Comissão na posição provisória nem na decisão recorrida. Além disso, na audiência, a Comissão reconheceu que dispunha de informações segundo as quais as referidas práticas existiam em «cinco ou seis Estados‑Membros» e que não podia confirmar nem negar que também existiam nos outros Estados.

32      Por outro lado, o Tribunal Geral considera que a extensão do território em causa é necessariamente pertinente para a dimensão do mercado ou dos mercados em causa na denúncia e para a importância económica desse ou desses mercados. Além disso, a importância deste elemento apresentado pela recorrente na sua denúncia é reforçada, no caso em apreço, pelo facto de indicar claramente que a denúncia não diz respeito a um mercado local, mas sim a um mercado ou mercados que abrangem o território de pelo menos de cinco Estados‑Membros, ou mesmo eventualmente, todo o território da União.

33      Assim, ao não ter em conta o referido elemento no âmbito da sua apreciação da dimensão do mercado em causa e da sua importância económica, a Comissão violou a sua obrigação de ter em consideração todos os elementos de direito e de facto pertinentes e de examinar atentamente esses elementos levados ao seu conhecimento pela recorrente (v. jurisprudência citada no n.° 28 acima).

34      Em segundo lugar, deve‑se examinar a alegação da recorrente relativa à insuficiente fundamentação da conclusão que figura na decisão recorrida, respeitante à dimensão limitada do mercado em causa na denúncia.

35      Em primeiro lugar, relativamente à identificação do mercado a que essa conclusão se refere, deve‑se referir, como observa a Comissão, que a decisão recorrida inclui constatações mais precisas quanto aos mercados examinados, nomeadamente no n.° 15. A Comissão afirma aí que conduziu a sua investigação na suposição de que «o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio [era] um mercado primário relevante distinto» e que, portanto, tinha «examinado o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio como mercado primário, bem como dois mercados de pós‑venda – um de [serviços de] reparação e manutenção dos relógios de luxo ou de prestígio e o outro de peças sobressalentes para os [referidos] relógios». Decorre também da decisão recorrida que a Comissão partiu da hipótese de que os dois mercados de pós‑venda não constituíam mercados relevantes independentes, mas deviam ser considerados conjuntamente com o mercado primário, isto é, o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio.

36      A este respeito, a Comissão afirmou na audiência, em resposta a uma questão do Tribunal Geral, que a sua declaração relativa à dimensão limitada do (segmento de) mercado objecto da denúncia dizia respeito ao mercado dos relógios de luxo ou de prestígio, uma vez que os fabricantes de relógios suíços visados na denúncia produzem apenas esse tipo de relógios.

37      No entanto, antes de mais, deve‑se observar que, no n.° 3 da decisão recorrida, a própria Comissão precisou que, segundo as alegações da recorrente, a sua denúncia dizia respeito a uma restrição da concorrência «no mercado da reparação e manutenção dos relógios».

38      Seguidamente, há que declarar que o segundo período do n.° 8 da decisão recorrida se refere a vários mercados em causa na denúncia, uma vez que a Comissão afirma aí que «foi difícil obter, estatísticas e números precisos relativamente à dimensão dos mercados – primários e secundários – objecto da denúncia». Esta afirmação contrasta com o uso do singular no primeiro período do mesmo número, segundo o qual «a denúncia diz respeito, quando muito, a um (segmento de) mercado de dimensão limitada».

39      Daqui decorre que é impossível para o Tribunal Geral verificar com toda a certeza se a afirmação da Comissão sobre o carácter limitado da dimensão do ou dos mercados relevantes diz respeito ao mercado dos relógios de luxo ou de prestígio, ao dos serviços de reparação e manutenção desses relógios ou aos dois mercados.

40      Em segundo lugar, há que reconhecer que a decisão recorrida não contém dados quantificados ou estimativas quanto à dimensão desses mercados nem, de resto, quanto à dimensão do mercado dos relógios em geral ou das peças sobressalentes. Com efeito, a Comissão baseia a sua conclusão de que o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio e/ou o mercado dos serviços de reparação e manutenção desses relógios têm uma dimensão limitada unicamente no argumento segundo o qual o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio é mais limitado do que o dos relógios em geral e a dimensão do mercado dos serviços pós‑venda desses relógios ainda é mais limitada do que a do mercado dos relógios de luxo ou de prestígio.

41      Ora, na falta de um ponto de referência absoluto, que poderia traduzir‑se, nomeadamente, em dados quantificados ou estimativas relativos à dimensão de pelo menos um desses mercados, as únicas indicações referentes às dimensões relativas desses mercados um em relação ao outro não permitem ao Tribunal Geral verificar a exactidão da afirmação de que a denúncia diz respeito, quando muito, a um mercado de dimensão limitada e, por conseguinte, a sua importância económica é também limitada.

42      Além disso, a Comissão reconheceu na audiência que a referida afirmação não se baseava em números exactos.

43      Assim, a Comissão fundamentou insuficientemente a sua afirmação de que a denúncia diz respeito, quando muito, a um (segmento de) mercado de dimensão limitada e, por conseguinte, a sua importância económica é também limitada.

44      As demais considerações expostas pela Comissão na decisão recorrida e invocadas no Tribunal Geral não põem em causa esta conclusão.

45      Em primeiro lugar, a observação da Comissão, no n.° 8 da decisão recorrida, relativa às dificuldades em obter dados relativos à dimensão dos mercados objecto da denúncia não pode apoiar a sua posição. Com efeito, nenhuma regra de direito obriga a Comissão a pronunciar‑se sobre a dimensão do mercado ou dos mercados objecto da denúncia. Em contrapartida, uma vez que decidiu utilizar a afirmação de que «a denúncia diz[ia] respeito, quando muito, a um [segmento de] mercado de dimensão limitada e, por conseguinte, a sua importância económica [era] também limitada», para justificar a sua posição relativa à inexistência de interesse comunitário suficiente para prosseguir o exame da denúncia, a Comissão tinha o dever de fundamentar suficientemente essa afirmação.

46      Em segundo lugar, o argumento da Comissão de que considerou na decisão recorrida que os mercados de pós‑venda deviam ser analisados conjuntamente com o mercado primário dos relógios de luxo ou de prestígio não é susceptível de influenciar a conclusão do Tribunal Geral, no n.° 43 acima, relativa à insuficiência de fundamentação. Com efeito, a Comissão também não forneceu dados quantitativos ou estimativas quanto à dimensão conjugada de todos esses mercados.

47      Em terceiro lugar, a afirmação da Comissão, na decisão recorrida, de que, no essencial, os mercados de pós‑venda são concorrenciais, pelo facto de o mercado primário o ser, não tem qualquer incidência na fundamentação da sua conclusão relativa à dimensão limitada do (segmento de) mercado objecto da denúncia, dado que a afirmação de que a dimensão do mercado é limitada não se pode inferir do facto de este ser concorrencial.

48      Além disso, embora seja verdade que a Comissão baseou, em larga medida, a sua conclusão relativa à reduzida probabilidade de demonstrar infracções às normas comunitárias da concorrência na sua afirmação relativa à natureza concorrencial do mercado dos relógios de luxo ou de prestígio, não é menos verdade que, como decorre do n.° 8 da decisão recorrida, a afirmação relativa à dimensão limitada do (segmento de) mercado em causa na denúncia constitui um fundamento autónomo em relação a esta conclusão, na economia do raciocínio que faz para demonstrar a falta de interesse comunitário suficiente.

49      Daqui resulta que as alegações da recorrente relativas à dimensão e à importância económica limitadas do (segmento de) mercado objecto da denúncia devem ser acolhidas. Por conseguinte, há que concluir que a Comissão violou a sua obrigação de ter em consideração todos os elementos de direito e de facto pertinentes e de examinar atentamente todos esses elementos levados ao seu conhecimento pela recorrente, bem como o seu dever de fundamentação.

2.     Quanto à definição do mercado relevante

 Argumentos das partes

50      A recorrente sustenta que a Comissão rejeitou erradamente a definição do mercado relevante que ela propôs na sua denúncia e que sempre defendeu ao longo do procedimento administrativo, a saber, a do «mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios que vale a pena reparar».

51      Em primeiro lugar, ao substituir o conceito de «relógios que vale a pena reparar» pelo de «relógios de luxo ou de prestígio», a Comissão alterou artificialmente o âmbito da denúncia, nomeadamente no n.° 12 da decisão recorrida. Tentou, assim, reduzir o mercado examinado a uma pequena parte do mercado em causa, o que facilitou a sua conclusão relativa à dimensão insignificante do mercado ou do segmento de mercado em causa. A definição do mercado como sendo o dos «relógios de luxo ou de prestígio» não foi sustentada por nenhum documento transmitido à Comissão e é uma pura invenção da sua parte.

52      Em segundo lugar, a recorrente chama a atenção para o facto de a Comissão se referir ao mercado dos «produtos» e ao «mercado dos relógios de luxo ou de prestígio», apesar das repetidas indicações da recorrente durante o procedimento administrativo de que esse mercado de produtos não tem qualquer interesse directo para os reparadores de relógios independentes.

53      Seguidamente, a Comissão considerou erradamente nos n.os 17 e 18 da decisão recorrida que o mercado dos serviços de manutenção e reparação não constituía um «mercado distinto relevante», mas que, pelo contrário, devia ser «examinado conjuntamente com o mercado primário». Ao confundir esses mercados e ao afirmar que o mercado dos produtos era concorrencial, a Comissão concluiu erradamente que a concorrência operava também no mercado dos serviços.

54      A recorrente contesta também a afirmação da Comissão de que «o mercado das peças sobressalentes» para os relógios de luxo ou de prestígio não constitui um mercado relevante separado. No que se refere aos n.os 24 e 25 da decisão recorrida, afirma que a Comissão baseou as suas declarações de que «o mercado das peças sobressalentes» não é o mercado relevante, antes de mais, no facto de os consumidores poderem recorrer a produtos secundários de outro fabricante. Ora, a substituibilidade só existe no caso de as peças sobressalentes para os mecanismos fabricados pela sociedade ETA, existentes na maioria dos relógios suíços, precisamente porque esses mecanismos e as peças sobressalentes compatíveis são fabricados por uma empresa diferente dos fabricantes de relógios suíços contra os quais foi dirigida a denúncia. Em contrapartida, as outras peças sobressalentes são específicas de qualquer fabricante de relógios suíços e não existe nenhuma substituibilidade entre as peças concebidas para os relógios de um fabricante e as peças concebidas para os relógios de outro. Assim, a prestação de serviços de manutenção e reparação depende integralmente do fornecimento de peças sobressalentes do fabricante em causa, que detém, assim, uma posição monopolista.

55      Por último, contesta a afirmação da Comissão constante do n.° 26 da decisão recorrida de que «o mercado das peças sobressalentes» não é um mercado relevante se o consumidor puder recorrer a outro produto primário. Na opinião da recorrente, mesmo que o consumidor possa recorrer a outra marca no mercado dos relógios, a Comissão não demonstrou que o proprietário de um relógio suíço recorre efectivamente a outra marca, de forma que a invocação deste elemento pela Comissão é destituída de pertinência.

56      Em primeiro lugar, a Comissão alega que a sua investigação demonstrou que os serviços de manutenção e reparação e de fornecimento de peças sobressalentes constituem um mercado de pós‑venda distinto do mercado primário do fabrico de relógios.

57      Seguidamente, a Comissão afirma que referiu no n.° 14 da decisão recorrida que com base nas informações que detinha não lhe era possível definir com precisão o mercado. Presumiu, assim (decisão recorrida, n.° 15), embora tivesse dúvidas a esse respeito (decisão recorrida, n.° 14), que o mercado primário dos relógios de luxo ou de prestígio constituía, com os mercados de pós‑venda conexos com a reparação e manutenção, por um lado, e das peças sobressalentes, por outro, o mercado relevante.

58      Apesar das dificuldades na definição do mercado, a Comissão não encontrou qualquer prova da existência de um acordo ou de uma prática concertada entre as empresas visadas na denúncia. Verificou, também, que as empresas contra as quais a denúncia foi dirigida não detinham, colectivamente, uma posição dominante, devido à forte concorrência existente entre elas (decisão recorrida n.° 40). Consequentemente, pôde legitimamente concluir que não tinha encontrado qualquer elemento comprovativo da existência de uma infracção às regras da concorrência em nenhum dos mercados, qualquer que seja a sua definição.

59      Em segundo lugar, a Comissão contesta o argumento da recorrente de que concluiu erradamente na decisão recorrida que o mercado dos «serviços de reparação e manutenção de relógios» não constitui um mercado distinto, mas que deve ser examinado conjuntamente com o mercado primário.

60      A Comissão considera que pôde legitimamente estabelecer um nexo entre o mercado primário do fabrico e da venda de relógios de luxo e os dois mercados de pós‑venda (v., nomeadamente, decisão recorrida, n.° 18). A recorrente limitou‑se a manifestar o seu desacordo com a apreciação da Comissão sem apresentar qualquer elemento probatório ou argumento que demonstrasse que essa apreciação está errada.

61      Na opinião da Comissão, a sua conclusão na decisão recorrida relativa ao mercado relevante baseia‑se simultaneamente nas informações fornecidas pela recorrente na sua denúncia e nos resultados da sua própria investigação. Além disso, a Comissão mencionou na decisão recorrida dados específicos relativos ao mercado de produtos relevante, em especial, relativamente aos mercados de pós‑venda da manutenção e reparação, por um lado, e dos componentes e das peças sobressalentes, por outro (decisão recorrida n.os 19 a 26 e notas n.os 15 e 18 a 20).

62      A interveniente alega que a Comissão concluiu correctamente no n.° 22 da decisão recorrida que o custo para os clientes dos serviços pós‑venda no tempo de vida útil dos relógios era um custo menor, comparado com o custo inicial do próprio relógio, e que o consumidor o considerava um elemento relativamente insignificante do preço total. A experiência da interveniente revela que os custos dos serviços e de reparação não são uma preocupação imediata e primordial para o comprador de um relógio. Do mesmo modo, os serviços pós‑venda dos relógios de marca de alta qualidade, muito técnicos, têm características específicas que devem ser tidas em consideração. Cada relógio é composto por um número muito elevado de componentes e esses componentes são diferentes para cada modelo de relógios. A competência, a perícia e os instrumentos exigidos para a reparação desse tipo de relógios são, assim, muito importantes.

63      Além disso, a interveniente sustenta que, para todas as marcas, é da maior importância que a qualidade do serviço pós‑venda e dos trabalhos de reparação seja elevada, porque os consumidores encaram esses serviços como fazendo parte integrante da qualidade do próprio relógio. Segundo a sua experiência, isso só pode ser assegurado através de uma ampla formação, de equipamento, de instruções e de um controlo que exigem um investimento significativo da sua parte.

64      Consequentemente, a interveniente adere à tese da Comissão segundo a qual os mercados de pós‑venda da reparação e das peças sobressalentes não são mercados a jusante distintos. Pelo contrário, trata‑se de partes acessórias do mercado primário, sujeitas a uma grande concorrência, da qual são totalmente dependentes.

 Apreciação do Tribunal Geral

65      Segundo jurisprudência assente, a fiscalização do órgão jurisdicional da União sobre o exercício do poder discricionário da Comissão que lhe é reconhecido no processamento das denúncias não deve levá‑lo a substituir a apreciação do interesse comunitário da Comissão pela sua própria apreciação, antes se destinando a verificar se a decisão em litígio não se baseia em factos materialmente inexactos e não está ferida de qualquer erro de direito nem de qualquer erro manifesto de apreciação ou de desvio de poder (acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 14 de Fevereiro de 2001, SEP/Comissão, T‑115/99, Colect., p. II‑691, n.° 34, e Piau/Comissão, n.° 26 supra, n.° 81).

66      Do mesmo modo, a definição do mercado em causa, mercado afectado ou do mercado relevante, na medida em que envolve apreciações económicas complexas por parte da Comissão, só pode ser objecto de uma fiscalização limitada por parte do juiz da União (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 17 de Setembro de 2007, Microsoft/Comissão, T‑201/04, Colect., p. II‑3601, n.° 482, e de 7 de Maio de 2009, NVV e o./Comissão, T‑151/05, Colect., p. II‑1219, n.° 53).

67      O conceito de mercado relevante implica, com efeito, que possa haver uma concorrência efectiva entre os produtos que dele fazem parte, o que pressupõe um grau suficiente de permutabilidade para efeitos da mesma utilização entre todos os produtos que façam parte de um mesmo mercado (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 1979, Hoffmann‑La Roche/Comissão, 85/76, Colect., p. 217, n.° 28, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 30 de Janeiro de 2007, France Télécom/Comissão, T‑340/03, Colect., p. II‑107, n.° 80). A permutabilidade ou substituibilidade não se aprecia apenas tendo em vista as características objectivas dos serviços em questão, devendo as condições da concorrência e a estrutura da procura e da oferta no mercado ser igualmente tomadas em consideração (acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 1983, Michelin/Comissão, 322/81, Recueil, p. 3461, n.° 37, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 17 de Dezembro de 2003, British Airways/Comissão, T‑219/99, Colect., p. II‑5917, n.° 91).

68      Decorre também da Comunicação da Comissão relativa à definição de mercado relevante para efeitos do direito comunitário da concorrência (JO 1997 C 372, p. 5, n.° 7) que «[u]m mercado de produto relevante compreende todos os produtos e/ou serviços considerados permutáveis ou substituíveis pelo consumidor devido às suas características, preços e utilização pretendida».

69      Nos termos da referida comunicação, a apreciação da substituibilidade da procura implica a determinação da gama de produtos considerados substituíveis pelo consumidor. Esta determinação pode ser feita, nomeadamente, através de um exercício mental em que se formula uma hipótese de uma pequena variação duradoura dos preços relativos e em que se avaliam as reacções prováveis dos clientes a esse aumento. No n.° 17 desta comunicação, a Comissão precisa:

«[A] questão que se coloca é a de saber se os clientes das partes transfeririam rapidamente a sua procura para os produtos de substituição disponíveis […] em resposta a um pequeno aumento hipotético (em torno dos 5 a 10%) dos preços relativos, dos produtos e áreas em análise. Se o fenómeno da substituição for suficiente para tornar o aumento de preços não lucrativo devido à perda de vendas daí resultante, os produtos de substituição […] serão incluídos no mercado relevante.»

70      Além disso, nos termos do n.° 56 da referida comunicação:

«Existem algumas áreas em que a aplicação dos princípios acima delineados deve ser feita com prudência. Tal é frequentemente o caso na análise dos mercados primários e secundários, nomeadamente, quando se impõe, a dada altura, a análise do comportamento das empresas ao abrigo do artigo [82.° CE]. O método utilizado para definir os mercados nestes casos é basicamente o mesmo, ou seja, avaliar as respostas dos clientes (com base nas decisões tomadas em matéria de compras) a variações relativas dos preços, tomando igualmente em consideração os condicionalismos em matéria de substituição impostos pelas condições nos mercados conexos. Quando a compatibilidade com o produto primário for importante, tal pode resultar numa definição restrita do mercado de produtos secundários, por exemplo, de peças sobressalentes. Os problemas associados à obtenção de produtos secundários compatíveis, juntamente com a existência de preços elevados e um longo ciclo de vida dos produtos primários, pode contribuir para tornar rentável os aumentos de preços relativos de produtos secundários. Pode ser obtida uma definição de mercado diferente se for possível uma substituição considerável entre os produtos secundários ou se as características dos produtos primários permitirem uma resposta rápida e directa por parte do consumidor aos aumentos dos preços relativos dos produtos secundários.»

71      No caso em apreço, a Comissão indicou, antes de fazer o seu exame prima facie da existência das práticas anticoncorrenciais objecto da denúncia (decisão recorrida, n.os 27 a 42), que supunha que existia um mercado primário de produtos, o dos relógios de luxo ou de prestígio, e dois mercados de pós‑venda, o dos serviços de reparação e manutenção dos relógios de luxo ou de prestígio e o das peças sobressalentes para os referidos relógios (decisão recorrida, n.° 15). Com base no seu exame prima facie, considerou que os dois mercados de pós‑venda não constituíam mercados relevantes separados, mas deviam ser considerados conjuntamente com o mercado primário (decisão recorrida, n.° 17).

72      No essencial, a recorrente suscita, a este respeito, duas acusações. Por um lado, considera que a Comissão substituiu erradamente o conceito de «relógios que vale a pena reparar» que a recorrente utilizou no procedimento administrativo, pelo de «relógios de luxo ou de prestígio». Por outro lado, alega que a Comissão considerou erradamente que o mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios e «o mercado das peças sobressalentes» não constituíam mercados separados, mas deviam ser examinados conjuntamente com o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio. Afirma também que as peças sobressalentes específicas das marcas não são substituíveis, de forma que cada fabricante detém uma posição monopolista sobre as peças sobressalentes específicas que produz.

 Quanto à primeira acusação relativa à substituição errada do conceito de «relógios que vale a pena reparar» pelo de «relógios de luxo ou de prestígio»

73      Relativamente à primeira acusação da recorrente, deve‑se, em primeiro lugar, observar que a própria recorrente afirmou na página 5 da sua denúncia que a procura de peças sobressalentes só existe «para os relógios caros», uma vez que, em caso de avaria, os relógios mais baratos são simplesmente substituídos por outro. Em segundo lugar, na sua carta de 30 de Janeiro de 2008, a recorrente afirma que os relógios em causa na sua denúncia têm um «preço de novo» indo dos 1 500 aos 4 000 euros, ao passo que, na opinião de um perito citado pela Comissão na posição provisória, a função essencial de um relógio, isto é, a contagem do tempo, é preenchida plenamente e com precisão por aparelhos cujo preço ronda os 25 euros.

74      Ora, sendo os preços dos relógios da gama indicada pela recorrente 60 a 160 vezes superiores ao preço dos relógios mais baratos que, no entanto, cumprem a sua função principal de forma fiável, o Tribunal Geral entende que a Comissão não cometeu um erro ao considerar que os relógios em causa na denúncia são «relógios de luxo ou de prestígio».

75       Consequentemente, há que julgar improcedente a primeira acusação da recorrente.

 Quanto à segunda acusação, relativa à falta de um exame separado do mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios e do mercado das peças sobressalentes

76      Com a sua segunda acusação, a recorrente critica o facto de a Comissão não ter tratado o mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios e o ou os das peças sobressalentes como mercados relevantes separados, tendo‑os examinado conjuntamente com o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio como um todo. Além disso, a recorrente critica a Comissão por não ter tido em consideração na decisão recorrida o facto de as peças sobressalentes específicas das marcas não serem substituíveis.

77      Relativamente aos mercados de pós‑venda, a Comissão expôs na decisão recorrida as seguintes constatações gerais:

«d)      Mercados de pós‑venda

(17)      Como explicado no n.° 15 acima, Comissão examinou dois mercados de pós‑venda: o dos serviços pós‑venda (reparação e manutenção) e o das peças sobressalentes, na medida em que estes dois mercados são considerados exemplos tipo de mercados de pós‑venda. A apreciação prima facie da situação no mercado primário da produção e das vendas de relógios de luxo ou de prestígio e nos mercados de pós‑venda permite concluir que os mercados de pós‑venda não devem ser considerados mercados de produtos pertinentes distintos, mas que devem ser examinados conjuntamente com o mercado primário […]

(18)      Por outro lado, mesmo admitindo que esses mercados devam ser considerados mercados relevantes distintos, o facto de o mercado primário se afigurar concorrencial torna muito improvável a existência de eventuais efeitos anticoncorrenciais. Em especial, os aumentos de preço nos mercados de pós‑venda têm tendência para não serem rentáveis, devido ao seu impacto nas vendas no mercado primário, a menos que se verifique uma diminuição dos preços no mercado primário para compensar os preços mais elevados nos mercados de pós‑venda. Existem, assim, fortes probabilidades de a concorrência no mercado primário garantir um preço global competitivo para o conjunto dos produtos e de serviços tanto no mercado primário como no de pós‑venda (mesmo que os clientes não tenham baseado a sua escolha em cálculos precisos do seu tempo de vida útil).»

–       Quanto ao exame do mercado das peças sobressalentes

78      Deve‑se, antes de mais, examinar a declaração da Comissão de que o mercado das peças sobressalentes para relógios de luxo ou de prestígio não constitui um mercado relevante separado. A este respeito, a Comissão considerou o seguinte:

«(ii)  Componentes e peças sobressalentes para relógios de luxo ou de prestígio

(23)      Como referido anteriormente, o mercado de pós‑venda dos componentes dos relógios de luxo ou de prestígio parece depender do mercado primário desses relógios e estar intimamente relacionado com o mesmo. Esta constatação contraria as conclusões da [recorrente] que considera que o mercado das peças sobressalentes, no caso em apreço, é um mercado distinto […]

(24)      Além disso, a Comissão, teve em conta o facto de que é possível que um mercado de pós‑venda que consiste em produtos secundários (peças sobressalentes) de uma marca de produtos primários não seja um mercado relevante em duas situações: em primeiro lugar, quando um consumidor tem a possibilidade de recorrer a produtos secundários de outro fabricante e, em segundo lugar, quando tem a possibilidade de trocar de produto primário e, assim, evitar preços mais elevados no mercado de pós‑venda. No caso em apreço, é evidente que os consumidores não estão bloqueados sem terem a possibilidade de recorrer a outro produto primário ou secundário.

(25)      Relativamente à possibilidade de recorrer a produtos secundários de outro fabricante, há que concluir que a [recorrente] não deu uma explicação completa, precisa e coerente quanto ao âmbito e aos limites da substituibilidade das peças sobressalentes para relógios de luxo ou de prestígio.

(26)      Contudo, no que se refere à possibilidade de recorrer a outro produto primário, os potenciais compradores de relógios de luxo ou de prestígio são completamente livres de escolher entre as numerosas marcas existentes de relógios de luxo ou de prestígio concorrentes. Quanto aos clientes que já possuem esses relógios, podem, em princípio, trocar de produto primário, principalmente devido ao facto de muitos relógios de luxo ou de prestígio poderem ter valores residuais elevados em numerosos mercados de usados e de os custos ligados à troca não implicarem nenhum investimento, como formação, modificação de hábitos, instalações, software, etc., o que torna a troca muito mais fácil. Tendo em conta o que precede, afigura‑se que os consumidores têm à sua disposição uma vasta gama de possibilidades de passar, sem incorrer em custos excepcionais, de um produto primário para outro.»

79      Assim, nos termos da constatação geral que figura no n.° 24 da decisão recorrida, é possível que o mercado das peças sobressalentes para os produtos primários de uma determinada marca não constituía um mercado relevante separado em duas situações: em primeiro lugar, no caso de o consumidor poder recorrer a outras peças sobressalentes produzidas por outro fabricante; em segundo lugar, no caso de o consumidor poder recorrer a outro produto primário para evitar um aumento de preço no mercado das peças sobressalentes.

80      Deve‑se observar que a recorrente não contesta propriamente esta constatação geral. Por outro lado, o Tribunal Geral considera que a mesma é compatível com a jurisprudência referida no n.° 67 acima e com a comunicação relativa à definição do mercado relevante, desde que seja demonstrado que, no caso de um aumento moderado e permanente do preço dos produtos secundários, um número suficiente de consumidores recorreria a outros produtos primários ou secundários, tornando esse aumento não rentável.

81      Consequentemente há que examinar as considerações enunciadas pela Comissão na decisão recorrida relativas à aplicação da avaliação que pretendeu estabelecer no n.° 24 da referida decisão.

82      A título liminar, deve‑se observar que, embora no resto da decisão recorrida, a Comissão tenha considerado o «mercado das peças sobressalentes» como um único mercado de pós‑venda (v., em especial, decisão recorrida, n.os 17 e 23), no n.° 24 da decisão recorrida examinou as situações em que era possível que um «mercado de [peças sobressalentes] de uma marca de produtos primários» não constituísse um mercado relevante separado.

83      Há assim que concluir que os n.os 24 a 26 da decisão recorrida se referem a duas vertentes parcialmente diferentes da definição do mercado relevante. Em primeiro lugar, trata‑se de saber se todas as peças sobressalentes para relógios de luxo ou de prestígio constituem um único mercado, ou se constituem uma pluralidade de mercados, constituindo as peças sobressalentes específicas das marcas mercados separados. Os elementos relativos a esta questão – a possibilidade de o consumidor recorrer a peças sobressalentes produzidas por outros fabricantes para evitar um aumento do preço praticado por um determinado fabricante – são tratados pela Comissão no n.° 25 da decisão recorrida. Em segundo lugar, trata‑se de saber se o mercado das peças sobressalentes ou a pluralidade de mercados dessas peças devem ser tratados como mercados relevantes separados ou se devem ser examinados conjuntamente com o mercado primário dos relógios de luxo ou de prestígio como um único mercado relevante unificado. Os elementos relativos a esta questão – referentes à possibilidade de o consumidor recorrer a outro produto primário para evitar um aumento do preço das peças sobressalentes de um determinado fabricante – são examinados pela Comissão no n.° 26 da decisão recorrida.

84      Em primeiro lugar, relativamente à possibilidade de o consumidor recorrer a peças sobressalentes produzidas por outros fabricantes, deve‑se, desde já, declarar que, na acepção da jurisprudência e da comunicação sobre a definição do mercado relevante, citadas nos n.os 67 a 70 acima, a questão da existência dessa possibilidade e, consequentemente a de saber se se trata de um único mercado de peças sobressalentes ou de uma pluralidade de mercados de peças sobressalentes específicas das marcas, depende principalmente da existência de um grau suficiente de substituibilidade das peças sobressalentes produzidas pelos diferentes fabricantes.

85      A este respeito, decorre da redacção da decisão recorrida que a Comissão optou por não tomar posição expressa sobre a substituibilidade das peças sobressalentes produzidas pelos diferentes fabricantes, tendo‑se limitado a constatar no n.° 25 da referida decisão que «a [recorrente] não deu uma explicação completa, precisa e coerente quanto ao âmbito e aos limites da substituibilidade das peças sobressalentes para os relógios de luxo ou de prestígio».

86      Esta abordagem contrasta com a posição provisória em que a Comissão afirmou explicitamente que, em geral, não existe substituibilidade entre as peças sobressalentes pertencentes às diferentes marcas, devido a diferenças quanto à dimensão, ao design e a outros factores. Assim, nos termos da posição provisória, os fabricantes de relógios de luxo ou de prestígio são os únicos fornecedores de gamas específicas de peças sobressalentes para as suas próprias marcas.

87      Do mesmo modo, a interveniente declarou que os componentes de cada relógio eram diferentes e uma grande parte das peças sobressalentes para esses relógios não eram permutáveis com as peças produzidas por outros fabricantes devido à incompatibilidade com os produtos primários.

88      Além disso, decorre dos autos que a recorrente apresentou durante o procedimento administrativo cópias da decisão das autoridades suíças da concorrência no processo ETA SA Manufacture horlogère suisse (Colectânea das decisões e comunicações das autoridades suíças da concorrência, 2005/1, p. 128) e de uma posição provisória, datada de 12 de Julho de 2002, da autoridade neerlandesa da concorrência relativa a uma denúncia semelhante à que foi apresentada à Comissão. A autoridade neerlandesa da concorrência considerou que «as peças sobressalentes dos relógios em causa [estavam] ligadas à marca e não [eram] substituíveis», de forma que existia uma pluralidade de mercados, a saber, um mercado para as peças sobressalentes específicas de cada uma das marcas. As autoridades suíças da concorrência consideraram que os componentes dos relógios compatíveis com um determinado tipo de relógios não podiam ser substituídos pelos componentes compatíveis com outros tipos, de forma que os componentes e as peças sobressalentes produzidos pela ETA pertenciam a uma pluralidade de mercados relevantes.

89      Independentemente de saber se esses elementos deviam ser tidos em consideração pela Comissão na decisão recorrida, ou se são susceptíveis de infirmar a apreciação da Comissão, deve‑se observar que a possibilidade de o consumidor recorrer a peças sobressalentes produzidas por outro fabricante para evitar o aumento do preço das peças sobressalentes não foi de forma alguma demonstrada na decisão recorrida. Consequentemente, a Comissão não se podia basear nessa hipótese no âmbito da definição do mercado relevante no caso vertente.

90      Além disso, não se pode excluir que se a Comissão tivesse decidido tomar posição quanto à substituibilidade das peças sobressalentes, teria chegado à conclusão, nomeadamente com base na sua apreciação na posição provisória e nos elementos factuais que a decisão das autoridades suíças da concorrência e a posição provisória da autoridade neerlandesa da concorrência continham que, geralmente, não existe substituibilidade entre as peças sobressalentes das diferentes marcas, de forma que não pode existir uma concorrência efectiva entre as referidas peças, pelo menos no que se refere às peças específicas das marcas.

91      Em segundo lugar, deve‑se examinar a afirmação da Comissão de que os consumidores podem evitar o aumento do preço das peças sobressalentes recorrendo a outro produto primário.

92      Em primeiro lugar, nos termos da decisão recorrida, esta possibilidade existe mesmo quando o consumidor já possui um relógio de luxo ou de prestígio, na medida em que esse relógio pode ter um elevado valor residual no mercado dos usados. Além disso, esta possibilidade é facilitada pelo facto de não implicar, nomeadamente, nenhuma formação, nenhuma alteração dos hábitos, nenhuma instalação e nenhum software.

93      Antes de mais, deve‑se observar que, devido à complexidade da reparação e manutenção dos relógios, a procura de peças sobressalentes, em princípio, não provém dos utilizadores dos relógios, mas dos especialistas que prestam esses serviços. Assim, do ponto de vista do consumidor, um aumento do preço das peças sobressalentes é normalmente integrado no preço destes serviços.

94      Seguidamente, importa assinalar que, no âmbito da sua análise que conduziu à sua conclusão relativa à possibilidade de o consumidor recorrer a outro produto primário, a Comissão não tem de forma alguma em conta a sua afirmação no n.° 22 da decisão recorrida de que o custo dos serviços pós‑venda no tempo de vida útil dos relógios é um custo menor, comparado com o custo inicial do próprio relógio de luxo ou de prestígio, e de que o consumidor o considera um elemento relativamente insignificante do preço total.

95      A este respeito, decorre dos documentos apresentados a pedido do Tribunal Geral e das declarações da interveniente que o custo total dos serviços de reparação e manutenção desses relógios, num período de dez anos, fica, para a maior parte dos modelos, abaixo de 5% do preço de compra do relógio novo. Além disso, importa salientar que o preço das peças sobressalentes está normalmente integrado nesse custo, de forma que representa uma percentagem ainda mais reduzida do preço de compra do relógio novo. Assim, afigura‑se que um aumento moderado do preço das peças sobressalentes representa um montante irrisório em relação ao preço de um relógio de luxo ou de prestígio novo.

96      Ora, este elemento, por si só, é susceptível de comprometer a validade da declaração da Comissão relativa à possibilidade de o consumidor recorrer a outro produto primário. Com efeito, a Comissão não demonstra que o consumidor pode razoavelmente tomar a decisão de recorrer a outro produto primário com o objectivo de evitar um aumento do preço dos serviços de reparação e manutenção resultante de um aumento moderado do preço das peças sobressalentes, dado que a compra de outro produto primário implica um custo substancialmente superior.

97      A indicação, pela Comissão, da existência de um mercado de usados para os relógios não sana esta omissão na sua apreciação. Limita‑se a indicar no n.° 26 da decisão recorrida que «em princípio, é possível recorrer a outro produto primário, principalmente devido ao facto de muitos relógios de luxo ou de prestígio poderem ter valores residuais elevados em numerosos mercados de usados».

98      A este respeito, a Comissão não afirma que todos, ou mesmo a maioria, dos relógios de luxo ou de prestígio têm um valor residual elevado no mercado de usados. Assim, decorre da decisão recorrida que a venda de um relógio de luxo ou de prestígio a um preço razoável no mercado de usados é apenas uma eventualidade. Acresce que a Comissão nunca examinou a questão de saber se, mesmo no caso de uma venda no mercado de usados, a diferença entre o preço recebido e o pago por outro relógio – e, portanto, a perda sofrida pelo consumidor resultante da troca de relógio – ainda é inferior ao montante que poderia ser poupado, ao evitar, deste modo, um aumento moderado do preço das peças sobressalentes de uma determinada marca.

99      Importa acrescentar que, para vender um relógio no mercado de usados, é, em princípio, necessário garantir que ele está em bom estado. Assim, em princípio, o consumidor deve reparar o relógio antes de o vender, de contrário é o comprador que deve assumir o custo dessa reparação, o que se repercute, de qualquer forma, no preço de venda recebido pelo consumidor. Consequentemente, a tese da Comissão de que o consumidor pode evitar um aumento do preço das peças sobressalentes ao vender o seu relógio no mercado de usados e ao comprar outro relógio não é plausível porque o eventual aumento do preço das peças sobressalentes deve ser, em qualquer caso, assumido pelo consumidor.

100    Por último, a Comissão considera, no n.° 26 da decisão recorrida, que os custos de uma troca por outro produto primário não implicam nenhum investimento como a formação, a alteração de hábitos, instalações ou software, o que torna essa troca ainda mais fácil.

101    A este respeito, deve‑se observar que a Comissão optou por encarar o mercado das peças sobressalentes do ponto de vista do consumidor final (o utilizador do relógio). Ora, a utilização desse bem de consumo não implica normalmente nenhum investimento em formação, alteração de hábitos, instalações ou software. Assim, a Comissão não pode validamente considerar que a falta de necessidade desses investimentos facilita a troca por outro produto primário.

102    Face ao exposto, há que concluir que a Comissão não demonstrou no n.° 26 da decisão recorrida que os consumidores que já possuem relógios de luxo ou de prestígio podem razoavelmente recorrer a outro produto primário para evitar um aumento do preço das peças sobressalentes. Os elementos apresentados pela Comissão apenas revelam uma possibilidade puramente teórica de recorrer a outro produto primário, o que não é suficiente como prova para efeitos da definição do mercado relevante. Com efeito, esta definição assenta no conceito da existência de uma concorrência efectiva, o que pressupõe que um número suficiente de consumidores recorreria realmente a outro produto primário, no caso de um aumento moderado do preço das peças sobressalentes para tornar esse aumento não rentável (v. n.os 67, 69 e 70, acima).

103    Em segundo lugar, há que examinar a incidência da afirmação constante do n.° 26 e da nota n.° 27 da decisão recorrida de que os potenciais compradores de relógios de luxo ou de prestígio podem escolher livremente entre as numerosas marcas existentes de relógios de luxo ou de prestígio concorrentes. A este respeito, a Comissão afirmou na audiência que os elementos apresentados na decisão recorrida relativamente aos consumidores que já possuem os relógios não constituíam o fundamento principal da sua conclusão relativa à definição do mercado relevante. Alega que a razão pela qual se deve apreciar conjuntamente o mercado primário e os mercados de pós‑venda como um único mercado unificado («mercado de sistema») é que o aumento dos preços nos mercados de pós‑venda leva ao desvio da procura para os produtos de outros fabricantes no mercado primário, o que torna esse aumento não rentável.

104    Importa observar que este entendimento é compatível com a jurisprudência, uma vez que, no âmbito da definição do mercado relevante, não importa apenas examinar as características objectivas dos produtos e serviços em causa, devendo as condições da concorrência e a estrutura da procura e da oferta no mercado ser igualmente tomadas em consideração (v. n.° 67, acima).

105    Contudo, decorre da jurisprudência citada no n.° 67, acima, e da Comunicação relativa à definição de mercado relevante que, para que o mercado primário e os mercados de pós‑venda possam ser examinados conjuntamente, eventualmente como um único mercado unificado ou «mercado de sistema», tem que se demonstrar, na hipótese suscitada pela Comissão (v. n.° 103, acima), que um número suficiente de consumidores recorre a outros produtos primários no caso de um aumento moderado dos preços dos produtos ou serviços abrangidos pelos mercados de pós‑venda para tornar esse aumento não rentável (v., também, neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 12 de Dezembro de 1991, Hilti/Comissão, T‑30/89, Colect., p. II‑1439, n.° 75). Noutros termos, contrariamente ao que a Comissão sugere no n.° 26 e na nota n.° 27 da decisão recorrida, a mera possibilidade de o consumidor escolher entre as numerosas marcas existentes do produto primário não é suficiente para tratar o mercado primário e os mercados de pós‑venda como um único mercado, se não se demonstrar que essa escolha é feita, nomeadamente em função das condições de concorrência no mercado secundário.

106    Ora, no caso em apreço, a Comissão não demonstrou, na decisão recorrida, que os aumentos de preços de um fabricante em particular nos mercados de pós‑venda teriam alguma incidência no volume das suas vendas no mercado primário. Pelo contrário, salientou repetidamente que o custo dos serviços de manutenção e reparação (no qual se inclui o preço das peças sobressalentes) é menor e insignificante comparado ao preço inicial do próprio relógio de luxo ou de prestígio (v. n.° 94, acima). Nos termos da afirmação da Comissão constante da nota n.° 27 da decisão recorrida, este custo continua a ser menor em comparação com o preço inicial mesmo que seja tido em conta todo o tempo de vida útil do produto, de forma que é pouco provável que os potenciais compradores calculem esse custo para todo esse tempo. Na mesma nota, a Comissão concluiu que «o consumidor não considera o custo dos serviços pós‑venda um critério quando escolhe um relógio».

107    Consequentemente, decorre do que precede que a Comissão não demonstrou que os consumidores que já possuem relógios de luxo ou de prestígio podem razoavelmente recorrer a outro produto primário para evitar um aumento do preço das peças sobressalentes, nem que, em geral, o preço das peças sobressalentes influencia a concorrência entre o produtos primários. Por conseguinte, não demonstrou que um aumento moderado do preço das peças sobressalentes de um determinado fabricante provocaria um desvio da procura para os relógios dos outros fabricantes, tornando esse aumento não rentável. Cometeu, assim, um erro manifesto de apreciação ao examinar esses mercados conjuntamente, como fazendo parte de um único mercado.

108    Esta conclusão é corroborada pelo facto de, como decorre da decisão das autoridades suíças da concorrência no processo ETA SA Manufacture horlogère suisse, a ETA ser o maior fabricante de componentes e de peças sobressalentes de relógios suíços – incluindo de luxo ou de prestígio. Todavia, esta sociedade não fabrica relógios na sua totalidade. Ora, segundo a jurisprudência, se determinados operadores económicos são especializados e só são activos no mercado de pós‑venda de um mercado primário, isto constitui, por si só, um indício sério da existência de um mercado específico (v., neste sentido e por analogia, acórdão Hilti/Comissão, n.° 105, supra, n.° 67).

109    Consequentemente, há que considerar que não se pode excluir que, na ausência desse erro, e no caso de a Comissão ter tido em conta a sua afirmação constante da posição provisória relativa à ausência geral de substituibilidade das peças sobressalentes pertencentes às diferentes marcas e os elementos apresentados a este respeito pela recorrente (v. n.os 86, 88 e 89, acima), tivesse concluído pela existência de mercados relevantes separados constituídos pelas peças sobressalentes específicas das marcas, em função da sua substituibilidade.

–       Quanto ao exame relativo ao mercado dos serviços de reparação e manutenção

110    Relativamente ao mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios, importa examinar se a conclusão da Comissão, no n.° 17 da decisão recorrida, de que o referido mercado não deve ser tratado como um mercado relevante separado é justificada pelas considerações constantes dos n.os 19 a 22 dessa decisão.

111    Nestes últimos números, a Comissão afirmou o seguinte:

«(i)      Manutenção e reparação pós‑venda

(19)      Afigura‑se que a evolução natural do mercado caracterizado pelo ressurgimento da procura de mecanismos mecânicos complexos no sector dos relógios de luxo ou de prestígio levou uma maioria de grupos fabricantes desses relógios a alterar a sua política e a só autorizar a manutenção e a reparação desses relógios no seio do seu sistema de distribuição selectiva. Nestes últimos 20 anos, os fabricantes de relógios de luxo ou de prestígio adoptaram esta estratégia específica para o fornecimento desses serviços pós‑venda, uns após os outros, e em função da prioridade atribuída por cada fabricante individual ao segmento dos produtos de luxo.

(20)      A Comissão salienta que os fabricantes de relógios consideram a manutenção e a reparação pós‑venda como um serviço acessório à distribuição dos relógios, o que é demonstrado, nomeadamente pelo montante dos rendimentos dos fabricantes de relógios no referido mercado. Esse montante não é importante e representa, em média, uma parte menor dos rendimentos totais obtidos. Além disso, os fabricantes de relógios de luxo ou de prestígio encaram o estabelecimento de uma rede de serviços pós‑venda de alta qualidade homogénea e uniforme como um elemento essencial guiado pela procura da clientela e como um componente fundamental que faz parte integrante da sua estratégia de concorrência no mercado primário. Na opinião dos fabricantes, o produto primário perderia o seu valor junto dos clientes se a sua imagem estivesse associada a qualquer outra coisa que não a uma manutenção pós‑venda de ponta, própria da marca, efectuada quer pelos próprios fabricantes dos relógios quer em centros de serviços autorizados.

(21)      Relativamente aos reparadores de relógios independentes, afigura‑se que nem sempre estão em condições de satisfazer os critérios de selecção em matéria de qualidade imposta pelos fabricantes de relógios às suas oficinas de reparação autorizadas [...] Além disso, na opinião de determinados fabricantes de relógios, até 30% das reparações efectuadas nos seus centros de serviços pós‑venda são motivadas por danos ocasionados por reparações inadequadas e defeituosas efectuadas por reparadores de relógios que não têm o conhecimento e as competências adequados.

(22)      Importa também salientar que outra característica do produto em causa consiste no facto de o custo para o cliente dos serviços pós‑venda durante todo o tempo de vida útil de um relógio de luxo ou de prestígio ser mínimo em relação ao preço inicial do próprio relógio, e que o cliente o considera, assim, um elemento relativamente menor do preço do ‘pacote’ global.»

112    Em primeiro lugar, deve recordar‑se que (v. n.° 108, acima), embora determinados operadores económicos sejam especializados e apenas estejam activos no mercado ligado ao mercado primário ou no mercado de pós‑venda, isto constitui, por si só, um indício sério da existência de um mercado específico.

113    Ora, a recorrente alegou, durante o procedimento administrativo, que o facto de os reparadores de relógios independentes, que constituem uma profissão, não estarem activos no mercado dos relógios, mas apenas no mercado dos serviços de reparação e manutenção de relógios é, só por si, um indício da existência de um mercado separado dos referidos serviços. A Comissão não teve em consideração este indício sério apresentado pela recorrente.

114    Em segundo lugar, deve‑se observar que, ainda que as circunstâncias do caso em apreço sejam muito específicas, devido ao facto de se tratar, por um lado, de um mercado de produtos e, por outro, de um mercado de serviços pós‑venda, a Comissão não podia deixar de ter em conta a jurisprudência relativa à definição do mercado relevante quando decidiu considerar o mercado de pós‑venda conjuntamente com o mercado primário e, eventualmente, como um único mercado relevante.

115    Ora, com excepção da afirmação de que o custo dos serviços pós‑venda é mínimo comparado com o custo inicial de um relógio de luxo ou de prestígio, nenhuma das considerações produzidas pela Comissão nos n.os 19 a 22 da decisão recorrida é relativa aos elementos mencionados pela jurisprudência referida no n.° 67, acima, nem, além disso, aos que constam da Comunicação relativa à definição de mercado relevante (v. n.os 68 a 70, acima).

116    Por outro lado, há que observar que a Comissão não efectuou a análise que considerou a mais pertinente relativamente ao mercado ou mercados das peças sobressalentes, a saber, mutatis mutandis, a que visa determinar se os consumidores podem evitar um aumento do preço dos serviços de reparação e manutenção recorrendo aos produtos primários de outros fabricantes.

117    Em terceiro lugar, importa recordar que, nos termos do n.° 22 da decisão recorrida, o custo dos serviços pós‑venda era mínimo em comparação com o custo inicial do próprio relógio e que, nos termos da nota n.° 27 da decisão recorrida, «o consumidor não considera[va] o custo dos serviços pós‑venda como um critério a ter em conta quando escolhe um relógio».

118    Consequentemente, à luz destes elementos e na falta de outra demonstração na decisão recorrida que tenha em conta os critérios estabelecidos pela jurisprudência e pela Comunicação relativa à definição de mercado relevante (citadas nos n.os 67 a 70, acima), o Tribunal Geral considera que a Comissão não demonstrou que um aumento moderado dos preços no mercados dos serviços causaria um desvio da procura no mercado dos relógios de luxo ou de prestígio susceptível de tornar esse aumento não rentável, nem que, em geral, o preço dos serviços tem influência na concorrência entre os produtos primários.

119    Daqui resulta que a Comissão não podia concluir, com base nas considerações que expôs nos n.os 19 a 22 da decisão recorrida, que o mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios não constituía um mercado relevante diferente, mas que, pelo contrário, devia ser examinado conjuntamente com o dos relógios de luxo ou de prestígio. Por conseguinte, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação a este respeito.

120    Na medida em que as afirmações da Comissão de que o mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios e o ou os mercados das peças sobressalentes não constituem mercados relevantes a examinar em separado, enfermam de erros manifestos de apreciação, há que verificar se, apesar desses vícios, a Comissão podia legitimamente concluir que não existia interesse comunitário suficiente para prosseguir a sua investigação.

121    Decorre claramente da decisão recorrida que a reduzida probabilidade da existência de infracções aos artigos 81.° CE e 82.° CE se inclui entre os principais fundamentos que sustentam a conclusão da Comissão relativa à falta desse interesse. Há, assim, que examinar se a definição errada do mercado relevante podia ter incidência nas declarações da Comissão relativas à probabilidade da existência de infracções às regras comunitárias da concorrência.

3.     Quanto à violação do artigo 81.° CE

 Argumentos das partes

122    A recorrente alega que os fabricantes de relógios suíços chegaram efectivamente a acordo para eliminar os reparadores de relógios independentes do mercado comunitário dos serviços de manutenção e reparação de relógios, violando assim o artigo 81.° CE. Além disso, considera que a Comissão cometeu um erro ao considerar que a prática de recusar fornecer peças sobressalentes aos reparadores independentes constitui um sistema de distribuição selectiva que beneficia da isenção por categoria prevista no Regulamento n.° 2790/1999.

123    Relativamente aos n.os 27 e 28 da decisão recorrida, nos quais a Comissão alega não ter encontrado nenhuma prova da existência de uma prática concertada, a recorrente defende que a existência dessa prática não é normalmente demonstrada através de provas directas, mas de elementos circunstanciais. Ora, no caso em apreço, durante o procedimento administrativo, a recorrente forneceu diversos indícios a esse respeito. Em primeiro lugar, referiu que a maioria dos fabricantes de relógios suíços tinha interrompido o fornecimento de peças sobressalentes durante um determinado período, em segundo lugar, que quase todos os fabricantes contra os quais a denúncia era dirigida pertenciam a «grupos» de fabricantes bem organizados e, em terceiro lugar, que esses fabricantes se encontravam regularmente para abordar questões de estratégia na qualidade de membros da Fédération horlogère suisse (FHS). Ora, a Comissão não teve em conta esses elementos, tendo‑se limitado a contestar a duração do período durante o qual ocorreu a recusa efectiva dos fabricantes de relógios suíços de continuarem a fornecer peças sobressalentes (decisão recorrida, n.° 16). Mesmo esta contestação da Comissão é improcedente, uma vez que a recorrente lhe apresentou um documento que demonstrava a concentração no tempo das recusas contestadas num determinado Estado‑Membro.

124    Em qualquer caso, na opinião da recorrente, a Comissão concluiu erradamente que a prática em questão podia beneficiar de uma isenção da aplicação do artigo 81.°, n.° 1, CE, uma vez que os requisitos previstos no artigo 81.°, n.° 3, CE, tal como precisados no Regulamento n.° 2790/1999, não estão reunidos.

125    A Comissão alega que, como explicou nos n.os 27 e 28 da decisão recorrida, durante a sua investigação não encontrou nenhum elemento de prova que certificasse a existência de uma prática concertada ou de um acordo entre os fabricantes de relógios de luxo ou de prestígio. A recorrente não lhe forneceu nenhuma informação fiável em que ela se pudesse basear para demonstrar uma violação do artigo 81.° CE. Muito pelo contrário, o mercado primário dos relógios revela‑se concorrencial, o que a recorrente não contesta.

126     No que se refere ao documento apresentado pela recorrente relativo à concentração das recusas no tempo, a Comissão salienta que foi redigido pela própria recorrente, sem precisar a sua fonte, e que se refere apenas a um Estado‑Membro. Consequentemente, o referido documento tem apenas um reduzido valor probatório. Em qualquer caso, revela a recusa sucessiva de fornecer peças sobressalentes de relógios de 1985 a 2008, o que reflecte uma evolução natural do mercado.

127    A Comissão sustenta que o sistema de distribuição selectiva posto em prática pelos fabricantes de relógios suíços é conforme às disposições do Regulamento n.° 2790/1999 e que não existe nenhum elemento de prova que demonstre a existência de práticas contrárias ao artigo 4.°, alínea a), do referido regulamento. O facto de os fabricantes de relógios suíços terem mudado de prática ao optarem por um sistema de distribuição selectiva baseado em critérios qualitativos resulta inteiramente da dinâmica do mercado e responde às necessidades dos consumidores e ao objectivo dos fabricantes de garantir serviços de melhor qualidade.

128    A interveniente afirma que a alegação da recorrente de que as recusas se concentram no tempo – estendem‑se por um período de «aproximadamente dois anos» antes da apresentação da denúncia – é materialmente incorrecta.

129    Além disso, a interveniente adere à afirmação da Comissão de que a qualidade dos serviços pós‑venda prestados pelos reparadores de relógios independentes é objecto de mais denúncias do que a das reparações efectuadas pelos distribuidores autorizados ou pelo próprio fabricante.

 Apreciação do Tribunal Geral

130    Em primeiro lugar, no que se refere à alegação da recorrente relativa à existência de um acordo entre os fabricantes de relógios suíços, deve‑se observar que a recorrente não demonstrou que a afirmação da Comissão exposta no n.° 28 da decisão recorrida, de que a recorrente não apresentou nenhum elemento probatório que permitisse suspeitar da existência de um acordo ou de uma prática concertada com vista a eliminar os relojoeiros independentes do mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios de luxo ou de prestígio, enferma de uma ilegalidade.

131    Em especial, importa referir que o documento intitulado «progressão da recusa» mostra que em 1985 apenas 3 marcas recusaram fornecer peças sobressalentes, que em 1990, esse número passou a 5, em 1995 a 15, em 2000 a 35, em 2005 a 38 e, por último, que em 2008, esse número ascendia a 50.

132    Consequentemente, há que concluir que mesmo este documento, redigido pela recorrente, tende a confirmar a posição da Comissão de que a progressão da recusa não era o resultado de um acordo, mas de uma série de decisões comerciais independentes adoptadas pelos fabricantes de relógios suíços.

133    Em segundo lugar, a recorrente afirma que a prática de distribuição selectiva das peças sobressalentes – que implica a recusa de fornecer as referidas peças aos relojoeiros independentes e a proibição feita às empresas da rede de fornecerem essas peças a operadores fora da rede – é uma prática contrária ao artigo 81.° CE e não pode beneficiar da isenção por categoria concedida pelo Regulamento n.° 2790/1999.

134    Deve recordar‑se que o artigo 2.°, n.° 1, do referido regulamento dispõe o seguinte:

«Nos termos do n.° 3 do artigo 81.° [CE] [sem prejuízo das disposições do] presente regulamento, o n.° 1 do artigo 81.° [CE] não se aplica aos acordos ou práticas concertadas em que participam duas ou mais empresas cada uma delas operando, para efeitos do acordo, a um nível diferente da produção ou da cadeia de distribuição e que digam respeito às condições em que as partes podem adquirir, vender ou revender certos bens ou serviços (denominados ‘acordos verticais’).

Esta isenção é aplicável na medida em que estes acordos contenham restrições da concorrência abrangidas pelo n.° 1 do artigo 81.° [CE] (denominadas ‘restrições verticais’).»

135    Nos termos do artigo 3.° do mesmo regulamento, «a isenção prevista no artigo 2.° é aplicável desde que a quota de mercado do fornecedor não exceda 30% do mercado relevante no qual venda os bens ou serviços contratuais.»

136    Além disso, nos termos do n.° 94 das Orientações relativas às restrições verticais (JO 2000 C 291, p. 1):

«Quando um fornecedor fabrica equipamento original e peças de reparação e substituição para esse equipamento, o fornecedor será frequentemente o único ou o principal fornecedor nos mercados pós‑venda, no que diz respeito a essas peças de reparação e substituição. […] O mercado relevante para efeitos de aplicação do Regulamento [n.° 2790/1999] pode ser o mercado de equipamento inicial, incluindo as peças sobressalentes, ou o mercado distinto do equipamento inicial e serviços pós‑venda, consoante as circunstâncias do caso, tais como os efeitos das restrições envolvidas, a duração do equipamento e a importância dos custos de reparação ou substituição»

137    No caso em apreço, no n.° 33 da decisão recorrida, a Comissão concluiu a este respeito o seguinte:

«[...] Como explicado anteriormente, a análise efectuada pela Comissão para efeitos do presente processo levou a concluir que o mercado de pós‑venda das peças sobressalentes não deve ser encarado como um mercado distinto do mercado primário. Consequentemente, deve‑se apreciar o poder de um determinado fabricante de relógios no mercado em geral e, em especial, ter em consideração a sua posição e a sua força no mercado primário. É a razão pela qual, ao ter em conta o facto de nenhum dos fabricantes de relógios visados na denúncia ocupar uma posição dominante no mercado primário nem deter uma quota de mercado superior a 30%, se afigura que podem beneficiar do regulamento de isenção por categoria.»

138    Deve‑se recordar que não se pode excluir que, na ausência do erro manifesto de apreciação referido no n.° 107, acima, a Comissão tivesse concluído pela existência de mercados relevantes separados constituídos pelas peças sobressalentes específicas das marcas, em função da sua substituibilidade.

139    Contudo, a decisão recorrida não contém nenhuma demonstração de que a quota de mercado dos fabricantes de relógios suíços também é inferior a 30% nos mercados das peças sobressalentes específicas às marcas.

140    Nestas circunstâncias, não se pode excluir que, na ausência do erro manifesto de apreciação referido no n.° 107, acima, e se a Comissão tivesse retomado na decisão recorrida a sua afirmação que consta da posição provisória de que os fabricantes de relógios de luxo ou de prestígio eram os únicos fornecedores de gamas específicas de peças sobressalentes para as suas próprias marcas, ela tivesse concluído pela inaplicabilidade da isenção conferida pelo Regulamento n.° 2790/1999, à luz da disposição constante do artigo 3.° deste regulamento.

141    Além disso, deve‑se salientar que no n.° 43 da decisão recorrida, intitulado «Conclusão», relativamente à reduzida probabilidade de os sistemas de distribuição selectiva violarem o artigo 81.° CE, a Comissão não faz referência a qualquer outro elemento para além da aplicabilidade da isenção por categoria nos termos do Regulamento n.° 2790/1999. Assim, o Tribunal Geral considera que este elemento tinha uma importância decisiva a este respeito.

142    Consequentemente, importa considerar que o erro manifesto de apreciação referido no n.° 107, acima, vicia também a conclusão da Comissão relativa à reduzida probabilidade da existência de uma infracção ao artigo 81.° CE.

4.     Quanto à violação do artigo 82.° CE

 Argumentos das partes

143    Relativamente às afirmações da Comissão nos n.os 39 a 42 da decisão recorrida, a recorrente alega que a Comissão reconheceu, na posição provisória, a existência de uma posição dominante ou de um monopólio de cada fabricante de relógios suíços em relação às peças sobressalentes específicas da sua marca. Ao recusarem continuar a fornecer as suas peças sobressalentes, esses fabricantes cometeram um abuso.

144    Na opinião da recorrente, o facto de o mercado dos relógios suíços ser, no entendimento da Comissão, um mercado concorrencial não tem incidência nas condições da concorrência no mercado dos serviços de manutenção e reparação, que devia ter sido encarado, no caso em apreço, como um mercado relevante separado. Alega que este último mercado já não é concorrencial, a não ser para um determinado nível de concorrência residual entre os reparadores de relógios independentes e os fabricantes de relógios suíços. A prática destes fabricantes de relógios que consiste em recusarem continuar a fornecer peças sobressalentes visa mesmo eliminar esta concorrência residual.

145    A Comissão salienta que, de acordo com a sua análise, o mercado primário é o dos relógios do qual depende totalmente o mercado de pós‑venda das peças sobressalentes para relógios. O mercado dos relógios afigura‑se suficientemente concorrencial e nenhum elemento atesta a existência de uma posição dominante colectiva dos fabricantes de relógios suíços nem, a fortiori, de um abuso de posição dominante.

146    A interveniente afirma que não ocupa uma posição dominante no mercado primário. Do mesmo modo, também não estão reunidas as condições necessárias para o estabelecimento de uma posição dominante colectiva.

 Apreciação do Tribunal Geral

147    No n.° 41 da decisão recorrida, a Comissão considera o seguinte:

«[N]o que se refere aos mercados de pós‑venda, já foi demonstrado [que] se afigura improvável que constituam um mercado que deva ser apreciado em separado e, consequentemente, a questão do domínio exercido nesses mercados não deve ser apreciada de uma forma separada do mercado primário.»

148    No n.° 44 da decisão recorrida, intitulado «Conclusão», a Comissão afirma o seguinte:

«[A] análise levou a concluir, à primeira vista, que os mercados de pós‑venda não constituem, no caso em apreço, mercados distintos e que não se afigura assim existir posição dominante, nem colectiva nem individual, nos mercados de pós‑venda examinados. Na falta de posição dominante, a questão do abuso perdeu toda a pertinência.»

149    Como foi observado no n.° 109, acima, não se pode excluir que, na ausência do erro manifesto de apreciação referido no n.° 107, acima, a Comissão tivesse considerado que as peças sobressalentes específicas das marcas constituíam mercados relevantes distintos em função da sua substituibilidade.

150    Deve‑se observar que a decisão recorrida não contém nenhuma análise relativa à posição que os fabricantes de relógios suíços detêm no mercado das peças sobressalentes específicas das suas próprias marcas. Assim, na decisão recorrida, a Comissão não se afastou da sua afirmação constante da posição provisória de que os fabricantes de relógios de luxo ou de prestígio eram os únicos fornecedores das gamas específicas de peças sobressalentes para as suas próprias marcas, nem tomou posição sobre a alegação da recorrente de que os fabricantes de relógios suíços detinham uma posição dominante nos mercados das peças sobressalentes específicas das suas próprias marcas.

151    Consequentemente, não se pode excluir que, se a Comissão tivesse concluído pela existência de mercados relevantes separados constituídos pelas peças sobressalentes específicas das marcas, e tivesse, por isso, examinado a posição dos fabricantes de relógios suíços nesses mercados, teria retomado a sua afirmação, constante da posição provisória, de que os fabricantes de relógios de luxo ou de prestígio eram os únicos fornecedores de gamas específicas de peças sobressalentes para as suas próprias marcas. Consequentemente, não se pode excluir que tivesse demonstrado, nesta base, que os referidos fabricantes detinham uma posição dominante, ou mesmo um monopólio, pelo menos no que diz respeito a determinadas gamas das suas peças sobressalentes, que constituem mercados relevantes.

152    Uma vez que a Comissão se baseou, para concluir pela reduzida probabilidade da existência de infracções ao artigo 82.° CE, na inexistência de uma posição dominante dos fabricantes de relógios suíços, o erro manifesto de apreciação cometido no contexto da definição do mercado relevante vicia também a referida conclusão.

5.     Quanto à apreciação de um interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação

 Argumentos das partes

153    A recorrente considera que as afirmações da Comissão no n.° 9 da decisão recorrida relativas à incidência limitada da infracção alegada sobre o funcionamento do mercado comum, à complexidade da investigação exigida e à probabilidade limitada de demonstrar as infracções, estão erradas ou, pelo menos, não assentam em nenhuma prova ou argumento. Em especial, considera que a afirmação relativa à incidência limitada das alegadas infracções está errada atenta a perspectiva do desaparecimento de uma profissão de artesãos na União.

154    Além disso, a recorrente alega que, no n.° 14 da decisão recorrida, a Comissão, reconhecendo que «não está convencida de que o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio seja o mercado (primário) relevante no caso presente», utiliza no entanto esta definição como fundamento da sua apreciação. Do mesmo modo, ao não definir o mercado relevante, a Comissão não podia, sem cometer um erro de lógica, concluir que «não [existiam] indícios de que o funcionamento do mercado seria perturbado.»

155    A Comissão também não teve em conta o facto de o comportamento anticoncorrencial alegado dizer respeito a todos os Estados‑Membros, de forma que era a melhor colocada para adoptar medidas para restabelecer uma concorrência sã no mercado comum. A recorrente refere‑se à jurisprudência relativa à questão de saber se, ao remeter a denunciante para os órgãos jurisdicionais nacionais, a Comissão tinha tido em conta o alcance da protecção que pode ser concedida por estes órgãos. Ora, no caso em apreço, a decisão de uma única autoridade ou de um único órgão jurisdicional nacional não pode resolver as disfunções concorrenciais, nomeadamente porque as marcas dos relógios suíços não estão todas representadas em todos os Estados‑Membros.

156    A Comissão remete para o acórdão Ufex e o./Comissão, n.° 28, supra (n.° 79). Alega que o interesse comunitário suficiente para prosseguir uma investigação deve ser apreciado em função de um critério de ponderação. Ao aplicar esse critério está habilitada a concluir que uma denúncia não apresenta um interesse comunitário suficiente para prosseguir uma investigação a seu respeito e isso com base num único factor ou numa combinação de diferentes factores. Dado que a apreciação do interesse comunitário de uma denúncia é função das circunstâncias de cada caso, não há nem que limitar o número de critérios de apreciação a que a Comissão se pode referir nem, em contrapartida, que lhe impor a utilização exclusiva de determinados critérios.

 Apreciação do Tribunal Geral

157    É jurisprudência assente que, quando a Comissão decide atribuir graus de prioridade diferentes às denúncias que lhe são apresentadas pode decidir em que ordem as denúncias serão examinados e referir‑se ao interesse comunitário de um processo como critério de prioridade (acórdão Tremblay e o./Comissão, n.° 27, supra, n.° 60; v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1992, Automec/Comissão, T‑24/90, Colect., p. II‑2223, n.os 83 a 85).

158    Para apreciar o interesse comunitário que existe em prosseguir o exame de um processo, a Comissão deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto e, nomeadamente, os elementos de facto e de direito que lhe são apresentados na denúncia que lhe foi submetida. Cabe‑lhe, designadamente, ponderar a importância da infracção alegada para o funcionamento do mercado comum, a probabilidade de poder provar a sua existência e a extensão das diligências de investigação necessárias para desempenhar, nas melhores condições, a sua missão de vigilância do respeito dos artigos 81.° CE e 82.° CE. (v., neste sentido, acórdãos Automec/Comissão, n.° 157, supra, n.° 86; Tremblay e o./Comissão, n.° 27, supra, n.° 62, e Sodima/Comissão, n.° 27, supra, n.° 46).

159    A este respeito, compete ao Tribunal verificar, nomeadamente, se resulta da decisão que a Comissão ponderou a importância do prejuízo que a infracção alegada é susceptível de causar ao funcionamento do mercado comum, a probabilidade de poder provar a sua existência e a extensão das medidas de instrução necessárias para cumprir, nas melhores condições, a sua missão de zelar pelo respeito dos artigos 81.° CE e 82.° CE (v. acórdão Sodima/Comissão, n.° 27, supra, n.° 46 e jurisprudência citada).

160    Além disso, importa recordar a jurisprudência citada no n.° 65, acima, segundo a qual a fiscalização do órgão jurisdicional da União sobre o exercício do poder discricionário da Comissão no processamento das denúncias não deve levá‑lo a substituir a apreciação do interesse comunitário da Comissão pela sua própria apreciação, antes se destinando a verificar se a decisão em litígio não se baseia em factos materialmente inexactos e não está ferida de qualquer erro de direito nem de qualquer erro manifesto de apreciação ou de desvio de poder.

161    Por último, há também que recordar que um erro manifesto de apreciação não basta para justificar a anulação da decisão controvertida se, nas circunstâncias particulares do caso em apreço, não tiver podido ter uma influência determinante quanto ao resultado (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 12 de Setembro de 2007, UFEX e o./Comissão, T‑60/05, Colect., p. II‑3397, n.° 77; v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 14 de Maio de 2002, Graphischer Maschinenbau/Comissão, T‑126/99, Colect., p. II‑2427, n.os 48 e 49). Do mesmo modo, a fim de cumprir o seu dever de fundamentação, basta à Comissão apresentar os factos e as considerações jurídicas que revestem uma importância essencial na economia da decisão (v. acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 4 de Setembro de 2009, Itália/Comissão, T‑211/05, ainda não publicado na Colectânea, n.° 68 e jurisprudência citada).

162    Assim, deve‑se examinar a importância, na economia da decisão recorrida, das considerações feridas por insuficiência de fundamentação (v. n.° 49, acima), pelo facto de a Comissão não ter tido em conta elementos pertinentes, apesar da sua obrigação de examinar atentamente os elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pela denunciante (v. n.° 33, acima), e por erros manifestos de apreciação (v. n.os 107 e 119, acima), a fim de determinar se essas ilegalidades podiam afectar a ponderação efectuada pela Comissão da importância da infracção alegada sobre o funcionamento do mercado comum, da probabilidade de poder provar a sua existência e da extensão das diligências de investigação necessárias.

163    A este respeito, importa recordar que a afirmação da Comissão relativa à inexistência de interesse comunitário suficiente para prosseguir o exame assenta em quatro considerações essenciais. Em primeiro lugar, a denúncia só diz respeito a um mercado ou a um segmento de mercado de dimensão limitada, de forma que a sua importância económica é também limitada. Em segundo lugar, a Comissão não pode concluir, com base nos elementos de que dispõe, pela existência de um acordo ou de uma prática concertada e é improvável que os sistemas de distribuição selectiva postos em prática pelos fabricantes de relógios suíços não estejam abrangidos pela isenção por categoria concedida pelo Regulamento n.° 2790/1999. Em terceiro lugar, uma vez que os dois mercados de pós‑venda não constituem mercados distintos, não parece existir nenhuma posição dominante, de forma que a questão da existência de um abuso não é pertinente. Em quarto lugar, tendo em conta a apreciação pela Comissão das infracções alegadas, mesmo no caso de uma afectação de recursos suplementares à instrução da denúncia, a probabilidade de provar uma infracção às regras da concorrência continua a ser reduzida. Em qualquer caso, mesmo que as infracções pudessem ser demonstradas, as autoridades da concorrência e os órgãos jurisdicionais nacionais parecem estar bem posicionados para as apreciar (v. n.os 8 e 11, acima).

164    Em primeiro lugar, o Tribunal Geral entende que a consideração segundo a qual a denúncia só diz respeito a um mercado ou a um segmento de mercado de dimensão limitada, de forma que a sua importância económica é também limitada, desempenhou um papel importante na ponderação, efectuada pela Comissão, dos factores a apreciar a fim de determinar a existência de um interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação. Ora, esta consideração enferma de insuficiência de fundamentação e de violação da obrigação de ter em consideração todos os elementos de direito e de facto pertinentes e de examinar atentamente todos esses elementos levados ao seu conhecimento pela recorrente (v. n.° 49, acima).

165    Em segundo lugar, deve recordar‑se que os erros manifestos de apreciação cometidos pela Comissão no âmbito da definição do mercado relevante viciam também as suas conclusões relativas à fraca probabilidade da existência de infracções aos artigos 81.° CE e 82.° CE.

166    A consideração da Comissão no n.° 14 da decisão recorrida de que «não está convencida de que o mercado dos relógios de luxo ou de prestígio seja o mercado (primário) relevante no caso em apreço» e de que, em qualquer caso, não era necessário fornecer uma delimitação exacta do mercado relevante uma vez que «não exist[ia] nenhuma indicação de que o funcionamento desse mercado seria perturbado», não sana essas ilegalidades.

167    A este respeito há que recordar que a Comissão considerou, no n.° 33 da decisão recorrida (v. n.° 137, acima), o seguinte:

«[A] análise efectuada […] levou a concluir que o mercado de pós‑venda das peças sobressalentes não deve ser encarado como um mercado distinto do mercado primário. Consequentemente, deve‑se apreciar o poder de um determinado fabricante de relógios no mercado em geral e, em especial, ter em consideração a sua posição e a sua força no mercado primário. É a razão pela qual, ao ter em conta o facto de nenhum dos fabricantes de relógios visados na denúncia ocupar uma posição dominante no mercado primário nem deter uma quota de mercado superior a 30%, se afigura que [possam] beneficiar do regulamento de isenção por categoria.»

168    Do mesmo modo, há que recordar que, no n.° 44 da decisão recorrida (v. n.° 148 acima), a Comissão considerou o seguinte:

«[A] análise levou a concluir, à primeira vista, que os mercados de pós‑venda não constituem, no caso em apreço, mercados distintos e que não parece assim existir posição dominante […], nos mercados de pós‑venda examinados. Na falta de posição dominante, a questão do abuso perdeu toda a pertinência.»

169    Consequentemente, decorre claramente da decisão recorrida que a Comissão se apoiou na definição preliminar do mercado para concluir pela reduzida probabilidade da existência das infracções aos artigos 81.° CE e 82.° CE e, nesta última conclusão, para basear a sua constatação de que não existiam indícios de perturbações no mercado em causa. Assim, a Comissão não pode validamente argumentar que não precisava de definir o mercado relevante devido à falta de indícios de perturbações no mercado, dado que a sua afirmação relativa à inexistência das referidas perturbações se baseava precisamente na definição do mercado relevante que apesar de tudo não deixou de efectuar.

170    Do mesmo modo, as ilegalidades cometidas pela Comissão na definição do mercado relevante não podem ser sanadas pela sua afirmação constante do n.° 18 da decisão recorrida, segundo a qual «mesmo admitindo que se deva considerar esses mercados como mercados relevantes distintos, o facto de o mercado primário se afigurar concorrencial torna pouco provável a existência de eventuais efeitos anticoncorrenciais [; e]m especial, os aumentos dos preços nos mercados de pós‑venda tendem a não ser rentáveis devido ao seu impacto nas vendas no mercado primário, a menos que se verifique uma diminuição dos preços no mercado primário para compensar os preços mais elevados nos mercados de pós‑venda».

171    Com efeito, a Comissão não baseia a sua afirmação de que «os aumentos dos preços nos mercados de pós‑venda tendem a não ser rentáveis devido ao seu impacto nas vendas no mercado primário» em nenhuma análise nem em nenhum elemento probatório. Pelo contrário, invoca, na decisão recorrida, um elemento que a põe em causa, ao salientar que «o consumidor não considera os custos dos serviços pós‑venda como um critério a ter em conta quando escolhe um relógio». De facto, este elemento tem efeito plausível que o aumento dos preços dos referidos serviços – ou do preço das peças sobressalentes incluídos no preço desses serviços – não tenha incidência na procura dos relógios da marca que aumenta os preços nos mercados de pós‑venda (v. n.° 106, acima).

172    Em terceiro lugar, na medida em que o essencial das considerações que sustentam a conclusão da Comissão relativa à inexistência de um interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação estão feridas de insuficiência de fundamentação, por não terem tido em conta um elemento pertinente, invocado na denúncia, e por erros manifestos de apreciação, deve‑se examinar se o único fundamento que permanece válido, segundo o qual as autoridades nacionais da concorrência e os órgãos jurisdicionais nacionais estão bem posicionados para investigar as eventuais infracções aos artigos 81.° CE e 82.° CE e para as apreciar, pode, por si só, justificar a conclusão da Comissão relativa à inexistência de interesse comunitário suficiente.

173    Importa recordar que, segundo a jurisprudência, quando os efeitos das infracções alegadas numa denúncia só se sentem, no essencial, no território de um único Estado‑Membro e que os litígios relativos a essas infracções foram submetidos pela denunciante aos órgãos jurisdicionais e às autoridades administrativas competentes desse Estado‑Membro, a Comissão pode rejeitar a denúncia por falta de interesse comunitário, desde que os direitos do denunciante possam ser salvaguardados de modo satisfatório pelas instâncias nacionais, o que pressupõe que estejam em condições de reunir os elementos factuais para determinar se as práticas em causa constituem uma infracção às referidas disposições do Tratado (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 3 de Julho de 2007, Au lys de France/Comissão, T‑458/04, não publicado na Colectânea, n.° 83; v., neste sentido, acórdão Automec/Comissão, n.° 157, supra, n.os 89 a 96).

174    Do mesmo modo, deve‑se observar que os processos anteriores em que o Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar sobre um fundamento da Comissão quanto à possibilidade de os denunciantes fazerem valer os seus direitos perante as autoridades e os órgão jurisdicionais nacionais diziam respeito a situações em que o alcance das práticas alegadas pelos referidos denunciantes estava essencialmente limitado ao território de um único Estado‑Membro e a questão já tinha sido submetida às referidas autoridades ou aos órgãos jurisdicionais (acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 24 de Janeiro de 1995, BEMIM/Comissão, T‑114/92, Colect., p. II‑147, n.os 76 e 77; Tremblay e o./Comissão, n.° 27, supra, n.os 73 e 74; AEPI/Comissão, n.° 26, supra, n.° 46, e UFEX e o./Comissão, n.° 161, supra, n.° 157).

175    Em contrapartida, no caso em apreço, embora a Comissão afirme que existem ligeiras variações entre os diferentes Estados‑Membros relativamente ao alcance da prática criticada pela recorrente, reconheceu que a referida prática diz respeito, pelo menos, a cinco Estados‑Membros e não contesta nem confirma que se verifica em todo o território da União.

176    Assim, no caso em apreço, mesmo admitindo que as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais estejam bem posicionados para apreciar as eventuais infracções objecto da denúncia, como a Comissão concluiu no n.° 8 da decisão recorrida, esta única consideração não basta para sustentar a conclusão final da Comissão relativa à inexistência de interesse comunitário suficiente. Com efeito, a prática criticada verifica‑se pelo menos em cinco Estados‑Membros, ou mesmo eventualmente em todos os Estados‑Membros, e é imputável a empresas cujas sedes e locais de produção se situam fora da União, o que constitui um indício de que uma acção ao nível da União poderia ser mais eficaz que múltiplas acções a nível nacional.

177    Face às considerações que precedem, há que concluir que as ilegalidades cometidas pela Comissão são susceptíveis de afectar a sua apreciação relativa à existência de um interesse comunitário suficiente para prosseguir o exame da denúncia.

178    Consequentemente, a decisão recorrida deve ser anulada, sem que seja necessário examinar os outros fundamentos e argumentos da recorrente, nem o seu pedido no sentido de ser desentranhada dos autos uma passagem da resposta da Comissão às questões escritas do Tribunal Geral.

 Quanto às despesas

179    Nos termos do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Se forem várias as partes vencidas, o Tribunal decide sobre a repartição das despesas.

180    No caso em apreço, tendo a Comissão e a interveniente sido vencidas, há que decidir que a interveniente suporta, além das suas próprias despesas as efectuadas pela recorrente devido à intervenção e que a Comissão suporta, além das suas próprias despesas, as demais despesas efectuadas pela recorrente, em conformidade com o seu pedido.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção)

decide:

1)      A Decisão C (2008) 3600 da Comissão, de 10 de Julho de 2008, no processo COMP/E‑1/39097, é anulada.

2)      A Richemont International SA suportará, além das suas próprias despesas, as efectuadas pela Confédération européenne des associations d’horlogers‑réparateurs (CEAHR), devido à intervenção.

3)      A Comissão Europeia suportará, além das suas próprias despesas, as demais despesas efectuadas pela CEAHR.

Czúcz

Labucka

O’Higgins

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 15 de Dezembro de 2010.

Assinaturas

Índice


Factos na origem do litígio

Tramitação processual e pedidos das partes

Questão de direito

1.  Quanto à dimensão do mercado em causa na denúncia e a sua importância económica

Argumentos das partes

Apreciação do Tribunal Geral

2.  Quanto à definição do mercado relevante

Argumentos das partes

Apreciação do Tribunal Geral

Quanto à primeira acusação relativa à substituição errada do conceito de «relógios que vale a pena reparar» pelo de «relógios de luxo ou de prestígio»

Quanto à segunda acusação, relativa à falta de um exame separado do mercado dos serviços de reparação e manutenção dos relógios e do mercado das peças sobressalentes

–  Quanto ao exame do mercado das peças sobressalentes

–  Quanto ao exame relativo ao mercado dos serviços de reparação e manutenção

3.  Quanto à violação do artigo 81.° CE

Argumentos das partes

Apreciação do Tribunal Geral

4.  Quanto à violação do artigo 82.° CE

Argumentos das partes

Apreciação do Tribunal Geral

5.  Quanto à apreciação de um interesse comunitário suficiente para prosseguir a investigação

Argumentos das partes

Apreciação do Tribunal Geral

Quanto às despesas


* Língua do processo: inglês.