Language of document : ECLI:EU:C:2024:143

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

22 de fevereiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigo 21.o, n.o 1, TFUE — Direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros — Artigo 45.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Diretiva 2004/38/CE — Artigo 4.o — Emissão de bilhete de identidade — Requisito de domicílio no Estado‑Membro de emissão do documento — Recusa das autoridades desse Estado‑Membro em emitir um bilhete de identidade a um dos seus nacionais domiciliado noutro Estado‑Membro — Igualdade de tratamento — Restrições — Justificação»

No processo C‑491/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia), por Decisão de 11 de maio de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de agosto de 2021, no processo

WA

contra

Direcţia pentru Evidenţa Persoanelor şi Administrarea Bazelor de Date din Ministerul Afacerilor Interne,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen, vice‑presidente, exercendo funções de juiz da Primeira Secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb e A. Kumin (relator), juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 8 de fevereiro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de WA, por C. L. Popescu, avocat,

–        em representação do Governo Romeno, por L.‑E. Baţagoi, E. Gane e A. Rotăreanu, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Biolan e E. Montaguti, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 27 de abril de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 26.o, n.o 2, TFUE, do artigo 20.o, do artigo 21.o, n.o 1, e do artigo 45.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como dos artigos 4.o a 6.o da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe WA, um nacional romeno que exerce a sua atividade profissional tanto em França como na Roménia, à Direcția pentru Evidența Persoanelor și Administrarea Bazelor de Date din Ministerul Afacerilor Interne (Direção do Registo Civil e da Gestão das Bases de Dados do Ministério da Administração Interna, Roménia) (a seguir «Direção do Registo Civil») devido à recusa de esta Direção emitir a WA um bilhete de identidade por ele ter domicílio num Estado‑Membro diferente da Roménia.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos dos considerandos 1 a 4 da Diretiva 2004/38:

«(1)      A cidadania da União [Europeia] confere a cada cidadão da União um direito fundamental e individual de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros, sujeito às limitações e condições estabelecidas no Tratado e às medidas adotadas em sua execução.

(2)      A livre circulação das pessoas constitui uma das liberdades fundamentais do mercado interno que compreende um espaço sem fronteiras internas, no qual a liberdade é assegurada de acordo com as disposições do Tratado.

(3)      A cidadania da União deverá ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros quando estes exercerem o seu direito de livre circulação e residência. É, pois, necessário codificar e rever os instrumentos comunitários em vigor que tratam separadamente a situação dos trabalhadores assalariados, dos trabalhadores não assalariados, assim como dos estudantes e de outras pessoas não ativas, a fim de simplificar e reforçar o direito de livre circulação e residência de todos os cidadãos da União.

(4)      Com vista a remediar esta abordagem setorial e fragmentada do direito de livre circulação e residência e a facilitar o exercício deste direito, é necessário aprovar um único ato legislativo […]»

4        O artigo 4.o da Diretiva 2004/38, sob a epígrafe «Direito de saída», tem a seguinte redação:

«1.      Sem prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, têm direito a sair do território de um Estado‑Membro a fim de se deslocar a outro Estado‑Membro todos os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido, e os membros das suas famílias que, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, estejam munidos de um passaporte válido.

2.      Não pode ser exigido às pessoas referidas no n.o 1 um visto de saída ou formalidade equivalente.

3.      Os Estados‑Membros, agindo nos termos do respetivo direito, devem emitir ou renovar aos seus nacionais um bilhete de identidade ou passaporte que indique a nacionalidade do seu titular.

4.      O passaporte deve ser válido, pelo menos, para todos os Estados‑Membros e para os países pelos quais o titular deva transitar quando viajar entre Estados‑Membros. Se o direito de um Estado‑Membro não determinar a emissão de bilhete de identidade, a validade do passaporte, aquando da sua emissão ou renovação, não pode ser inferior a cinco anos.»

 Direito romeno

5        Nos termos do artigo 12.o da Ordonanța de urgență a Guvernului nr. 97/2005 privind evidența, domiciliul, reședința și actele de identitate ale cetățenilor români (Despacho Urgente do Governo n.o 97/2005, relativo ao Registo Civil, ao Domicílio, à Residência e aos Documentos de Identificação dos Nacionais Romenos, republicada no Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 719, de 12 de outubro de 2011; a seguir «OUG n.o 97/2005»), na versão aplicável aos factos no processo principal:

«(1)      São emitidos documentos de identificação aos nacionais romenos a partir dos [catorze] anos de idade.

[…]

(3)      Para efeitos do presente despacho urgente, entende‑se por documento de identificação: o bilhete de identidade, o bilhete de identidade simples, o bilhete de identidade eletrónico, o bilhete de identidade provisório e a caderneta de identidade válidos.»

6        O artigo 13.o da OUG n.o 97/2005 prevê:

«(1)      O documento de identificação comprova a identidade, a nacionalidade romena, a morada do domicílio e, sendo o caso, a morada da residência.

(2) Nos termos da [Legea nr. 248/2005 privind regimul liberei circulații a cetățenilor români în străinătate (Lei n.o 248/2005, relativa ao Regime de Livre Circulação dos Nacionais Romenos no Estrangeiro) (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 682, de 29 de julho de 2005)], conforme posteriormente alterada e complementada (a seguir “Lei sobre o Regime de Livre Circulação”), o bilhete de identidade e o bilhete de identidade eletrónico constituem um documento de viagem nos Estados‑Membros da União.

(3)      O bilhete de identidade eletrónico permite ao titular autenticar‑se nos sistemas informáticos do Ministério da Administração Interna e nos sistemas informáticos de outras instituições públicas ou privadas, bem como utilizar a assinatura eletrónica, nos termos previstos na lei.»

7        O artigo 15.o, n.o 3, da OUG n.o 97/2005 dispõe:

«O pedido de emissão de um novo documento de identificação é apenas acompanhado dos documentos que, nos termos da lei, comprovem o domicílio do interessado e, sendo o caso, a sua residência, salvo se:

a)      tiverem sido introduzidas alterações aos dados relativos ao apelido e ao nome próprio, à data de nascimento, ao estado civil e à nacionalidade romena, caso em que o requerente tem de apresentar documentos comprovativos destas alterações;

b)      o requerente for titular de um bilhete de identidade provisório ou de um certificado de identidade, caso em que o requerente tem de apresentar todos os documentos referidos no n.o 2.»

8        O artigo 20.o, n.o 1, alínea c), da OUG n.o 97/2005 tem a seguinte redação:

«O bilhete de identidade provisório é emitido nos seguintes casos:

c)      […] aos cidadãos romenos domiciliados no estrangeiro que residam temporariamente na Roménia.»

9        O artigo 28.o, n.o 1, da OUG n.o 97/2005 prevê:

«(1)      A prova da morada do domicílio pode ser feita por:

a)      atos celebrados em conformidade com as condições de validade previstas na lei romena em vigor, no que respeita ao documento público comprovativo do direito de ocupar uma habitação;

b)      declaração escrita da pessoa singular ou coletiva que aloja, válida como comprovativo de alojamento, acompanhada de um dos documentos referidos na alínea a) ou, sendo o caso, na alínea d);

c)      declaração sob compromisso de honra do requerente, acompanhada da nota de fiscalização do agente da polícia, que certifica a existência de um imóvel destinado a habitação e o facto de o requerente residir efetivamente na morada declarada, no caso de uma pessoa singular que não possa apresentar os documentos referidos nas alíneas a) e b);

d)      documento emitido pela administração pública local que comprova que o requerente, ou, sendo o caso, a pessoa que o aloja, está inscrito no [Registrul agricol (Registo Agrícola)] como proprietário de um imóvel destinado a habitação;

e)      documento de identificação de um dos progenitores ou do seu representante legal ou certidão relativa ao exercício das responsabilidades parentais, acompanhado, sendo o caso, de um dos documentos referidos nas alíneas a) a d), no caso de requerentes de emissão de um documento de identificação menores de idade.»

10      Nos termos do artigo 6.o da Lei sobre o Regime de Livre Circulação:

«(1)      Os tipos de documentos de viagem com base nos quais os nacionais romenos podem viajar para o estrangeiro são os seguintes:

a)      passaporte diplomático;

b)      passaporte de serviço;

c)      passaporte diplomático eletrónico;

d)      passaporte de serviço eletrónico;

e)      passaporte simples;

f)      passaporte simples eletrónico;

g)      passaporte simples temporário;

h)      título de viagem.

[…]»

11      O artigo 6.o1, n.o 1, desta lei tem a seguinte redação:

«Para efeitos da presente lei, o bilhete de identidade, o bilhete de identidade simples e o bilhete de identidade eletrónico válidos constituem um documento de viagem com base no qual os nacionais romenos podem deslocar‑se aos Estados‑Membros da União, bem como aos Estados terceiros que os reconheçam como documento de viagem.

[…]»

12      O artigo 17.o 1, n.o 1, alínea d), e n.o 2, alínea b), da referida lei prevê:

«(1)      O passaporte simples temporário é emitido aos nacionais romenos que preencham os requisitos previstos na presente lei e que não estejam sujeitos a uma suspensão do direito de viajar para o estrangeiro, nos seguintes casos:

[…]

d)      quando o titular tiver apresentado um passaporte simples ou um passaporte simples eletrónico para efeitos de obtenção de um visto e declarar dever deslocar‑se urgentemente ao estrangeiro;

[…]

2.      O passaporte simples temporário é emitido:

[…]

b)      nas situações referidas nas alíneas b) a g) do n.o 1, no prazo máximo de três dias úteis a contar da data de apresentação do pedido.»

13      O artigo 34.o, n.os 1, 2 e 6, da Lei sobre o Regime de Livre Circulação dispõe:

«1.      O cidadão romeno que tenha fixado a sua residência no estrangeiro pode requerer a emissão de um passaporte simples eletrónico ou de um passaporte simples temporário que indique o seu país de domicílio, quando estiver numa das seguintes situações:

a)      tiver adquirido um direito de permanência de, pelo menos, um ano ou, consoante o caso, o seu direito de permanência no território desse Estado tiver sido reiteradamente renovado no decurso de um ano;

b)      tiver adquirido um direito de permanência no território do referido Estado para efeitos de reagrupamento familiar com uma pessoa com domicílio no território do mesmo Estado;

c)      tiver adquirido um direito de permanência de longa duração ou, sendo o caso, um direito de permanência permanente no território do referido Estado;

d)      tiver adquirido a nacionalidade desse Estado;

e)      tiver adquirido o direito de trabalhar ou estiver inscrito num estabelecimento privado ou público com o objetivo principal de prosseguir estudos, incluindo uma formação profissional.

2.      O cidadão romeno que seja titular de um certificado de registo ou de um documento comprovativo da sua residência num Estado‑Membro da União Europeia, do Espaço Económico Europeu ou da Confederação Suíça, emitido pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro da União Europeia, do Espaço Económico Europeu ou da Confederação Suíça, pode requerer a emissão de um passaporte simples eletrónico ou de um passaporte simples temporário que indique esse Estado como país de domicílio.

[…]

6.      O nacional romeno que tenha fixado o seu domicílio no estrangeiro é obrigado, quando lhe seja remetido um passaporte simples eletrónico ou um passaporte simples temporário que mencione o país de domicílio, a restituir o documento de identificação comprovativo da existência de um domicílio na Roménia emitido pelas autoridades romenas.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

14      O recorrente no processo principal é um advogado de nacionalidade romena que exerce a sua atividade profissional tanto em França como na Roménia e que, desde 2014, tem domicílio em França.

15      As autoridades romenas emitiram‑lhe um passaporte simples eletrónico com a indicação de que está domiciliado em França. Com o fundamento de que a sua vida privada e vida profissional decorrem tanto em França como na Roménia, WA fixa também anualmente a sua residência na Roménia e recebe, a esse título, um bilhete de identidade provisório, categoria de documento essa que não constitui, porém, um documento que lhe permita viajar para o estrangeiro.

16      Em 17 de setembro de 2017, o recorrente no processo principal pediu à Direção do Registo Civil a emissão de um bilhete de identidade ou de um bilhete de identidade eletrónico. Este pedido foi indeferido com o fundamento de que ele não tinha fixado o seu domicílio na Roménia.

17      Em 18 de dezembro de 2017, o recorrente no processo principal interpôs recurso de contencioso administrativo na Curtea de Apel București (Tribunal de Recurso de Bucareste, Roménia), pedindo a condenação da Direção do Registo Civil na emissão do documento requerido.

18      Por Acórdão de 28 de março de 2018, esse órgão jurisdicional negou provimento ao recurso, com o fundamento de que a decisão de recusa da Direção do Registo Civil tinha base legal nos termos do direito romeno, que prevê que os bilhetes de identidade só são emitidos aos nacionais romenos domiciliados na Roménia. Esse órgão considerou que o direito romeno não era contrário ao direito da União, uma vez que a Diretiva 2004/38 não impõe aos Estados‑Membros a obrigação de emitir bilhetes de identidade aos próprios nacionais. Por outro lado, o referido órgão jurisdicional entendeu que o recorrente no processo principal não foi alvo de discriminação, porquanto as autoridades romenas emitiram a seu favor um passaporte simples eletrónico, que constitui um documento de viagem que lhe permite viajar para o estrangeiro.

19      Considerando que a Sentença da Curtea de Apel București (Tribunal de Recurso de Bucareste) violava várias disposições do Tratado FUE, da Carta e da Diretiva 2004/38, o recorrente no processo principal interpôs recurso de cassação na Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

20      Esse órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à conformidade com o direito da União da recusa de emissão do bilhete de identidade ao recorrente no processo principal nas circunstâncias do processo nele instaurado.

21      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que a Diretiva 2004/38 tem por objetivo a harmonização das condições exigidas pelos Estados‑Membros para entrar no território de outro Estado‑Membro. Ora, a legislação nacional em causa no processo principal dá lugar à aplicação restritiva do artigo 4.o, n.o 3, desta diretiva, que prevê que os Estados‑Membros emitem aos seus nacionais bilhetes de identidade ou passaportes nos termos do respetivo direito. Além disso, o critério do domicílio que condiciona a emissão de um bilhete de identidade pode dar azo a um tratamento discriminatório que, para poder ser justificado à luz do direito da União, se deve basear em considerações objetivas independentes da nacionalidade das pessoas em causa e proporcionadas ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional. Por último, no caso em apreço, a Direção do Registo Civil não mencionou a consideração objetiva de interesse geral que pode justificar a diferença de tratamento na recusa aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro da União do direito de dispor de um bilhete de identidade nacional. O órgão jurisdicional de reenvio refere não ter identificado uma justificação dessa natureza.

22      Nestas circunstâncias, a Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem o artigo 26.o, n.o 2, TFUE, os artigos 20.o, 21.o, n.o 1, e 45.o, n.o 1, da [Carta] e os artigos 4.o, 5.o e 6.o da Diretiva [2004/38] ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que não permite a emissão de um bilhete de identidade, passível de ser utilizado como documento de viagem no interior da União Europeia, a um cidadão de um Estado‑Membro em virtude de este ter estabelecido o seu domicílio noutro Estado‑Membro?»

 Quanto à questão prejudicial

23      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União a que o juiz nacional não fez referência no enunciado da sua questão. Com efeito, a circunstância de um órgão jurisdicional nacional ter, no plano formal, formulado uma questão prejudicial com base em certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a esse órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão da causa que lhe foi submetida, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (Acórdão de 5 de dezembro de 2023, Nordic Info, C‑128/22, EU:C:2023:951, n.o 99 e jurisprudência referida).

24      No caso em apreço, é ponto assente que a situação do recorrente no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, em especial pelas normas que regem o exercício do direito de livre circulação e de permanência dos cidadãos da União.

25      A este respeito, importa recordar que o artigo 20.o TFUE confere a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro o estatuto de cidadão da União, o qual, segundo jurisprudência constante, está vocacionado para ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros (Acórdão de 9 de junho de 2022, Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des étude économiques, C‑673/20, EU:C:2022:449, n.o 49 e jurisprudência referida).

26      Além disso, um nacional de um Estado‑Membro que, na qualidade de cidadão da União, exerceu a sua liberdade de circular e de permanecer num Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de origem pode invocar direitos respeitantes a essa qualidade, designadamente os previstos no artigo 21.o, n.o 1, TFUE, incluindo, se for caso disso, em relação ao seu Estado‑Membro de origem (Acórdão de 14 de dezembro de 2021, Stolichna obshtina, rayon «Pancharevo», C‑490/20, EU:C:2021:1008, n.o 42 e jurisprudência referida).

27      Por conseguinte, o recorrente no processo principal pode invocar os direitos conferidos pelas referidas disposições, sob reserva, em conformidade com o artigo 21.o, n.o 1, TFUE, das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação. Essas limitações e condições estão previstas na Diretiva 2004/38, que tem nomeadamente por objeto fixar as condições de exercício desses direitos e suas limitações.

28      Nestas condições, sem que seja necessário pronunciar‑se sobre a interpretação do artigo 26.o TFUE, do artigo 20.o e do artigo 21.o, n.o 1, da Carta e dos artigos 5.o e 6.o da Diretiva 2004/38, há que considerar que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 21.o TFUE e o artigo 45.o, n.o 1, da Carta, lidos em conjugação com o artigo 4.o da Diretiva 2004/38, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual é recusada a um cidadão da União, nacional desse Estado‑Membro que exerceu o seu direito de livre circulação e permanência noutro Estado‑Membro, a emissão de um bilhete de identidade com valor de documento de viagem na União, pelo simples facto de aquele ter fixado o seu domicílio no território desse outro Estado‑Membro.

29      A título preliminar, há que recordar que resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que o recorrente no processo principal tem domicílio em França desde 2014 e exerce a atividade profissional de advogado tanto em França como na Roménia. As autoridades romenas emitiram a seu favor um passaporte simples eletrónico, que menciona o facto de estar domiciliado neste primeiro Estado‑Membro, e um bilhete de identidade provisório.

30      Este último não constitui um documento de viagem. É emitido aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro que residam temporariamente na Roménia e deve ser renovado todos os anos. O recorrente no processo principal pediu à Direção do Registo Civil a emissão de um bilhete de identidade, simples ou eletrónico, que constituísse um documento de viagem que lhe teria permitido deslocar‑se para França. Este pedido foi indeferido essencialmente com o fundamento de que essa legislação não prevê tal emissão em caso de domiciliação no estrangeiro, o que, aliás, não é contrário ao direito da União.

31      Resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que todos os nacionais romenos, independentemente do seu lugar de domicílio, têm direito à emissão de um passaporte ao abrigo do artigo 6.o, n.o 1, alíneas f) e g), e do artigo 34.o, n.os 1 e 2, da Lei sobre o Regime de Livre Circulação. Além disso, os nacionais romenos domiciliados na Roménia têm, a partir dos catorze anos, o direito de obter quer um bilhete de identidade simples quer um bilhete de identidade eletrónico com valor de documento de viagem, em aplicação do artigo 12.o, n.os 1 e 3, da OUG n.o 97/2005, lido em conjugação com o artigo 6.o1, n.o 1, da Lei sobre o Regime de Livre Circulação.

32      Em contrapartida, os nacionais romenos com domicílio noutro Estado‑Membro não têm o direito de obter esses bilhetes de identidade. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio especifica que tais nacionais são obrigados, por força do artigo 34.o, n.o 6, da Lei sobre o Regime de Livre Circulação, quando seja emitido a seu favor um passaporte que mencione o Estado‑Membro do domicílio, a restituir o documento de identificação com valor de documento de viagem e que comprova a existência de domicílio na Roménia. Todavia, se residirem temporariamente nesse Estado‑Membro, é emitido a seu favor um bilhete de identidade provisório que, por força do artigo 12.o, n.o 3, da OUG n.o 97/2005, lido em conjugação com o artigo 13.o, n.o 2, da mesma, não tem valor de documento de viagem.

33      Daqui resulta que a legislação romena em matéria de emissão de documentos de viagem estabelece uma diferença de tratamento entre os cidadãos romenos domiciliados no estrangeiro, incluindo noutro Estado‑Membro, e os domiciliados na Roménia, podendo ser emitidos a favor destes últimos um ou dois documentos de viagem que lhes permitem deslocar‑se no interior da União, a saber, um bilhete de identidade e um passaporte, ao passo que os primeiros apenas podem obter um passaporte como documento de viagem.

34      Por conseguinte, há que determinar se a referida diferença de tratamento é contrária ao artigo 21.o TFUE, ao artigo 45.o, n.o 1, da Carta e ao artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38.

35      Para permitir que os seus nacionais exerçam o direito de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros, o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 impõe aos Estados‑Membros, agindo nos termos do respetivo direito, a emissão ou renovação aos seus nacionais de um bilhete de identidade ou passaporte que indique a nacionalidade do seu titular.

36      Como salienta o advogado‑geral no n.o 35 das suas conclusões, resulta claramente da redação desta disposição e, nomeadamente, da opção de o legislador da União utilizar a conjunção coordenativa disjuntiva «ou» que a referida disposição deixa aos Estados‑Membros a escolha do tipo de documento de viagem, a saber, um bilhete de identidade ou um passaporte, que são obrigados a emitir aos próprios nacionais.

37      Todavia, deve recordar‑se que a Diretiva 2004/38 visa, como resulta dos seus considerandos 1 a 4, facilitar o exercício do direito fundamental e individual de circular e de residir livremente no território dos Estados‑Membros, que é conferido diretamente aos cidadãos da União pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE, e tem, nomeadamente, por objeto reforçar o referido direito (Acórdão de 11 de abril de 2019, Tarola, C‑483/17, EU:C:2019:309, n.o 23 e jurisprudência referida).

38      Além disso, embora, no estado atual do direito da União, a emissão dos bilhetes de identidade seja da competência dos Estados‑Membros, importa, todavia, recordar que estes devem exercer essa competência no respeito pelo direito da União e, designadamente, pelas disposições do Tratado relativas à liberdade de circular e de permanecer nos respetivos territórios, conforme conferida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE a qualquer cidadão da União [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, A (Passagem de fronteiras em navio de recreio), C‑35/20, EU:C:2021:813, n.os 53 e 57].

39      Por conseguinte, embora seja verdade que, como salienta o advogado‑geral no n.o 40 das suas conclusões, o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 não impõe aos Estados‑Membros que emitam dois documentos de identificação com valor de documentos de viagem aos seus nacionais, deixando, pelo contrário, a esses Estados a escolha de emitirem a favor dos mesmos um bilhete de identidade ou um passaporte, esta disposição, lida à luz do artigo 21.o TFUE, não pode, porém, permitir aos Estados‑Membros efetuarem essa escolha tratando menos favoravelmente os seus nacionais que exerceram o direito de livre circulação e de permanência na União, e restringindo esse direito, sem uma justificação baseada em considerações objetivas de interesse geral.

40      Neste contexto, há que constatar que, no caso em apreço, os nacionais romenos que residem noutros Estados‑Membros e que pretendem obter simultaneamente um passaporte e um bilhete de identidade (simples ou eletrónico) têm de ter fixado o seu domicílio na Roménia. A este respeito, resulta da decisão de reenvio que a prova da morada do domicílio é feita, nomeadamente, por um título de propriedade, um contrato de arrendamento ou um comprovativo de alojamento, o que significa que esses nacionais devem ser proprietários, arrendatários ou ocupantes a título de pessoas alojadas numa habitação na Roménia. Ora, tal exigência implica um tratamento menos favorável dos referidos nacionais devido ao exercício do direito à livre circulação, porquanto têm de manter um domicílio na Roménia para poderem obter dois documentos de viagem, requisito que os nacionais romenos que não exerceram esse direito preenchem mais facilmente.

41      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma legislação nacional desfavorável a certos cidadãos nacionais, pelo simples facto de estes terem exercido o direito de livre circulação e permanência noutro Estado‑Membro, constitui uma restrição às liberdades reconhecidas pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE a qualquer cidadão da União (Acórdão de 19 de novembro de 2020, ZW, C‑454/19, EU:C:2020:947, n.o 30 e jurisprudência referida).

42      Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que as facilidades concedidas pelo Tratado em matéria de circulação dos cidadãos da União não poderiam produzir a plenitude dos seus efeitos se um nacional de um Estado‑Membro pudesse ser dissuadido de as exercer, em virtude de obstáculos colocados à sua residência noutro Estado‑Membro, por uma legislação do seu Estado‑Membro de origem que o penalizasse pelo simples facto de as ter exercido [Acórdão de 25 de julho de 2018, A (Assistência a pessoa com deficiência), C‑679/16, EU:C:2018:601, n.o 61 e jurisprudência referida].

43      No caso em apreço, há que salientar que, ao recusar emitir um bilhete de identidade com valor de documento de viagem ao recorrente no processo principal, pelo simples facto de este ter fixado o seu domicílio noutro Estado‑Membro, a saber, em França, a legislação em causa no processo principal é suscetível de dissuadir os nacionais romenos que se encontram numa situação como a desse recorrente de exercerem o direito à livre circulação e à livre residência na União.

44      Como salienta, em substância, o advogado‑geral no n.o 55 das suas conclusões, contrariamente ao que o Governo Romeno alega, mesmo que os nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro sejam titulares de um passaporte, o exercício do direito à livre circulação pode ser entravado pela legislação em causa no processo principal.

45      A este respeito, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe e das respostas às questões colocadas na audiência que o recorrente no processo principal não pôde, por um período de doze dias, deslocar‑se a França, porque não tinha um bilhete de identidade com valor de documento de viagem, e o seu passaporte estava na embaixada de um país terceiro em Bucareste (Roménia) para obtenção de um visto. Ora, num caso como este, um nacional romeno domiciliado na Roménia poderia ter‑se deslocado a outro Estado‑Membro com o seu bilhete de identidade. O Governo Romeno alega a este respeito que, numa situação como a evocada pelo recorrente no processo principal, é emitido um passaporte temporário no prazo de três dias úteis após a data de apresentação de um pedido nesse sentido. Esse documento visa garantir, em circunstâncias como as do processo principal, que os nacionais romenos possam, independentemente do seu domicílio, exercer rapidamente e sem obstáculos o direito à livre circulação. No entanto, o recorrente no processo principal sustentou na audiência que, em períodos de afluência, é necessário esperar um mês para conseguir uma marcação e poder apresentar o pedido de passaporte temporário.

46      Em todo o caso, afigura‑se que os cidadãos romenos colocados numa situação como a do recorrente no processo principal devem suportar encargos administrativos mais elevados do que os cidadãos romenos com domicílio na Roménia no âmbito do procedimento de emissão de bilhetes de identidade e/ou de passaportes, o que cria obstáculos ao direito de circular e de residir livremente na União.

47      Neste contexto, importa também sublinhar que, como alega a Comissão Europeia, os cidadãos da União que exercem esse direito têm geralmente interesses em vários Estados‑Membros e manifestam, assim, um certo grau de mobilidade entre eles. Por conseguinte, é provável que essas pessoas precisem, a qualquer momento, de um documento de viagem válido, podendo a posse de um segundo documento desta natureza revelar‑se‑lhes necessária, ou mesmo indispensável.

48      Resulta do exposto que a legislação em causa no processo principal constitui uma restrição ao direito à livre circulação e permanência previsto no artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

49      No que se refere ao artigo 45.o da Carta, cabe recordar que este garante, no n.o 1, o direito de qualquer cidadão da União circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, direito que, segundo as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), corresponde ao direito garantido pelo artigo 20.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), TFUE e é exercido, em conformidade com o artigo 20.o, n.o 2, segundo parágrafo, TFUE e com o artigo 52.o, n.o 2, da Carta, nas condições e limites previstos pelos Tratados e pelas medidas adotadas em aplicação destes.

50      A este respeito, importa observar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma medida nacional que é suscetível de colocar entraves ao exercício da livre circulação de pessoas só pode ser justificada quando essa medida for conforme com os direitos fundamentais garantidos pela Carta, cujo respeito o Tribunal de Justiça assegura (Acórdão de 21 de junho de 2022, Ligue des droits humains, C‑817/19, EU:C:2022:491, n.o 281 e jurisprudência referida). Assim, qualquer restrição aos direitos previstos no artigo 21.o, n.o 1, TFUE é necessariamente contrária ao artigo 45.o, n.o 1, da Carta, porquanto o direito de um nacional da União de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, previsto na Carta, reflete o direito conferido pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 21 de junho de 2022, Ligue des droits humains, C‑817/19, EU:C:2022:491, n.o 275).

51      Uma vez que, no n.o 48 do presente acórdão, já foi declarada a existência de uma restrição ao direito previsto no artigo 21.o, n.o 1, TFUE, tal restrição deve também ser declarada no que toca ao direito garantido no artigo 45.o, n.o 1, da Carta.

52      Uma restrição como a destacada no n.o 48 do presente acórdão só pode ser justificada face ao direito da União se se basear em considerações objetivas de interesse geral, independentes da nacionalidade das pessoas em causa, e se for proporcionada ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma medida é proporcionada quando, sendo adequada à realização do objetivo prosseguido, não vai além do necessário para o alcançar [Acórdão de 25 de julho de 2018, A (Assistência a pessoa com deficiência), C‑679/16, EU:C:2018:601, n.o 67 e jurisprudência referida].

53      Ora, o órgão jurisdicional de reenvio não identificou considerações objetivas de interesse geral suscetíveis de fundamentar a legislação em causa no processo principal.

54      Em contrapartida, o Governo Romeno, tanto nas suas observações escritas como na audiência, alegou que o facto de recusar emitir um bilhete de identidade nacional com valor de documento de viagem aos nacionais romenos com domicílio noutro Estado‑Membro se justifica, nomeadamente, pela impossibilidade de inscrever no mesmo a morada do domicílio desses nacionais fora da Roménia.

55      A este respeito, este Governo alega, antes de mais, que, por força do artigo 91.o, n.o 1, do Codul civil (Código Civil romeno), a prova do domicílio e da residência é feita pelas informações que figuram no bilhete de identidade, o qual serve, portanto, principalmente para provar este elemento intrínseco da identidade dos nacionais romenos, para estes poderem exercer os seus direitos e cumprir as suas obrigações, nomeadamente em matéria civil ou administrativa. O referido Governo sublinha, em seguida, que a indicação da morada do domicílio no bilhete de identidade é, por conseguinte, suscetível de tornar mais eficaz a identificação desses nacionais e prevenir o tratamento excessivo dos dados pessoais dos referidos nacionais. Por último, esclarece que, mesmo no caso de a morada do domicílio dos nacionais romenos noutro Estado‑Membro estar indicada no bilhete de identidade deles, as autoridades romenas não podem assumir a responsabilidade pela sua certificação, uma vez que, além da falta de competência para o efeito, não teriam meios para verificar essa morada, sem que se tornasse um encargo administrativo desproporcionado, ou mesmo impossível de realizar.

56      Há que constatar que os argumentos apresentados pelo Governo Romeno não permitem considerar que a legislação nacional em causa no processo principal se baseia em considerações objetivas de interesse geral, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.o 52 do presente acórdão.

57      No que respeita ao valor probatório da informação sobre a morada do domicílio, indicada no bilhete de identidade, o Governo Romeno não demonstrou a ligação entre a indicação dessa morada nesse documento, informação que é sem dúvida útil para a administração, e a obrigação de recusar a emissão de um bilhete de identidade aos nacionais romenos com domicílio noutro Estado‑Membro.

58      Além disso, basta verificar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as considerações de ordem administrativa não podem justificar uma derrogação, por parte de um Estado‑Membro, às regras do direito da União, tanto mais quando a derrogação em causa equivale à restrição, senão mesmo exclusão, do exercício de uma das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado (v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 1999, Arblade e o., C‑369/96 e C‑376/96, EU:C:1999:575, n.o 37). Por conseguinte, a eficácia da identificação e do controlo da morada do domicílio dos nacionais romenos com domicílio noutro Estado‑Membro também não constitui uma consideração objetiva de interesse geral suscetível de justificar uma legislação como a que está em causa no processo principal.

59      Esta consideração não é infirmada pela jurisprudência segundo a qual não pode ser negada aos Estados‑Membros a possibilidade de realizarem objetivos legítimos introduzindo regras facilmente geridas e controladas pelas autoridades competentes (Acórdão de 24 de fevereiro de 2015, Sopora, C‑512/13, EU:C:2015:108, n.o 33 e jurisprudência referida), invocada pelo Governo Romeno. Com efeito, tal consideração pressupõe a existência de um objetivo legítimo que o Governo Romeno não conseguiu demonstrar no caso em apreço.

60      Decorre destas considerações que uma legislação como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de circulação e de permanência na União, na aceção do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, lido à luz do artigo 21.o, n.o 1, TFUE e do artigo 45.o, n.o 1, da Carta, relativamente aos nacionais romenos com domicílio noutro Estado‑Membro, que não pode ser justificada pela necessidade de conferir valor probatório à morada do domicílio indicada no bilhete de identidade, nem pela eficácia da identificação e do controlo dessa morada pela administração nacional competente.

61      Resulta de todo o exposto que o artigo 21.o TFUE e o artigo 45.o, n.o 1, da Carta, lidos em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual é recusada a um cidadão da União, nacional desse Estado‑Membro que exerceu o seu direito de livre circulação e permanência noutro Estado‑Membro, a emissão de um bilhete de identidade com valor de documento de viagem na União, pelo simples facto de aquele ter fixado o seu domicílio no território desse outro Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

62      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 21.o TFUE e o artigo 45.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, lidos em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos EstadosMembros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE,

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a uma legislação de um EstadoMembro por força da qual é recusada a um cidadão da União Europeia, nacional desse EstadoMembro que exerceu o seu direito de livre circulação e permanência noutro EstadoMembro, a emissão de um bilhete de identidade com valor de documento de viagem na União Europeia, pelo simples facto de aquele ter fixado o seu domicílio no território desse outro EstadoMembro.

Assinaturas


*      Língua do processo: romeno.