Language of document : ECLI:EU:C:2024:81

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

25 de janeiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Encargos decorrentes da formalização do contrato de mútuo hipotecário — Restituição das quantias pagas por força de uma cláusula declarada abusiva — Início da contagem do prazo de prescrição da ação de restituição»

Nos processos apensos C‑810/21 a C‑813/21,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Audiencia Provincial de Barcelona (Audiência Provincial de Barcelona, Espanha), por Decisões de 9 de dezembro de 2021, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 20 de dezembro de 2021, nos processos

Caixabank, S. A., anteriormente Bankia, S. A.,

contra

WE,

XA (C‑810/21),

e

Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S. A.,

contra

TB,

UK (C‑811/21),

e

Banco Santander, S. A.,

contra

OG (C‑812/21),

e

OK,

PI

contra

Banco Sabadell, S. A., (C‑813/21),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: O. Spineanu‑Matei, presidente de secção, S. Rodin (relator) e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Caixabank, S. A., por J. Gutiérrez de Cabiedes Hidalgo de Caviedes, abogado,

–        em representação de WE, XA, TB, UK, OG, OK e PI, por J. Fraile Mena, procurador, e F. García Domínguez, abogado,

–        em representação do Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S. A., por J. M. Rodríguez Cárcamo e A. M. Rodríguez Conde, abogados,

–        em representação do Banco Santander, S. A., por M. García‑Villarrubia Bernabé e C. Vendrell Cervantes, abogados,

–        em representação do Banco Sabadell, S. A., por G. Serrano Fenollosa e R. Vallina Hoset, abogados,

–        em representação do Governo Espanhol, por A. Ballesteros Panizo e A. Pérez‑Zurita Gutiérrez, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Rocchitta, avvocato dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Baquero Cruz e N. Ruiz García, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem, no processo C‑810/21, o Caixabank, S. A., anteriormente Bankia, S. A., a WE e a XA, no processo C‑811/21, o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S. A., a TB e UK, no processo C‑812/21, o Banco Santander, S. A., a OG e, no processo C‑813/21, OK e PI ao Banco Sabadell, S. A., a respeito das consequências da anulação de uma cláusula abusiva contida em contratos de mútuo hipotecário celebrados entre estas partes.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 2.o, alínea b), da Diretiva 93/13 enuncia:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

b)      “Consumidor”: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue com fins que não pertençam ao âmbito da sua atividade profissional.»

4        O artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

5        O artigo 7.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

 Direito espanhol

 Código Civil catalão

6        O artigo 121.o–20 da Ley 29/2002, primera Ley del Código Civil de Cataluña (Lei 29/2002, Primeira Lei do Código Civil da Catalunha), de 30 de dezembro de 2002 (BOE n.o 32, de 6 de fevereiro de 2003, a seguir «Código Civil catalão»), prevê:

«Os direitos prescrevem no prazo de dez anos independentemente da sua natureza, com exceção dos direitos adquiridos previamente por usucapião ou das situações em que o presente Código ou leis especiais disponham em sentido contrário.»

7        O artigo 121.o–23 deste código dispõe:

«O prazo de prescrição começa a correr quando o direito existir e for exercível e o seu titular conhece ou podia razoavelmente conhecer as circunstâncias nas quais esse direito se baseia e a pessoa contra a qual o pode exercer.»

8        Nos termos do artigo 121.o–11 do referido código:

«Constituem causas de interrupção da prescrição:

a)      A propositura da ação nos tribunais, mesmo que esta seja julgada improcedente por vício processual.

b)      A instauração do processo de arbitragem relativo ao crédito.

c)      Reclamação extrajudicial do crédito.

d)      O reconhecimento do direito ou a renúncia à prescrição pela pessoa a quem o crédito pode ser reclamado durante o prazo de prescrição.»

 Código Civil

9        O artigo 1303.o do Código Civil prevê:

«Declarada a nulidade de uma obrigação, as partes contratantes devem restituir reciprocamente o que tiver sido objeto do contrato e os respetivos frutos, bem como o preço, acrescido de juros, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes.»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

 Processo C810/21

10      Em 4 de fevereiro de 2004, WE e XA celebraram um contrato de mútuo hipotecário (a seguir «contrato de mútuo no processo C‑810/21») com o Bankia, que, em 2021, se fundiu com o Caixabank.

11      A última fatura relativa aos encargos decorrentes deste contrato, que dizia respeito aos custos notariais, de registo e de gestão do referido contrato, foi paga por WE e por XA em 4 de maio de 2004.

12      Em 16 de janeiro de 2018, WE e XA interpuseram recurso de anulação de uma cláusula contida no contrato de mútuo no processo C‑810/21, segundo a qual incumbia ao mutuário pagar todos os encargos decorrentes da celebração deste mesmo contrato.

13      O Bankia contestou este recurso alegando que a ação de restituição estava prescrita, uma vez que o prazo de prescrição da ação de dez anos previsto no artigo 121.o–20 do Código Civil catalão tinha expirado.

14      Por Decisão de 23 de setembro de 2020, o Juzgado de Primera Instancia n.o 50 de Barcelona (Tribunal de Primeira Instância n.o 50 de Barcelona, Espanha) julgou improcedente a exceção de prescrição suscitada pelo Bankia e condenou este banco ao pagamento de um montante de 468,48 euros pago a título de custos notariais, de registo e de gestão do contrato de mútuo no processo C‑810/21. O Bankia interpôs recurso desta decisão na Audiencia Provincial de Barcelona (Audiência Provincial de Barcelona, Espanha), o órgão jurisdicional de reenvio.

 Processo C811/21

15      Em 20 de janeiro de 2004, TB e UK celebraram um contrato de mútuo hipotecário (a seguir «contrato de mútuo no processo C‑811/21») com o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria.

16      A última fatura relativa aos encargos decorrentes deste contrato, que dizia respeito aos custos notariais, de registo e de gestão do referido contrato, foi paga por TB e por UK em 15 de março de 2004.

17      Em 16 de janeiro de 2018, TB e UK interpuseram recurso de anulação de uma cláusula contida no contrato de mútuo no processo C‑811/21, segundo a qual incumbia ao mutuário pagar todos os encargos decorrentes da celebração deste mesmo contrato.

18      O Banco Bilbao Vizcaya Argentaria contestou este recurso alegando que a ação de restituição estava prescrita, uma vez que o prazo de prescrição da ação de dez anos previsto no artigo 121.o–20 do Código Civil catalão tinha expirado.

19      Por Decisão de 25 de setembro de 2020, o Juzgado de Primera Instancia n.o 50 de Barcelona (Tribunal de Primeira Instância n.o 50 de Barcelona) julgou improcedente a exceção de prescrição suscitada pelo Banco Bilbao Vizcaya Argentaria e condenou este banco no pagamento de um montante de 499,61 euros pago a título de custos notariais, de registo e de gestão do contrato de mútuo no processo C‑811/21. O Banco Bilbao Vizcaya Argentaria interpôs recurso desta decisão na Audiencia Provincial de Barcelona (Audiência Provincial de Barcelona), o órgão jurisdicional de reenvio.

 Processo C812/21

20      Em 17 de dezembro de 2004, OG celebrou um contrato de mútuo hipotecário (a seguir «contrato de mútuo no processo C‑812/21») com o Banco Santander.

21      A última fatura relativa aos encargos decorrentes deste contrato, que dizia respeito aos custos notariais, de registo e de gestão do referido contrato, foi paga por OG em 18 de março de 2005.

22      Em 12 de setembro de 2017, OG interpôs recurso de anulação de uma cláusula contida no contrato de mútuo no processo C‑812/21, segundo a qual incumbia ao mutuário pagar todos os encargos decorrentes da celebração deste contrato.

23      O Banco Santander contestou este recurso alegando que a ação de restituição estava prescrita, uma vez que o prazo de prescrição da ação de dez anos previsto no artigo 121.o–20 do Código Civil catalão tinha expirado.

24      Por Decisão de 25 de setembro de 2020, o Juzgado de Primera Instancia n.o 50 de Barcelona (Tribunal de Primeira Instância n.o 50 de Barcelona, Espanha) julgou improcedente a exceção de prescrição suscitada pelo Banco Santander e condenou este banco no pagamento de um montante de 589,60 euros pago a título de custos notariais, de registo e de gestão do contrato de mútuo no processo C‑812/21. O Banco Santander interpôs recurso desta decisão na Audiencia Provincial de Barcelona (Audiência Provincial de Barcelona), o órgão jurisdicional de reenvio.

 Processo C813/21

25      Em 14 de julho de 2006, OK e PI celebraram um contrato de mútuo hipotecário (a seguir «contrato de mútuo no processo C‑813/21») com o Banco Sabadell.

26      A última fatura relativa aos encargos decorrentes deste contrato, que dizia respeito aos custos notariais, de registo e de gestão do referido contrato, foi paga por OK e por PI em 4 de outubro de 2006.

27      Após terem apresentado, em 15 de novembro de 2017, uma reclamação extrajudicial contra o Banco Sabadell, à qual este banco não deu seguimento, OK e PI interpuseram, em 15 de dezembro de 2017, um recurso de anulação de uma cláusula contida no contrato de mútuo no processo C‑813/21, segundo a qual incumbia ao mutuário pagar todos os encargos decorrentes da celebração deste contrato.

28      O Banco Sabadell contestou este recurso alegando que a ação de restituição estava prescrita, uma vez que o prazo de prescrição da ação de dez anos previsto no artigo 121.o–20 do Código Civil catalão tinha expirado.

29      Por Decisão de 11 de janeiro de 2021, o Juzgado de Primera Instancia n.o 50 de Barcelona (Tribunal de Primeira Instância n.o 50 de Barcelona) julgou procedente a exceção relativa à prescrição da ação de restituição suscitada pelo Banco Sabadell. OK e PI interpuseram recurso desta decisão na Audiencia Provincial de Barcelona (Audiência Provincial de Barcelona), o órgão jurisdicional de reenvio.

30      O órgão jurisdicional de reenvio nos processos apensos C‑810/21 a C‑813/21 refere a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual a propositura da ação de restituição pode estar sujeita a um prazo de prescrição, desde que o início da contagem deste prazo e a sua duração não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício do direito do consumidor de pedir essa restituição.

31      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, para verificar se um prazo de prescrição é conforme com o princípio da efetividade, devem ser tidos em conta dois parâmetros, ou seja, por um lado, a duração do prazo de prescrição e, por outro, o início da contagem deste prazo.

32      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a Comunidade Autónoma da Catalunha dispõe de legislação própria que se desvia, em certos aspetos, da regulamentação espanhola e que o Código Civil catalão fixa um prazo de prescrição de dez anos, que é duas vezes mais longo do que o prazo de prescrição previsto no Código Civil espanhol para as ações pessoais.

33      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, no caso em apreço, o prazo de prescrição de dez anos em causa no processo principal não viola o princípio da efetividade, uma vez que este prazo é suficiente para permitir ao consumidor preparar e recorrer a uma via judicial efetiva. No entanto, este órgão jurisdicional emite dúvidas quanto à interpretação correta do direito nacional no que respeita à determinação do início da contagem do referido prazo, que, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve permitir ao consumidor tomar conhecimento da existência de uma cláusula abusiva e intentar uma ação destinada a obter a declaração de nulidade desta cláusula.

34      O órgão jurisdicional de reenvio observa que, ao contrário das cláusulas contratuais que o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de examinar no âmbito de processos que lhe foram submetidos, uma cláusula como a que está em causa nos processos principais, que faz recair sobre o mutuário todos os encargos de celebração do contrato de mútuo hipotecário, esgota os seus efeitos com o pagamento pelo consumidor da última fatura relativa a estes encargos. Ora, esse órgão jurisdicional considera que a jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual um prazo de três anos a partir da data do enriquecimento injustificado é suscetível de tornar excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela Diretiva 93/13 não é aplicável no caso em apreço. Este considera, a este respeito, que esta jurisprudência assenta no facto de o prazo de prescrição poder começar a correr mesmo antes de todos os pagamentos serem efetuados.

35      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o conhecimento do caráter abusivo de uma cláusula contratual pelo consumidor deve incidir unicamente sobre os elementos factuais constitutivos deste caráter abusivo ou se deve igualmente abranger a apreciação jurídica destes factos. Esse órgão jurisdicional considera que, embora este conhecimento deva unicamente incidir sobre estes elementos factuais, a data do pagamento da última fatura pode constituir o momento a partir do qual começa a correr o prazo de prescrição, sabendo que, no caso em apreço, a cláusula em causa no processo principal esgotou os seus efeitos com o referido pagamento.

36      Todavia, embora o respeito do princípio da efetividade exija que o consumidor esteja em condições de apreciar juridicamente os referidos elementos factuais, é ainda necessário que sejam determinadas, para este efeito, as informações que devem ser postas à disposição de um consumidor médio. A este respeito, após ter exposto a jurisprudência do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se uma jurisprudência nacional assente pode ser suscetível de permitir ao consumidor espanhol ter pleno conhecimento, no plano jurídico, do caráter abusivo de uma cláusula contratual.

37      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o conhecimento do caráter abusivo de uma cláusula deve ocorrer antes de o prazo de prescrição começar a correr, em conformidade com as normas nacionais, ou antes de o prazo terminar. A este respeito, esse órgão jurisdicional precisa, por um lado, que, ao contrário do prazo de prescrição de cinco anos previsto pelo Código Civil espanhol, o prazo de prescrição é alargado para dez anos no âmbito de aplicação territorial do Código Civil catalão e, por outro, que a propositura da ação é favorecida no sistema jurídico nacional, uma vez que a simples reclamação extrajudicial constitui uma causa de interrupção do prazo e faz correr novamente o prazo na sua globalidade.

38      Nestas condições, a Audiencia Provincial de Barcelona (Audiência Provincial de Barcelona) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      a)      No âmbito de uma ação destinada a invocar os efeitos de restituição da declaração de nulidade de uma cláusula que faz recair sobre o mutuário os encargos decorrentes da celebração do contrato, é compatível com o artigo 6.o, n.o 1, e com o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 subordinar a propositura da ação a um prazo de prescrição de dez anos contado a partir do momento em que a cláusula esgota os seus efeitos depois de ter sido realizado o último dos pagamentos, momento em que o consumidor toma conhecimento dos factos que determinam o caráter abusivo da cláusula, ou é necessário que o consumidor disponha de informações adicionais sobre a apreciação jurídica dos factos?

b)      Se for necessário ter conhecimento da apreciação jurídica dos factos, deve o início da contagem do prazo estar subordinado à existência de um critério jurisprudencial consolidado sobre a nulidade da cláusula ou pode o órgão jurisdicional nacional tomar em consideração outras circunstâncias diferentes?

2)      Estando a ação de restituição sujeita a um longo prazo de prescrição de dez anos, em que momento se deve considerar que o consumidor está em condições de conhecer o caráter abusivo da cláusula e os direitos que lhe são conferidos pela [Diretiva 93/13]: antes de o prazo de prescrição começar a correr ou antes de o prazo terminar?»

 Quanto às questões prejudiciais

39      A título preliminar, importa observar que a primeira questão prejudicial é composta por duas partes e que só se deve responder à segunda parte desta questão em caso de resposta negativa à primeira parte desta questão.

40      Além disso, há que examinar a segunda questão prejudicial conjuntamente com a primeira parte da referida primeira questão.

 Quanto à primeira parte da primeira questão e à segunda questão

41      Com a primeira parte da primeira questão e a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, lidos à luz do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma interpretação jurisprudencial do direito nacional segundo a qual, na sequência da anulação de uma cláusula contratual abusiva que faz recair sobre o consumidor os encargos decorrentes da celebração de um contrato de mútuo hipotecário, a ação de restituição destes encargos está sujeita a um prazo de prescrição de dez anos que começa a correr a partir do momento em que esta cláusula esgota os seus efeitos depois de ter sido realizado o último pagamento dos referidos encargos, sem que seja pertinente a este respeito que este consumidor tenha conhecimento da apreciação jurídica dos elementos constitutivos do caráter abusivo da referida cláusula e, em caso afirmativo, se estas disposições devem ser interpretadas no sentido de que este conhecimento deve ocorrer antes de o prazo de prescrição começar a correr ou antes de terminar.

42      Importa recordar que, na falta de regras da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro, por força do princípio da autonomia processual, regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, desde que, no entanto, não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (Acórdão de 22 de abril de 2021, Profi Credit Slovakia, C‑485/19, EU:C:2021:313, n.o 52 e jurisprudência referida).

43      Tratando‑se da oposição de um prazo de prescrição a um pedido apresentado por um consumidor para efeitos da restituição de quantias indevidamente pagas, com base no caráter abusivo de uma cláusula contratual, na aceção da Diretiva 93/13, importa recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, dessa diretiva não se opõem a que uma regulamentação nacional que, embora preveja a imprescritibilidade da ação destinada a obter a declaração da nulidade de uma cláusula abusiva constante de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, sujeita a um prazo de prescrição a ação destinada a invocar os efeitos restitutivos dessa declaração, sob reserva do respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade (Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 39 e jurisprudência referida).

44      Assim, há que considerar que a oposição de um prazo de prescrição aos pedidos de caráter restitutivo, apresentados pelos consumidores para invocarem direitos resultantes da Diretiva 93/13, não é, em si mesma, contrária ao princípio da efetividade, desde que a sua aplicação não torne, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos por esta diretiva (Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 40).

45      No que respeita, em especial, ao princípio da efetividade, há que salientar que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na tramitação deste e nas suas particularidades, perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, sendo caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a correta tramitação do processo [Acórdão de 8 de setembro de 2022, D.B.P. e o. (Mútuo hipotecário denominado em divisas estrangeiras] C‑80/21 a C‑82/21, EU:C:2022:646, n.o 87 e jurisprudência referida].

46      No que respeita à análise das características do prazo de prescrição em causa nos processos principais, o Tribunal de Justiça precisou que esta análise deve incidir sobre a duração desse prazo e sobre as modalidades da sua aplicação, incluindo a modalidade acolhida para desencadear o início desse prazo (Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 30 e jurisprudência referida).

47      A este respeito, para ser considerado conforme com o princípio da efetividade, um prazo de prescrição deve ser materialmente suficiente para permitir ao consumidor preparar e recorrer a uma via judicial efetiva, a fim de invocar os direitos resultantes da Diretiva 93/13, e isso nomeadamente sob a forma de pretensões, de natureza restitutiva, baseadas no caráter abusivo de uma cláusula contratual. (v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 31 e jurisprudência referida).

48      Há que salientar que, quanto ao início da contagem de um prazo de prescrição, tal prazo só pode ser compatível com o princípio da efetividade se o consumidor tiver tido a possibilidade de conhecer os seus direitos antes de esse prazo começar a correr ou de terminar (Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 46 e jurisprudência referida).

49      Ora, no caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que a interpretação jurisprudencial das regras processuais nacionais aplicáveis nos processos principais, independentemente da circunstância de estas preverem que o prazo de prescrição da ação do consumidor para restituição dos pagamentos indevidos dos encargos relativos a contratos de mútuo hipotecário, com uma duração de dez anos, não pode começar a correr antes de o consumidor tomar conhecimento dos factos constitutivos do caráter abusivo da cláusula contratual em execução da qual esses pagamentos foram efetuados, não exige que o consumidor tenha conhecimento não só desses factos, mas também da apreciação jurídica dos mesmos, a qual implica que este consumidor tenha também conhecimento dos direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 93/13.

50      No entanto, para que as modalidades de aplicação de um prazo de prescrição sejam conformes com o princípio da efetividade, não basta preverem que o consumidor deve ter conhecimento dos factos constitutivos do caráter abusivo de uma cláusula contratual, sem ter em conta, por um lado, o seu conhecimento dos direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 93/13 e, por outro, o facto de dispor de tempo suficiente para lhe permitir preparar efetivamente e recorrer a uma via judicial a fim de invocar estes direitos.

51      Daqui resulta que um prazo de prescrição como o da ação de restituição dos encargos hipotecários em causa nos processos principais não é conforme com o princípio da efetividade uma vez que as suas modalidades de aplicação não têm em consideração estes dois últimos elementos.

52      No que respeita à questão de saber se o conhecimento pelo consumidor do caráter abusivo de uma cláusula contratual e dos direitos conferidos pela Diretiva 93/13 deve ocorrer antes de o prazo de prescrição da ação de restituição começar a correr ou antes de ter terminado, há que salientar que o requisito, mencionado no n.o 48 do presente acórdão, segundo o qual um prazo de prescrição só pode ser compatível com o princípio da efetividade se o consumidor tiver tido a possibilidade de conhecer esses direitos antes de este prazo começar a correr ou de ter expirado, foi extraída da jurisprudência do Tribunal de Justiça para efeitos do exame, de modo casuístico, da compatibilidade de um prazo de prescrição específico, acompanhado das modalidades de aplicação determinadas pelo direito nacional em causa, com o princípio da efetividade.

53      Com efeito, como decorre dos n.os 45 a 47 do presente acórdão, quando o Tribunal de Justiça interpreta o direito da União a fim de fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio indicações úteis que lhe devem permitir apreciar a compatibilidade de uma regra processual nacional com o princípio da efetividade, este tem em conta todos os elementos pertinentes da ordem jurídica nacional que lhe são submetidos por esse órgão jurisdicional, e não apenas uma regra relativa a um dos aspetos do prazo de prescrição em causa, considerada isoladamente.

54      Assim, pode acontecer que uma regra nacional segundo a qual um prazo de prescrição não pode começar a correr antes de um consumidor tomar conhecimento do caráter abusivo de uma cláusula contratual e dos direitos conferidos pela Diretiva 93/13, que parece a priori conforme com o princípio da efetividade, viole, todavia, este princípio se a duração do referido prazo não for materialmente suficiente para permitir ao consumidor preparar e recorrer a uma via judicial efetiva a fim de fazer valer os direitos que lhe são conferidos por esta diretiva.

55      Em face do exposto, há que responder à primeira parte da primeira questão e à segunda questão que o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, lidos à luz do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma interpretação jurisprudencial do direito nacional segundo a qual, na sequência da anulação de uma cláusula contratual abusiva que faz recair sobre o consumidor os encargos decorrentes da celebração de um contrato de mútuo hipotecário, a ação de restituição destes encargos está sujeita a um prazo de prescrição de dez anos que começa a correr a partir do momento em que esta cláusula esgota os seus efeitos depois de ter sido realizado o último pagamento dos referidos encargos, sem que seja considerado pertinente a este respeito que este consumidor tenha conhecimento da apreciação jurídica destes factos. A compatibilidade das modalidades de aplicação de um prazo de prescrição com estas disposições deve ser apreciada tendo em conta estas modalidades no seu conjunto.

 Quanto à segunda parte da primeira questão

56      Com a segunda parte da primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma interpretação jurisprudencial do direito nacional segundo a qual, para determinar o início da contagem do prazo de prescrição da ação do consumidor para restituição das quantias indevidamente pagas em execução de uma cláusula contratual abusiva, se pode considerar que a existência de jurisprudência nacional assente relativa à nulidade de cláusulas semelhantes estabelece como preenchido o requisito relativo ao conhecimento, pelo consumidor em causa, do caráter abusivo da referida cláusula e das consequências jurídicas que daí decorrem.

57      A este respeito, em primeiro lugar, há que recordar que o sistema de proteção instituído pela Diretiva 93/13 assenta na premissa de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profissional, no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação, situação que o leva a aderir às condições redigidas previamente pelo profissional, sem poder influir no conteúdo destas (Acórdão de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai, C‑26/13, EU:C:2014:282, n.o 39 e jurisprudência referida).

58      Em segundo lugar, a posição privilegiada em que o profissional se encontra, no que respeita ao nível de informação de que dispõe, continua a prevalecer após a celebração do contrato. Assim, quando o caráter abusivo de certas cláusulas normalizadas tiver sido declarado por jurisprudência nacional assente, é de esperar que as instituições bancárias disso sejam informadas e atuem em conformidade (v., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2023, CAJASUR Banco, C‑35/22, EU:C:2023:569, n.o 32).

59      Em contrapartida, não se pode presumir que o nível de informação de um consumidor, inferior ao do profissional, integre o conhecimento da jurisprudência nacional em matéria de direito do consumo, ainda que esta jurisprudência esteja assente.

60      A este respeito, importa recordar que resulta da redação do artigo 2.o, alínea b), da Diretiva 93/13 que a proteção concedida pela mesma depende dos fins com que uma pessoa singular atua, ou seja, os que não pertençam ao âmbito da sua atividade profissional. Ora, embora possa ser exigido dos profissionais que se mantenham informados sobre os aspetos jurídicos relativos às cláusulas que tomam a iniciativa de incluir nos contratos que celebram com os consumidores no âmbito de uma atividade comercial habitual, nomeadamente à luz da jurisprudência nacional relativa a tais cláusulas, não se pode esperar uma atitude semelhante por parte destes últimos, tendo em conta o caráter ocasional, ou até mesmo excecional, da celebração de um contrato que contenha tal cláusula.

61      Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda parte da primeira questão que a Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma interpretação jurisprudencial do direito nacional segundo a qual, para determinar o início da contagem do prazo de prescrição da ação do consumidor para restituição das quantias indevidamente pagas em execução de uma cláusula contratual abusiva, se pode considerar que a existência de jurisprudência nacional assente relativa à nulidade de cláusulas semelhantes estabelece como preenchido o requisito relativo ao conhecimento, pelo consumidor em causa, do caráter abusivo da referida cláusula e das consequências jurídicas que daí decorrem.

 Quanto às despesas

62      Revestindo o processo, quanto às partes nos processos principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

1)      O artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lidos à luz do princípio da efetividade,

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a uma interpretação jurisprudencial do direito nacional segundo a qual, na sequência da anulação de uma cláusula contratual abusiva que faz recair sobre o consumidor os encargos decorrentes da celebração de um contrato de mútuo hipotecário, a ação de restituição destes encargos está sujeita a um prazo de prescrição de dez anos que começa a correr a partir do momento em que esta cláusula esgota os seus efeitos depois de ter sido realizado o último pagamento dos referidos encargos, sem que seja considerado pertinente a este respeito que este consumidor tenha conhecimento da apreciação jurídica destes factos. A compatibilidade das modalidades de aplicação de um prazo de prescrição com estas disposições deve ser apreciada tendo em conta estas modalidades no seu conjunto.

2)      A Diretiva 93/13

deve ser interpretada no sentido de que:

se opõe a uma interpretação jurisprudencial do direito nacional segundo a qual, para determinar o início da contagem do prazo de prescrição da ação do consumidor para restituição das quantias indevidamente pagas em execução de uma cláusula contratual abusiva, se pode considerar que a existência de jurisprudência nacional assente relativa à nulidade de cláusulas semelhantes estabelece como preenchido o requisito relativo ao conhecimento, pelo consumidor em causa, do caráter abusivo da referida cláusula e das consequências jurídicas que daí decorrem.

Assinaturas


*      Língua do processo: espanhol.