Language of document : ECLI:EU:C:2023:924

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

28 de novembro de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 2000/78/CE — Estabelecimento de um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional — Proibição de discriminações baseadas na religião ou nas convicções — Setor público — Regulamento de Trabalho da Administração Pública que proíbe o uso visível de todos os sinais filosóficos ou religiosos no local de trabalho — Lenço islâmico — Requisito de neutralidade nos contactos com o público, a hierarquia e os colegas»

No processo C‑148/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo tribunal du travail de Liège (Tribunal do Trabalho de Liège, Bélgica), por Decisão de 24 de fevereiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de março de 2022, no processo

OP

contra

Commune d’Ans,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Prechal, K. Jürimäe, C. Lycourgos, F. Biltgen (relator) e N. Piçarra, presidentes de secção, M. Safjan, S. Rodin, P. G. Xuereb, I. Ziemele, J. Passer, D. Gratsias, M. L. Arastey Sahún e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretária: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 31 de janeiro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de OP, por S. Gioe, avocate,

–        em representação da commune d’Ans, por J. Uyttendaele e M. Uyttendaele, avocats,

–        em representação do Governo Belga, por C. Pochet, L. Van den Broeck e M. Van Regemorter, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Francês, por D. Colas, V. Depenne, A.‑L. Desjonquères e N. Vincent, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Sueco, por O. Simonsson e C. Meyer‑Seitz, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann, D. Martin e E. Schmidt, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 4 de maio de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional (JO 2000, L 303, p. 16).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe OP, agente contratual da commune d’Ans (Município de Ans; a seguir «Município»), a esta última, a respeito da proibição imposta por esta aos seus trabalhadores de usarem um sinal visível suscetível de revelar a sua filiação ideológica ou filosófica ou as suas convicções políticas ou religiosas.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 1.o da Diretiva 2000/78 dispõe:

«A presente diretiva tem por objeto estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão da religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual, no que se refere ao emprego e à atividade profissional, com vista a pôr em prática nos Estados‑Membros o princípio da igualdade de tratamento.»

4        O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Conceito de discriminação», prevê:

«1.      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “princípio da igualdade de tratamento” a ausência de qualquer discriminação, direta ou indireta, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o

2.      Para efeitos do n.o 1:

a)      Considera‑se que existe discriminação direta sempre que, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o, uma pessoa seja objeto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável;

b)      Considera‑se que existe discriminação indireta sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra seja suscetível de colocar numa situação de desvantagem pessoas com uma determinada religião ou convicções, com uma determinada deficiência, pessoas de uma determinada classe etária ou pessoas com uma determinada orientação sexual, comparativamente com outras pessoas, a não ser que:

i)      essa disposição, critério ou prática sejam objetivamente justificados por um objetivo legítimo e que os meios utilizados para o alcançar sejam adequados e necessários, […]

[…]»

5        O artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva enuncia:

«Dentro dos limites das competências atribuídas à Comunidade, a presente diretiva é aplicável a todas as pessoas, tanto no setor público como no privado, incluindo os organismos públicos, no que diz respeito:

[…]

c)      Às condições de emprego e de trabalho, incluindo o despedimento e a remuneração;

[…]»

 Direito belga

6        A loi du 10 mai 2007 tendant à lutter contre certaines formes de discriminatio (Lei de 10 de maio de 2007 relativa à Luta contra certas Formas de Discriminação) (Moniteur belge de 30 de maio de 2007, p. 29016), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei Geral contra a Discriminação»), transpõe a Diretiva 2000/78 para o direito belga.

7        O artigo 4.o desta lei enuncia:

«Para efeitos da aplicação da presente lei, deve entender‑se por:

1.o      relações de trabalho: as relações que incluem, nomeadamente, o emprego, as condições de acesso ao emprego, as condições de trabalho e a regulamentação do despedimento:

–        no setor público e no setor privado;

[…]

4.o      critérios protegidos: a idade, a orientação sexual, o estado civil, o nascimento, o património, as convicções religiosas ou filosóficas, as convicções políticas, a língua, o estado de saúde atual ou futuro, uma deficiência, uma característica física ou genética, a origem social;

[…]

6.o      distinção direta: situação que existe sempre que, por qualquer um dos critérios protegidos, uma pessoa seja objeto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável;

7.o      discriminação direta: distinção direta, baseada num dos critérios protegidos, que não pode ser justificada com fundamento nas disposições do título II;

8.o      distinção indireta: situação que existe sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra seja suscetível de colocar, comparativamente com outras pessoas, numa situação de desvantagem específica pessoas caracterizadas por um dos critérios protegidos;

9.o      discriminação indireta: distinção indireta baseada num dos critérios protegidos que não pode ser justificada com base nas disposições do título II;

[…]»

8        O artigo 5.o, n.o 1, da referida lei prevê:

«Com exceção das matérias que são da competência das Comunidades ou das Regiões, a presente lei aplica‑se a todas as pessoas, tanto no setor público como no setor privado, incluindo os organismos públicos […]»

9        O artigo 7.o da Lei Geral contra a Discriminação enuncia:

«Qualquer distinção direta baseada num dos critérios protegidos constitui uma discriminação direta, a menos que essa distinção direta seja objetivamente justificada por um objetivo legítimo e que os meios para alcançar esse objetivo sejam adequados e necessários.»

10      O artigo 8.o desta lei dispõe:

«§ 1.      Em derrogação ao artigo 7.o, e sem prejuízo das demais disposições do presente título, a distinção direta baseada na idade, na orientação sexual, nas convicções religiosas ou filosóficas, ou numa deficiência nos domínios referidos no artigo 5.o, [n.o 1, pontos 4, 5 e 7], apenas pode ser justificada por requisitos essenciais e determinantes para o exercício da atividade profissional.

§ 2.      Só existe um requisito essencial e determinante para o exercício da atividade profissional, quando:

–        uma determinada característica, relacionada com a idade, a orientação sexual, a convicção religiosa ou filosófica ou uma deficiência, for essencial e determinante em razão da natureza das atividades profissionais específicas em causa ou do contexto em que as mesmas são executadas, e;

–        o requisito em causa assentar num objetivo legítimo e for proporcional ao mesmo.

§ 3.      Cabe ao juiz verificar casuisticamente se tal característica constitui um requisito essencial e determinante para o exercício da atividade profissional.

[…]»

11      O artigo 9.o da referida lei tem a seguinte redação:

«Qualquer distinção indireta baseada num dos critérios protegidos constitui uma discriminação indireta,

–        a menos que a disposição, o critério ou a prática aparentemente neutra que estão na base desta distinção indireta sejam objetivamente justificados por um objetivo legítimo e que os meios de realização de tal objetivo sejam apropriados e necessários; ou,

–        a menos que, em caso de distinção indireta com base numa deficiência, seja demonstrado que não podem ser efetuadas adaptações razoáveis.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12      A recorrente no processo principal trabalha para o Município desde 11 de abril de 2016 e ocupa, desde 11 de outubro de 2016, o cargo de «chefe de serviço», uma função que exerce principalmente sem contacto com os utilizadores do serviço público («back office»). Exerceu a sua função sem usar sinais suscetíveis de revelar as suas convicções religiosas nem apresentar uma reivindicação escrita para esse efeito até 8 de fevereiro de 2021, data em que pediu autorização para usar o «véu no trabalho» a partir de 22 de fevereiro de 2021.

13      Por Decisão de 18 de fevereiro de 2021, o collège communal de la Commune (Executivo Municipal do Município, a seguir «Executivo») indeferiu esse pedido e proibiu provisoriamente a recorrente no processo principal de usar, no exercício da sua atividade profissional, sinais reveladores das suas convicções religiosas, até à adoção de uma regulamentação geral relativa ao uso desses sinais na administração municipal.

14      Em 26 de fevereiro de 2021, após ter ouvido a recorrente no processo principal, o Executivo adotou uma segunda decisão, confirmando a proibição em questão até à adoção da referida regulamentação geral.

15      Em 29 de março de 2021, o conseil communal de la Commune (Assembleia Municipal do Município) alterou o seu Regulamento de Trabalho, aditando‑lhe uma obrigação de «neutralidade absoluta» no local de trabalho, entendida no sentido de que proíbe que todos os trabalhadores do Município usem, nesse local, qualquer sinal visível que possa revelar as suas convicções, nomeadamente, religiosas ou filosóficas, quer estejam ou não em contacto com o público. O artigo 9.o deste regulamento prevê, assim, nomeadamente:

«O trabalhador tem liberdade de expressão no respeito pelo princípio da neutralidade, pela sua obrigação de reserva e pelo seu dever de lealdade.

O trabalhador deve respeitar o princípio da neutralidade, o que implica que o mesmo se deve abster de qualquer forma de proselitismo e que está proibido de apresentar qualquer sinal ostensivo suscetível de revelar a sua filiação ideológica ou filosófica ou as suas convicções políticas ou religiosas. O trabalhador está sujeito a esta regra tanto nos seus contactos com o público como nas suas relações com a hierarquia e os seus colegas.

[…]»

16      A recorrente no processo principal instaurou vários processos com vista a obter a declaração de que a sua liberdade religiosa tinha sido violada, nomeadamente uma ação inibitória, intentada no órgão jurisdicional de reenvio, contra as duas decisões individuais mencionadas nos n.os 13 e 14 do presente acórdão, bem como contra a alteração do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal. Em apoio desta ação, alega que foi discriminada em razão da sua religião.

17      No que respeita a essas decisões individuais, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a proibição do uso do lenço islâmico pela recorrente no processo principal constitui uma diferença de tratamento baseada diretamente na religião desta relativamente aos outros membros do pessoal do Município, uma vez que outros sinais de convicções, nomeadamente, religiosas, usados discretamente, foram tolerados pelo Município no local de trabalho no passado e continuam a sê‑lo. Além disso, considera que esta diferença de tratamento não é justificada por requisitos profissionais essenciais e determinantes, na aceção do artigo 8.o da Lei Geral contra a Discriminação, na medida em que a recorrente no processo principal exerce as suas funções principalmente em «back office», e que constitui, portanto, uma discriminação direta, na aceção da Diretiva 2000/78. Por conseguinte, julgou procedente a ação da recorrente no processo principal relativamente ao período compreendido entre 18 de fevereiro de 2021, data da adoção da primeira dessas decisões individuais, e 29 de março de 2021, data da adoção da alteração do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal.

18      No que respeita a esta alteração, o órgão jurisdicional de reenvio enuncia que esta se destina a assegurar que tanto os atos executados pelo agente público como a sua aparência sejam estritamente neutros, independentemente da natureza das suas funções e do contexto em que são exercidas. Considera que a regra introduzida pela referida alteração constitui aparentemente uma discriminação indireta, uma vez que é neutra, mas que a aplicação que dela é feita pelo Município é de geometria variável. Assim, segundo este órgão jurisdicional, esta regra é «absoluta» em relação à recorrente no processo principal e «mais inclusiva» para os seus colegas com outras convicções. Por conseguinte, o referido órgão jurisdicional permitiu provisoriamente à recorrente no processo principal usar um sinal visível suscetível de revelar as suas convicções religiosas, mas apenas quando trabalha em «back office» e não quando está em contacto com os utilizadores ou quando exerce uma função de autoridade.

19      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à conformidade com as disposições da Diretiva 2000/78 de uma disposição de um Regulamento de Trabalho como a que está em causa no processo principal, que impõe uma obrigação de «neutralidade absoluta» a todos os trabalhadores de uma Administração Pública, mesmo àqueles que não se relacionam com os utilizadores.

20      Nestas condições, o tribunal du travail de Liège (Tribunal do Trabalho de Liège, Bélgica) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Pode o artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b) da Diretiva [2000/78], ser interpretado no sentido de que autoriza uma Administração Pública a organizar um ambiente administrativo totalmente neutro e, por conseguinte, a proibir o uso de sinais [suscetíveis de revelar convicções religiosas] a todos os membros do pessoal, quer estejam ou não em contacto direto com o público?

2)      Pode o artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b) da Diretiva [2000/78], ser interpretado no sentido de que autoriza uma Administração Pública a organizar um ambiente administrativo totalmente neutro e, por conseguinte, a proibir o uso de sinais [suscetíveis de revelar convicções religiosas] a todos os membros do pessoal, quer estejam ou não em contacto direto com o público, mesmo que esta proibição neutra pareça afetar uma maioria de mulheres, e seja, portanto, suscetível de constituir uma discriminação dissimulada em função do género?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

21      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2000/78 deve ser interpretado no sentido de que uma regra interna de uma administração municipal que proíbe, de forma geral e indiferenciada, aos membros do pessoal desta administração o uso visível, no local de trabalho, de todos os sinais que revelem, nomeadamente, convicções filosóficas ou religiosas pode ser justificada pela vontade da referida administração de instaurar um ambiente administrativo totalmente neutro.

22      A título preliminar, importa recordar, por um lado, que o conceito de «religião» que figura no artigo 1.o da Diretiva 2000/78 abrange quer o forum internum, isto é, o facto de ter convicções, quer o forum externum, ou seja, a manifestação em público da fé religiosa (Acórdão de 14 de março de 2017, G 4S Secure Solutions, C‑157/15, EU:C:2017:203, n.o 28). Há que acrescentar que este artigo cita no mesmo plano de igualdade a religião e as convicções, à semelhança do artigo 19.o TFUE, nos termos do qual o legislador da União Europeia pode tomar as medidas necessárias para combater qualquer discriminação em razão, nomeadamente, da «religião ou crença»», ou do artigo 21.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que refere, entre os diferentes motivos de discriminação que cita, «religião ou convicções». Daqui resulta que, para efeitos da aplicação desta diretiva, os termos «religião» e «convicções» devem ser analisados como as duas faces de um mesmo e único motivo de discriminação (Acórdão de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 47).

23      Por outro lado, uma vez que, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2000/78, esta é aplicável a todas as pessoas, tanto no setor público como no privado, incluindo os organismos públicos, uma disposição como a que figura no artigo 9.o do Regulamento de Trabalho do Município, que proíbe ao seu pessoal o uso visível, no local de trabalho, de todos os sinais de convicções, nomeadamente filosóficas ou religiosas, está abrangida pelo âmbito de aplicação dessa diretiva. Além disso, esta disposição deve ser considerada abrangida pelas «condições de emprego e de trabalho», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea c), da referida diretiva.

24      Feitas estas precisões, há que observar que a primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio visa quer o artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2000/78, relativo à «discriminação direta», quer o artigo 2.o, n.o 2, alínea b), desta diretiva, relativo à «discriminação indireta».

25      A este respeito, importa recordar que uma regra interna adotada por uma entidade patronal que proíbe, no local de trabalho, apenas o uso de sinais de convicções, nomeadamente, filosóficas ou religiosas, ostentatórios e de grande dimensão pode constituir uma discriminação direta baseada na religião ou nas convicções, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2000/78, nos casos em que o critério relativo ao uso desses sinais está indissociavelmente ligado a uma ou a várias religiões ou determinadas convicções [v., neste sentido, Acórdãos de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.os 72 a 78, e de 13 de outubro de 2022, S.C.R.L. (Vestuário com conotação religiosa), C‑344/20, EU:C:2022:774, n.o 31]. No entanto, não resulta da decisão de reenvio que a regra em causa no processo principal se enquadra nesta situação.

26      Pelo contrário, uma regra interna adotada por uma entidade patronal que proíbe, no local de trabalho, o uso de todos os sinais visíveis de convicções, nomeadamente, filosóficas ou religiosas, não é constitutiva dessa discriminação direta, uma vez que a mesma se refere indistintamente a qualquer manifestação dessas convicções e trata de forma idêntica todos os trabalhadores da empresa, impondo‑lhes, de forma geral e indiferenciada, designadamente, uma neutralidade indumentária que se opõe ao uso desses sinais (Acórdãos de 14 de março de 2017, G 4S Secure Solutions, C‑157/15, EU:C:2017:203, n.os 30 e 32, e de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 52).

27      Com efeito, uma vez que cada pessoa pode ter quer uma religião quer convicções religiosas, filosóficas ou espirituais, essa regra, desde que seja aplicada de maneira geral e indiferenciada, não instaura uma diferença de tratamento baseada num critério indissociavelmente ligado à religião ou a essas convicções [Acórdãos de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 52, e de 13 de outubro de 2022, S.C.R.L. (Vestuário com conotação religiosa), C‑344/20, EU:C:2022:774, n.os 33 e 34].

28      Por conseguinte, a menos que o órgão jurisdicional de reenvio conclua que, apesar da forma geral e indiferenciada da redação do artigo 9.o do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal, a recorrente no processo principal foi objeto de um tratamento diferente em relação a outros trabalhadores que foram autorizados a manifestar as suas convicções, nomeadamente, religiosas ou filosóficas através do uso de um sinal visível que revela essas convicções ou de outra forma e que, por esse facto, sofreu uma discriminação direta baseada na religião ou nas convicções, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2000/78, esse órgão jurisdicional deverá examinar se a regra que figura no artigo 9.o do Regulamento de Trabalho do Município é suscetível de resultar numa desvantagem específica para as pessoas que professam uma determinada religião ou convicções, efetivamente constitutiva de uma discriminação indireta baseada num desses motivos, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea b), desta diretiva.

29      A este respeito, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que uma regra interna adotada por uma entidade patronal que proíbe, no local de trabalho, o uso de todos os sinais visíveis de convicções, nomeadamente, filosóficas ou religiosas, é suscetível de constituir uma diferença de tratamento indiretamente baseada na religião ou nas convicções, na aceção desta disposição, se se demonstrar que a obrigação aparentemente neutra contida nessa regra implica, de facto, uma desvantagem específica para as pessoas que professam uma determinada religião ou convicções (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de março de 2017, G 4S Secure Solutions, C‑157/15, EU:C:2017:203, n.o 34, e de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 59).

30      Em conformidade com o artigo 2.o, n.o 2, alínea b), i), da Diretiva 2000/78, uma diferença de tratamento desse tipo não constitui, todavia, uma discriminação indireta se for objetivamente justificada por um objetivo legítimo e se os meios utilizados para o alcançar forem adequados e necessários (Acórdão de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 60).

31      A este respeito, há que salientar que, embora caiba em última instância ao juiz nacional, que tem competência exclusiva para apreciar os factos, determinar se e em que medida a disposição do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal está em conformidade com esses requisitos, o Tribunal de Justiça, ao qual se pede que forneça ao juiz nacional respostas úteis, é competente para dar indicações, extraídas dos autos do processo principal, bem como das observações escritas e orais que lhe tenham sido submetidas, suscetíveis de permitir a esse juiz decidir o litígio concreto que lhe foi submetido.

32      Em primeiro lugar, no que respeita ao requisito relativo à existência de um objetivo legítimo, resulta do pedido de decisão prejudicial que, segundo o Município, o artigo 9.o do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal, que prevê a proibição do uso visível de todos os sinais que revelem as convicções, nomeadamente, filosóficas ou religiosas dos membros do pessoal do Município, quer estes estejam ou não em contacto com o público, tem por objetivo aplicar o princípio da neutralidade do serviço público, que tem o seu fundamento jurídico nos artigos 10.o e 11.o da Constitution belge (Constituição belga), no princípio da imparcialidade e no princípio da neutralidade do Estado.

33      A este respeito, deve ser reconhecida a cada Estado‑Membro, incluindo, se for caso disso, às suas entidades infraestatais, no respeito das competências que lhes são reconhecidas, uma margem de apreciação na conceção da neutralidade do serviço público que pretende promover no local de trabalho. Assim, a política de «neutralidade absoluta» que uma Administração Pública, no caso em apreço municipal, pretende impor aos seus trabalhadores, em função do seu contexto específico e no âmbito das suas competências, com vista a instaurar no seu seio um ambiente administrativo totalmente neutro, pode ser considerada objetivamente justificada por um objetivo legítimo, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea b), i), da Diretiva 2000/78. Do mesmo modo, pode ser objetivamente justificada por um objetivo legítimo a opção de uma outra Administração Pública, em função do seu contexto específico e no âmbito das suas competências, a favor de uma política de neutralidade diferente, como a autorização geral e indiferenciada do uso de sinais visíveis de convicções, nomeadamente, filosóficas ou religiosas, incluindo nos contactos com os utilizadores, ou a proibição do uso desses sinais limitada às situações que impliquem os referidos contactos.

34      Com efeito, a Diretiva 2000/78 fixa apenas um quadro geral a favor da igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, que deixa uma margem de apreciação aos Estados‑Membros e, se for caso disso, às suas entidades infraestatais, permitindo‑lhes ter em conta o contexto que lhes é próprio, relativamente à diversidade das suas abordagens quanto à importância que pretendem atribuir internamente à religião ou às convicções filosóficas no setor público. A margem de apreciação assim reconhecida aos Estados‑Membros e, sendo caso disso, às suas entidades infraestatais, quando não haja consenso no âmbito da União, deve, no entanto, ser acompanhada de fiscalização, que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais e da União, que consiste, designadamente, em verificar se as medidas adotadas, consoante o caso, a nível nacional, regional ou local se justificam no seu princípio e se são proporcionadas (v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.os 86 e 88 e jurisprudência referida).

35      Além disso, resulta da Diretiva 2000/78 que o legislador da União não procedeu ele próprio à conciliação necessária entre a liberdade de pensamento, de convicção e de religião e os objetivos legítimos que podem ser invocados como justificação de uma desigualdade de tratamento, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea b), i), desta diretiva, tendo deixado a incumbência de proceder a essa conciliação aos Estados‑Membros e, sendo caso disso, às suas entidades infraestatais e aos seus órgãos jurisdicionais (Acórdão de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 87).

36      Por conseguinte, pode considerar‑se que uma disposição como o artigo 9.o do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal prossegue um objetivo legítimo, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea b), i, da Diretiva 2000/78.

37      Em segundo lugar, como foi recordado no n.o 30 do presente acórdão, uma regra interna como a que está em causa no processo principal, para escapar à qualificação de «discriminação indireta», na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2000/78, deve ainda ser apta a garantir a boa aplicação do objetivo prosseguido pela entidade patronal. No caso em apreço, isso pressupõe que o objetivo de «neutralidade absoluta» fixado pelo Município seja verdadeiramente prosseguido de forma coerente e sistemática, e que a proibição do uso de qualquer sinal visível de convicções, nomeadamente, filosóficas e religiosas que o artigo 9.o do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal implica se limite ao estritamente necessário (v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 68).

38      A este respeito, antes de mais, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o Município prossegue esse objetivo de forma verdadeiramente coerente e sistemática em relação a todos os trabalhadores.

39      Em seguida, há que salientar que o objetivo legítimo que consiste em assegurar, através de uma política de «neutralidade absoluta» como a prevista pelo artigo 9.o do Regulamento de Trabalho em causa no processo principal, um ambiente administrativo totalmente neutro só pode ser eficazmente prosseguido se não for autorizada nenhuma manifestação visível de convicções, nomeadamente, filosóficas ou religiosas, quando os trabalhadores estiverem em contacto com os utilizadores do serviço público ou em contacto entre eles, uma vez que o uso de qualquer sinal, mesmo de pequena dimensão, põe em risco a aptidão da medida para alcançar o objetivo pretensamente prosseguido e põe, assim, em causa a própria coerência desta política (v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, WABE e MH Müller Handel, C‑804/18 e C‑341/19, EU:C:2021:594, n.o 77). Por conseguinte, esta regra é necessária.

40      Caberá ainda ao órgão jurisdicional de reenvio proceder, à luz de todos os elementos característicos do contexto em que esta regra foi adotada, a uma ponderação dos interesses em presença tendo em conta, por um lado, os direitos e princípios fundamentais em causa, a saber, no caso em apreço, o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião garantido no artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais, que tem por corolário a proibição de discriminação baseada na religião, consagrada no artigo 21.o da mesma, e, por outro, o princípio da neutralidade em aplicação do qual a Administração Pública em causa visa garantir, através da referida regra limitada ao local de trabalho, aos utilizadores dos seus serviços e aos membros do seu pessoal um ambiente administrativo sem manifestações visíveis de convicções, nomeadamente, filosóficas ou religiosas.

41      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 2.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2000/78 deve ser interpretado no sentido de que uma regra interna de uma administração municipal que proíbe, de forma geral e indiferenciada, aos membros do pessoal desta administração o uso visível, no local de trabalho, de todos os sinais que revelem, nomeadamente, convicções filosóficas ou religiosas pode ser justificada pela vontade da referida administração de instaurar, atento o seu contexto, um ambiente administrativo totalmente neutro, desde que esta regra seja adequada, necessária e proporcionada à luz desse contexto e atendendo aos diferentes direitos e interesses em presença.

 Quanto à segunda questão

42      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2000/78 deve ser interpretado no sentido de que autoriza uma autoridade pública a organizar um ambiente administrativo totalmente neutro proibindo o uso visível de sinais que revelem, nomeadamente, convicções filosóficas ou religiosas a todos os membros do seu pessoal, quer estejam ou não em contacto direto com o público, quando esta proibição parece afetar uma maioria de mulheres e é, por conseguinte, suscetível de constituir uma discriminação indireta em razão do sexo.

43      A este propósito, importa recordar que resulta do espírito de cooperação que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial que é indispensável que o tribunal nacional exponha, na decisão de reenvio, as razões precisas pelas quais considera que é necessária para a decisão da causa uma resposta às suas questões de interpretação de certas disposições de direito da União (Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.o 20 e jurisprudência referida).

44      Segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este respeite escrupulosamente as exigências de conteúdo de um pedido de decisão prejudicial e que figuram expressamente no artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça (Acórdão de 19 de abril de 2018, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑152/17, EU:C:2018:264, n.o 21 e jurisprudência referida).

45      Assim, por um lado, em conformidade com o artigo 94.o, alínea a), do Regulamento de Processo, é indispensável que o órgão jurisdicional de reenvio defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que submete ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que essas questões assentam. Com efeito, no âmbito do processo instituído pelo artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça apenas tem competência para se pronunciar sobre a interpretação de um texto da União a partir dos factos que lhe são indicados pelo órgão jurisdicional nacional (Acórdão de 2 de março de 2023, Bursa Română de Mărfuri, C‑394/21, EU:C:2023:146, n.o 60 e jurisprudência referida).

46      Por outro lado, como enuncia o artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo, é indispensável que a decisão de reenvio contenha a exposição das razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação de certas disposições do direito da União, bem como o nexo que esse órgão estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal (Acórdão de 2 de setembro de 2021, Irish Ferries, C‑570/19, EU:C:2021:664, n.o 133 e jurisprudência referida).

47      Importa igualmente sublinhar que as informações contidas nas decisões de reenvio servem não só para permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis mas também para dar aos Governos dos Estados‑Membros, bem como aos outros interessados, a possibilidade de apresentarem observações em conformidade com o artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Incumbe ao Tribunal de Justiça garantir que essa possibilidade seja salvaguardada, tendo em conta o facto de, por força desta disposição, apenas as decisões de reenvio serem notificadas aos interessados (Acórdão de 2 de setembro de 2021, Irish Ferries, C‑570/19, EU:C:2021:664, n.o 134 e jurisprudência referida).

48      No caso em apreço, no que respeita à existência de uma eventual discriminação indireta em razão do sexo, evocada nesta segunda questão, importa recordar que este motivo está abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2006/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2006, relativa à aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional (JO 2006, L 204, p. 23), que, no seu artigo 2.o, n.o 1, alínea b), define expressamente o conceito de discriminação indireta em razão do sexo, e não pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2000/78, que é o único ato visado pela referida questão.

49      Além disso, a decisão de reenvio não contém indicações que permitam determinar a hipótese factual em que a segunda questão assenta, bem como as razões pelas quais uma resposta a esta questão, para além da resposta à primeira questão, seria necessária para a resolução do litígio no processo principal.

50      Nestas condições, a segunda questão é inadmissível.

 Quanto às despesas

51      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 2.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional,

deve ser interpretado no sentido de que:

uma regra interna de uma administração municipal que proíbe, de forma geral e indiferenciada, aos membros do pessoal desta administração o uso visível, no local de trabalho, de todos os sinais que revelem, nomeadamente, convicções filosóficas ou religiosas pode ser justificada pela vontade da referida administração de instaurar, atento o seu contexto, um ambiente administrativo totalmente neutro, desde que esta regra seja adequada, necessária e proporcionada à luz desse contexto e atendendo aos diferentes direitos e interesses em presença.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.