CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
DÁMASO RUIZ‑JARABO COLOMER
apresentadas em 26 de Maio de 2005 (1)
Processo C‑176/03
Comissão das Comunidades Europeias
contra
Conselho da União Europeia
«Ambiente – Protecção através do direito penal – Base jurídica – Decisão‑quadro 2003/80/JAI – Nulidade – Harmonização dos tipos de crime – Competência da Comunidade ex artigo 175.° CE»
I – Introdução
1. A Comissão, por meio do artigo 35.°, n.° 6, do Tratado UE, impugna a Decisão‑quadro 2003/80/JAI do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à protecção do ambiente através do direito penal (a seguir «decisão‑quadro») (2). Na sua opinião, a base jurídica escolhida é errada, devendo esta medida legislativa ser enquadrada no âmbito do Tratado CE e não, como aconteceu, no âmbito do Título VI do Tratado UE.
2. Por trás desta questão simples, surge uma questão profunda, relativa às atribuições da Comunidade, pois, dado que a protecção do meio ambiente na União Europeia exige uma acção concertada mediante a criminalização das infracções mais graves (3), há que esclarecer se a aprovação das normas de coordenação imprescindíveis cai no âmbito do terceiro pilar, cabendo ao Conselho, nos termos do artigo 34.° UE, n.° 1, alínea b), conjugado com o artigo 31.°, n.° 1, alínea e), ou no âmbito do primeiro pilar, por constituir uma atribuição comunitária, nos termos do artigo 175.° CE (4).
3. As posições expressas nos diversos articulados e na audiência surgem nitidamente delimitadas, não só quanto ao pedido deduzido em cada caso, mas também quanto à argumentação utilizada. A Comissão, o Parlamento Europeu e o Conselho Económico e Social seguem a segunda tese aqui referida, enquanto o Conselho e os onze Estados‑Membros que o acompanham (5) defendem a primeira.
4. A opção por cada uma delas tem importantes consequências. Se se optar por uma alternativa «unionista», a força harmonizadora é inferior, pois, para além da falta de efeito directo das decisões‑quadro, a renitência na sua transposição não pode ser removida pela acção de incumprimento prevista no artigo 226.° CE, e sem que, além disso, a competência prejudicial do Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 35.° UE, tenha carácter obrigatório, pois tem que ser aceite pelos Estados‑Membros. Estas considerações explicam o interesse da Comissão em situar a competência no primeiro pilar.
5. Antes de passar à análise do recurso, há que expor o panorama normativo e as vicissitudes do processo no Tribunal de Justiça.
II – Quadro jurídico
A – O direito comunitário
1. O Tratado que institui a Comunidade Europeia
6. Um dos fins da Comunidade é atingir um elevado nível de protecção e de melhoria da qualidade do ambiente (artigo 2.° CE), levando a cabo uma actuação sectorial adequada [artigo 3.°, n.° 1, alínea l), CE] e integrando as exigências em matéria de protecção do ambiente na definição e execução das outras políticas e acções da Comunidade para promover um desenvolvimento sustentável (artigo 6.° CE).
7. O artigo 174.° CE indica os objectivos da política de meio ambiente (n.os 1 e 2) e os critérios a ter em conta na respectiva elaboração (n.° 3), indicando o artigo 175.° CE os meios para a adopção das medidas pertinentes (n.os 1 a 3), cujo financiamento e execução incumbem aos Estados (n.° 4), que, de qualquer forma, nos termos do artigo 176.° CE, podem aprovar medidas reforçadas, desde que não se oponham ao Tratado.
8. Por conseguinte, existe responsabilidade partilhada nesta matéria (6), prevista no artigo 174.°, n.° 4, CE, que deixa em aberto a possibilidade de cooperação, conjunta ou separada, com os países terceiros e com as organizações internacionais.
9. No que respeita à Comunidade, a competência é geralmente exercida por meio do processo de «co‑decisão», delineado no artigo 251.° CE, embora, no que respeita aos temas a que se refere o n.° 2 do artigo 175.° CE (7), o Conselho possa actuar isolado, sob iniciativa da Comissão e mediante consulta ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões.
2. A proposta de Directiva relativa à protecção penal do ambiente (8)
10. Ao abrigo do artigo 175.° CE, a Comissão apresentou, de acordo com o artigo 251.° CE, uma proposta de directiva para garantir uma aplicação mais firme do direito comunitário relativo à defesa do ambiente, definindo‑se na Comunidade um conjunto mínimo de infracções penais (artigo 1.°).
11. O artigo 3.° do texto apresentado impõe a tipificação penal de determinadas condutas (9), praticadas com dolo ou, no mínimo, com negligência grave, e o artigo 4.° atribui aos Estados‑Membros a punição da autoria, participação e instigação com «sanções penais efectivas, proporcionadas e dissuasivas», incluindo as privativas de liberdade. Também prevê, tanto para as pessoas singulares como para as colectivas, outro tipo de sanções, entre as quais figuram as multas, a perda de direitos e a sujeição a medidas de intervenção judicial.
B – O direito da União Europeia
1. O Tratado da União Europeia
12. A União, que encarna uma nova etapa no processo de criação de um vínculo cada vez mais estreito entre os povos da Europa, funda‑se nas Comunidades, completadas com as políticas e com as formas de cooperação desenhadas pelo próprio Tratado UE (artigo 1.°). Distinguem‑se, assim, três pilares:
– O primeiro, chamado «comunitário».
– O segundo abrange a política externa e de segurança comum (Título V).
– O terceiro respeita à cooperação policial e judiciária em matéria penal (título VI).
13. Este último destina‑se a proporcionar aos cidadãos, sem prejuízo das competências da Comunidade, um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça, mediante a adopção de acções em comum entre os Estados‑Membros nos domínios aí referidos, para prevenir e lutar contra a criminalidade, por meio de uma aproximação, quando necessário, das normas penais nacionais, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 31.° (artigo 29.°).
14. A cooperação judiciária abrange a adopção progressiva de medidas para a fixação de regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infracções penais e às sanções aplicáveis nos domínios da criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico ilícito de droga [artigo 31.°, n.° 1, alínea e)].
15. Para o efeito, um dos instrumentos previstos é a decisão‑quadro, que favorece a aproximação das disposições legislativas e regulamentares nacionais. Tal como as directivas no primeiro pilar, as decisões‑quadro vinculam os Estados‑Membros quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios, mas, em contrapartida, nunca produzem efeito directo [artigo 34.°, n.° 2, alínea b)].
16. As atribuições do terceiro pilar podem ser transferidas para a Comunidade, para que esta as exerça no âmbito do Título IV do Tratado CE no que respeita a vistos, asilo, imigração e outras políticas relacionadas com a livre circulação de pessoas (artigo 42.°).
17. O conteúdo do Tratado UE não afecta os Tratados que instituíram a Comunidade Europeia nem os subsequentes que os tenham alterado ou completado artigo 47.°
2. A decisão‑quadro
18. Invocando os artigos 29.°, 31.°, alínea e), e 34.°, n.° 2, alínea b), do Tratado UE, o Conselho, com o propósito de dar uma resposta severa e concertada aos atentados contra o ambiente (segundo e terceiro considerandos), aprovou a decisão‑quadro, impugnada pela Comissão.
19. Os artigos 2.° e 3.° da decisão‑quadro impõem que os Estados‑Membros tipifiquem como infracções penais a prática dolosa ou negligente de determinadas condutas (10), enquanto o artigo 4.° estende a punição à participação e à instigação.
20. Pelo seu lado, o artigo 5.°, n.° 1, defende penas «efectivas, proporcionadas e dissuasivas», entre as quais devem figurar, pelo menos nos casos graves, as privativas de liberdade que possam dar origem à extradição, sem prejuízo, como referido no n.° 2, de serem acompanhadas de outras sanções e medidas (11).
21. O artigo 6.° regula a responsabilidade, por acção ou omissão, das pessoas colectivas (12), e o artigo 7.° as sanções a aplicar‑lhes (13).
22. Os artigos referidos mostram que a decisão‑quadro é praticamente uma reprodução da proposta de directiva, tal como se reconhece no seu quinto considerando, sendo explicado no sétimo que o Conselho a analisou mas não a aprovou, por exceder a competência atribuída à Comunidade pelo Tratado CE (14).
23. O artigo 8.° refere‑se à jurisdição territorial, enquanto o artigo 9.° respeita à extradição e à acção penal nos casos em que um Estado‑Membro não entrega os seus nacionais.
III – O processo no Tribunal de Justiça
24. Além da Comissão e do Conselho, também apresentaram observações escritas, na qualidade de intervenientes, o Parlamento Europeu, o Conselho Económico e Social, a Alemanha, a Dinamarca, Espanha, a Finlândia, França, a Grécia, a Irlanda, os Países Baixos, Portugal, o Reino Unido e a Suécia.
25. Na audiência, realizada em 5 de Abril de 2005, compareceram para alegações os representantes da recorrente e do recorrido, bem como os agentes dos intervenientes com excepção do Governo helénico e do Conselho Económico e Social.
IV – Análise do recurso
A – Delimitação da discussão
26. A discussão centra‑se nos artigos 1.° a 7.° da decisão‑quadro, ficando de fora os artigos 8.° a 12.° Não se discute a competência do Conselho para os aprovar (15) mas sim o seu dever de se abster por força do primado do direito comunitário, proclamado no artigo 47.° UE (16), pois a Comunidade está habilitada pelo Tratado de Roma para impor aos Estados‑Membros uma resposta penal a certos atentados contra o ambiente.
27. A discussão desloca‑se, portanto, do terceiro para o primeiro pilar, para analisar se existe alguma base jurídica que permita à Comunidade intervir na matéria, neutralizando as competências da União. Neste ponto, também há um consenso sobre a inexistência, no direito comunitário, de um poder geral, expresso ou implícito, para cominar sanções penais (17).
28. Por outro lado, todos reconhecem à Comunidade, ao abrigo do princípio da cooperação leal, consagrado no artigo 10.° CE, como garantia da efectividade do seu ordenamento jurídico, a possibilidade de obrigar os Estados‑Membros a reprimir as condutas que o violem. As partes e os intervenientes que os apoiam discutem, porém, sobre a questão de saber se o referido poder a habilita a obrigar os Estados‑Membros a tipificar crimes.
29. A solução exige um exame rigoroso dos acórdãos que atribuem às instituições comunitárias poderes normativos em matéria de direito punitivo.
B – A jurisprudência sobre os poderes punitivos da Comunidade
30. No acórdão Amsterdam Bulb (18) referiu‑se que, não havendo no ordenamento jurídico comunitário uma previsão expressa para punir o seu incumprimento pelos particulares, as legislações nacionais podem prever as sanções que entendam apropriadas (n.° 33) (19). Esta afirmação baseia‑se no dever de os Estados‑Membros assegurarem, nos termos do artigo 5.° do Tratado CE (actual artigo 10.° CE), o respeito dos seus compromissos europeus (n.° 32).
31. Nas conclusões apresentadas nesse processo, o advogado‑geral F. Capotorti esclarece a razão desse entendimento. No n.° 4, depois de lembrar que, de acordo com a jurisprudência, os Estados‑Membros não devem tomar medidas que alterem um regulamento comunitário, ainda que o façam para preservar a sua aplicação, explica que a previsão de uma pena não altera o seu alcance, pois qualquer norma repressiva acessória de uma regra principal de conduta se baseia na hipótese de um comportamento contrário a essa regra, pressupondo‑a, por conseguinte, com o seu conteúdo próprio. Mais adiante acrescenta que a diferente protecção deste modo proporcionada resulta das diferenças existentes entre os regimes nacionais, aos quais o artigo 5.° CE apela a fim de garantir a efectividade do direito comunitário. Termina assinalando que o único limite à introdução de sanções pelos Estados‑Membros se encontra na possibilidade de as normas comunitária preverem essas sanções.
32. O acórdão Amsterdam Bulb assenta, assim, em três ideias: 1) cabe ao direito comunitário prever o quadro punitivo que proteja a sua eficácia; 2) na sua falta, ao Estados‑Membros utilizam os meios desse tipo que considerarem adequados; 3) cabe‑lhes a escolha das modalidades que considerem apropriadas, ainda que as divergências sejam inerentes ao sistema.
33. A primeira ideia assenta na conjectura de que a sanção comunitária se impõe com a força própria do instrumento jurídico utilizado, seja um regulamento, seja uma directiva. Contudo, uma vez que a Comunidade não tem competências penais, deve limitar‑se a prever sanções de natureza civil e administrativa. Isso resulta das palavras do advogado‑geral F. Capotorti no final do referido número das suas conclusões, onde refere que o facto de um Estado‑Membro acrescentar normas penais à regulamentação comunitária, com o objectivo de garantir o seu respeito, não viola os princípios estruturantes do direito da Comunidade, desde que, creio ser útil acrescentar, sejam garantidas as cautelas que presidem ao exercício de qualquer poder punitivo e, em particular, o princípio ne bis in idem (20).
34. No processo Comissão/Grécia, conhecido pelo nome de «Milho grego» (21), o Tribunal de Justiça retomou a fórmula do n.° 32 do acórdão Amsterdam Bulb, sem o citar (n.° 23), acrescentando dois requisitos para a legitimidade das medidas disciplinares nacionais em defesa do ordenamento comunitário: (1) o de as infracções serem punidas em condições materiais e processuais análogas às infracções ao direito interno de natureza e importância semelhantes, e (2) que confiram à punição um carácter efectivo, proporcionado e dissuasivo (n.° 24). Nas conclusões apresentadas nesse processo, o advogado‑geral A. Tesauro tinha referido que o artigo 5.° do Tratado CE implica o dever de os Estados‑Membros punirem adequadamente os autores das violações do direito comunitário de forma a não prejudicar a sua eficácia (n.° 12, segundo parágrafo) (22).
35. Assim, os Estados‑Membros têm a possibilidade de pôr termo aos comportamentos contrários ao ordenamento jurídico da Comunidade, quer este nada diga nesse ponto, quer contenha previsões expressas; a regulamentação nacional implica um plus de protecção, mas, tal como já tinha sido referido no n.° 17 do acórdão Drexl (23), o direito comunitário impõe determinados limites, exigindo que a punição seja equiparável à das infracções ao direito interno (princípio da equiparação ou da equivalência) e seja, além disso, eficaz.
36. O despacho de 13 de Julho de 1990, Zwartveld e o. (24), que recaiu sobre um processo de cooperação judiciária promovido pelo Rechter‑commissaris do rrAondissementsrechtbank te Groningen, atribuiu ao acórdão «milho grego» uma afirmação que não aparece na sua letra, mas que existe no seu espírito e no do acórdão Amsterdam Bulb: os Estados podem e devem garantir o respeito do Tratado, recorrendo, se necessário, às sanções penais (n.° 17).
37. O recorrido parece insistir no acórdão de 8 de Julho de 1999, Nunes e de Matos (25), em que se colocava uma questão prejudicial submetida pelo Tribunal de Círculo do Porto para se saber se um Estado‑Membro pode punir criminalmente condutas contrárias aos interesses patrimoniais da Comunidade quando a regulamentação comunitária as pune apenas com uma sanção civil. O Tribunal de Justiça declarou que as intervenções previstas no artigo 10.° CE incluem as sanções penais, precisando que:
– se o direito comunitário não previr medidas para garantir o cumprimento das suas normas, os Estados têm a obrigação de o fazer; se o direito comunitário as previr, os Estados‑Membros assumem um papel complementar orientado para o reforço da protecção dessas normas;
– a escolha do tipo de sanção cabe às autoridades nacionais, mas a sanção deve ser comparável à das infracções ao direito interno que sejam de natureza e importância semelhantes, além de dever ser prática, adequada e dissuasiva.
38. Em resumo, o Conselho e os intervenientes que o apoiam não deixam de ter razão quando alegam que a jurisprudência não reconhece, de forma explícita, qualquer poder comunitário de obrigar os Estados‑Membros a tipificar as condutas que obstem à realização dos objectivos fixados nos Tratados.
39. Analisando o direito comunitário derivado chega‑se à mesma conclusão.
C – O direito derivado
40. O artigo 1.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 2241/87 do Conselho, de 23 de Julho de 1987, que estabelece certas medidas de controlo em relação às actividades piscatórias (26), bem como o artigo 31.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 2847/93 do Conselho, de 12 de Outubro de 1993, que institui um regime de controlo aplicável à política comum das pescas (27), que substitui o anterior, deixam aos Estados‑Membros a liberdade de escolha da sanção aplicável às infracções às normas que regem essa política. Esta interpretação é confirmada, no que respeita ao primeiro desses regulamentos, no acórdão de 1 de Fevereiro de 2001, Comissão/França (28), em que se analisou se as acções, umas administrativas e outras penais, previstas na legislação interna se ajustavam aos compromissos comunitários em matéria de conservação e controlo dos recursos piscícolas.
41. Pelo seu lado, a Directiva 91/308/CEE do Conselho, de 10 de Junho de 1991, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais (29), depois de considerar que esse fenómeno deve ser combatido principalmente pelo direito penal (quarto considerando), apenas exige aos Estados‑Membros que assegurem a plena aplicação de todas as suas disposições prevendo sanções para os casos de infracção (artigo 14.°), sem prejuízo de disposições mais severas para evitar tais condutas (artigo 15.°).
42. A Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares (30), insta os Estados‑Membros a punir com «sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas» a autoria, a cumplicidade, a instigação e a tentativa de determinados comportamentos (artigos 1.° a 3.°), matizando‑se na Decisão‑quadro 2002/946/JAI do Conselho, de 28 de Novembro de 2002 (31), o carácter penal dessa acção.
43. Em alguns casos, a acção penal é imprescindível por ser a única que reúne as condições, referidas no acórdão «Milho grego», de ser «efectiva, proporcionada e dissuasiva».
D – O conceito jurídico indeterminado de «sanção efectiva, proporcionada e dissuasiva»
44. Este conceito, considerado em abstracto, revela contornos indefinidos, mas, como todos os do seu género, permite a sua delimitação quando projectado sobre realidades concretas, em particular se se tiver em vista a finalidade para que serve.
45. A fórmula empregue pelo Tribunal de Justiça não é casual, pois, referindo‑se à efectividade, à proporcionalidade e ao carácter dissuasivo da punição, alude aos requisitos de base para que a norma comunitária, não obstante a sua violação, seja plenamente aplicada. Por outro lado, tendo em conta que qualquer condenação tem um duplo objectivo de prevenção geral e especial, punindo o responsável com o instrumento jurídico adequado e cominando a colectividade com uma punição do mesmo tipo se se praticar um comportamento igualmente censurável, o leque de sanções revela‑se muito amplo.
46. Nalguns casos, é suficiente a reconstituição da situação anterior à infracção. Mas esta consequência, que não tem natureza repressiva em sentido estrito e é habitualmente chamada «sanção civil», necessita frequentemente, para se atingir os objectivos de prevenção, de ser completada por punições stricto sensu, cuja intensidade deve variar em função da importância do bem jurídico lesado e da censura social da conduta ilícita.
47. Consoante a magnitude da resposta, distingue‑se entre sanções penais – as de grau superior – e administrativas. Umas e outras constituem manifestações do ius puniendi do Estado e obedecem aos mesmos princípios ontológicos (32); contudo, o menor rigor das segundas flexibiliza as garantias que devem envolver a sua aplicação, sem prejuízo de, como referi nas conclusões do processo Comissão/Grécia (33), em ambos os casos se deverem observar princípios similares (34).
48. É evidente que, na linha das afirmações do Conselho e de alguns dos intervenientes em seu apoio, não existe ninguém em melhor posição que os poderes nacionais com competência normativa para apreciar a virtualidade, a adequação e a capacidade de uma reacção repressiva. Foi o que defendi quando se decidiu, à luz do princípio da efectividade, a suficiência de determinados prazos processuais nacionais para o exercício de acções em defesa de direitos reconhecidos pelo ordenamento comunitário (35), embora ressalvando que essa regra geral cede nos casos notórios (36), nos quais, pela sua evidência, a Comunidade pode levar a cabo essa apreciação.
49. Importa não esquecer que a protecção do ordenamento comunitário cabe às suas instituições, embora nada as impeça de instar os Estados‑Membros a reprimirem as acções que o violem. Essa missão só será atribuída aos legisladores nacionais na medida em que, por falta de elementos de juízo imprescindíveis, não possa ser dada a resposta mais conveniente. A contrario sensu, se a determinação da punição «efectiva, proporcionada e dissuasiva» for evidente, nenhuma razão substantiva impede que a escolha seja feita por quem dispõe da competência material (37).
50. Por outras palavras, não se vislumbra qualquer dificuldade em compreender que, por exemplo, a repressão adequada dos atentados contra a vida ou da corrupção de menores deve ter carácter penal, pelo que, se os bens jurídicos protegidos nessas infracções constituíssem um dos objectivos da Comunidade, ninguém discutiria a capacidade das suas instâncias normativas de exigirem aos Estados‑Membros a perseguição pela via criminal.
51. O passo seguinte consiste, pois, em indagar se a protecção do meio ambiente, cuja titularidade comunitária não levanta dúvidas, de acordo com o acima exposto nos n.os 6 a 9, exige protecção penal. É nesta análise que deve ser inserido o seu processo de «comunitarização».
E – A protecção ambiental na Comunidade
52. Nas conclusões apresentadas em 30 de Novembro de 2004, no processo Deponienzweckverband Eiterköpfe, no qual foi proferido acórdão em 14 de Abril, referi que, embora o meio ambiente e a sua preservação não constituíssem grande preocupação para os redactores dos Tratados, não foi necessário esperar muito tempo para que, em 1972, a Conferência de Chefes de Estado e de Governo, realizada em Paris, decidisse instituir uma política própria nesse sector (38), sugerindo que se utilizasse a cobertura oferecida pelos artigos 100.° e 235.° do Tratado CE (39) (actuais artigos 94.° CE e 308.° CE).
53. O Tribunal de Justiça recebeu a passagem de testemunho e baseou as normas nesta matéria no referido artigo 100.° (40), declarando no acórdão ADBHU (41) que a protecção do meio ambiente deve ser considerada «um dos objectivos essenciais da Comunidade» (n.° 13), ideia repetida anos mais tarde, na sequência da aprovação do Acto Único Europeu (42), no acórdão Comissão/Dinamarca (n.° 8) (43).
54. O referido Acto acrescentou ao Tratado CE uma parte específica – o título VII (actual título XIX) – (44), que abrangia os artigos 130.° R e 130.° S (que passaram, após alteração, a artigos 174.° CE e 175.° CE) e o artigo 130.° T (actual artigo 176.° CE), aos quais se junta o artigo 100.° A, n.° 3 (que passou, após alteração, a artigo 95.°, n.° 3, CE), que obriga a que as propostas da Comissão previstas no n.° 1 aspirem a um «nível de protecção elevado» do meio físico.
55. O novo panorama colocou a protecção deste último no centro da actividade comunitária, inspirando‑a e informando‑a, tal como lembrou o acórdão Comissão/Conselho (n.os 22 e 24) (45), vindo a converter‑se, com a assinatura do Tratado UE em Maastricht, num objectivo da Comunidade.
56. Actualmente, o alcance de um elevado grau de conservação e melhoria do meio ambiente e o auge da qualidade de vida confirmam‑se como objectivos comunitários (artigo 2.° CE), exigindo‑se uma actuação específica [artigo 3.°, n.° 1, alínea l), CE]. A isso acresce que «as exigências em matéria d[a sua] protecção [...] devem ser integradas na definição e execução das políticas e acções da Comunidade previstas no artigo 3.°, em especial com o objectivo de promover um desenvolvimento sustentável» (artigo 6.° CE). Esta preocupação também está patente noutros preceitos do Tratado: o artigo 95.° CE, já referido, ou o artigo 161.° CE, que prevê a criação de um Fundo de Coesão que «contribuirá financeiramente para a realização de projectos nos domínios do ambiente».
57. A preservação deste último proporcionou um meio para o reconhecimento normativo de princípios que, como o da precaução e o da acção preventiva (artigo 174.°, n.° 2, primeiro parágrafo, CE), caracterizam amplas parcelas do direito comunitário nas quais a natureza, a vida e a integridade das pessoas adquirem uma dimensão universal devido à globalização das ameaças inerentes ao progresso tecnológico e industrial (46).
58. O Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (47) mantém a mesma perspectiva. Segundo o artigo II‑97, cuja origem é o artigo 2.° CE, «as políticas da União devem integrar um elevado nível de protecção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá‑los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável»; o artigo III‑119 reafirma o conteúdo do artigo 6.° CE. Pelo seu lado, os artigos III‑233 e III‑234 reproduzem substancialmente os artigos 174.° CE a 176.° CE.
59. Não há, pois, qualquer dúvida de que, como referido no n.° 51 das presentes conclusões, o «ambiente» constitui uma competência da Comunidade, erigindo‑se também em bem jurídico cuja defesa inspira as restantes políticas, actividade tuitiva que pode, além disso, ser qualificada de desígnio essencial do sistema comunitário.
60. A preocupação com o meio ambiente não é exclusiva da Europa, tendo adquirido dimensão universal.
F – A globalização da «política ambiental»
61. Numerosos pactos e acordos internacionais procuram respostas para a constante deterioração dos ecossistemas e da vida no planeta.
62. Pode apontar‑se o exemplo do processo seguido nas Nações Unidas (48) desde a Conferência realizada em Estocolmo de 5 a 16 de Junho de 1972, assinalado por marcos importantes. Essa reunião converteu‑se num grande evento ao chamar a atenção do mundo para a gravidade da situação do meio ambiente numa Declaração relativa ao meio humano, onde são fixados vinte e seis princípios para a preservação dos recursos naturais.
63. A Carta Mundial da Natureza de 1982 (49) aprofundou a linha traçada, aumentando o empenho nos parâmetros de actuação e a sua incorporação nos ordenamentos jurídicos nacionais.
64. A Declaração do Rio, aprovada pelos governos participantes na Cimeira das Nações Unidas para o Ambiente e o Desenvolvimento, realizada nessa cidade brasileira em Junho de 1992, constituiu um impulso decisivo. A importância do contexto em que foi adoptada e o amplo consenso que acompanhou a sua aprovação conferem‑lhe um significado especial enquanto acordo universal fruto da consciência comum, assente na necessidade de conservar o planeta para as gerações futuras.
65. A Convenção‑quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, de 1992, e o Protocolo de Quioto de 1997, que a desenvolve com vista à redução da emissão de gases com efeito de estufa (50), simbolizam outros dois elos nessa cadeia imparável, na qual também se encadeia o Protocolo sobre a Biodiversidade, assinado em Montreal em 28 de Janeiro de 2000, na Conferência das Partes Signatárias da Convenção sobre a Diversidade Biológica, igualmente resultante da Cimeira do Rio.
G – O direito a um ambiente adequado e a responsabilidade pública na sua preservação
66. Os conceitos de «desenvolvimento sustentável» e de «qualidade de vida» utilizados no Tratado CE surgem intimamente ligados ao de «ambiente», aludindo a uma dimensão subjectiva que não se pode preterir quando se fala de o proteger e melhorar. No suporte geofísico representado pelo meio natural, a qualidade de vida é garantida como um direito dos cidadãos que tem origem em diversos factores, uns materiais (o uso racional dos recursos e o desenvolvimento sustentável) e outros mais intelectuais (o progresso e o desenvolvimento cultural). Trata‑se de alcançar uma vida digna qualitativamente, uma vez superado o limite quantitativo suficiente para a subsistência (51).
67. Assim se configura um direito a fruir de um meio ambiente adequado, não tanto do indivíduo enquanto tal, mas sim como membro da colectividade, na qual partilha de interesses comuns de índole social (52). Algumas Constituições de Estados‑Membros da Comunidade na época em que foi aprovada a decisão‑quadro recorrida reconhecem esse direito (53). Assim, o artigo 20.° a da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (54) dispõe que «o Estado protegerá igualmente, assumindo a responsabilidade perante as gerações futuras [(55)], as condições naturais de vida no âmbito do ordenamento constitucional». Em Espanha, entre os princípios orientadores da política social e económica, o artigo 45.° da Constituição (56) proclama o direito de todos «a disfrutar de um meio ambiente adequado ao desenvolvimento da pessoa» (57). Com termos semelhantes se expressa o artigo 66.° da Constituição da República Portuguesa (58). Na Suécia, o artigo 18.°, terceiro parágrafo, do Capítulo III da lei de 24 de Novembro de 1994 (59), que modifica a Lei relativa à forma de Governo, reafirma o direito de acesso à natureza.
68. Este direito é complementado pelos correlativos deveres das instâncias públicas. Já vimos os termos da Lei Fundamental de Bona. O n.° 2 do artigo 45.° da Constituição espanhola exige que os poderes públicos assegurem a utilização racional dos recursos naturais, «a fim de proteger e melhorar a qualidade de vida, defender e restaurar o meio ambiente, apoiando‑se na indispensável solidariedade colectiva». Na mesma linha, a Constituição da Finlândia (60) faz referência à responsabilidade comum de cuidar da natureza, da diversidade e do meio ambiente (artigo 20.°), enquanto as Constituições grega (artigo 24.°, n.° 1) (61), neerlandesa (artigo 21.°) (62) e portuguesa (artigo 9.°, alínea e)] obrigam as autoridades à sua preservação. Em Itália, a obrigação da República de proteger a paisagem, prevista no artigo 9.°, n.° 2, da Constituição (63), estendeu‑se ao ambiente e ao território (64).
69. A dimensão subjectiva desta preocupação relativo ao ambiente existe implicitamente na União Europeia, cuja Carta dos Direitos Fundamentais, de 7 de Dezembro de 2000 (65), depois de declarar no preâmbulo que a União se baseia nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade, prevê no capítulo dedicado a esta última, a par dos direitos sociais, uma norma que explica que as suas políticas integram e asseguram, de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável, um elevado nível de protecção do ambiente e a melhoria da sua qualidade (artigo 37.°). Como já referi, esta disposição faz parte do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (artigo II‑97).
70. Não terminarei este ponto sem salientar que, à margem do entendimento dado ao direito a gozar de um ambiente natural adequado (66), vislumbra‑se facilmente a sua ligação ao conteúdo de alguns direitos fundamentais. Bastam duas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para confirmar esta ideia. O acórdão de 9 de Dezembro de 1994, Lopez Ostra contra Espanha (67), considerou evidente que os atentados graves contra o ambiente podem afectar o bem‑estar de uma pessoa, impedindo‑a de usufruir do seu domicílio, lesando a sua vida privada e familiar (n.° 51) (68). O acórdão de 19 de Fevereiro de 1998, Guerra e o. contra Itália (69), declarou que a falta de informação oficial sobre a oportuna atitude cívica face às emissões contaminantes de uma indústria próxima viola o referido direito fundamental (n.° 60).
H – A reacção penal face aos atentados graves contra o ambiente
71. O panorama descrito ilustra claramente a importância que nas últimas décadas adquiriu a chamada «consciência ecológica». Não está determinado com precisão o alcance real ou potencial das alterações provocadas pela actividade humana nos ecossistemas, mas intui‑se a sua capacidade para deteriorar ou impossibilitar a vida na Terra. O facto de o homem e os seus ataques à natureza porem em perigo a sua perdurabilidade como espécie realçou a urgência em proporcionar padrões de comportamento e aplicar uma «ética ambiental» cujo objectivo reside na integração harmoniosa do homem no meio em que se desenvolve.
72. Os Estados recorrem aos códigos penais como última ratio para se defenderem dos ataques a valores em que se baseia a convivência, tendo recorrido nos últimos anos à criminalização de alguns comportamentos que degradam o meio natural (70). Se se pretende alcançar um elevado nível de protecção e melhorar a qualidade de vida (artigo 2.° CE), parece lógico pensar que o direito comunitário, através das competências atribuídas às instituições para a prossecução desses fins, deve, em alguns casos, socorrer‑se da sanção penal como única resposta «efectiva, proporcionada e dissuasiva».
73. Na doutrina gerou‑se um certo consenso em considerar os ecossistemas como bens jurídicos de especial importância, cuja protecção se revela essencial para a própria existência do ser humano, pelo que a sua conservação e a sua manutenção justificam plenamente a intervenção do direito penal com uma garantia específica (71).
74. As reacções administrativas são frequentemente suficientes mas não asseguram uma protecção conveniente em todos os casos de danos graves. A sanção penal, pelo contrário, implica uma pressão adicional, que, em muitos casos, pode levar ao respeito dos requisitos e à proliferação das proibições legais no exercício de actividades de intensa perigosidade para o meio. A entrada da ecologia nos códigos destina‑se também, juntamente com um aumento dos efeitos da prevenção geral, a revolver a consciência do público sobre a «lesividade» social dos ataques à natureza, reafirmando a aceitação dos bens jurídicos ambientais autónomos com o mesmo grau dos valores classicamente protegidos pelo direito penal (72). Importa não esquecer a dimensão ética da sanção penal: quando se censura penalmente uma conduta, considerar‑se essa mesma conduta merecedora da censura mais intensa por transgredir os fundamentos do sistema jurídico.
75. Tendo em conta, pois, a essência da jurisprudência que reconhece à Comunidade um poder sancionador, com capacidade de harmonização das legislações nacionais, o constante processo de assunção de competências comunitárias na protecção do meio físico (73) e a importância ou a fragilidade dos valores ambientais, há razões suficientes para se reconhecer à Comunidade a faculdade de exigir aos Estados‑Membros uma resposta penal face a determinados comportamentos nocivos para o planeta (74).
76. O Conselho e os intervenientes que o apoiam no presente processo rejeitam esse entendimento, afirmando que diminui a soberania dos Estados. Esta crítica parece‑me infundada. Desde logo, há que lembrar que, como referido no acórdão Van Gend & Loos (75), a Comunidade constitui um ordenamento jurídico novo, a favor do qual os Estados‑Membros limitaram os seus poderes, de modo que a tese «soberanista» nada traz de novo à discussão, nem mesmo no direito penal. Isso é demonstrado pelo facto de o direito comunitário ter despenalizado muitas acções tipificadas nos códigos nacionais, sem que essa «intromissão» tivesse alarmado alguém (76). Poderia acrescentar aqui uma longa lista de casos, não só no meio penal, que estão na mente de todos, em que o direito comunitário restringiu as competências legislativas estatais: o direito fiscal e o direito processual são dois bons exemplos.
77. Esta controvérsia põe em cena outro tema, que afecta não tanto os Estados quanto os cidadãos, isto é, o seu direito a que os tipos de crimes sejam determinados pelos representantes democraticamente eleitos, o que, em termos jurídicos, se traduz no princípio da legalidade em matéria penal, com a sua dupla dimensão, material, de pré‑determinação normativa das condutas, e formal, expressa através de uma reserva absoluta em favor do titular do poder legislativo. Com a posição que defendo, a regra nullum crimen sine lege permanece incólume, pois a harmonização comunitária exige a intervenção dos parlamentos nacionais para a definitiva incorporação das normas exteriores ao seu ordenamento jurídico (77).
78. Essa posição também não é infirmada pelo facto de os artigos 135.° CE e 280.° CE, nos sectores da actividade aduaneira e da luta contra a fraude lesiva dos interesses comunitários, nos quais a cooperação entre Estados, deve ser mais estreita e mais intensa, ressalvarem a «aplicação do direito penal» e a «administração da justiça», expressões que não aludem ao poder de instituir normas mas sim ao poder de as aplicar, ponto que não é questionado na presente lide e que diz respeito a uma competência que, sem qualquer dúvida, pertence aos juízes titulares da jurisdição criminal.
79. Pode alegar‑se que, ao articular a cooperação penal no terceiro pilar, qualquer actuação nesse campo, inclusivamente as da Comunidade, deve ser enquadrada no título VI do Tratado UE, mas a esse silogismo falta a premissa maior.
80. O artigo 29.° UE estabelece uma acção coordenada para a prevenção e luta contra a criminalidade por três meios. Os dois primeiros estruturam‑se na cooperação policial e judicial, enquanto o último se dirige à aproximação normativa, «nos termos do disposto na alínea e) do artigo 31.°», que se refere à adopção progressiva de medidas mínimas relativas «aos elementos constitutivos das infracções penais e às sanções aplicáveis nos domínios da criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico ilícito de droga». Assim, não existe, já o afirmei (78), uma «competência universal» da União Europeia para harmonizar, por meio das decisões‑quadro a que se refere o artigo 34.°, n.° 2, alínea b), os direitos penais dos Estados‑Membros, mas sim uma atribuição limitada a determinadas figuras ilícitas de alcance transnacional.
81. O terceiro pilar esboça uma assistência operativa dos serviços policiais e judiciários para um combate mais eficaz contra a criminalidade, mas a aproximação normativa, que transcende a ideia de cooperação e implica um passo de maior profundidade em direcção à integração, fica reduzida aos elementos que, pela sua «internacionalização», merecem uma resposta uniforme.
82. Do mesmo modo que a Comunidade não dispõe de uma competência geral em matéria penal, também não tem uma «capacidade natural» do terceiro pilar, que, como uma força de gravidade, atraia todas as questões desse tipo suscitadas na União. O desfecho deste enredo deve surgir por outros caminhos, na linha esboçada pela jurisprudência ao construir o poder sancionador em defesa do ordenamento jurídico comunitário.
83. Uma vez afastados todos os obstáculos esgrimidos pelo Conselho e pelos Estados‑Membros, a argumentação deve prosseguir. Deixando de lado as razões que aconselham uma resposta coordenada, pois as vantagens de uma harmonização (79) não estão em discussão (80), há que precisar o seu alcance. O objectivo, como já se viu, é facultar uma reacção punitiva «efectiva, proporcionada e dissuasiva» contra as infracções graves da política ambiental comunitária; a repressão penal reúne essas características, pelo que a Comunidade, para garantir a sua actividade nesse sector, pode obrigar os Estados‑Membros a fazê‑lo, mas, na minha opinião, não pode ir além disso. Esta afirmação apoia‑se, por um lado, nos fundamentos da jurisprudência que reconhece essa atribuição e, por outro, no carácter das suas competências em matéria de meio ambiente.
I – A efectividade do direito comunitário apenas exige que a perseguição seja penal
84. O poder sancionador civil, administrativo ou penal deve ser considerado uma competência instrumental (81) ao serviço da efectividade do direito comunitário (82). Se a integridade desse sistema jurídico exigir uma vertente penal, os Estados‑Membros devem accionar os mecanismos indispensáveis para esse fim, cuja natureza deve ser decidida pela Comunidade, desde que esteja em condições de analisar a sua utilidade para o fim prosseguido, pois em caso contrário essa missão cabe aos poderes normativos nacionais. Em relação ao ambiente, parece claro que a resposta às condutas que o prejudiquem seriamente deve ser penal, mas, dentro do âmbito punitivo, a escolha da sanção para as reprimir e para conferir virtualidade ao direito comunitário cabe aos Estados‑Membros.
85. Uma vez introduzidos tipos uniformes pela harmonização comunitária, os ordenamentos nacionais devem punir essas condutas proibidas, indicando os meios repressivos concretos associados à infracção, para assim se restaurar a realidade física e a ordem jurídica alteradas. Nesta missão, ninguém está em melhor posição que o legislador nacional, que, conhecendo em primeira mão as especificidades jurídicas e sociológicas do seu sistema de convivência, deve optar, dentro do quadro previamente delimitado pela Comunidade, pela reacção mais adequada para a subsistência do direito comunitário (83).
86. O direito penal proporciona a única solução «efectiva, proporcionada e dissuasiva» contra as condutas que, como as descritas no artigo 2.° da decisão‑quadro, perturbam gravemente o ambiente, mas, uma vez enquadradas no âmbito penal, a precisão da sanção só pode ser levada a cabo no ordenamento jurídico nacional, que conta com os parâmetros imprescindíveis para o efeito, pois, actualmente, a Comunidade não dispõe dos elementos de juízo necessários para apreciar o melhor modo de defender os valores ambientais em cada Estado‑Membro, oscilando entre a privação de liberdade, outra restrição de direitos ou uma sanção pecuniária.
87. Este esquema atribui à Comunidade o poder de definir com exactidão o bem jurídico protegido e a natureza da censura, assumindo os Estados‑Membros a adopção da norma punitiva (84), quer individualmente, quer de forma coordenada através da cooperação intergovernamental regida pelo terceiro pilar do Tratado UE.
J – A natureza das competências comunitárias relativas ao ambiente
88. Nesta matéria, as competências são partilhadas entre a Comunidade e os Estados‑Membros (85), podendo as legislações nacionais ser mais rigorosas.
89. Tal como já se referiu, o artigo 176.° CE permite aos Estados‑Membros manter ou adoptar normas de maior protecção, desde que compatíveis com o Tratado e notificadas à Comissão. Por outro lado, o artigo 95.° CE permite‑lhes manter (n.° 4) ou adoptar (n.° 5) disposições próprias, não obstante a existência de imperativos de harmonização, quando se justificarem pela conservação do ambiente, comunicando o facto à referida instituição. Por último, o artigo 174.°, n.° 2, segundo parágrafo, CE, prevê «uma cláusula de salvaguarda autorizando os Estados Membros a tomar, por razões ambientais não económicas, medidas provisórias» sujeitas a controlo.
90. Nas conclusões apresentadas no processo Deponienzweckverband Eiterköpfe, já referidas, indiquei que os Estados são, assim, chamados a desempenhar um papel importante, dando lugar à coexistência de normas europeias com outras de carácter interno, que matizem a legislação comunitária ou lhe introduzam excepções para conferir um plus de protecção, de forma que parece absolutamente coerente que, indicado o limiar mínimo pela Comunidade (a resposta penal às infracções), os ordenamentos nacionais a individualizem, lhe confiram precisão e a força imprescindível para servir o objectivo assinalado.
K – Os artigos 1.° a 7.° da decisão‑quadro como competência comunitária
91. As considerações expostas aconselham a que seja emitido um juízo sobre os artigos 1.° a 7.° da decisão‑quadro, analisando se o seu conteúdo entra no âmbito do direito comunitário, caso em que, tendo o Conselho da União adoptado as referidas disposições ao abrigo dos artigos 29.°, 31.°, alínea e), e 34.°, n.° 2, alínea b), do Tratado UE, violam o artigo 47.°, configurando uma causa nulidade.
92. Os artigos 2.° e 3.° exigem sanções penais para a prática dolosa e culposa, pelo menos por negligência grave, de sete tipos de infracções prejudiciais para o ambiente, caracterizadas pela sua gravidade, ou pela sua capacidade de causar a morte ou lesões graves às pessoas ou danos substanciais a elementos do meio natural e cultural, ou por lesarem espécies protegidas ou a camada de ozono. Em face do exposto, fica claro que a competência para cominar essas sanções para condutas desse tipo cabe à Comunidade. Algo de semelhante se dispõe no artigo 4.°, ao prever a tipificação das formas de participação diferentes da autoria e da instigação. Uma e outras pertencem ao «mínimo harmonizador comunitário», pois, ao delimitarem o âmbito subjectivo da responsabilidade penal, incidem sobre a sua natureza.
93. O artigo 5.°, n.° 1, ao exigir que as condutas descritas nos artigos 2.° e 3.° sejam reprimidas com sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas, deve ter o mesmo entendimento dos anteriores, uma vez que nestes casos, em face do exposto, a escolha do modelo punitivo – penal, administrativo ou civil – cabe à Comunidade.
94. Não obstante, a previsão incluída no próprio artigo 5.°, n.° 1, de que as condutas mais graves sejam reprimidas com privação da liberdade, dando lugar a extradição, excede os contornos próprios do primeiro pilar, pois, no âmbito penal, a escolha da sanção pertinente pertence ao domínio estatal. Por igual ordem de ideias, não merece qualquer reparo a previsão de sanções acessórias feita no artigo 5.°, n.° 2.
95. O artigo 6.° rege a responsabilidade, por acção ou omissão, das pessoas colectivas nas condutas definidas nos artigos 2.° a 4.°, enquanto o artigo 7.° prevê a sua punição com «sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas», sem pormenorizar o seu carácter; ambos os preceitos estão feridos do mesmo defeito que os artigos 2.° a 4.° e 5.°, n.° 1. A referência à perseguição não só das pessoas singulares mas também das pessoas colectivas respeita à estruturação do modelo de base da resposta às infracções contra o ambiente, que é atribuição comunitária. Não obstante, ao enumerar cinco punições concretas, o artigo 7.° fica de fora do âmbito abrangido pelo direito comunitário.
96. Por último, o artigo 1.° limita‑se a definir três conceitos utilizados nos artigos 2.° e 6.°
97. Entendo, pois, que, na medida em que a escolha da resposta penal aos atentados graves contra o ambiente compete à Comunidade, o Conselho da União não tem atribuições para aprovar os artigos 1.° a 4.°, 5.°, n.° 1 – com excepção da referência às penas privativas de liberdade e à extradição –, 6.° e 7.°, primeiro parágrafo da decisão‑quadro. Em consequência, o recurso da Comissão é procedente, devendo ser‑lhe dado provimento e anular‑se os referidos preceitos.
V – Despesas
98. O provimento do recurso interposto pela Comissão implica a condenação do Conselho da União Europeia no pagamento das despesas, de acordo com o disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo.
99. Os Estados‑Membros, o Parlamento Europeu e o Conselho Económico e Social, que foram intervenientes, suportarão as respectivas despesas, nos termos do disposto no n.° 3 do mesmo preceito.
VI – Conclusão
100. Em face das considerações expostas, sugiro ao Tribunal de Justiça que:
1) Dê provimento ao recurso de anulação interposto pela Comissão das Comunidades Europeias da Decisão‑quadro 2003/80/JAI do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à protecção do ambiente através do direito penal, anulando‑a com o alcance que acima resulta do n.° 97.
2) Condene o Conselho da União Europeia no pagamento das despesas do processo e os intervenientes nas respectivas despesas.