Language of document : ECLI:EU:C:2024:78

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

25 de janeiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Mercado interno do gás natural — Diretiva 2009/73/CE — Artigo 41.o n.o 17 — Rede de transporte de gás natural — Autoridade reguladora nacional — Fixação das tarifas de utilização da rede e de ligação à rede — Fixação da remuneração dos serviços prestados pelo operador da rede — Conceito de “parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora” — Recurso dessa decisão — Direito à ação — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

No processo C‑277/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria), por Decisão de 22 de março de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de abril de 2022, no processo

Global NRG Kereskedelmi és Tanácsadó Zrt.

contra

Magyar Energetikai és Közműszabályozási Hivatal,

sendo interveniente:

FGSZ Földgázszállító Zrt.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Piçarra (relator), presidente de secção, M. Safjan e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 7 de setembro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Global NRG Kereskedelmi és Tanácsadó Zrt., por K. Bendzsel‑Zsebik, M. Kohlrusz e B. Világi, ügyvédek,

–        em representação da Magyar Energetikai és Közmű‑szabályozási Hivatal, por L. Hoschek, A. T. Kiss e F. F. Tölgyessy, conselheiros jurídicos,

–        em representação da FGSZ Földgázszállító Zrt., por K. Barkasziné Takács e P. Németh, conselheiros jurídicos,

–        em representação do Governo Húngaro, por M. Z. Fehér e M. M. Tátrai, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Espanhol, por A. Gavela Llopis e J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo Finlandês, por A. Laine, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por O. Beynet, T. Scharf e A. Tokár, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE (JO 2009, L 211, p. 94), à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Global NRG Kereskedelmi és Tanácsadó Zrt. (a seguir «Global NRG»), uma sociedade que comercializa gás natural, à Magyar Energetikai és Közmű‑szabályozási Hivatal (Autoridade Húngara de Regulação do Setor da Energia e dos Serviços de Utilidade Pública) (a seguir «regulador nacional»), a respeito da legalidade da decisão do regulador nacional que fixa as tarifas de utilização e de ligação à rede de transporte de gás natural, bem como a remuneração dos serviços prestados pelo operador dessa rede.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 2009/73

3        O considerando 33 da Diretiva 2009/73 enuncia:

«[…] O organismo independente para o qual uma parte afetada pela decisão de um regulador nacional tem o direito de recorrer pode ser qualquer tribunal competente para levar a cabo um controlo judicial.»

4        O artigo 32.o desta diretiva, sob a epígrafe «Acesso de terceiros», prevê, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros devem garantir a aplicação de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição e às instalações de [gás natural liquefeito (GNL)] baseado em tarifas publicadas, aplicáveis a todos os clientes elegíveis, incluindo as empresas de comercialização, e aplicadas objetivamente e sem discriminação aos utilizadores da rede. Os Estados‑Membros devem assegurar que essas tarifas, ou as metodologias em que se baseia o respetivo cálculo, sejam aprovadas em conformidade com o artigo 41.o pela entidade reguladora a que se refere o n.o 1 do artigo 39.o antes de entrarem em vigor, e que essas tarifas — e as metodologias, no caso de apenas serem aprovadas metodologias — sejam publicadas antes de entrarem em vigor.»

5        Nos termos do artigo 41.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Obrigações e competências das entidades reguladoras»:

«1.      As entidades reguladoras têm as seguintes obrigações:

a)      Estabelecer ou aprovar, mediante critérios transparentes, tarifas regulamentadas de transmissão ou distribuição ou as suas metodologias;

[…]

6.      As entidades reguladoras são responsáveis por fixar ou aprovar, com um prazo suficiente, antes da sua entrada em vigor, pelo menos as metodologias a utilizar para calcular ou estabelecer os termos e condições de:

a)      Ligação e acesso às redes nacionais, incluindo as tarifas de transporte e distribuição e as condições e tarifas de acesso às instalações de GNL. […];

[…]

10.      As entidades reguladoras devem dispor de competências para obrigar, se necessário, os operadores das redes de transporte, armazenamento, GNL e distribuição a alterarem os termos e condições, incluindo as tarifas e metodologias a que se refere o presente artigo, a fim de garantir que sejam proporcionadas e aplicadas de forma não discriminatória. […]

[…]

17.      Os Estados‑Membros devem garantir a existência de mecanismos adequados ao nível nacional que confiram a uma parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional o direito de recorrer para um órgão independente das partes envolvidas e de qualquer governo.»

 Regulamento (CE) n.o 715/2009

6        O artigo 13.o do Regulamento (CE) n.o 715/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, relativo às condições de acesso às redes de transporte de gás natural e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1775/2005 (JO 2009, L 211, p. 36), sob a epígrafe «Tarifas de acesso às redes», prevê, no seu n.o 1:

«As tarifas, ou as metodologias utilizadas para as calcular, aplicadas pelos operadores da rede de transporte e aprovadas pelas entidades reguladoras nos termos do n.o 6 do artigo 41.o da Diretiva [2009/73], bem como as tarifas publicadas nos termos do n.o 1 do artigo 32.o da referida diretiva, devem ser transparentes, ter em conta a necessidade de integridade da rede e da sua melhoria e refletir os custos realmente suportados, na medida em que estes correspondam aos de um operador de rede eficiente e estruturalmente comparável e sejam transparentes, incluindo a rentabilidade adequada dos investimentos, bem como tomar em consideração, se for caso disso, a aferição comparativa das tarifas pelas entidades reguladoras. As tarifas, ou a metodologia utilizada para as calcular, devem ser aplicadas de forma não discriminatória.»

 Direito húngaro

7        O artigo 129/B da a földgázellátásról szóló 2008. évi XL. törvény (Lei XL de 2008, relativa ao Fornecimento de Gás Natural) (a seguir «Lei relativa ao Fornecimento de Gás Natural») prevê, no seu n.o 1:

«Nos procedimentos em que se fixam as tarifas de utilização da rede, as tarifas dos serviços que podem ser prestados pelos operadores da rede com base em tarifas especiais e as tarifas de ligação, apenas o operador da rede em causa será considerado diretamente afetado.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8        Por Decisão de 10 de agosto de 2021, o regulador nacional fixou, para o período de 1 de outubro de 2021 a 30 de setembro de 2025, a tarifa especial em matéria de fornecimento de gás natural, aplicável pela FGSZ Földgázszállító Zrt., operadora da rede de transporte de gás natural, e o montante das tarifas de ligação aos gasodutos (a seguir «decisão controvertida»). Esta decisão baseia‑se numa decisão anterior do regulador nacional, de 30 de março de 2021, que estabelece o método de cálculo do preço de referência, a qual, na sequência de um recurso interposto pela Global NRG, foi declarada ilegal e anulada com efeitos retroativos pela Kúria (Supremo Tribunal, Hungria).

9        A Global NRG interpôs também um recurso de anulação da decisão controvertida no Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria), o órgão jurisdicional de reenvio. Sustenta que esta decisão é ilegal porque, por um lado, a Decisão de 30 de março de 2021 foi declarada ilegal e, por outro, porque as tarifas aplicáveis ao serviço de transferência de direitos foram fixadas em violação do Regulamento (UE) 2017/460 da Comissão, de 16 de março de 2017, que estabelece um código de rede relativo a estruturas tarifárias harmonizadas para o transporte de gás (JO 2017, L 72, p. 29).

10      A Global NRG alega igualmente que, uma vez que o direito nacional confere ao utilizador da rede de transporte de gás natural um direito de recurso das decisões, como a de 30 de março de 2021, relativas ao método de cálculo do preço de referência que serve de base à fixação das tarifas de utilização dessa rede, é contrário ao direito da União privar esse utilizador do direito de recurso da decisão subsequente, que fixa as tarifas de utilização da referida rede.

11      O regulador nacional pede que seja negado provimento ao recurso com o fundamento, principalmente, de que a Global NRG não tem «legitimidade ativa», uma vez que esta sociedade não foi parte no processo de adoção da decisão controvertida e não tem nenhuma relação direta com o objeto desse processo. Nestas condições, a Global NRG só seria indiretamente afetada por essa decisão e um mero interesse económico da sua parte não bastaria para fundamentar um direito de recurso da referida decisão.

12      O órgão jurisdicional de reenvio recorda que, segundo a Global NRG, uma vez que as tarifas fixadas pela decisão controvertida se impõem tanto ao operador como ao utilizador da rede de transporte de gás natural, estas afetam diretamente os direitos e os interesses legítimos desse utilizador. No entanto, especifica que, em conformidade com o direito húngaro, quando é interposto um recurso por uma pessoa que, como a Global NRG, tem legitimidade no plano processual, há que examinar se essa pessoa tem também legitimidade ativa, ou seja, se é diretamente afetada nos seus direitos ou nos seus interesses legítimos pela decisão recorrida, condição da qual depende a possibilidade de esse órgão jurisdicional examinar um recurso interposto por essa pessoa dessa decisão quanto ao mérito.

13      No caso em apreço, segundo esse órgão jurisdicional, há que verificar, antes de qualquer apreciação do mérito do recurso interposto pela Global NRG, se esta sociedade pode ser qualificada de «parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora» na aceção do artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73. Uma vez que tal expressão não é definida por esta diretiva, esta deve ser analisada à luz dos Acórdãos de 19 de março de 2015, E.ON Földgáz Trade (C‑510/13, EU:C:2015:189), e de 16 de julho de 2020, Comissão/Hungria (Taxas de acesso às redes de transporte de eletricidade e de gás natural) (C‑771/18, EU:C:2020:584).

14      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em primeiro lugar, sobre a questão de saber se este artigo 41.o, n.o 17, lido à luz do direito à ação previsto no artigo 47.o da Carta, se opõe a uma disposição nacional, como o artigo 129/B, n.o 1, da Lei relativa ao Fornecimento de Gás Natural, nos termos da qual, no âmbito dos procedimentos de fixação das tarifas de utilização da rede, de transporte e de ligação, bem como da remuneração dos serviços prestados pelo operador dessa rede, só este último é considerado uma «parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora», na aceção desse artigo 41.o, n.o 17, com exclusão de todos os outros operadores do mercado no setor do gás natural. Este órgão jurisdicional considera que este artigo 129/B, n.o 1, lhe impõe, assim, que negue provimento ao recurso interposto pela Global NRG sem o apreciar quanto ao mérito, o que, em seu entender, constitui uma «restrição desproporcionada» ao direito de recurso previsto no referido artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73.

15      Em segundo lugar, o referido órgão jurisdicional, baseando‑se nos n.os 48 e 49 do Acórdão de 19 de março de 2015, E.ON Földgáz Trade (C‑510/13, EU:C:2015:189), considera que um operador, como a Global NRG, dispõe de um direito de recurso pelo facto de a decisão controvertida lhe dizer diretamente respeito. Salienta, neste contexto, que o operador da rede de transporte de gás natural é obrigado a responsabilizar o operador pela tarifa especial fixada nessa decisão e que esse operador não pode exercer a sua atividade antes de pagar os montantes exigidos a esse título.

16      Nestas condições, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva [2009/73], em conjugação com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais, ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional segundo a qual, nos procedimentos de fixação, pela entidade reguladora desse Estado‑Membro, das tarifas de utilização da rede, das tarifas aplicáveis aos serviços que podem ser prestados pelos operadores da rede com base em tarifas especiais e das tarifas de ligação, apenas o operador de rede é reconhecido como parte diretamente afetada que, como tal, tem o direito exclusivo de recurso das decisões adotadas no procedimento?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve o artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva [2009/73], em conjugação com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais, ser interpretado no sentido de que, na aplicação da referida disposição a um litígio como o que está em causa no processo principal, um operador do mercado do gás natural que se encontre numa situação como a da recorrente, a quem o operador da rede, na sequência de uma decisão da entidade reguladora do Estado‑Membro que fixou as tarifas de utilização da rede, as tarifas dos serviços que podem ser prestados pelos operadores da rede através de tarifas especiais e as tarifas de ligação, cobra uma tarifa por um serviço que pode ser prestado através de tarifa especial, deve ser considerado parte afetada por essa decisão e, como tal, tem direito de recurso contra a mesma?»

 Quanto às questões prejudiciais

17      Com as suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73, lido à luz do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro por força da qual só o operador da rede de transporte de gás natural é qualificado de «parte afetada» por uma decisão da entidade reguladora nacional que fixa as tarifas de ligação a essa rede e de utilização da mesma assim como a remuneração dos serviços prestados por esse operador e, por conseguinte, apenas este último tem legitimidade para exercer o «direito à ação» através da interposição de um recurso dessa decisão.

18      O artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73, lido em conjugação com o considerando 33 da mesma, impõe aos Estados‑Membros que estabeleçam, ao nível nacional, mecanismos adequados que permitam a uma parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional recorrer a um órgão independente das partes envolvidas e dos governos, que «pode ser qualquer tribunal competente para levar a cabo um controlo judicial». Essa exigência é um corolário do princípio da proteção jurisdicional efetiva, princípio geral do direito da União, garantido no artigo 47.o da Carta [Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Alemanha (Transposição das Diretivas 2009/72 e 2009/73), C‑718/18, EU:C:2021:662, n.o 128 e jurisprudência referida].

19      Em primeiro lugar, embora o conceito de «parte afetada», na aceção deste artigo 41.o, n.o 17, não esteja definido na Diretiva 2009/73, o Tribunal de Justiça já interpretou uma disposição semelhante, a saber, o artigo 5.o‑A, n.o 3, da Diretiva 90/387/CEE do Conselho, de 28 de junho de 1990, relativa à realização do mercado interno dos serviços de telecomunicações mediante a oferta de uma rede aberta de telecomunicações (JO 1990, L 192, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 97/51/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de outubro de 1997 (JO 1997, L 295, p. 23), no sentido de que um operador que não é destinatário de uma decisão de uma entidade reguladora nacional adquire a qualidade de parte lesada, quando os seus direitos são potencialmente afetados por essa decisão devido, por um lado, ao seu conteúdo e, por outro, à atividade exercida ou pretendida por essa parte. Especificou que não se exige um vínculo contratual entre esse operador e o destinatário dessa decisão para que os direitos desse operador sejam potencialmente afetados por tal decisão (Acórdão de 24 de abril de 2008, Arcor, C‑55/06, EU:C:2008:244, n.os 176 e 177).

20      Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça declarou, no que respeita à Diretiva 2003/55/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 98/30/CE (JO 2003, L 176, p. 57; retificação no JO 2004, L 16, p. 75 ), a qual não previa, diferentemente da Diretiva 2009/73 que lhe sucedeu, nenhuma disposição que concedesse expressamente aos operadores um direito de recurso jurisdicional das decisões de uma entidade reguladora nacional, quando esta última adota uma decisão em matéria de acesso dos operadores do mercado à rede de transporte de gás natural, com fundamento numa regulamentação da União que reconhece determinados direitos ao operador titular de uma autorização de transporte de gás, que se deve considerar que esse operador é potencialmente lesado nesses direitos por essa decisão, ainda que não seja o destinatário da mesma (v., neste sentido, Acórdão de 19 de março de 2015, E.ON Földgáz Trade, C‑510/13, EU:C:2015:189, n.os 38, 48 e 51).

21      A este respeito, há que sublinhar que o artigo 41.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2009/73 confere à entidade reguladora nacional competência para «[e]stabelecer ou aprovar, mediante critérios transparentes, tarifas regulamentadas de transmissão ou distribuição ou as suas metodologias». O artigo 41.o, n.o 6, alínea a), desta diretiva confere igualmente a esta entidade competência para fixar ou aprovar pelo menos as metodologias a utilizar para estabelecer os termos e condições de ligação e acesso às redes nacionais, incluindo as tarifas de transporte e distribuição aplicáveis. Além disso, o artigo 41.o, n.o 10, da referida diretiva prevê que essa entidade deve dispor de competências para obrigar, se necessário, os operadores das redes de transporte a alterarem os termos e condições, incluindo as tarifas e metodologias a que se refere este artigo, a fim de garantir que essas tarifas sejam proporcionadas e aplicadas de forma não discriminatória.

22      Por outro lado, resulta do artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento n.o 715/2009 que as tarifas de acesso às redes devem ser transparentes e aplicadas de forma não discriminatória a todos os utilizadores [v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Comissão/Hungria (Taxas de acesso às redes de transporte de eletricidade e de gás natural), C‑771/18, EU:C:2020:584, n.o 46].

23      Daqui resulta que a um operador, como a Global NRG, devem ser aplicadas taxas e tarifas proporcionadas, transparentes e não discriminatórias com base nas disposições acima referidas da Diretiva 2009/73 e do Regulamento n.o 715/2009. Sob reserva das verificações que incumbem ao órgão jurisdicional de reenvio, esse operador pode, devido à violação desses direitos, ser afetado pela decisão controvertida. Nestas condições, a qualidade de parte afetada por essa decisão e, por conseguinte, o exercício do direito à ação através da interposição de um recurso dessa decisão, na aceção do artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73, devem ser reconhecidos a esse operador (v., neste sentido, Acórdão de 19 de março de 2015, E.ON Földgáz Trade, C‑510/13, EU:C:2015:189, n.os 48 e 51).

24      Na falta de regulamentação da União na matéria, cabe à ordem jurídica de cada Estado‑Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e fixar as modalidades processuais das ações destinadas a salvaguardar os direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União, sem com isso lesar o direito à proteção jurisdicional efetiva [Acórdão de 16 de julho de 2020, Comissão/Hungria (Taxas de acesso às redes de transporte de eletricidade e de gás natural), C‑771/18, EU:C:2020:584, n.o 62 e jurisprudência referida].

25      É jurisprudência constante, no que respeita ao direito à ação, que, para que um órgão jurisdicional possa decidir sobre uma impugnação relativa a direitos e obrigações decorrentes do direito da União, esse órgão jurisdicional deve, por força do artigo 47.o da Carta, ser competente para examinar todas as questões de facto e de direito relevantes para a decisão da causa que lhe foi submetida [v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Comissão/Hungria (Taxas de acesso às redes de transporte de eletricidade e de gás natural), C‑771/18, EU:C:2020:584, n.o 64].

26      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio considera que o artigo 129/B, n.o 1, da Lei relativa ao Fornecimento de Gás Natural não lhe permite apreciar o mérito de um recurso interposto por um operador do mercado do gás natural afetado por uma decisão do regulador nacional como a Global NRG, pelo simples facto de esse operador não ser um operador de rede. Na medida em que esta disposição do direito nacional não é suscetível de ser interpretada em conformidade com o artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73, na interpretação adotada no n.o 23 do presente acórdão, não se pode considerar que a referida disposição nacional prevê «mecanismos adequados», na aceção deste artigo 41.o, n.o 17 [v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Comissão/Hungria (Taxas de acesso às redes de transporte de eletricidade e de gás natural), C‑771/18, EU:C:2020:584, n.o 65].

27      Se essa interpretação conforme não for possível, o órgão jurisdicional de reenvio só deverá deixar inaplicado, com fundamento no direito da União, o artigo 129/B, n.o 1, da Lei relativa ao Fornecimento de Gás Natural quando a obrigação prevista no artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73 for suficientemente precisa e incondicional para se poder considerar que tem efeito direto. Com efeito, a invocação, por um litigante como a Global NRG contra uma autoridade pública como o regulador nacional, de uma disposição de uma diretiva que não seja suficientemente precisa e incondicional para lhe ser reconhecido efeito direto não pode ter como consequência, com fundamento unicamente no direito da União, que a aplicação de uma disposição nacional seja afastada por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 64 e jurisprudência aí referida).

28      Uma disposição do direito da União é, por um lado, incondicional quando prevê uma obrigação que não está sujeita a nenhuma condição nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adoção de um ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros e, por outro, suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos. Além disso, ainda que uma diretiva deixe aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação na adoção das modalidades de execução da mesma, pode considerar‑se que uma disposição dessa diretiva tem caráter incondicional e preciso quando impõe aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado precisa, que não está subordinada a nenhuma condição relativa à aplicação da regra nela contida [Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto), C‑205/20, EU:C:2022:168, n.o 19 e jurisprudência referida].

29      No caso em apreço, resulta da própria redação do artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73 que os Estados‑Membros devem prever mecanismos de recurso adequados que confiram a qualquer parte afetada impugnar uma decisão de uma entidade reguladora perante um órgão independente. Embora os Estados‑Membros conservem uma certa margem de apreciação para decidir sobre a natureza e as modalidades desses mecanismos de recurso e sobre a forma do órgão independente, não é menos verdade que, ao impor a execução de tais mecanismos, este artigo 41.o, n.o 17, impõe aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação precisa que não está subordinada a nenhuma condição relativa à aplicação da regra nela enunciada e prevê assim, de modo incondicional e suficientemente preciso, uma garantia de recurso a favor das partes lesadas [v., por analogia, Acórdãos de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto), C‑205/20, EU:C:2022:168, n.os 22 a 29, e de 20 de abril de 2023, Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (Commune de Ginosa), C‑348/22, EU:C:2023:301, n.o 67 e jurisprudência referida].

30      Por conseguinte, há que reconhecer efeito direto ao artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73, pelo que o órgão jurisdicional de reenvio não deve aplicar o direito nacional contrário a esta disposição no caso de esse direito não poder ser interpretado em conformidade com a referida disposição.

31      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73, lido à luz do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro por força da qual só o operador da rede de transporte de gás natural é qualificado de «parte afetada» por uma decisão da entidade reguladora nacional que fixa as tarifas de ligação a essa rede e de utilização da mesma assim como a remuneração dos serviços prestados por esse operador e, por conseguinte, apenas este último tem legitimidade para exercer o «direito à ação» através da interposição de um recurso dessa decisão.

 Quanto às despesas

32      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

O artigo 41.o, n.o 17, da Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE, à luz do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma regulamentação de um EstadoMembro por força da qual só o operador da rede de transporte de gás natural é qualificado de «parte afetada» por uma decisão da entidade reguladora nacional que fixa as tarifas de ligação a essa rede e de utilização da mesma assim como a remuneração dos serviços prestados por esse operador e, por conseguinte, apenas este último tem legitimidade para exercer o «direito à ação» através da interposição de um recurso dessa decisão.

Assinaturas


*      Língua do processo: húngaro.