Language of document : ECLI:EU:T:2008:228

Processo T‑442/03

SIC – Sociedade Independente de Comunicação, SA

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Auxílios de Estado – Medidas adoptadas pela República Portuguesa a favor da empresa pública de televisão RTP para financiar a sua missão de serviço público – Decisão que declara que determinadas medidas não constituem auxílios de Estado e que as outras são compatíveis com o mercado comum – Qualificação de auxílio de Estado – Compatibilidade com o mercado comum – Obrigação de exame diligente e imparcial»

Sumário do acórdão

1.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Carácter selectivo da medida

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Auxílios concedidos por uma empresa pública

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

3.      Concorrência – Empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral – Recurso a um concurso desnecessário para investir uma empresa dessa missão

(Artigo 86.°, n.° 2, CE; Protocolo de Amesterdão)

4.      Concorrência – Empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral – Definição de serviços de interesse económico geral – Poder de apreciação dos Estados‑Membros

(Artigo 86.°, n.° 2, CE)

5.      Concorrência – Empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral – Cumprimento por parte do radiodifusor de serviço público das normas de qualidade definidas no mandato de serviço público – Competência exclusiva do Estado‑Membro

(Artigo 86.°, n.° 2, CE)

6.      Auxílios concedidos pelos Estados – Procedimento administrativo – Obrigações da Comissão – Exame diligente e imparcial

(Artigo 88.°, n.° 2, CE)

1.      Não preenche o requisito da selectividade uma medida estatal que, não obstante conferir uma vantagem a uma categoria específica de operadores económicos, não a aplicação normal de um sistema, mas, pelo contrário, nele se insere e constitui, desse modo, uma medida inerente a esse sistema, ou ainda, quando as diferenças de tratamento decorrentes desta medida podem justificar esta medida pela natureza ou pela economia do sistema.

A questão a examinar era a de saber se entrava na economia do sistema jurídico português que a transformação das empresas públicas em sociedades anónimas fosse feita pela lei, ou se o recurso à lei para essas operações constituía uma derrogação que se destinava, na realidade, devido às consequências que daí decorriam (inutilidade da escritura pública e, em seguida, inexistência das respectivas despesas), a conferir às empresas públicas uma vantagem relativamente às outras empresas. A Comissão, por não ter examinado a questão de saber se, não obstante a sua especificidade, a isenção dos encargos notariais não constituía um auxílio de Estado por o recurso ao instrumento legislativo, recurso que conduz a esta isenção, não ter sido escolhido com o objectivo de fazer com que as empresas públicas não ficassem sujeitas a encargos, mas se inscrevia simplesmente na lógica do sistema jurídico português.

(cf. n.os 64‑67)

2.      Para que certas vantagens possam ser qualificadas como auxílios na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE, devem, por um lado, ser atribuídas directa ou indirectamente através de recursos do Estado e, por outro, ser imputáveis ao Estado. A imputabilidade de uma medida ao Estado não pode ser deduzida apenas do facto de a medida em causa ter sido adoptada por uma empresa pública. Com efeito, embora o Estado possa controlar uma empresa pública e exercer uma influência dominante nas suas operações, o exercício efectivo deste controlo num caso concreto não deve ser automaticamente presumido. Cabe ainda examinar se há que considerar que as autoridades públicas estão envolvidas, de uma forma ou de outra, na adopção dessas medidas.

Foi por estes motivos que a imputabilidade ao Estado de uma medida de auxílio adoptada por uma empresa pública pode ser deduzida de um conjunto de indícios tais como, nomeadamente, a sua integração nas estruturas da Administração Pública, a natureza das suas actividades e o exercício destas no mercado, em condições normais de concorrência com operadores privados, o estatuto jurídico da empresa regulado pelo direito público ou pelo direito comum das sociedades, a intensidade da tutela exercida pelas autoridades públicas sobre a gestão da empresa, ou qualquer outro indício, no caso concreto, de uma implicação ou da improbabilidade da não implicação das autoridades públicas na adopção de uma medida, atendendo igualmente ao alcance desta, ao seu conteúdo ou às condições de que se reveste.

(cf. n.os 93‑95, 98, 99)

3.      Não resulta da redacção do artigo 86.°, n.° 2, CE nem da jurisprudência relativa a esta disposição que um serviço de interesse económico geral só pode ser confiado a um operador mediante concurso público.

Ora, embora seja verdade que o serviço público da radiodifusão é considerado um serviço de interesse económico geral, e não um serviço de interesse geral não económico, há no entanto que salientar que esta qualificação se explica mais pelo impacto que a radiodifusão de serviço público produz, de facto, no sector, aliás, concorrencial e mercantil, da radiodifusão, do que por uma alegada dimensão mercantil da radiodifusão de serviço público. Como resulta claramente do Protocolo de Amesterdão, o serviço público da radiodifusão «encontra[‑se] directamente associad[o] às necessidades de natureza democrática, social e cultural de cada sociedade».

Esta especificidade da radiodifusão de serviço público está, aliás, na base da liberdade reconhecida pelo Protocolo de Amesterdão aos Estados‑Membros, na atribuição do serviço de interesse económico geral da radiodifusão. Explica e justifica o facto de não se poder exigir a um Estado‑Membro que recorra a procedimentos de concurso para a atribuição desse serviço de interesse económico geral, pelo menos, quando decida garantir ele próprio esse serviço público através de uma sociedade pública.

(cf. n.os 145, 153, 154)

4.      Os Estados‑Membros dispõem de um amplo poder de apreciação quanto à definição do que consideram ser serviço de interesse económico geral. Por conseguinte, a definição desses serviços por um Estado‑Membro só pode ser posta em causa pela Comissão, em caso de erro manifesto.

Por outro lado, o direito comunitário não se opõe de modo algum a que um Estado‑Membro defina o serviço de interesse económico geral da radiodifusão em termos latos, incluindo a difusão de uma programação generalista. Essa possibilidade em causa equivaleria a fazer depender a própria definição do serviço de interesse económico geral da radiodifusão do seu modo de financiamento. Ora, um serviço de interesse económico geral define‑se, por hipótese, relativamente ao interesse geral que visa satisfazer, e não relativamente aos meios que assegurarão o seu fornecimento.

(cf. n.os 195, 201‑203)

5.      Só o próprio Estado‑Membro pode apreciar o cumprimento, por parte do radiodifusor de serviço público, das normas de qualidade definidas no mandato de serviço público. A Comissão competente para verificar concretamente o cumprimento das normas de qualidade, pode e deve, em princípio, limitar‑se à constatação da existência de um mecanismo de fiscalização, através de um órgão independente, do cumprimento do respectivo mandato por parte do radiodifusor de serviço público. Só no caso de as informações transmitidas à Comissão durante a investigação comportarem indícios sérios de que o mecanismo de fiscalização, ainda que existente, não foi implementado, é que a Comissão pode ser levada a examinar a realidade desta implementação, velando, apesar disso, por não exceder esse exame e, em especial, por não se substituir ao Estado‑Membro na apreciação concreta dos critérios qualitativos.

(cf. n.os 212‑214)

6.      No procedimento de fiscalização dos auxílios de Estado, as partes interessadas que não o Estado‑Membro em causa gozam apenas do direito de serem associadas ao procedimento administrativo na medida adequada, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto. Neste contexto, uma parte interessada que se dirige à Comissão pedindo que esta instituição exerça os seus poderes para obter do Estado‑Membro determinados elementos de informação não dispõe do direito a que a Comissão dê seguimento ao seu pedido. Cabe à Comissão, se for caso disso, apreciar a utilidade desse pedido para as necessidades da sua fiscalização das medidas em causa. Nessa apreciação, a Comissão pode tomar em consideração informações de que já dispõe. Apesar disso, o carácter limitado do direito à participação e à informação das partes interessadas que não o Estado‑Membro não é de modo algum contraditório com o dever de exame diligente e imparcial imposto à Comissão no domínio dos auxílios de Estado. Deste modo, embora a Comissão goze de uma margem de apreciação, não pode, no entanto, atendendo ao seu dever de exame diligente e imparcial, deixar de pedir que lhe sejam comunicados elementos de informação dos quais resulte que são susceptíveis de confirmar, ou infirmar, outros elementos de informação pertinentes para o exame da medida em causa, mas em relação aos quais não se pode considerar que a fiabilidade esteja suficientemente provada.

(cf. n.os 222‑225)