Language of document : ECLI:EU:C:2024:29

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 11 de janeiro de 2024 (1)

Processo C20/23

SF

contra

MV,

Instituto da Segurança Social, IP,

Autoridade Tributária e Aduaneira,

Cofidis SA — Sucursal em Portugal,

sendo intervenientes

José da Costa Araújo, na qualidade de Administrador de Insolvência

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal da Relação do Porto (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Diretiva (UE) 2019/1023 — Processos de insolvência — Pedido de perdão de dívidas — Exclusão das dívidas à Administração Tributária e à Segurança Social — Necessidade de justificação»






I.      Introdução

1.        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência) (2), bem como do artigo 16.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (3).

2.        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe SF, uma pessoa singular que se tornou insolvente (a seguir «devedor»), nomeadamente, ao Instituto da Segurança Social, IP (Portugal), e à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal) a propósito de um pedido de perdão de dívidas apresentado por SF no decurso do processo de insolvência a seu respeito.

3.        A pedido do Tribunal de Justiça, orientarei a minha análise para a questão relativa à possibilidade de os Estados‑Membros excluírem do perdão total da dívida as dívidas tributárias e da segurança social, a saber, a segunda questão prejudicial.

4.        Proponho que o Tribunal de Justiça decida no sentido de que os Estados‑Membros podem excluir as dívidas tributárias e da segurança social do perdão total da dívida previsto no artigo 20.o da Diretiva 2019/1023, baseando‑se no artigo 23.o, n.o 4, desta diretiva, desde que tal seja devidamente justificado e que essa justificação se possa encontrar no direito nacional fora da legislação que transpôs a referida diretiva.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

5.        O artigo 23.o da Diretiva 2019/1023, sob a epígrafe «Derrogações», prevê, no seu n.o 4:

«Os Estados‑Membros podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, ou restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados, nomeadamente no caso:

a)      Das dívidas garantidas;

b)      Das dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas;

c)      Das dívidas decorrentes de responsabilidade delitual;

d)      Das dívidas respeitantes a obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade;

e)      Das dívidas contraídas após a apresentação do pedido de abertura de um processo conducente a um perdão da dívida ou após a abertura de tal processo; e

f)      Das dívidas decorrentes da obrigação de pagar as custas do processo conducente a um perdão da dívida.»

B.      Direito português

1.      CIRE

6.        O sistema jurídico português introduziu a possibilidade de concessão do perdão de dívidas (a que o legislador chama «exoneração do passivo restante») em 2004, no âmbito de um processo de insolvência de pessoas singulares, pelo Decreto‑Lei n.o 53/2004 (4), de 18 de março de 2004, que aprova o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (a seguir «CIRE»).

7.        O artigo 235.o do CIRE, que enuncia o princípio geral do perdão de dívidas (exoneração do passivo restante), tem a seguinte redação:

«Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser‑lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo.»

8.        No que respeita especificamente à matéria do perdão de dívidas (exoneração do passivo restante), o artigo 245.o, n.o 2, alínea d), do CIRE, na versão resultante do Decreto‑Lei n.o 84/2019 (5), de 28 de junho de 2019, que estabeleceu as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado para 2019, prevê que o perdão de dívidas (exoneração do passivo restante) não inclui «[o]s créditos tributários e da segurança social».

9.        Em 2022, a Lei n.o 9/2022 (6), de 11 de janeiro de 2022, que transpôs a Diretiva 2019/1023, não alterou a lista das categorias de dívidas excluídas do perdão de dívidas (exoneração do passivo restante), designadamente aquelas devidas à Administração Tributária e à Segurança Social. Esta lei não introduziu qualquer justificação para esta exclusão.

2.      LGT

10.      O quadro jurídico português relativo aos impostos tem por base legal o Decreto‑Lei n.o 398/98 (7), de 17 de dezembro de 1998, que aprovou a Lei Geral Tributária (a seguir «LGT»), a qual enuncia e define os princípios gerais que regem o direito fiscal português e os poderes da Administração Tributária e garantias dos contribuintes.

11.      O artigo 5.o, n.os 1 e 2, da LGT prevê:

«1.      A tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento.

2.      A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material.»

12.      Nos termos do artigo 30.o, n.os 2 e 3, da LGT:

«2.      O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar‑se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

3.      O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.»

III. Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

13.      Por Sentença de 18 de junho de 2018, transitada em julgado, o devedor foi declarado insolvente.

14.      Em 23 de janeiro de 2019, o juiz do Tribunal de Primeira Instância decidiu admitir liminarmente o pedido de perdão de dívidas (exoneração do passivo restante) do devedor.

15.      Em 29 de julho de 2022, o Administrador de Insolvência do processo de insolvência apresentou um parecer final no qual considerava que o devedor devia poder beneficiar do perdão de dívidas (exoneração do passivo restante).

16.      Em 3 de outubro de 2022, foi concedida ao devedor a exoneração do passivo restante, com exceção dos créditos tributários e da segurança social, em aplicação do artigo 245.o, n.o 2, do CIRE.

17.      O devedor interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto (Portugal). Em apoio do seu recurso, alegou que o artigo 245.o, n.o 2, do CIRE não está em conformidade com o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023, porquanto a exclusão do perdão de dívidas (exoneração do passivo restante) dos créditos tributários e da segurança social não está, contrariamente ao previsto nesta última disposição, «devidamente justificad[a]».

18.      O órgão jurisdicional de reenvio constata que a Lei n.o 9/2022, que procedeu à transposição da Diretiva 2019/1023 para o direito nacional, não apresenta qualquer justificação para a exclusão dos créditos tributários e da segurança social e que essa justificação não foi sequer equacionada na proposta de lei que lhe esteve subjacente. Este órgão jurisdicional salienta que, além das dúvidas relativas à compatibilidade do artigo 245.o, n.o 2, do CIRE com esta diretiva, tem, igualmente, dúvidas quanto à questão de saber se a exclusão prevista nesta disposição constitui um obstáculo aos objetivos prosseguidos pela referida diretiva, pelo Tratado FUE e pela efetividade do direito da União.

19.      Nestas circunstâncias, o Tribunal da Relação do Porto decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O n.o 4 do artigo 23.o da Diretiva [2019/1023] deve ser interpretado no sentido que só é permitida a exclusão de outras dívidas (além das elencadas nas alíneas) quando estive[r] “devidamente justificad[a]”?

2)      A possibilidade de os Estados‑Membros excluírem determinadas categorias de dívidas do perdão da dívida (desde que tal exclusão seja devidamente justificada, tal como previsto no artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023) deve ser interpretada no sentido de permitir que os Estados‑Membros excluam os créditos tributários (não indicados no respetivo artigo), criando uma situação privilegiada para si próprios?

3)      Se porventura a resposta a estas questões for positiva, importa saber que critérios satisfariam tal exigência de justificação, na aceção do direito da União Europeia, por forma a respeitarem (tais justificações) os princípios gerais do direito da União e a proteção dos direitos fundamentais, aos quais o legislador europeu e nacional estão sujeitos [“não discriminação em razão da nacionalidade” (artigo 18.o do TFUE) e “liberdade de empresa” (artigo 16.o da [Carta]), para além das liberdades económicas fundamentais do mercado interno].

4)      Se porventura a resposta àquela questão for negativa, importa saber se a definição (na aceção do direito da União Europeia e para os efeitos de interpretação da diretiva em apreço) de “dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas”, bem como de “dívidas decorrentes de responsabilidade delitual”, abrange também as dívidas tributárias, tal como prevê o ato legislativo interno de transposição da Diretiva 2019/1023 (Lei n.o 9/2022, de 11 de janeiro).»

20.      O devedor, o Instituto da Segurança Social, os Governos Português e Espanhol e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

IV.    Análise

21.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a possibilidade de os Estados‑Membros excluírem determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, designadamente os créditos tributários e da segurança social, criando uma situação privilegiada para si próprios.

22.      Tanto a Comissão como os Governos Português e Espanhol reconhecem, nas suas observações, o caráter não exaustivo da lista que figura no artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023, porquanto esta prevê que possam ser excluídas determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, no que respeita, nomeadamente, a seis categorias de dívida enumeradas a seguir nesse número.

23.      A dúvida pode ter sido suscitada pela redação inicial deste artigo, em língua espanhola, que indicava que os Estados‑Membros podiam «excluir do perdão da dívida categorias específicas […], no que respeita (8)». Mas esta formulação foi substituída por «nomeadamente no caso (9)» por uma retificação desta diretiva (10) que harmonizou a redação em língua espanhola com as outras versões linguísticas.

24.      Por conseguinte, a hesitação deixa de fazer sentido: a utilização dos termos «[o]s Estados‑Membros podem excluir […] do perdão da dívida» e do advérbio «nomeadamente» significa que a lista que figura no artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023 constitui efetivamente uma lista não exaustiva de categorias de dívida que podem ser excluídas do perdão da dívida que pode ser completada pelos Estados‑Membros. Esta análise é reforçada pelo considerando 81 desta diretiva, lido à luz dos debates no Conselho da União Europeia (11), dos quais resulta que os Estados‑Membros deverão poder excluir outras categorias de dívida, quando devidamente justificado.

25.      De forma mais geral, no que respeita à margem de apreciação de que dispõem os Estados‑Membros para excluir determinadas categorias de dívida da possibilidade do perdão da dívida, há que distinguir entre o princípio da exclusão de uma categoria de dívida e as condições dessa exclusão.

26.      Quanto à exclusão, por princípio, dos créditos tributários e da segurança social, importa salientar que o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023 enumera seis categorias de dívidas que os Estados‑Membros podem excluir do perdão da dívida, ou relativamente às quais podem restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado. Essas categorias são as seguintes: as dívidas garantidas, as dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas, as dívidas decorrentes de responsabilidade delitual, as dívidas respeitantes a obrigações de alimentos, as dívidas contraídas após a apresentação ou após a abertura do processo conducente a um perdão da dívida (exoneração do passivo restante) e as dívidas decorrentes da obrigação de pagar as custas desse processo.

27.      Nas suas observações, a Comissão apresenta o argumento de que existe uma ligação entre estas diferentes categorias de dívida que justifica que não se deixe uma margem de apreciação total aos Estados‑Membros que pretendam criar exceções ao princípio do perdão total da dívida, em razão da natureza da dívida em questão.

28.      Assim, essa ligação reside numa preocupação de justiça material: em primeiro lugar, o devedor não deve poder escapar às consequências pecuniárias dos atos não relacionados com a vida comercial normal (dívidas familiares, dívidas penais ou dívidas de responsabilidade civil). Em segundo lugar, as dívidas constituídas no âmbito do processo de apuramento das dívidas ou posteriormente podem não ser objeto de perdão da dívida para garantir a eficácia deste processo. Em terceiro lugar, podem igualmente ser excluídas as dívidas garantidas, uma vez que o foram especificamente para evitar as consequências de uma insolvência.

29.      Todavia, vários elementos contrariam esta argumentação.

30.      Antes de mais, a própria redação do artigo 23.o da Diretiva 2019/1023 prevê uma modulação das formas de opções quanto às possíveis exceções ao princípio do perdão total da dívida. O n.o 1 enuncia que todos os Estados‑Membros devem prever a exclusão do devedor desonesto ou de má‑fé. Em contrapartida, os n.os 3 e 5 indicam que os Estados‑Membros podem fixar, respetivamente, prazos mais longos ou períodos de inibição mais prolongados em certas hipóteses estritamente enumeradas. O n.o 4, cuja interpretação é solicitada, tal como o n.o 2, prevê que os Estados‑Membros podem escolher exceções ao princípio do perdão total da dívida, se forem devidamente justificadas, ilustrando essa possibilidade com uma lista não exaustiva de exemplos. Por conseguinte, o processo de perdão total da dívida poderá ter um funcionamento e um âmbito muito diferentes consoante as escolhas feitas por cada um dos Estados‑Membros. Logo, parece difícil afirmar que o objetivo de harmonização deste processo de perdão de dívidas justifique não autorizar, por princípio, a exclusão de certas categorias específicas de dívida deste perdão da dívida.

31.      Em seguida, nada nas discussões prévias à adoção da Diretiva 2019/1023 permite afirmar que as dívidas tributárias e da segurança social não possam ser excluídas do perdão da dívida. Com efeito, a proposta de diretiva enunciava claramente, a respeito do artigo 22.o (atual artigo 23.o da diretiva adotada), que os Estados‑Membros tinham «uma ampla margem discricionária para definir as limitações às disposições relativas ao acesso à quitação e aos períodos de suspensão, conquanto tais limitações sejam claramente especificadas e necessárias para proteger um interesse geral» (12).

32.      Esta vontade de deixar aos Estados‑Membros uma margem de manobra suficiente foi confirmada nos debates no Conselho (13). De facto, durante as negociações nesta instituição, as exclusões do perdão da dívida foram acrescentadas sem comentários especiais (14)      e foi especificado que os Estados‑Membros podiam também excluir determinadas categorias de dívida ao abrigo da sua legislação nacional, sem precisar a sua natureza (15). No final das negociações no Conselho, Portugal fez uma declaração na qual indicou, em substância, por um lado, que o texto era suficientemente flexível para que os Estados‑Membros pudessem manter ou introduzir disposições que excluam ou restrinjam o perdão da dívida (exoneração do passivo restante) quanto às dívidas tributárias, por tais medidas deverem ser consideradas devidamente justificadas dada a natureza especial das dívidas tributárias, e, por outro, que gostaria de reservar a sua posição quanto à regulação do acesso ao perdão da dívida (exoneração do passivo restante) quanto às dívidas tributárias aquando da transposição da diretiva (16).

33.      A Comissão dos Assuntos Económicos do Parlamento Europeu, à qual foi solicitado um parecer, propôs à Comissão dos Assuntos Jurídicos, competente quanto ao mérito, uma alteração relativa a um considerando e a um número em favor da possibilidade expressa de exclusão dos créditos de direito público em relação à qual os Estados‑Membros deviam ter em conta o equilíbrio necessário entre o interesse geral e a promoção do empreendedorismo (17).

34.      Por último, é manifesto que a Diretiva 2019/1023 é uma diretiva de harmonização mínima, relativa ao perdão total da dívida, cujo objetivo é a criação deste tipo de procedimento em cada um dos Estados‑Membros e não a criação de um procedimento harmonizado de perdão de dívidas. Com efeito, as negociações foram, para os Estados‑Membros, a ocasião de recordar que este procedimento, novo ou não, consoante os Estados‑Membros, devia poder ser suficientemente adaptado a fim de não interferir com os sistemas nacionais que funcionam de forma eficaz, uma vez que tal processo tinha ligações com outros domínios do direito nacional, e que a situação económica e as estruturas jurídicas diferiam de um Estado‑Membro para outro (18).

35.      Em contrapartida, no que respeita às condições de exclusão de uma categoria de dívida, o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023 prevê que as «exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados». Consequentemente, embora a margem de apreciação dos Estados‑Membros não esteja enquadrada quanto à natureza das categorias específicas de dívida que podem ser excluídas, é‑o, todavia, pela justificação que devem fornecer em apoio dessa exclusão.

36.      Além disso, os Estados‑Membros fizeram uso desta margem de apreciação para excluir determinadas categorias de dívida diferentes das que figuram na lista do artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023. Em França, estão excluídos do perdão da dívida, nomeadamente, os créditos dos trabalhadores e os créditos resultantes de ações relativas a bens adquiridos no âmbito de uma sucessão aberta durante o processo (19). Nos Países Baixos, estão excluídos, nomeadamente, os créditos relacionados com os empréstimos a estudantes (20). Em Espanha, estão excluídos, nomeadamente, os créditos de salários e os créditos de direito público (21).

37.      Pela formulação «criando uma situação privilegiada para si próprios», o órgão jurisdicional de reenvio parece entender que a República Portuguesa, ao recusar submeter‑se ao mesmo tratamento que os demais credores no regime do perdão total da dívida (exoneração do passivo restante), por excluir as dívidas tributárias e da segurança social, põe em causa a igualdade entre os credores. Ora, em matéria de processo coletivo de insolvência, o qual pode ser equiparado a um processo de perdão total da dívida (exoneração do passivo restante) em razão dos seus efeitos em relação aos credores, não se procura a igualdade entre todos os credores, mas a igualdade entre os credores que se encontram numa situação equiparável. Assim, no que respeita à restruturação, o artigo 10.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2019/1023 prevê que os credores com suficientes interesses comuns na mesma categoria são tratados em pé de igualdade, e de forma proporcional aos seus créditos. Da mesma forma, o considerando 52 desta diretiva enuncia que em consequência do teste do melhor interesse dos credores, sempre que credores institucionais públicos tenham um estatuto privilegiado nos termos do direito nacional, os Estados‑Membros deverão poder prever que o plano não poderá impor a anulação total ou parcial dos créditos desses credores. Quanto ao considerando 44 da referida diretiva, o mesmo recorda que convém, por um lado, assegurar que os direitos substancialmente semelhantes sejam tratados de forma equitativa e que os planos de reestruturação possam ser adotados sem prejudicar injustamente os direitos das partes afetadas, estas deverão ser tratadas em categorias distintas que correspondam aos critérios de formação de categorias previstos no direito nacional e, por outro, permitir aos Estados‑Membros tratar em categorias distintas outros tipos de credores sem interesses comuns suficientes, como as autoridades fiscais ou de segurança social.

38.      Estas regras são conformes com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à liberdade de empresa protegida pelo artigo 16.o da Carta. Com efeito, o Tribunal de Justiça decidiu que, embora o ordenamento constitucional de todos os Estados‑Membros proteja o direito de propriedade e garantias análogas sejam concedidas ao livre exercício do comércio, do trabalho e de outras atividades profissionais, os direitos assim garantidos, longe de constituírem prerrogativas absolutas, devem ser considerados à luz da função social dos bens e das atividades protegidas. Acrescenta que, por esta razão, a garantia concedida a este tipo de direitos só é geralmente atribuída sob reserva de limitações estabelecidas em função do interesse público (22).

39.      Por conseguinte, ao prever a exclusão das dívidas tributárias e da segurança social do processo de perdão total da dívida (exoneração do passivo restante), a República Portuguesa não põe em causa a igualdade entre os credores, em si mesma, tal como deve ser aplicada nesta matéria, nem a liberdade de empresa.

40.      Relativamente às modalidades de justificação desta exclusão, a Comissão considera que esta não pode decorrer de uma simples declaração pro forma e que o legislador português não facultou nenhuma justificação, mesmo que puramente formal, para esta exclusão das dívidas tributárias e da segurança social.

41.      Todavia, como já referi anteriormente, Portugal efetuou uma declaração precisa no momento da negociação da Diretiva 2019/1023 quanto à exclusão das dívidas tributárias (23). Além disso, nas suas observações, o Governo Português salientou que, por um lado, o artigo 103.o, n.o 1, da Constituição da República Portuguesa consagra que o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e que, por outro, os artigos 5.o e 30.o da LGT enunciam as regras e os princípios que justificam essa exclusão tal como a satisfação das necessidades financeiras do Estado, a promoção da justiça social e a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento com respeito pelos princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material e da indisponibilidade do crédito tributário.

42.      O artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023 nada diz sobre a forma exigida para a justificação, mas o considerando 81 precisa que tem de existir um motivo devidamente justificado ao abrigo do direito nacional. Não me parece que se exija que a justificação seja necessariamente incluída no próprio ato de transposição desta diretiva se já existir na legislação nacional (Constituição, lei, decretos) ou mesmo se tiver surgido no âmbito da negociação da referida diretiva, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar tendo em consideração o conjunto da legislação aplicável e a sua coerência.

43.      Em conclusão, considero que a Diretiva 2019/1023 é uma diretiva de harmonização mínima cujo objetivo é a introdução em cada Estado‑Membro de um processo de perdão de dívidas cujos contornos quanto à natureza das dívidas que podem ser excluídas desse perdão são amplamente remetidos para a apreciação dos Estados‑Membros, desde que as exclusões sejam devidamente justificadas, ainda que fora do ato de transposição.

44.      Atendendo a todos estes elementos, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma: o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva 2019/1023 deve ser interpretado no sentido de que a lista que ali figura não é exaustiva, podendo determinadas outras categorias de dívida além das que figuram nessa lista ser objeto de um perdão da dívida, de uma restrição do perdão da dívida ou de um prazo para o perdão mais prolongado, desde que isso seja devidamente justificado pelo direito nacional, ainda que fora da disposição de transposição desta diretiva.

V.      Conclusão

45.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Tribunal da Relação do Porto (Portugal) do seguinte modo:

O artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência),

deve ser interpretado no sentido de que:

a lista que ali figura não é exaustiva, podendo determinadas outras categorias de dívida além das que figuram nessa lista ser objeto de um perdão da dívida, de uma restrição do perdão da dívida ou de um prazo para o perdão mais prolongado, desde que isso seja devidamente justificado pelo direito nacional, ainda que fora da disposição de transposição desta diretiva.


1      Língua original: francês.


2      JO 2019, L 172, p. 18.


3      A seguir «Carta».


4      Diário da República, I série‑A, n.o 66, de 18 de março de 2004.


5      Diário da República, 1.a série, n.o 122, de 28 de junho de 2019.


6      Diário da República, 1.a série, n.o 7, de 11 de janeiro de 2022.


7      Diário da República, I série‑A, n.o 290, de 17 de dezembro de 1998.


8      «en los siguientes casos».


9      «como en los siguientes casos».


10      JO 2022, L 43, p. 94.


11      V. nota de 16 de maio de 2018 da presidência do Comité dos Representantes Permanentes referente à proposta de diretiva relativa aos quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação, e que altera a Diretiva 2012/30/UE — Orientação geral parcial (documento 8830/18 ADD 1), em especial a nota de pé de página 14 que estabelece que os considerandos que especificam que os n.os 1 e 3 do artigo 22.o (atuais n.os 2 e 4 do artigo 23.o da diretiva adotada) não pretendem ser exaustivos.


12      V. proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação, e que altera a Diretiva 2012/30/UE [COM(2016) 723 final], p. 26.


13      V. ponto 5 da nota de 19 de maio de 2017 da Presidência do Coreper/Conselho sobre a proposta de diretiva relativa aos quadros preventivos de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação, e que altera a Diretiva 2012/30/UE — Debate de orientação (documento 9316/17): «Os objetivos da proposta obtiveram um amplo apoio de princípio dos ministros durante a reunião informal do Conselho (Justiça e Assuntos Internos) de 27 de janeiro de 2017. Os debates realizados nessa reunião sublinharam a importância de encontrar um justo equilíbrio entre os interesses dos devedores e dos credores e de permitir um certo grau de flexibilidade, de modo a não interferir com os regimes nacionais que funcionam eficazmente. Os debates havidos no Grupo das Questões de Direito Civil (Insolvência) revelaram um apoio geral aos objetivos da proposta. No entanto, as delegações sublinharam igualmente a complexidade da proposta de diretiva, devido à sua interligação com outras áreas do direito nacional, e a consequente necessidade de deixar aos Estados-Membros suficiente flexibilidade para adaptar as medidas da [União] à situação económica e às estruturas jurídicas locais.»


14      V. nota de 16 de março de 2018 da presidência búlgara e da futura presidência austríaca ao Grupo «Questões de Direito Civil» (Insolvência) sobre a proposta de diretiva relativa aos quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação, e que altera a Diretiva 2012/30/UE — Texto revisto dos artigos 19.o, 20.o e 22.o do título III e definições associadas (documento 7150/18), p. 6.


15      V. nota de 24 de maio de 2018 da presidência ao Conselho sobre a proposta de diretiva relativa aos quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação, e que altera a Diretiva 2012/30/UE — Orientação geral parcial (documento 9236/18 ADD 1), p. 9.


16      V. nota de 21 de maio de 2019 do Secretariado‑Geral do Conselho ao Comité de Representantes Permanentes/Conselho sobre o projeto de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência) (primeira leitura) — Adoção do ato legislativo — Declaração (documento 9170/2/19 ver 2 ADD 1), pp. 1 e 2.


17      V. parecer da Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários de 7 de dezembro de 2017, dirigido à Comissão dos Assuntos Jurídicos sobre a proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação, e que altera a Diretiva 2012/30/UE, Relator para emitir parecer: Enrique Calvet Chambon, propostas de alterações 22 e 94.


18      V. nota de pé de página 13 das presentes conclusões.


19      V. artigo L. 645‑11 do Code de commerce (Código Comercial).


20      V. artigo 299a da Faillissementswet (Lei da Insolvência).


21      V. artigo 489.o, n.o 1, pontos 4 e 5, da Ley 22/2003 Concursal (Lei 22/2003 relativa à Insolvência).


22      V. Acórdão de 14 de maio de 1974, Nold/Comissão (4/73, EU:C:1974:51, n.o 14).


23      V. nota de pé de página 16 das presentes conclusões.