Language of document : ECLI:EU:C:2024:16

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 11 de janeiro de 2024 (1)

Processo C22/23

„Citadeles nekustamie īpašumi” SIA

contra

Valsts ieņēmumu dienests

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância, Letónia)]

«Reenvio prejudicial — Prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo — Diretiva (UE) 2015/849 — Artigo 3.o, ponto 7, alínea c) — Conceito de “prestadores de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)” — Proprietário de um imóvel que celebrou contratos de arrendamento com pessoas coletivas — Consentimento para inscrever no registo como sede social esse imóvel — Artigo 4.o — Extensão do conceito de “entidades obrigadas” a profissões e categorias de empresas distintas daquelas a que se refere a Diretiva (UE) 2015/849»






I.      Introdução

1.        Um senhorio que arrenda um bem imóvel que lhe pertence a uma sociedade e que dá o seu consentimento para que essa sociedade inscreva o mesmo no registo como sua sede social, deve ser considerado um «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)», nos termos da Diretiva (UE) 2015/849 (2), e ser, portanto, qualificado de «entidade obrigada» a cumprir as obrigações decorrentes desta diretiva?

2.        Esta é, em substância, a questão que o Tribunal de Justiça deve examinar no presente processo que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância, Letónia), relativo à interpretação do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849. Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe uma sociedade e a autoridade letã competente a respeito de uma coima aplicada por infrações às disposições nacionais relativas à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.

3.        Este processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de precisar o alcance do conceito de «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)», nos termos da Diretiva 2015/849, e de fornecer indicações sobre a possível extensão pelos Estados‑Membros do âmbito de aplicação desta diretiva a entidades obrigadas diferentes das expressamente mencionadas na mesma.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

4.        O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2015/849 prevê:

«A presente diretiva visa prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.»

5.        O artigo 2.o, n.o 1, ponto 3, e n.o 7, desta diretiva enuncia:

«1.      A presente diretiva é aplicável às seguintes entidades obrigadas:

[…]

3)      As seguintes pessoas singulares ou coletivas, no exercício das suas atividades profissionais:

a)      Auditores, técnicos de contas externos e consultores fiscais, bem como qualquer outra pessoa que se comprometa a prestar, diretamente ou por intermédio de outras pessoas com as quais tenha algum tipo de relação, ajuda material, assistência ou consultoria em matéria fiscal, como principal atividade comercial ou profissional;

b)      Notários e outros membros de profissões jurídicas independentes, quando participem, quer atuando em nome e por conta do cliente numa operação financeira ou imobiliária, quer prestando assistência ao cliente no planeamento ou execução de operações de:

i)      compra e venda de bens imóveis ou entidades comerciais,

[…]

c)      Prestadores de serviços a sociedades ou trusts que não estejam já abrangidos pela alínea a) ou b);

d)      Agentes imobiliários, inclusivamente quando operam como intermediários na locação de bens imóveis, mas apenas em relação a transações que envolvam um arrendamento mensal igual ou superior a 10 000 [euros];

[…]

7.      Ao avaliar o risco de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo para efeitos do presente artigo, os Estados‑Membros prestam especial atenção a qualquer atividade financeira que seja considerada particularmente suscetível, pela sua própria natureza, de utilização ou abuso para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.

[…]»

6.        O artigo 3.o, ponto 7), da Diretiva 2015/849 dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, são aplicáveis as seguintes definições:

[…]

7)      “Prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)”: qualquer pessoa que, a título profissional, preste, a terceiros, um dos seguintes serviços:

a)      Constituição de sociedades ou outras pessoas coletivas;

b)      Atuação como administrador ou secretário de uma sociedade, associado de uma sociedade de pessoas (partnership) ou como titular de posição semelhante em relação a outras pessoas coletivas, ou execução das diligências necessárias para que outra pessoa atue das formas referidas;

c)      Fornecimento de sede social, endereço comercial, endereço administrativo ou postal e outros serviços conexos a uma sociedade, a uma sociedade de pessoas, ou a qualquer outra pessoa coletiva ou centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica;

d)      Atuação como administrador fiduciário (trustee) de um fundo fiduciário explícito (express trust) ou de um centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica similar, ou execução das diligências necessárias para que outra pessoa atue das formas referidas;

e)      Intervenção como acionista fiduciário por conta de outra pessoa (nominee shareholder) que não seja uma sociedade cotada num mercado regulamentado sujeita a requisitos de divulgação de informações em conformidade com o direito da União ou sujeita a normas internacionais equivalentes, ou execução das diligências necessárias para que outra pessoa intervenha dessa forma.»

7.        O artigo 4.o da Diretiva 2015/849 dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram, de acordo com a abordagem baseada no risco, que o âmbito da presente diretiva é alargado, no todo ou em parte, a profissões e categorias de empresas distintas das entidades obrigadas a que se refere o artigo 2.o, n.o 1, que exerçam atividades particularmente suscetíveis de ser utilizadas para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.

2.      Caso um Estado‑Membro torne o âmbito da presente diretiva extensivo a profissões ou categorias de empresas distintas daquelas a que se refere o artigo 2.o, n.o 1, informa a Comissão dessa decisão.»

8.        O artigo 5.o da Diretiva 2015/849 tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros podem aprovar ou manter em vigor, nas matérias reguladas pela presente diretiva, disposições mais rigorosas para prevenir o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, dentro dos limites do direito da União.»

B.      Direito letão

9.        As disposições em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo no direito letão constam da Noziedzīgi iegūtu līdzekļu legalizācijas un terorisma un proliferācijas finansēšanas novēršanas likums (Lei da Prevenção do Branqueamento de Capitais, do Financiamento do Terrorismo e da Proliferação Nuclear), de 17 de julho de 2008 (3)      (a seguir «Lei Letã Anti-Branqueamento»), que foi alterada para efeitos, nomeadamente, de transposição da Diretiva 2015/849 para a ordem jurídica letã.

10.      Esta lei, na versão aplicável aos factos do processo principal, define, no seu artigo 1.o, ponto 10, o conceito de «prestador de serviços relacionados com a constituição e com o funcionamento de centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica ou de pessoas coletivas». Nos termos desta disposição, trata‑se de uma pessoa singular ou coletiva relacionada comercialmente com um cliente e que fornece, entre outros, nos termos da alínea c) desta disposição, «a centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica ou a pessoas coletivas, sede social, endereço para efeitos da receção de envios postais ou endereço físico para a execução de operações, e presta outros serviços semelhantes.»

11.      O artigo 3.o da Lei Letã Anti-Branqueamento dispõe:

«(1)      Para os efeitos da presente lei, consideram‑se entidades obrigadas as pessoas que exercem as atividades económicas ou profissionais de:

[…]

4)      notário, advogado e outros prestadores independentes de serviços jurídicos, quando, atuando em nome e por conta do cliente, prestam serviços de assistência no planeamento ou execução de operações, participam nas mesmas ou exercem outras atividades profissionais relacionadas com as operações de:

a)      compra e venda de bens imóveis ou ações societárias,

[…]

5)      prestadores de serviços relacionados com a constituição e com o funcionamento de centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica ou de pessoas coletivas;

6)      intermediários em operações imobiliárias.»

III. Factos na origem do litígio, processo principal e questões prejudiciais

A.      Antecedentes do litígio e tramitação processual no processo principal

12.      A Citadeles nekustamie īpašumi SIA (a seguir «Citadeles»), recorrente no processo principal, é uma sociedade comercial registada na Letónia, cuja atividade consiste, nomeadamente, na compra e venda de bens imóveis de que é proprietária, bem como no arrendamento e na gestão desses bens.

13.      No período compreendido entre 14 de setembro de 2021 e 4 de fevereiro de 2022, o Valsts ieņēmumu dienests (Administração Tributária do Estado, Letónia) (a seguir «VID») efetuou uma inspeção à Citadeles em matéria de luta contra o branqueamento de capitais que resultou num relatório de inspeção.

14.      Nesse relatório de inspeção, o VID declarou que a Citadeles tinha arrendado um bem imóvel que lhe pertencia, celebrando contratos de arrendamento com arrendatários, incluído com pessoas coletivas e centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica, que tinham inscrito no registo como sua sede social as instalações situadas nesse imóvel.

15.      De acordo com as conclusões do referido relatório de inspeção, a Citadeles não tinha declarado ao VID a atividade de «prestador de serviços relacionados com a constituição e com o funcionamento de centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica ou de pessoas coletivas» nos termos da Lei Letã Anti‑Branqueamento nem cumprido as obrigações decorrentes desta lei.

16.      Com base nestas conclusões, o VID aplicou, por Decisão de 28 de março de 2022, à Citadeles uma coima no montante de 1 000 euros por incumprimento das exigências enunciadas na Lei Letã Anti-Branqueamento. Esta decisão foi confirmada pela Decisão do diretor‑geral do VID de 15 de junho de 2022 (a seguir «decisão impugnada»).

17.      A decisão impugnada assenta na afirmação do VID segundo a qual a atividade comercial da Citadeles constitui uma prestação de serviços relacionados com a constituição e com o funcionamento de centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica ou de pessoas coletivas, uma vez que, nos contratos de arrendamento em causa, a sociedade autorizou os arrendatários a inscreverem no registo como sua sede social as instalações em causa. Assim, segundo o VID, a Citadeles deve ser considerada uma entidade obrigada nos termos da Lei Letã Anti‑Branqueamento.

18.      Por petição de 15 de julho de 2022, a Citadeles pediu ao Administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância), o órgão jurisdicional de reenvio, a anulação da decisão impugnada.

19.      Em apoio do seu recurso, a Citadeles alega que não tem a qualidade de entidade obrigada nos termos da Diretiva 2015/849 e da Lei Letã Anti‑Branqueamento e que, portanto, não está obrigada a cumprir as exigências desta lei, contrariamente ao que declarou o VID. Com efeito, no âmbito da sua atividade, trata da gestão e do arrendamento de imóveis que lhe pertencem e não presta «serviços relacionados com a constituição e com o funcionamento de centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica ou de pessoas coletivas» nos termos da referida lei. A Citadeles afirma que os contratos de arrendamento celebrados estipulam unicamente que a possibilidade de os arrendatários registarem a sua sede social constitui um dos direitos dos arrendatários, e a renda acordada não depende do facto de o arrendatário ter ou não registado a sua sede social. A Citadeles afirma não se ter comprometido a prestar, nem presta, aos arrendatários outros serviços para lá do arrendamento das instalações.

B.      Questões prejudiciais

20.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a definição de «prestador de serviços relacionados com a constituição e com o funcionamento de centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica ou de pessoas coletivas» nos termos da Lei Letã Anti-Branqueamento corresponde à de «prestador de serviços a sociedades» constante do artigo 3.o, ponto 7, da Diretiva 2015/849.

21.      No entanto, nem esta disposição nem mais nenhuma disposição da Diretiva 2015/849 precisam se o conceito de «serviço a sociedades», que consiste no fornecimento de uma sede social, de um endereço comercial, de um endereço administrativo ou postal e de outros serviços conexos, deve ser interpretado no sentido de que constitui um serviço diferenciado que não decorre de uma operação que consiste no arrendamento de um bem imóvel de que se é proprietário nem está ligado a essa operação.

22.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que, no direito letão, até 31 de julho de 2021, uma sociedade, para poder estar inscrita no Registo Comercial, devia apresentar obrigatoriamente o consentimento do proprietário do bem imóvel no que respeita à inscrição deste no registo como sede social. Uma vez que os contratos de arrendamento examinados pelo VID foram celebrados antes de 1 de agosto de 2021, o consentimento da Citadeles que figura nesses contratos de arrendamento pode ser considerado um mero consentimento dado para o cumprimento das exigências da lei do comércio, e não um serviço diferenciado às sociedades. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, a partir de 1 de agosto de 2021, o consentimento deixou de ser necessário. Nestas circunstâncias, este órgão jurisdicional entende que o arrendatário de um bem imóvel não pode ser considerado um prestador de serviços a sociedades na aceção do artigo 3.o, ponto 7, da Diretiva 2015/849.

23.      A este respeito, o referido órgão jurisdicional distingue os casos em que a sede social é fornecida como um serviço diferenciado para obter um endereço correspondente a uma simples «caixa de correio» ou um endereço no qual são efetuadas determinadas operações, mas no qual as pessoas coletivas ou os centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica não exercem realmente uma atividade comercial na vida de todos os dias.

24.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que o facto de o conceito de «prestador de serviços a sociedades», na aceção do artigo 3.o, ponto 7, da Diretiva 2015/849, não incluir o arrendamento dos bens imóveis de que se é proprietário é corroborado pelo considerando 8 e por outras disposições desta diretiva das quais decorre que a referida diretiva se aplica aos notários e aos outros membros de profissões jurídicas independentes, bem como aos agentes imobiliários, ao passo que, em contrapartida, os prestadores de serviços a sociedades são considerados entidades distintas ao abrigo da mesma diretiva, sem relação com transações imobiliárias.

25.      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, nos termos do artigo 2.o, n.o 7, da Diretiva 2015/849, um Estado‑Membro pode apreender de forma ampla as atividades exercidas por pessoas suscetíveis de conduzir à realização de um objetivo ilícito. Considera, assim, que é possível que, ao celebrar contratos de arrendamento, o arrendatário de um bem imóvel que lhe pertence esteja envolvido no branqueamento de capitais ou no financiamento do terrorismo e que, a fim de reduzir a probabilidade de tais casos, deva igualmente ser considerado um prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts) nos casos em que arrende um bem imóvel que lhe pertence a um arrendatário que o registe como sede social e nele exerça uma atividade comercial.

26.      Além disso, coloca‑se igualmente a questão de saber se qualquer pessoa que arrenda um bem imóvel que lhe pertence deve ser considerada um prestador de serviços a sociedades, de modo que, quando um bem imóvel é arrendado por uma pessoa singular, esta deve estar sujeita às mesmas exigências que as impostas a uma pessoa coletiva.

27.      Foi neste contexto que o Administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o conceito de “prestador de serviços a sociedades” constante do artigo [3.o], ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849 ser interpretado no sentido de que diz respeito a um serviço diferenciado que não decorre de uma operação que consiste em dar de arrendamento bens imóveis de que se é proprietário nem está ligado a essa operação, independentemente do facto de o [senhorio] ter ou não dado o seu consentimento para que o arrendatário inscreva no registo como sua sede social o imóvel arrendado e nele execute operações?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, deve o conceito de “prestador de serviços a sociedades” constante do artigo [3.o], ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849 ser interpretado no sentido de que, se nas situações em que o imóvel é dado de arrendamento por uma pessoa singular, devem ser aplicadas a esta as mesmas condições exigidas a uma pessoa coletiva ou a um centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica, independentemente das circunstâncias factuais, por exemplo, do número de imóveis que essa pessoa singular possui e dá de arrendamento, do facto de a atividade de dar o imóvel de arrendamento não estar relacionada com a atividade económica ou de outras circunstâncias?»

28.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 de janeiro de 2023. Foram apresentadas observações escritas pela Citadeles, pelo VID e pela Comissão Europeia. Encerrada a fase escrita do processo, o Tribunal de Justiça considerou que dispunha de informações suficientes para se pronunciar sem audiência de alegações.

IV.    Análise

A.      Quanto à primeira questão prejudicial

1.      Observações preliminares

29.      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se o conceito de «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)», constante do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, deve ser interpretado no sentido de que visa um serviço específico que não resulta de nem está ligado a uma operação que consiste apenas no arrendamento do bem imóvel de que se é proprietário, independentemente da questão de saber se o senhorio deu o seu consentimento para que o arrendatário inscreva no registo como sua sede social o imóvel arrendado e nele execute operações.

30.      A título preliminar, recordo que, nos termos do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, entende‑se por «“prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)”: qualquer pessoa que, a título profissional, preste» um serviço que consiste no «[f]ornecimento de sede social, endereço comercial, endereço administrativo ou postal e outros serviços conexos a uma sociedade, a uma sociedade de pessoas, ou a qualquer outra pessoa coletiva ou centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica».

31.      A questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio visa determinar se, numa situação como a do processo principal, deve ser considerado que um operador prestou «serviços a sociedades» na aceção da referida disposição, pelo facto de ter arrendado um imóvel que lhe pertence a sociedades, dando expressamente, nos contratos de arrendamento, o seu consentimento para que os arrendatários inscrevam no registo como suas sedes sociais o imóvel arrendado. Se se concluir que, nesta situação, esse operador prestou «serviços a sociedades» na aceção da Diretiva 2015/849, então deve ser qualificado de «entidade obrigada» e ter assim de cumprir as obrigações decorrentes desta diretiva, bem como das disposições nacionais que a transpõem para o direito interno.

32.      Para responder à questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, há assim que proceder à interpretação do conceito de «serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)» conforme definido no artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849.

2.      Quanto à interpretação do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849

33.      Decorre de jurisprudência constante que, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (4).

34.      No que respeita, antes de mais, à análise textual do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, saliento que decorre expressamente do teor desta disposição que a definição do tipo de «serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)» (5)      nela constante visa um serviço que consiste em fornecer, a uma sociedade ou a qualquer outro centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica, «sede social, endereço comercial, endereço administrativo ou postal e outros serviços conexos» (6).

35.      Ora, um serviço que consiste em fornecer uma «sede social», um «endereço comercial, endereço administrativo ou postal» não coincide, na minha opinião, com um serviço que consiste no mero arrendamento de um bem imóvel. Com efeito, o primeiro serviço tem um conteúdo diferente e mais amplo.

36.      A existência de uma sede social ou, pelo menos, de um endereço comercial, endereço administrativo ou postal, é um elemento essencial de qualquer atividade empresarial e, de um modo mais geral, de qualquer atividade profissional. É habitualmente exigida uma sede social para constituir e fazer funcionar uma sociedade, uma vez que permite às autoridades e a qualquer outra pessoa que se relaciona com a sociedade comunicar com esta, tendo um ponto de contacto e de receção da correspondência ou de qualquer outro tipo de comunicação.

37.      O serviço que consiste em fornecer uma «sede social», um «endereço comercial, endereço administrativo ou postal» implica, portanto, a disponibilização de um ponto de contacto para fins profissionais ou administrativos à sociedade ou ao centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica em causa. Em contrapartida, o objeto de um mero arrendamento de um bem imóvel consiste exclusivamente no compromisso de disponibilizar o bem mediante pagamento de uma renda pela utilização do mesmo.

38.      É certo que o serviço que consiste em fornecer uma «sede social», um «endereço comercial, endereço administrativo ou postal» pode, em determinados casos, incluir o arrendamento do bem imóvel utilizado para fins de estabelecimento dessa sede ou desse endereço. No entanto, o arrendamento do bem não é um elemento suficiente nem necessário para este tipo de serviço. Com efeito, por um lado, como resulta das considerações precedentes, esse serviço pressupõe algo mais do que um mero arrendamento do bem imóvel. Por outro lado, é efetivamente possível que um operador se comprometa a fornecer uma sede social ou um endereço comercial, endereço administrativo ou postal a um centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica sem celebrar com este um contrato de arrendamento do bem imóvel em que está estabelecida a sede ou o endereço.

39.      Por outro lado, a utilização da conjunção coordenativa «e» no texto do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849 (7) demonstra, na minha opinião, que o legislador da União quis definir este tipo de serviço a sociedades não como estando exclusivamente limitado à disponibilização a título de arrendamento ou a outro título de um local no qual a sociedade ou entidade jurídica possa estabelecer a sede social ou o endereço comercial, endereço administrativo ou postal, mas que também exigiu o fornecimento «de outros serviços conexos».

40.      Esta consideração confirma que a simples disponibilização de um bem imóvel no qual está estabelecida uma «sede social», um «endereço comercial, endereço administrativo ou postal» não é suficiente para que os serviços possam ser abrangidos pelo conceito de «serviço a sociedades» conforme definido na disposição em causa. Para este efeito, é, em contrapartida, necessário que sejam fornecidos «outros serviços conexos», a saber, serviços complementares que como resulta claramente da versão alemã da referida disposição (8) devem ser serviços conexos com a disponibilização da sede social ou do endereço comercial, endereço administrativo ou postal.

41.      Portanto, também nesta perspetiva, o tipo de serviços a que se refere o artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849 parece ter uma natureza diferente do mero arrendamento de bens imóveis a uma sociedade. Com efeito, este serviço exige, em princípio, uma participação mais ativa por parte do senhorio, que deve fornecer os serviços complementares ligados à disponibilização do local em que está estabelecida a sede social ou o endereço comercial, endereço administrativo ou postal. Tais serviços poderão, por exemplo, incluir um serviço que consista no fornecimento de um ponto de contacto para as atividades administrativas da entidade, um serviço de gestão da correspondência ou outros serviços semelhantes (9).

42.      Em contrapartida, o mero consentimento concedido pelo senhorio no contrato de arrendamento para que o arrendatário inscreva no registo como sua sede social o imóvel arrendado e nele execute operações não pode ser abrangido pelo conceito de «outro serviço conexo» nos termos do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849. Com efeito, como observa acertadamente a Comissão nas suas observações, no âmbito de um contrato de arrendamento de um bem imóvel, o direito de utilizar o endereço do bem arrendado, designadamente enquanto sede social ou endereço comercial, endereço administrativo ou postal, é apenas um direito conexo decorrente da prestação principal a saber, a disponibilização desse bem cujo exercício não exige a participação ativa do senhorio. Na realidade, não se trata sequer de um serviço prestado pelo senhorio, mas antes de um mero consentimento expresso quanto à utilização do bem para uma finalidade específica (10).

43.      Por outro lado, como expõe o órgão jurisdicional de reenvio, no processo principal, esse consentimento foi dado devido à existência de uma disposição de direito nacional que foi posteriormente revogada que exigia a apresentação obrigatória do consentimento do proprietário do bem imóvel para a inscrição de uma sociedade no registo comercial. Esse consentimento expresso era, assim, necessário de jure para qualquer arrendamento de imóvel a sociedades que tivessem a intenção de estabelecer a sua sede social no imóvel arrendado. Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, nestas circunstâncias, esse consentimento constitui, portanto, uma espécie de autorização dada para satisfazer as exigências previstas pela lei e não um serviço prestado a sociedades. Além disso, a circunstância de, no caso em apreço, o imóvel arrendado corresponder ao local em que é efetivamente exercida a atividade comercial das sociedades interessadas reforça o caráter real da operação em causa.

44.      Decorre das considerações precedentes que a análise literal do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849 abona a favor de uma interpretação desta disposição segundo a qual o tipo de «serviços a sociedades» aí referido diz respeito a serviços que são distintos do mero arrendamento de bens imóveis a uma sociedade, independentemente do consentimento do senhorio para que o arrendatário inscreva no registo como sua sede social o imóvel arrendado. Esse tipo de serviço não pode, assim, coincidir com uma simples disponibilização do bem arrendado.

45.      A interpretação sistemática das disposições da Diretiva 2015/849 corrobora esta interpretação do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), desta diretiva.

46.      Com efeito, como observa acertadamente o órgão jurisdicional de reenvio, decorre do artigo 2.o, n.o 1, ponto 3, alínea b), i), e alínea d) da Diretiva 2015/849 que, entre as «entidades obrigadas» estão incluídos «[n]otários e outros membros de profissões jurídicas independentes, quando participem […] numa operação financeira ou imobiliária, quer prestando assistência ao cliente no planeamento ou execução de operações de […] compra e venda de bens imóveis» e «[a]gentes imobiliários, inclusivamente quando operam como intermediários na locação de bens imóveis, mas apenas em relação a transações que envolvam um arrendamento mensal igual ou superior a 10 000 [euros]».

47.      Ora, contrariamente ao que acontece com estes tipos de entidades obrigadas, o artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, não estabelece uma ligação nem muito menos subordina a definição de «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)» a operações imobiliárias. Esta conclusão abona igualmente a favor de uma interpretação desta disposição segundo a qual os serviços mencionados têm uma natureza diferente do mero arrendamento de bens imóveis a uma sociedade.

48.      Por último, no que respeita à interpretação teleológica, importa recordar que, como resulta da jurisprudência, a Diretiva 2015/849 tem por objetivo principal a prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, sendo que as suas disposições visam criar um conjunto de medidas preventivas e dissuasivas, a partir de uma perspetiva baseada no risco, para evitar que fluxos de dinheiro ilícito possam prejudicar a integridade, a estabilidade e a reputação do setor financeiro da União, ameaçar o seu mercado interno e o desenvolvimento internacional (11).

49.      A este respeito, o risco de um senhorio estar envolvido em atividades de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo no âmbito do arrendamento de um bem imóvel que lhe pertence a pessoas coletivas ou a centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica, que inscrevam no registo como sua sede social o imóvel arrendado, não pode ser excluído. Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, esse risco pode existir, nomeadamente, no caso das «empresas de fachada», a saber, pessoas coletivas ou centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica que não exercem nenhuma atividade comercial nos locais arrendados e que os utilizam unicamente para o registo da sua sede social. Com efeito, o registo de um centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica, que normalmente é solicitado por razões lícitas, pode ser utilizado de forma abusiva, por exemplo, com o único objetivo de obter acesso ao sistema financeiro nacional através da abertura de uma conta bancária para o depósito de fundos, mesmo na falta de um vínculo real com o país em causa.

50.      No entanto, por um lado, como decorre das considerações efetuadas nos n.os 38 e 41 das presentes conclusões, o mero arrendamento de um bem imóvel não basta para permitir a constituição de uma «empresa de fachada», sendo necessários para o efeito outros serviços complementares como os que são objeto dos exemplos fornecidos no referido n.o 41. Assim, a não qualificação como «entidade obrigada», nos termos da Diretiva 2015/849, de um senhorio que se limita a arrendar o bem imóvel de que é proprietário a uma sociedade ou a uma outra entidade jurídica que nele estabelece a sua sede social não parece, em princípio, poder dar origem a qualquer risco de eludir as disposições dessa diretiva.

51.      Por outro lado, e sem prejuízo das considerações que farei nos n.os 55 e seguintes das presentes conclusões, partilho da opinião exposta pela Comissão nas suas observações, segundo a qual uma interpretação da disposição em causa no sentido de que qualquer senhorio que arrende um bem imóvel que lhe pertence a uma sociedade que tenha a sua sede social e exerça nele a sua atividade deve qualificar‑se de «entidade obrigada», nos termos da Diretiva 2015/849, e está, assim, sujeito às exigências decorrentes da regulamentação constante dessa diretiva, não contribuiria necessariamente para a realização dos seus objetivos, tal como referidos no n.o 48, supra. Com efeito, tal interpretação implicaria a extensão do conceito de «entidade obrigada» e das respetivas obrigações a um número muito importante de sujeitos, cuja atividade a saber, o mero arrendamento dos bens imóveis de que são proprietários não é, em princípio, particularmente provável que esteja ligada ao branqueamento de capitais ou ao financiamento do terrorismo.

52.      Nestas condições, é possível questionar se tal interpretação da disposição em causa seria compatível com as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, que exige que uma medida seja adequada para garantir, de forma coerente e sistemática, a realização do objetivo prosseguido e que não ultrapasse o que é necessário para o alcançar (12).

53.      Da análise literal, sistemática e teleológica que precede depreende‑se que, a meu ver, o conceito de «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)», constante do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, deve ser interpretado no sentido de que se refere a um serviço específico que não pode resultar de uma operação que consiste no mero arrendamento do bem imóvel de que se é proprietário, independentemente da questão de saber se o senhorio deu o seu consentimento para que o arrendatário inscreva no registo como sua sede social o imóvel arrendado e nele execute operações.

3.      Quanto à extensão pelos EstadosMembros do âmbito de aplicação da Diretiva 2015/849 a outras profissões e categorias de empresas

54.      Contudo, importa ainda salientar que, no seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio menciona igualmente a disposição do artigo 2.o, n.o 7, da Diretiva 2015/849. Considera que, com base nesta disposição, o objetivo legítimo de prevenção do branqueamento de capitais ou do financiamento do terrorismo permite a um Estado‑Membro apreender de forma ampla as atividades exercidas por pessoas que são suscetíveis de conduzir à realização de um objetivo ilícito. Assim, a fim de reduzir a probabilidade de que, ao celebrar contratos de arrendamento de um bem imóvel que lhe pertence, esteja envolvido no branqueamento de capitais ou no financiamento do terrorismo, o senhorio pode ser considerado um prestador de serviços a sociedades.

55.      A este respeito, importa recordar que, conforme salientou o Tribunal de Justiça, a Diretiva 2015/849 procede apenas a uma harmonização mínima, uma vez que o seu artigo 5.o autoriza os Estados‑Membros a aprovar ou a manter em vigor disposições mais rigorosas, desde que essas disposições se destinem a reforçar o combate contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, dentro dos limites do direito da União (13).

56.      Na sua jurisprudência atualmente constante, o Tribunal de Justiça precisou que a expressão «disposições mais rigorosas» prevista no artigo 5.o da Diretiva 2015/849 pode abranger todas as situações que os Estados‑Membros considerem que apresentam um risco mais elevado de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo. Além disso, uma vez que esse artigo 5.o figura na secção 1, intitulado «Objeto, âmbito de aplicação e definições», do capítulo I, intitulado «Disposições gerais», dessa diretiva, aplica‑se a todas as disposições do domínio regulado pela referida diretiva (14).

57.      Assim, a Diretiva 2015/849 confere uma ampla margem de apreciação aos Estados‑Membros quer quanto à determinação dos riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, quer quanto às medidas adequadas para prevenir, evitar ou, pelo menos, entravar essas atividades (15).

58.      Além disso, a Diretiva 2015/849 reconhece igualmente que os Estados‑Membros podem ser afetados de modo diferente pelos diversos riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, que podem depender da situação específica de cada Estado‑Membro e podem variar em função de diferentes parâmetros como a sua zona geográfica ou a sua situação económica ou social (16).

59.      Nestas condições, no âmbito da ampla margem de apreciação que lhes é reconhecida neste domínio, os Estados‑Membros podem alargar o âmbito de aplicação da Diretiva 2015/849 ao considerar como «entidades obrigadas» profissões ou categorias de empresas diferentes das expressamente referidas no artigo 2.o, n.o 1, desta diretiva, tomando em consideração a situação específica de cada Estado‑Membro.

60.      No entanto, a disposição pertinente da Diretiva 2015/849 nesta matéria não é a mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio, a saber, o seu artigo 2.o, n.o 7. Com efeito, como decorre do seu teor, esta disposição não é referente à identificação das entidades obrigadas, mas sim à avaliação dos riscos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, apenas para efeitos do artigo 2.o.

61.      A disposição pertinente é, em contrapartida, o artigo 4.o da Diretiva 2015/849, que prevê que os Estados‑Membros asseguram, de acordo com a abordagem baseada no risco, que o âmbito dessa diretiva é alargado, no todo ou em parte, a profissões e categorias de empresas distintas das entidades obrigadas a que se refere o artigo 2.o, n.o 1, da referida diretiva que exerçam atividades particularmente suscetíveis de ser utilizadas para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.

62.      Resulta do n.o 2 deste artigo 2.o que, caso um Estado‑Membro torne o âmbito da Diretiva 2015/849 extensivo a profissões ou categorias de empresas distintas daquelas mencionadas no n.o 1, do referido artigo 2.o, informa a Comissão dessa decisão.

63.      A este respeito, saliento que o artigo 4.o da Diretiva 2015/849 não especifica as modalidades de tal extensão. Assim, tendo em conta o caráter dinâmico quer das relações económicas quer das atividades criminosas, deve, a meu ver, considerar‑se que o direito da União, nomeadamente os princípios da legalidade e da segurança jurídica, não se opõe a que leis nacionais não determinem exaustivamente as profissões e categorias de empresas que constituem entidades obrigadas, desde que as entidades obrigadas distintas daquelas a que se refere o artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2015/849, às quais é alargado o âmbito de aplicação das disposições desta diretiva, sejam especificadas em atos posteriores não necessariamente de caráter legislativo mas devem ser objeto de uma publicidade adequada (17).

64.      Todavia, a extensão por um Estado‑Membro do conceito de «entidade obrigada» a outras entidades que não as referidas na Diretiva 2015/849 só é possível, por um lado como resulta do próprio texto do artigo 4.°, n.o 1, desta diretiva caso «exerçam atividades particularmente suscetíveis de ser utilizadas para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo» e, por outro, se tal extensão for realizada no estrito respeito do direito da União e, nomeadamente, das disposições do Tratado FUE que garantem as liberdades fundamentais.

65.      No caso em apreço, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, in concreto, se, na ordem jurídica letã, um operador, como a Citadeles, que se limitou a arrendar um bem imóvel que lhe pertence e, para o efeito, celebrou contratos de arrendamento com arrendatários, dando expressamente o seu consentimento para que inscrevessem no registo como suas sedes sociais neste imóvel, deve ser considerado como fazendo parte de uma profissão ou categoria de empresas distintas das entidades obrigadas a que se refere o artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2015/849 à qual a República da Letónia alargou, nos termos do artigo 4.o desta diretiva, o âmbito de aplicação da regulamentação anti‑branqueamento prevista pela referida diretiva.

66.      A este respeito, é possível, no entanto, duvidar que seja esse o caso. Com efeito, nas suas observações apresentadas no Tribunal de Justiça, a Comissão afirmou expressamente não ter recebido nenhuma informação do Governo Letão, ao abrigo do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2015/849, segundo a qual a República da Letónia tivesse tornado extensivo o âmbito de aplicação desta a outras profissões ou categorias de empresas, a saber, às pessoas que arrendam bens imóveis que lhes pertencem.

4.      Conclusão relativa à primeira questão prejudicial

67.      À luz de todas as considerações precedentes, considero que se deve responder à primeira questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio que o conceito de «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)» constante do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849 deve ser interpretado no sentido de que se refere a um serviço específico que não pode resultar de uma operação que consiste no mero arrendamento do bem imóvel de que se é proprietário, independentemente da questão de saber se o senhorio deu o seu consentimento para que o arrendatário inscreva no registo como sua sede social o imóvel arrendado e nele execute operações.

B.      Quanto à segunda questão prejudicial

68.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em caso de resposta negativa à primeira questão, se o conceito de «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)» constante do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849 deve ser interpretado no sentido de que, se nas situações em que o imóvel é dado de arrendamento por uma pessoa singular, devem ser aplicadas a esta as mesmas condições exigidas a uma pessoa coletiva ou a um centro de interesses coletivos sem personalidade jurídica, independentemente das circunstâncias factuais, por exemplo, do número de imóveis que essa pessoa singular possui e dá de arrendamento, do facto de que a atividade de dar de arrendamento o imóvel não estar relacionada com a atividade económica ou de outras circunstâncias,

69.      Uma vez que a segunda questão foi submetida em caso de resposta negativa à primeira questão, se o Tribunal de Justiça interpretar o artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, no sentido proposto no n.o 67 das presentes conclusões, não há que responder a esta questão.

70.      De qualquer modo, esta segunda questão é, a meu ver, inadmissível. Com efeito, não resulta de nenhum elemento dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que o litígio no processo principal tenha por objeto, ainda que parcialmente, o arrendamento de bens imóveis por uma pessoa singular.

71.      Daqui resulta que responder à segunda questão nestas circunstâncias equivaleria manifestamente a dar uma opinião consultiva sobre uma questão hipotética, em violação da missão confiada ao Tribunal de Justiça no quadro da cooperação jurisdicional instituída pelo artigo 267.o TFUE (18).

V.      Conclusão

72.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância, Letónia) do seguinte modo:

O conceito de «prestador de serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)», constante do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, que altera o Regulamento (UE) n.o 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e que revoga a Diretiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2006/70/CE da Comissão,

deve ser interpretado no sentido de que:

se refere a um serviço específico que não pode resultar de uma operação que consiste no mero arrendamento do bem imóvel de que se é proprietário, independentemente da questão de saber se o senhorio deu o seu consentimento para que o arrendatário inscreva no registo como sua sede social o imóvel arrendado e nele execute operações.


1      Língua original: francês.


2      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, que altera o Regulamento (UE) n.o 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e que revoga a Diretiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2006/70/CE da Comissão (JO 2015, L 141, p. 73), conforme alterada pela Diretiva (UE) 2018/843 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018 (JO 2018, L 156, p. 43) (a seguir «Diretiva 2015/849»).


3      Latvijas Vēstnesis, 2008, n. o 116.


4      V., recentemente, Acórdãos de 8 de junho de 2023, VB (Informação prestada ao condenado in absentia) (C‑430/22 e C‑468/22, EU:C:2023:458, n.o 24 e jurisprudência aí referida), e de 17 de novembro de 2022, Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:883, n.o 81).


5      O artigo 3.o, ponto 7, alíneas a), b), d) e e), da Diretiva 2015/849 define outros tipos de «serviços a sociedades e fundos fiduciários (trusts)».


6      O sublinhado é meu.


7      A este respeito, importa observar que todas as versões linguísticas da disposição em causa parecem utilizar uma conjunção coordenativa equivalente à palavra «et» em francês. Assim, a título de exemplo, a versão espanhola utiliza a palavra «y», a versão alemã a palavra «und», a versão inglesa a palavra «and», as versões italiana e portuguesa a palavra «e», a versão lituana a palavra «ir», a versão neerlandesa a palavra «en», a versão polaca a palavra «i», a versão romena a palavra «și», a versão eslovaca a palavra «a».


8      Na versão alemã do artigo 3.o, ponto 7, alínea c), da Diretiva 2015/849, o legislador utilizou os termos «und anderer damit zusammen hängender Dienstleistungen», ou seja, literalmente «e outros serviços a isto ligados», a saber, o fornecimento de «sede social, endereço comercial, endereço administrativo ou postal». A análise da versão inglesa que utiliza os termos «other related services», da versão polaca que utiliza os termos «i innych pokrewnych usługétaye», bem como das versões italiana, espanhola e portuguesa, corroboram esta interpretação.


9      Outros serviços complementares, tipicamente oferecidos neste contexto, podem incluir o serviço de faxe dedicado e de transferência de chamadas telefónicas, a recolha de extratos bancários, a disponibilização de salas para as reuniões do conselho de administração ou de outros órgãos de direção da sociedade, o estabelecimento de relações com prestadores especializados para outros serviços como, por exemplo, a matrícula de veículos.


10      Na falta de uma proibição expressa no contrato de arrendamento, pode mesmo considerar‑se que esse consentimento é dado implicitamente pelo senhorio, dado que se trata de uma utilização do bem arrendado que não é excecional.


11      V. Acórdão de 17 de novembro de 2022, Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:883, n.os 33 e 34 e a jurisprudência aí referida).


12      Acórdão de 2 de março de 2023, PrivatBank e o. (C‑78/21, EU:C:2023:137, n.o 70 e jurisprudência aí referida).


13      V. Acórdão de 17 de novembro de 2022, Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:883, n.o 46).


14      V. Acórdão de 17 de novembro de 2022, Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:883, n.o 47) e, por analogia, Acórdão de 10 de março de 2016, Safe Interenvíos (C‑235/14, EU:C:2016:154, n.o 77).


15      V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral G. Pitruzzella no processo Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:381, n.os 44 e segs.).


16      V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral G. Pitruzzella no processo Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:381, n.o 45).


17      V., por analogia, Acórdão de 17 de novembro de 2022, Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:883, n.o 51). A este respeito, v. também, por analogia, as considerações efetuadas nas Conclusões do advogado‑geral G. Pitruzzella no processo Rodl & Partner (C‑562/20, EU:C:2022:381, n.os 54 a 57).


18      V., ex multis, Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, Stichting Rookpreventie Jeugd e o. (C‑160/20, EU:C:2022:101, n.os 82 e 84 e jurisprudência aí referida).