Language of document : ECLI:EU:T:2003:168

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quinta Secção)

17 de Junho de 2003 (1)

«Concorrência - Denúncia - Artigos 82.° CE e 86.° CE - Admissibilidade - Serviços portuários»

No processo T-52/00,

Coe Clerici Logistics SpA, com sede em Trieste (Itália), representada por G. Conte, G. M. Giacomini e E. Minozzi, advogados, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por R. Lyal e L. Pignataro, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

apoiada por

Autorità Portuale di Ancona, representada por S. Zunarelli, C. Perrella e P. Manzini, advogados,

interveniente,

que tem por objecto um pedido de anulação da carta da Comissão de 20 de Dezembro de 1999 (D 17482) que recusou dar seguimento à denúncia da recorrente baseada nos artigos 82.° CE e 86.° CE,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Quinta Secção),

composto por: J. D. Cooke, presidente, R. García-Valdecasas e P. Lindh, juízes,

secretário: J. Palacío Gonzalez, administrador principal,

vistos os autos e após a audiência de 19 de Setembro de 2002,

profere o presente

Acórdão

Enquadramento jurídico

1.
    Na sequência do acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 1991, Merci convenzionali porto di Genova (C-179/90, Colect., p. I-5889), as autoridades italianas adoptaram, designadamente, a Lei n.° 84/94, de 28 de Janeiro de 1994, que adapta a legislação aplicável em matéria portuária (GURI n.° 21, de 4 de Fevereiro de 1994, a seguir «Lei n.° 84/94»), e o Decreto n.° 585 do Ministério dos Transportes e da Navegação, de 31 de Março de 1995, relativo ao regime previsto no artigo 16.° da Lei n.° 84/94 (GURI n.° 47, de 26 de Fevereiro de 1996, a seguir «Decreto n.° 585/95»), os quais alteraram o enquadramento jurídico aplicável ao sector portuário italiano.

2.
    No âmbito desta reforma, a actividade das antigas companhias portuárias, actualmente autoridades portuárias nos termos da Lei n.° 84/94, ficou limitada à gestão dos portos, já não podendo prestar, directa ou indirectamente, serviços de operações portuárias, as quais são definidas no artigo 16.°, n.° 1, da Lei n.° 84/94 como sendo a carga, descarga, transbordo, armazenagem e manutenção em geral das mercadorias e outros bens, efectuados nos locais do porto.

3.
    Estas autoridades portuárias são dotadas de personalidade jurídica de direito público e estão, designadamente, encarregadas de proceder à concessão de cais a empresas portuárias.

4.
    A este propósito, o artigo 18.°, n.° 1, da referida lei prevê que as áreas da sua competência e os cais compreendidos nos locais do porto podem ser atribuídos em concessão para execução de operações portuárias, com excepção dos imóveis utilizados pelos organismos da administração pública para o desempenho de funções relacionadas com as actividades marítimas e portuárias. O artigo 18.°, n.° 2, da Lei n.° 84/94 estabelece, além disso, critérios a respeitar pelas autoridades portuárias para a atribuição de concessões de modo a reservar, nos locais do porto, espaços operacionais para execução de operações portuárias por empresas não concessionárias.

5.
    O Decreto n.° 585/95 prevê que a autoridade portuária pode autorizar operações de automanutenção, isto é, a possibilidade de um navio efectuar operações portuárias com o seu próprio pessoal de bordo, derrogando esta autorização as concessões atribuídas. Com efeito, nos termos do artigo 8.° deste decreto, a autoridade portuária pode conceder aos transportadores marítimos ou às empresas de navegação autorização para efectuarem operações portuárias à chegada ou partida de navios dotados de meios mecânicos e de pessoal.

6.
    A circular n.° 33, de 15 de Fevereiro de 1996, da Direcção-Geral do Trabalho Marítimo e Portuário do Ministério dos Transportes e da Navegação italiano, especifica o alcance do artigo 8.° do Decreto n.° 585/95 definindo as condições de exercício da automanutenção. A este propósito, refere-se aí que as operações em automanutenção apenas podem ocorrer nos cais e zonas concessionadas devido a falta ou insuficiência de espaços disponíveis afectos à utilização pública e que cabe à autoridade portuária regulamentar o respectivo exercício em termos gerais e, mais especificamente, em cada acto de concessão, de acordo com o concessionário.

7.
    No que se refere ao porto de Ancona, a Autorità Portuale di Ancona (autoridade portuária de Ancona) atribuiu concessões a três empresas: Ancona Merci (cais n.os 1, 2, 4, 15, 23 e 25), Silos Granari della Sicilia (cais n.° 20) e Sai (cais n.° 21).

8.
    O presidente da Autorità Portuale di Ancona emitiu, em 20 de Março de 1998, o Despacho n.° 6/98 que disciplina o exercício de operações em automanutenção no porto de Ancona. O Despacho da Autorità Portuale di Ancona n.° 21/99, de 8 de Setembro de 1999, aditou o artigo 5.°-A ao Despacho n.° 6/98, que regula as condições em que os cais concessionados podem ser disponibilizados para operações em automanutenção quando os cais públicos estejam já afectados ou sejam insuficientes.

9.
    Este artigo 5.°-A prevê que a Autorità Portuale di Ancona solicitará a um ou vários concessionários a colocação à disposição dos cais que não prevêem utilizar durante o período em causa num pedido relativo a operações em automanutenção quando se verifique a falta ou a insuficiência dos cais já afectados ou a afectar ao uso público. Para este efeito, apenas são autorizadas sem utilização da zona de depósito atribuída as operações de embarque ou de desembarque. A autorização para proceder a estas operações será emitida de acordo com as regras previstas no artigo 3.° do Despacho n.° 6/98, especificando quais são os cais disponíveis após ter obtido do concessionário a declaração de disponibilidade, a indicação do cais de acostagem e os acordos sobre as regras práticas. Além disso, se bem que o concessionário esteja obrigado a não dificultar a disponibilidade dos cais durante o período para o qual é dada a autorização, poderá, a qualquer momento, suspender as operações em automanutenção se pretender recorrer a meios mecânicos instalados num dos seus cais. Por fim, os operadores em automanutenção pagarão aos concessionários uma remuneração como contrapartida da utilização do cais. Na hipótese de o concessionário considerar não estar em condições de satisfazer os pedidos da Autorità Portuale di Ancona, esta pode, a qualquer momento, verificar a indisponibilidade dos cais.

Matéria de facto na origem do litígio

10.
    A recorrente, Coe Clerici Logistics SpA, opera no sector do transporte marítimo de matérias-primas secas a granel. Efectua, designadamente, o transporte de carvão por conta da ENEL SpA, organismo produtor de electricidade e responsável pela distribuição nacional de electricidade em Itália. A ENEL dispõe no porto de Ancona de um depósito para armazenar as suas mercadorias. Este depósito está ligado, graças a uma instalação fixa de transportadores mecânicos e tremonhas pertencente igualmente à ENEL, ao cais n.° 25 do porto de Ancona, o qual foi concessionado à sociedade Ancona Merci.

11.
    A recorrente afirma que, a fim de se adaptar a esta instalação fixa de transportadores mecânicos e tremonhas pertencente à ENEL, dotou os seus navios, entre os quais o Capo Noli, de um equipamento específico.

12.
    Segundo a recorrente, o cais n.° 25 é o único utilizável para as suas operações de descarga de carvão para a ENEL, considerando que:

-    é o único cais equipado com uma grua que permite a descarga das mercadorias;

-    é o único que apresenta uma profundidade suficiente;

-    é o único directamente ligado ao depósito da ENEL mediante uma instalação fixa de transportadores mecânicos e tremonhas.

13.
    A recorrente solicitou à Autorità Portuale di Ancona, em Agosto de 1996, autorização para operar pelos seus próprios meios no cais n.° 25.

14.
    Por requerimento de 13 de Fevereiro de 1998, a recorrente interpelou a Autorità Portuale di Ancona para se pronunciar sobre a emissão dessa autorização.

15.
    Por carta de 17 de Fevereiro de 1998, o presidente da Autorità Portuale di Ancona justificou o atraso na resposta afirmando que a autorização requerida pressupunha o acordo prévio da Ancona Merci, nos termos do artigo 9.° do respectivo acto de concessão.

16.
    A este propósito, o artigo 9.° do acto de concessão da Ancona Merci prevê que esta permitirá aos operadores indicados no artigo 8.° do Decreto n.° 585/95 operar nos cais de que é concessionária se se verificar a falta ou a insuficiência de cais ou de espaços destinados a utilização pública. Esta autorização para operar em automanutenção nos cais concessionados deverá ser emitida segundo as regras e as condições previstas na regulamentação em vigor e na regulamentação específica a adoptar pela Autorità Portuale di Ancona, de acordo com o concessionário, nos termos da circular ministerial n.° 33, de 15 de Fevereiro de 1996.

17.
    Na carta de 17 de Fevereiro de 1998, a Autorità Portuale di Ancona indicava igualmente que tinha sido submetido à apreciação da Ancona Merci um projecto de regulamentação.

18.
    Por carta de 13 de Março de 1998, a Autorità Portuale di Ancona comunicou à recorrente que o regime de automanutenção nos cais concessionados devia ser apreciado por uma comissão ad hoc e indicou-lhe que ela tinha a faculdade de operar em automanutenção nos cais e zonas públicas do porto de Ancona.

19.
    Considerando que as disposições adoptadas pela Autorità Portuale di Ancona criam obstáculos ao exercício do seu direito a operar em automanutenção de modo a permitir à Ancona Merci exercer as suas actividades em regime de exclusividade nos cais concessionados, a recorrente apresentou, em 30 de Março de 1999, uma denúncia à Comissão por violação dos artigos 82.° CE e 86.° CE. A denúncia da recorrente visava igualmente a concessão de auxílios de Estado ao porto de Ancona.

20.
    Nessa denúncia, a recorrente referia-se, designadamente, ao artigo 5.°-A do Despacho n.° 6/98, o qual restringe o seu direito de operar em automanutenção nos cais concessionados, principalmente, no cais n.° 25. Em conclusão, a recorrente pediu à Comissão que declarasse verificado que:

«A autoridade portuária, no exercício do seu poder regulamentar exclusivo, opõe-se ao livre exercício do direito de operar em automanutenção por parte da [recorrente] permitindo, de facto, à Ancona Merci operar em exclusividade nos cais concessionados, actuando assim contrariamente ao disposto nos artigos [82.° CE e 86.° CE].»

21.
    Por carta de 26 de Abril de 1999, o Secretariado-Geral da Comissão informou a recorrente da recepção da sua denúncia.

22.
    Por carta de 10 de Agosto de 1999, a Direcção-Geral «Transportes» (DG VII) da Comissão informou a recorrente da sua intenção de investigar os aspectos da denúncia relativos aos auxílios de Estado, indicando que a Direcção-Geral «Concorrência» (DG IV) era a competente para investigar os aspectos da denúncia relativos à violação dos artigos 82.° CE e 86.° CE.

23.
    Por carta de 20 de Dezembro de 1999 (a seguir «acto impugnado»), a Comissão informou a recorrente de que não daria seguimento à sua denúncia.

24.
    Neste acto, a Comissão refere, a título introdutivo, que o mesmo «incide unicamente sobre os aspectos relativos à alegada violação dos artigos 82.° CE e 86.° CE». Afirma, em seguida, que a investigação a que procedeu revelou determinadas divergências relativamente ao que tinha sido exposto na denúncia, a saber:

-    afigura-se que o cais n.° 22 é um cais público;

-    os cais n.° 20 (concessionado à Silos Granari della Sicilia) e n.° 22 (público) teriam profundidade e extensão adaptadas à acostagem do navio da recorrente;

-    quanto à necessidade de recorrer às gruas do cais n.° 25, a mesma não está claramente demonstrada, uma vez que a denúncia se baseava na recusa de autorização à recorrente para operar pelos seus próprios meios com a sua grua. A Comissão considera, portanto, que o único elemento que pode justificar a utilidade para a recorrente do cais n.° 25 é a existência, no mesmo, da estação fixa de transportadores mecânicos e tremonhas.

25.
    A este propósito, no acto impugnado, a Comissão alega que a presença desta instalação fixa de transportadores mecânicos e tremonhas não é, contudo, suficiente para qualificar o cais n.° 25 de instalação essencial. Afirma que as condições exigidas pelo acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 1998, Bronner (C-7/97, Colect., p. I-7791), para demonstrar a existência de um abuso de posição dominante não se verificam no caso em apreço. Com efeito, por um lado, a recorrente continua a exercer as suas actividades para a ENEL desde há dois anos, não obstante a recusa que lhe foi manifestada, e, por outro, a recorrente dispõe de soluções alternativas para descarregar o carvão do seu cliente.

26.
    A Comissão conclui, no acto impugnado, que não pode dar sequência à denúncia. Além disso, uma vez que a denúncia se refere à violação das normas da concorrência por um Estado-Membro, não confere ao denunciante o «estatuto» que decorre do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962 (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), Primeiro Regulamento de execução dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado, alterado e completado pelo Regulamento n.° 59 (JO 1962, 58, p. 1655; EE 08 F1 p. 53), pelo Regulamento n.° 118/63/CEE, de 5 de Novembro de 1963 (JO 1963, 162, p. 2696; EE 08 F1 p. 65), e pelo Regulamento (CEE) 2822/71, de 20 de Dezembro de 1971 (JO L 285, p. 49; EE 08 F2 p. 16), e do Regulamento (CE) n.° 2842/98 da Comissão, de 22 de Dezembro de 1998, relativo às audições dos interessados directos em certos processos, nos termos dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado CE (JO L 354, p. 18). Com efeito, este «estatuto» apenas é reconhecido ao denunciante que invoque a violação das regras de concorrência por parte de empresas.

27.
    Por carta de 5 de Janeiro de 2000, a recorrente pediu à Comissão que esclarecesse se o acto impugnado tinha ou não carácter decisório. A recorrente reiterou o seu pedido por carta de 9 de Fevereiro de 2000.

28.
    A Comissão não respondeu, por escrito, a estas cartas.

Tramitação processual

29.
    Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 9 de Março de 2000, a recorrente interpôs o presente recurso de anulação do acto impugnado.

30.
    Por requerimento que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 19 de Maio de 2000, a Comissão suscitou uma questão prévia de inadmissibilidade, sobre a qual a recorrente apresentou observações em 7 de Julho de 2000.

31.
    Por despacho de 13 de Dezembro de 2000, o Tribunal decidiu remeter a questão da admissibilidade do recurso para a apreciação do mérito da causa.

32.
    Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 11 de Janeiro de 2002, a Autorità Portuale di Ancona pediu que fosse admitida a intervir em apoio da recorrida. A Comissão e a recorrente apresentaram observações a esse propósito, respectivamente, em 29 de Janeiro e 5 de Fevereiro de 2002.

33.
    Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 5 de Fevereiro de 2002, a recorrente pediu o tratamento confidencial do presente processo relativamente à Autorità Portuale di Ancona e, sendo esse o caso, que apenas fosse enviado a esta o relatório para audiência relativo ao processo.

34.
    Por despacho da Quinta Secção de 30 de Maio de 2002, o Tribunal de Primeira Instância admitiu a Autorità Portuale di Ancona a intervir na audiência com base no relatório para audiência e considerou que não havia que decidir sobre o pedido de tratamento confidencial da recorrente.

35.
    Com base no relatório do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância (Quinta Secção), por um lado, decidiu iniciar a fase oral e, por outro, convidou a recorrida a apresentar determinados documentos antes da audiência. A recorrida respondeu a esse pedido no prazo que lhe tinha sido fixado.

36.
    Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às perguntas do Tribunal na audiência pública de 19 de Setembro de 2002.

Pedidos das partes

37.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    julgar o recurso admissível;

-    anular o acto impugnado;

-    condenar a Comissão nas despesas.

38.
    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    julgar o recurso inadmissível;

-    subsidiariamente, negar-lhe provimento;

-    condenar a recorrente nas despesas.

39.
    Na audiência, a Autorità Portuale di Ancona concluiu pedindo que o Tribunal se digne:

-    julgar o recurso inadmissível;

-    a título subsidiário, negar-lhe provimento.

Questão de direito

Argumentos das partes

Quanto à admissibilidade

40.
    A Comissão alega a inadmissibilidade do recurso, dado que a recorrente lhe pediu, na denúncia, que fizesse uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 86.°, n.° 3, CE, isto é, que adoptasse uma decisão dirigida à República Italiana. Contudo, foi unicamente na fase do recurso contencioso que a recorrente invocou a existência de uma falha na instrução da denúncia pela Comissão, na perspectiva da pretensa violação do artigo 82.° CE, uma vez que a Ancona Merci se teria injustamente recusado à prestação de um serviço e praticou preços exagerados para a distribuição de serviços que apenas parcialmente se podem substituir. Ora, a recorrente limitou-se a invocar, na denúncia, a violação conjugada dos artigos 82.° CE e 86.° CE. Isto é confirmado pelo teor geral da denúncia e pela sua conclusão.

41.
    Alega igualmente que o acto impugnado não reveste carácter decisório e que a recorrente não pode, por isso, pedir a sua anulação. No mesmo acto, a Comissão limita-se, com efeito, a informar a recorrente da sua intenção de não iniciar um procedimento contra um Estado-Membro nos termos do artigo 86.°, n.° 3, CE e lembra que a recorrente não beneficia dos direitos conferidos pelos Regulamentos n.os 17 e 2842/98.

42.
    A Comissão realça a semelhança dos procedimentos previstos nos artigos 86.°, n.° 3, CE e 226.° CE e refere que o Tribunal de Primeira Instância confirmou, aliás, o paralelismo entre os dois procedimentos no acórdão de 27 de Outubro de 1994, Ladbroke/Comissão (T-32/93, Colect., p. II-1015, n.° 37).

43.
    Além disso, resulta da jurisprudência que «as pessoas singulares ou colectivas que pedem à Comissão para intervir nos termos do artigo [86.°], n.° 3, [CE] não gozam do direito de recorrer da decisão da Comissão de não fazer uso das prerrogativas de que goza a título do artigo [86.°], n.° 3, [CE]» (despacho do Tribunal de Primeira Instância de 23 de Janeiro de 1995, Bilanzbuchhalter/Comissão, T-84/94, Colect., p. II-101, n.os 31 e 32; acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Janeiro de 1996, Koelman/Comissão, T-575/93, Colect., p. II-1, n.° 71; de 17 de Julho de 1998, ITT Promedia/Comissão, T-111/96, Colect., p. II-2937, n.° 97, e de 8 de Julho de 1999, Vlaamse Televisie Maatschappij/Comissão, T-266/97, Colect., p. II-2329, n.° 75).

44.
    O Tribunal de Justiça confirmou o despacho Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, no acórdão de 20 de Fevereiro de 1997, Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão (C-107/95 P, Colect., p. I-947, n.os 27 e 28).

45.
    A este propósito, a Comissão admite que, neste último acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que podem existir situações excepcionais em que um particular tenha legitimidade para agir judicialmente contra a recusa da Comissão de adoptar uma decisão baseada no artigo 86.°, n.os 1 e 3, CE (n.° 25). Embora o Tribunal de Justiça não tenha especificado a natureza destas circunstâncias, a Comissão considera que se trata provavelmente de situações imprevisíveis (acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2001, Comissão e França/TF1, C-302/99 P e C-308/99 P, Colect., p. I-5603) que não se verificavam no caso em apreço. Além disso, contrariamente ao que exigia o Tribunal de Primeira Instância no acórdão de 3 de Junho de 1999, TF1/Comissão (T-17/96, Colect., p. II-1757), a Ancona Merci não pode ser considerada uma das concorrentes da recorrente, uma vez que não é uma empresa de transportes, mas sim um concessionário de cais cuja actividade consiste essencialmente na carga e descarga de navios.

46.
    A Comissão observa, em seguida, que a denúncia da recorrente de 30 de Março de 1999 parece ter por objectivo obrigar a Comissão a tomar posição, nos termos do artigo 86.° CE, relativamente a uma medida estatal específica, no caso concreto, o despacho da Autorità Portuale di Ancona n.° 6/98, mais exactamente, o artigo 5.°-A. Contudo, esta denúncia pretende pôr em causa a organização escolhida pelo legislador italiano para as operações portuárias. Esta organização pretende garantir um equilíbrio entre os interesses das companhias marítimas e do concessionário ao autorizar este a utilizar determinados cais de modo exclusivo, com algumas limitações, contudo, a favor de empresas marítimas susceptíveis de operar pelos seus próprios meios. Uma eventual decisão da Comissão de dar início ao processo previsto no artigo 86.°, n.° 3, CE contra a Autorità Portuale di Ancona teria como resultado forçar o Estado italiano a alterar a Lei n.° 84/94 e teria repercussões no conjunto dos portos italianos. Ora, o Tribunal de Justiça apreciou uma situação semelhante no acórdão Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido (n.os 26 e 28), e excluiu a possibilidade de um particular interpor recurso da recusa da Comissão de adoptar uma decisão nos termos do artigo 86.°, n.° 3, CE nessa hipótese.

47.
    Por fim, a Comissão observa que é irrelevante o facto de a recorrente invocar o despacho do Tribunal de Primeira Instância de 20 de Março de 2001, Compagnia Portuale Pietro Chiesa/Comissão (T-59/00, Colect., p. II-1019), uma vez que o acto aí impugnado era uma medida interlocutória que não determinava, em definitivo, a posição da Comissão.

48.
    A recorrente responde, em primeiro lugar, que a sua denúncia visa não só a violação conjugada dos artigos 82.° CE e 86.° CE, mas também o abuso de posição dominante da Ancona Merci, concessionária do cais n.° 25. Este cais é, com efeito, o único que, pelas suas características técnicas e equipamento, lhe permitia descarregar o carvão da ENEL. Este abuso de posição dominante resulta do poder conferido à Ancona Merci pela Autorità Portuale di Ancona de decidir quais as empresas autorizadas a executar pelos seus próprios meios operações portuárias no seu cais.

49.
    Contudo, o facto de serem disposições de natureza administrativa e não legislativa a conduzir necessariamente ao abuso de posição dominante em causa é irrelevante para a qualificação dos comportamentos denunciados à luz do artigo 82.° CE, por parte de uma empresa privada, e leva à conclusão de que se verifica uma violação conjugada dos artigos 82.° CE e 86.° CE. A este propósito, a recorrente observa que o artigo 86.° CE reforça a protecção conferida pelo artigo 82.° CE ao não subtrair à aplicação deste último o abuso de uma empresa que seja facilitado por uma disposição de direito público e ao permitir a aplicação extensiva do artigo 82.° CE às pessoas que participam no exercício da autoridade pública.

50.
    Além disso, a recorrente observa que a Comissão nunca qualificou o processo que instaurou como um procedimento nos termos do artigo 86.° CE e que, pelo contrário, indicou na carta de 10 de Agosto de 1999 que a DG IV investigava a violação dos artigos 82.° CE e 86.° CE.

51.
    Em segundo lugar, a recorrente objecta aos argumentos da Comissão relativos à sua legitimidade que a jurisprudência admite, em face de circunstâncias excepcionais, que as pessoas singulares ou colectivas têm legitimidade no âmbito do processo previsto nos termos do artigo 86.°, n.° 3, CE. Apenas o particular que interpõe recurso da recusa da Comissão de adoptar uma decisão nos termos do artigo 86.°, n.° 3, CE que obrigue indirectamente um Estado a adoptar um acto legislativo de alcance geral perde, de certo modo, a sua legitimidade para agir (v. acórdão Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, n.° 28).

52.
    A recorrente remete para o despacho Compagnia Portuale Pietro Chiesa/Comissão, já referido (n.os 41 e 42). Remete igualmente para as conclusões do advogado-geral A. La Pergola no processo Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido (Colect., p. I-949), nos termos das quais entende que o artigo 86.°, n.° 3, CE, diferentemente do artigo 226.° CE, se insere no contexto das disposições adoptadas com o objectivo de assegurar o livre jogo da concorrência para disciplinar o comportamento das empresas no mercado.

53.
    A recorrente considera que resulta do acórdão Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, e das conclusões do advogado-geral A. La Pergola neste processo, já referidas, que a protecção jurisdicional dos particulares não pode ficar comprometida quando a disposição adoptada pela Comissão não está relacionada com a protecção de um interesse público nem com a regulação de relações interinstitucionais. Assim, as pessoas singulares ou colectivas não podem obrigar um Estado-Membro a adoptar, modificar ou revogar uma regra de alcance geral.

54.
    Ora, a recorrente afirma que, contrariamente ao que adianta a Comissão, a intervenção desta nos termos do artigo 86.°, n.° 3, CE não afecta de modo algum o regime legal de concessão de cais nos portos italianos, mas tão-só as disposições administrativas contrárias ao direito comunitário adoptadas pela Autorità Portuale di Ancona a favor dos concessionários do porto de Ancona, principalmente, a favor da Ancona Merci, que afectam a situação de empresas com as quais se encontra numa relação de concorrência directa.

55.
    Na audiência, a recorrente alegou que, por aplicação do princípio desenvolvido no acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 30 de Janeiro de 2002, max.mobil/Comissão (T-54/99, Colect., p. II-313), o acto impugnado deve ser considerado uma decisão de não dar seguimento à denúncia, cuja legalidade a recorrente, na sua qualidade de autora da denúncia, tem legitimidade para contestar.

Quanto ao mérito

56.
    A recorrente invoca vários fundamentos em apoio do seu recurso. Estes fundamentos estão agrupados em torno de duas problemáticas relativas, no essencial, por um lado, à não concessão das garantias processuais previstas no Regulamento n.° 2842/98 e, por outro, à recusa da Comissão de qualificar o cais n.° 25 de «instalação essencial».

- Quanto à recusa de conceder à recorrente o benefício do Regulamento n.° 2842/98

57.
    A recorrente critica a Comissão por ter violado o seu direito de defesa ao não lhe permitir tomar conhecimento das observações formuladas pelas partes que foram postas em causa no procedimento administrativo. A recorrente considera, pois, que a Comissão violou os artigos 6.° a 8.° do Regulamento n.° 2842/98.

58.
    Alega igualmente que, além do facto de lhe dever ser aplicado este regulamento mesmo em face de uma violação dos artigos 82.° CE e 86.° CE, dado que pelo menos uma das partes em causa na sua denúncia é uma empresa, a decisão da Comissão de não lhe aplicar o Regulamento n.° 2842/98 resulta do facto de a Comissão não ter tido em conta que a recorrente denunciou a violação do artigo 82.° CE por parte da Ancona Merci.

59.
    A este respeito, a Ancona Merci abusou da sua posição dominante condicionando o exercício de operações por meios próprios no cais n.° 25 e facturando preços exagerados pela prestação de serviços de descarga de mercadoria.

60.
    A recorrente alega, aliás, que a Comissão cometeu um desvio de processo ao adoptar o acto impugnado, por um lado, sem respeitar o «calendário do processo por infracção ao artigo 82.° CE», referido no acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Setembro de 1999, UPS Europe/Comissão (T-127/98, Colect., p. II-2633), e, por outro, com base numa instrução parcial e em violação das obrigações previstas no artigo 6.° do Regulamento n.° 2842/98.

61.
    A Comissão responde, no essencial, que a denúncia da recorrente se baseava unicamente na violação conjugada dos artigos 82.° CE e 86.° CE pela Autorità Portuale di Ancona e não numa violação autónoma por parte da Ancona Merci do artigo 82.° CE. Neste contexto, são irrelevantes os argumentos da recorrente relativos à aplicação das disposições do Regulamento n.° 2842/98.

- Quanto à recusa de qualificação do cais n.° 25 como «instalação essencial»

62.
    A recorrente alega que a Comissão, no acto impugnado, fundamentou a inexistência de abuso de posição dominante da Ancona Merci indicando que o cais n.° 25 não constitui uma instalação essencial na acepção do acórdão Bronner, já referido.

63.
    Ora, a Comissão não tomou em consideração determinados factos para efeitos da adopção do acto impugnado. Trata-se, em primeiro lugar, da circunstância de os cais n.os 20 e 22 do porto de Ancona serem exclusivamente destinados ao desembarque de cereais, tipo de mercadoria incompatível com o carvão. Em segundo lugar, a extensão e profundidade desses cais não permitem que a sua utilização constitua uma alternativa ao cais n.° 25, uma vez que não possuem instalações fixas de transportadores mecânicos e tremonhas idênticas às do cais n.° 25 e não permitem a manutenção da mercadoria em condições compatíveis com o ambiente e economicamente viáveis.

64.
    Além disso, a alternativa para a recorrente ao exercício das suas operações portuárias pelos seus próprios meios considerada pela Comissão e que consistira na celebração de acordos comerciais com a Ancona Merci não tem em consideração o facto de que apenas a ENEL tem o direito de celebrar tais acordos.

65.
    A recorrente observa, aliás, que não teve outra opção senão a de fazer descarregar o carvão da ENEL pela Ancona Merci no cais n.° 25 utilizando a respectiva instalação fixa de transportadores mecânicos e tremonhas, mas os preços praticados por esta são claramente superiores aos seus. A Comissão deveria ter assim concluído que a Ancona Merci recusa o acesso de terceiros à infra-estrutura essencial que constitui o cais n.° 25 para oferecer as prestações a custos superiores, actuando, assim, em abuso de posição dominante.

66.
    A este propósito, a recorrente considera que a Comissão interpretou erradamente o conceito de instalação essencial que consta do acórdão Bronner, já referido. Com efeito, a exclusão do direito de acesso a uma instalação essencial suporia que existe uma estrutura substancialmente equivalente nos seus resultados, que esta seja utilizável eficazmente sem representar uma desvantagem económica excessiva e que não existem obstáculos de natureza técnica, regulamentar ou económica susceptíveis de tornar impossível ou extraordinariamente difícil a duplicação da instalação.

67.
    Ora, não existia no caso em apreço nenhuma solução exequível para substituição da utilização do cais n.° 25, face aos encargos financeiros que a recorrente tinha já suportado para equipar o seu navio Capo Noli com um sistema de descarga automática compatível com a instalação da ENEL existente no cais n.° 25 ou que suportaria, actualmente, a fim de descarregar o carvão em outros cais e assegurar o seu transporte por camião até ao depósito da ENEL. O impacto ambiental desta última solução opõe-se, aliás, a que seja considerada uma alternativa satisfatória.

68.
    O cais n.° 25 deveria, por conseguinte, ser qualificado como instalação essencial e a decisão da Comissão de não dar seguimento à denúncia - sem ter procedido a uma instrução suficiente e, portanto, sem ter apresentado uma «fundamentação» suficiente - beneficia uma empresa que abusa da sua posição dominante impedindo as operações de descarga de mercadoria de serem efectuadas de acordo com tecnologias evoluídas e a custos controlados, ao praticá-las ela própria a custos mais elevados.

69.
    A Comissão opõe-se à admissibilidade do argumento da recorrente segundo o qual não teria suficientemente examinado a crítica baseada no abuso de posição dominante da Ancona Merci e não teria procedido a uma instrução relativamente aos preços excessivos praticados por esta. Contesta igualmente a procedência dos restantes argumentos invocados para apoiar este grupo de fundamentos.

Apreciação do Tribunal de Primeira Instância

70.
    Importa precisar, antes de mais, que as partes divergem, em primeiro lugar, quanto à questão de saber se o acto impugnado constitui, por um lado, um indeferimento da denúncia da recorrente no que se refere à violação autónoma do artigo 82.° CE por parte da Ancona Merci. Em segundo lugar, as partes divergem igualmente quanto a saber se a recorrente tem legitimidade para interpor recurso de anulação do acto impugnado na parte em que a Comissão decidiu não dar seguimento à denúncia da recorrente na medida em que visa a violação conjunta dos artigos 82.° CE e 86.° CE pela Autorità Portuale di Ancona.

71.
    Quanto à primeira destas questões, importa desde já concluir que, se a Comissão não se pronunciou quanto a uma alegada violação autónoma do artigo 82.° CE, tal omissão não pode ser punida no quadro do controlo da legalidade baseado no artigo 230.° CE. Assim, a recorrente só pode invocar erro manifesto de apreciação na aplicação do artigo 82.° CE, bem como a deficiência na instrução que lhe associa, ou pretender a aplicação do Regulamento n.° 2842/98, se a recusa de dar seguimento à sua denúncia se prender com o artigo 82.° CE considerado autonomamente.

72.
    A este propósito, há que realçar que consta do acto impugnado que a recusa de autorização à recorrente para descarregar carvão pelos seus próprios meios no cais n.° 25 do porto de Ancona constitui, no dizer da recorrente, «uma violação do artigo 86.° CE conjugado com as disposições do artigo 82.° CE».

73.
    O acto impugnado refere, além disso, que o inquérito a que a Comissão procedeu lhe permitiu detectar determinadas divergências factuais relativamente às alegações que constam da denúncia da recorrente e que o cais n.° 25 do porto de Ancona não é uma instalação essencial na acepção do acórdão Bronner, já referido.

74.
    Relativamente ao acto impugnado, a Comissão indica:

«Atendendo ao que vem exposto, consideramos não dever dar seguimento à denúncia [da recorrente]. Além disso, [a Comissão] pretende [...] lembrar que, uma vez que a [denúncia] se refere a uma alegada violação das regras de concorrência do Tratado por parte de um Estado-Membro, a mesma não confere à [recorrente] o ‘estatuto’ que decorre do Regulamento n.° 17 do Conselho e do Regulamento n.° 2842/98 da Comissão. Com efeito, esse ‘estatuto’ apenas é reconhecido ao recorrente que invoca a violação dessas regras pelas empresas.»

75.
    Resulta assim dos termos do acto impugnado que a Comissão, tendo considerado que a denúncia não incidia sobre uma alegada violação autónoma do artigo 82.° CE por parte da Ancona Merci, não se pronunciou no referido acto quanto aos comportamentos eventualmente contrários a esse artigo.

76.
    Aliás, importa realçar que a interpretação da denúncia pela Comissão no sentido de que visava apenas a violação conjunta dos artigos 82.° CE e 86.° CE por parte da Autorità Portuale di Ancona resultava já das cartas que aquela enviou à recorrente no decurso do procedimento administrativo.

77.
    Assim, resulta da carta de 26 de Abril de 1999 dirigida à recorrente, que acusa a recepção da denúncia, que a Comissão a tinha interpretado como visando apenas os comportamentos da autoridade pública em causa.

78.
    O mesmo sucede, contrariamente ao que alega a recorrente, no que se refere à carta que lhe foi enviada pela Comissão em 10 de Agosto de 1999 e nos termos da qual é designadamente referido o seguinte:

«[...] de acordo com esta denúncia, a autoridade portuária violou o artigo 82.° CE e o artigo 86.° CE ao utilizar o seu poder regulamentar exclusivo para obstar ao exercício pela Coe Clerici Logistics SpA de operações de manutenção por meios próprios [...]»

79.
    Ora, nessa fase do procedimento administrativo e atento o conteúdo destas cartas, era lícito à recorrente, no caso de desacordo quanto ao alcance da sua denúncia, chamar a atenção da Comissão quanto ao facto de que pretendia igualmente denunciar, para além da violação conjugada dos artigos 82.° CE e 86.° CE por parte da Autorità Portuale di Ancona, a violação autónoma do artigo 82.° CE pela Ancona Merci.

80.
    De todo o modo, se da leitura do acto impugnado resultasse para a recorrente que a Comissão não tinha decidido sobre uma alegada violação do artigo 82.° CE por parte da Ancona Merci, cabia-lhe então convidar a Comissão a pronunciar-se quanto a este ponto da denúncia e, eventualmente, propor uma acção ao abrigo do artigo 232.°, segundo parágrafo, CE no sentido de obter a declaração por parte do tribunal comunitário da omissão da Comissão.

81.
    Por conseguinte, não se tendo a Comissão pronunciado sobre a alegada violação autónoma do artigo 82.° CE por parte da Ancona Merci, o recurso carece de objecto na parte em que se baseia neste artigo. Daí que não haja que decidir quanto a um erro de apreciação da Comissão no que se refere unicamente ao artigo 82.° CE, quanto a uma falha de instrução neste ponto, quanto à violação dos direitos processuais da recorrente decorrentes do Regulamento n.° 2842/98, nem quanto a um uso indevido do processo.

82.
    Relativamente à segunda destas questões, importa apreciar a admissibilidade do recurso na parte em que este visa a decisão da Comissão de não dar seguimento à denúncia da recorrente baseada numa violação conjugada dos artigos 82.° CE e 86.° CE.

83.
    Resulta da denúncia apresentada pela recorrente e dos seus articulados, esclarecidos na audiência, que a mesma contesta a compatibilidade com o direito comunitário do artigo 5.°-A do Despacho n.° 6/98 da Autorità Portuale di Ancona (v. n.° 9, supra) na medida em que condiciona o acesso da recorrente ao cais n.° 25, concessionado à Ancona Merci, permitindo, por isso, uma restrição ao livre exercício do direito da recorrente a poder operar pelos seus próprios meios. A Autorità Portuale di Ancona adoptou, assim, um comportamento contrário aos artigos 82.° CE e 86.° CE.

84.
    A denúncia da recorrente constitui, a este respeito, um pedido apresentado à Comissão convidando-a a fazer uso dos poderes que lhe são conferidos nos termos do artigo 86.°, n.° 3, CE. Neste contexto, o acto impugnado constitui uma recusa por parte da Comissão de adoptar uma decisão, ou uma directiva, dirigida aos Estados-Membros ao abrigo do artigo 86.°, n.° 3, CE.

85.
    Ora, segundo jurisprudência constante, o artigo 86.°, n.° 3, CE confia à Comissão a missão de velar pelo cumprimento, por parte dos Estados-Membros, das obrigações que lhes são impostas, no que diz respeito às empresas referidas no artigo 86.°, n.° 1, CE, e confere-lhe expressamente competência para intervir, na medida do necessário, nesse sentido por via de directivas ou de decisões. A Comissão tem o poder de declarar que uma medida estatal determinada é incompatível com as regras do Tratado e de indicar as medidas que o Estado destinatário deve adoptar para cumprir as obrigações resultantes do direito comunitário (acórdão Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, n.° 23).

86.
    Tal como resulta do artigo 86.°, n.° 3, CE e do conjunto das respectivas disposições, o poder de fiscalização de que dispõe a Comissão relativamente aos Estados-Membros responsáveis por uma violação às regras do Tratado, designadamente, às que dizem respeito à concorrência, implica necessariamente o emprego de um amplo poder de apreciação por parte desta instituição no que diz respeito, nomeadamente, à acção que considere necessário desenvolver (acórdãos Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, n.° 27, e Vlaamse Televisie Maatschappij/Comissão, já referido, n.° 75).

87.
    Por conseguinte, o exercício do poder de apreciação da Comissão no que se refere à compatibilidade das medidas estatais com as regras do Tratado, conferido pelo artigo 86.°, n.° 3, do Tratado, não está ligado a uma obrigação de intervenção por parte da Comissão (despacho Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, n.° 31, e acórdãos Ladbroke/Comissão, já referido, n.os 36 a 38, e Koelman/Comissão, já referido, n.° 71).

88.
    Daí que as pessoas singulares ou colectivas que pedem à Comissão para intervir nos termos do artigo 86.°, n.° 3, CE não gozam, em princípio, do direito de recorrer da decisão da Comissão de não fazer uso das prerrogativas de que goza a esse título (despacho Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, n.° 31, e acórdão Koelman/Comissão, já referido, n.° 71).

89.
    Foi, contudo, decidido que não se pode excluir a priori que um particular se possa encontrar numa situação excepcional que lhe confira legitimidade para agir judicialmente contra uma recusa da Comissão de adoptar uma decisão no âmbito da sua missão de fiscalização prevista no artigo 86.°, n.os 1 e 3, CE (acórdão Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, já referido, n.° 25, e, no que se refere à acção por omissão, ver, neste sentido, acórdão TF1/Comissão, já referido, n.os 51 e 57).

90.
    Ora, no caso em apreço, a recorrente não refere qualquer circunstância excepcional que permita considerar admissível o seu recurso da recusa de actuação da Comissão. A este propósito, a única circunstância invocada pela recorrente, segundo a qual se encontra numa relação de concorrência com a Ancona Merci, não pode, a ser dada como provada, apresentar um carácter excepcional susceptível de dar à recorrente legitimidade para agir contra a recusa da Comissão de actuar relativamente às medidas adoptadas pela Autorità Portuale di Ancona com o objectivo de regulamentar a emissão de autorizações aos transportadores marítimos para operarem pelos seus próprios meios em cais concessionados.

91.
    Assim, a recorrente não pode interpor recurso de anulação do acto impugnado pelo facto de a Comissão ter decidido não fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 86.°, n.° 3, CE.

92.
    Contudo, na audiência, a recorrente alegou que o seu recurso, na parte em que visa a violação pela Autorità Portuale di Ancona dos artigos 82.° CE e 86.° CE, deve ser admitido por aplicação do princípio desenvolvido no acórdão max.mobil/Comissão, já referido. A Comissão respondeu que o referido princípio segundo o qual um particular pode interpor recurso de anulação da decisão de não fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 86.°, n.° 3, CE constituía uma alteração da jurisprudência e que o referido acórdão do Tribunal de Primeira Instância foi objecto de recurso para o Tribunal de Justiça, actualmente pendente.

93.
    A este respeito, admitindo que o acto impugnado, na medida em que se refere à violação conjugada dos artigos 82.° CE e 86.° CE, deva ser qualificado de decisão de indeferimento da denúncia na acepção do acórdão max.mobil/Comissão, já referido, a recorrente devia ser considerada, enquanto autora da denúncia e destinatária dessa decisão, como tendo legitimidade para interpor o presente recurso (acórdão max.mobil/Comissão, já referido, n.° 73).

94.
    Nessa hipótese, foi decidido que, tendo em conta o amplo poder de apreciação de que dispõe a Comissão na aplicação do artigo 86.°, n.° 3, CE, a fiscalização exercida pelo Tribunal de Primeira Instância deve limitar-se à verificação do respeito pela Comissão do seu dever de exame diligente e imparcial da denúncia da violação do artigo 86.°, n.° 1, CE (v., neste sentido, acórdão max.mobil/Comissão, já referido, n.os 58 e 73, e despacho do Tribunal de Primeira Instância de 27 de Maio de 2002, Goldstein/Comissão, T-18/01, não publicado na Colectânea, n.° 35).

95.
    No caso vertente, a recorrente alega que a Comissão adoptou o acto impugnado não tomando em consideração determinados factos ou baseando-o em factos inexactos. Na audiência, a recorrente afirmou que essas circunstâncias demonstram que a Comissão não procedeu a um exame diligente e imparcial da denúncia.

96.
    Ora, não se pode considerar que a Comissão tenha faltado no caso em apreço ao seu dever de exame diligente e imparcial da denúncia apresentada pela recorrente.

97.
    Com efeito, resulta do acto impugnado que a Comissão identificou a crítica central da argumentação da denúncia relativa à violação dos artigos 82.° CE e 86.° CE pela Autorità Portuale di Ancona tomando em consideração os elementos principais e relevantes invocados a esse propósito pela recorrente na denúncia. Esta constatação resulta da circunstância de a Comissão ter indicado, no acto impugnado, que o inquérito a que procedeu lhe permitiu detectar determinadas divergências de ordem factual relativamente aos factos expostos pela recorrente na denúncia.

98.
    Há que realçar que esses factos foram invocados pela recorrente com o objectivo de demonstrar que não existe alternativa à utilização do cais n.° 25 para proceder, pelos seus próprios meios, à descarga do carvão que transporta por conta da ENEL. Daí deduz a recorrente que este cais constitui, portanto, uma instalação essencial na acepção do acórdão Bronner, já referido, o qual define as condições em que o acesso a uma instalação deve ser considerado indispensável para o exercício, pela empresa em causa, da sua actividade.

99.
    A este propósito, o raciocínio seguido pela Comissão no acto impugnado pretende demonstrar que, não estando confirmados os factos alegados pela recorrente em apoio da sua argumentação, não pode o cais n.° 25 ser qualificado de instalação essencial. Daí a Comissão conclui, como sustentou na audiência, que a aplicação da regulamentação adoptada pela Autorità Portuale di Ancona, mais exactamente, do artigo 5.°-A do Despacho n.° 6/98 não pode ter tido como consequência criar obstáculos ao acesso por parte da recorrente a uma instalação essencial. Assim, sem se pronunciar sobre a imputabilidade do comportamento em causa, a Comissão considerou não dever fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 86.°, n.° 3, CE relativamente à Autorità Portuale di Ancona.

100.
    Ora, é de concluir que a recorrente não contestou, no âmbito do recurso, a materialidade das verificações factuais da Comissão efectuadas no acto impugnado, ou ofereceu provas que não demonstram a veracidade das suas alegações, ou se limitou a invocar elementos que não tinha referido na denúncia.

101.
    Assim, relativamente ao cais n.° 22, a recorrente não contestou a afirmação da Comissão que consta do acto impugnado e segundo a qual este cais é público. Quanto à circunstância, alegada pela recorrente, de que os cais n.os 20 e 22 estariam exclusivamente destinados à carga e descarga de cereais e não de carvão, importa notar que esta situação não resulta do plano operacional trienal junto pela recorrente em anexo ao recurso, limitando-se este a indicar que estes cais estão adaptados à manutenção de cereais.

102.
    A recorrente também não contestou a veracidade da afirmação da Comissão que consta do acto impugnado, confirmada pela Autorità Portuale di Ancona na audiência, de que esses cais têm uma profundidade e extensão suficientes para permitir a acostagem do navio da recorrente, o Capo Noli.

103.
    Quanto à crítica baseada na ausência de análise por parte da Comissão do argumento segundo o qual o contrato que a recorrente celebrou com a ENEL a impedia de celebrar com os concessionários dos cais acordos comerciais relativos à execução das suas operações portuárias, há que concluir que nenhuma cláusula deste contrato, junto em anexo à petição, apoia este argumento, como admitiu, aliás, a recorrente na audiência. Importa a este propósito assinalar que nenhuma cláusula do referido contrato se refere às condições de descarga do carvão por conta da ENEL.

104.
    A recorrente opõe-se igualmente à interpretação que a Comissão faz do conceito de instalação essencial e entende que o cais n.° 25 do porto de Ancona deve ser qualificado como tal, por aplicação do princípio desenvolvido no acórdão Bronner, já referido. Contudo, basta a este propósito notar que este argumento não pode caber na fiscalização pelo órgão jurisdicional comunitário do cumprimento pela Comissão do seu dever de exame diligente e imparcial da denúncia.

105.
    Por conseguinte, na medida em que visa a anulação de uma decisão da Comissão de não instaurar um procedimento nos termos do artigo 86.° CE, deve o presente recurso ser julgado inadmissível devendo, em qualquer caso, ser-lhe negado provimento.

106.
    Do que antecede resulta que deve ser negado provimento, na íntegra, ao recurso interposto pela recorrente.

Quanto às despesas

107.
    Nos termos do n.° 2 do artigo 87.° do Regulamento de Processo, a parte vencida deve ser condenada nas despesas se tal for pedido. Tendo a recorrente sido vencida e tendo-o a Comissão requerido, há que condenar à recorrente nas despesas.

108.
    Não tendo a Autorità Portuale di Ancona formulado qualquer pedido relativamente às despesas, suportará a mesma as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quinta Secção)

decide:

1.
    É negado provimento ao recurso.

2.
    A recorrente suportará as suas próprias despesas bem como as efectuadas pela Comissão.

3.
    A Autorità Portuale di Ancona suportará as suas próprias despesas.

Cooke
García-Valdecasas
Lindh

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 17 de Junho de 2003.

O secretário

O presidente

H. Jung

R. García-Valdecasas


1: Língua do processo: italiano.