Language of document : ECLI:EU:C:2019:420

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

16 de maio de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Transferência de resíduos — Regulamento (CE) n.o 1013/2006 — Resíduos sujeitos ao procedimento de notificação e de consentimento escrito prévios — Transferências no interior da União Europeia — Artigo 1.o, n.o 3, alínea b) — Exclusão do âmbito de aplicação — Resíduos gerados a bordo de navios — Resíduos a bordo de um navio na sequência de uma avaria»

No processo C‑689/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha), por decisão de 29 de novembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de dezembro de 2017, no processo

Conti 11. Container SchiffahrtsGmbH & Co. KG MS «MSC Flaminia»

contra

Land Niedersachsen,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, C. Lycourgos (relator), E. Juhász, M. Ilešič e I. Jarukaitis, juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 25 de outubro de 2018,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Conti 11. Container Schiffahrts‑GmbH & Co. KG MS «MSC Flaminia», por J.‑E. Pötschke e W. Steingröver, Rechtsanwälte,

–        em representação do Land Niedersachsen, por R. van der Hout, advocaat, e H. Jacobj, Rechtsanwalt,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. C. Becker, E. Sanfrutos Cano e L. Haasbeek, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 24 de janeiro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento (CE) n.o 1013/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativo a transferências de resíduos (JO 2006, L 190, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Conti 11. Container Schiffahrts‑GmbH & Co. KG MS «MSC Flaminia» (a seguir «Conti») ao Land Niedersachsen (Land da Baixa Saxónia, Alemanha) a propósito da obrigação imposta por este último à Conti de dar início ao procedimento de notificação relativo ao transporte de resíduos que se encontravam a bordo do navio MSC Flaminia (a seguir «Flaminia») na sequência de uma avaria.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretivas relativas aos resíduos

3        O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2006/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2006, relativa aos resíduos (JO 2006, L 114, p. 9), previa:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:




a)      “Resíduo”: quaisquer substâncias ou objetos abrangidos pelas categorias fixadas no anexo I de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer;

[…]»

4        A Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas (JO 2008, L 312, p. 3), que revogou a Diretiva 2006/12, dispõe, no seu artigo 3.o:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1)      “Resíduos”, quaisquer substâncias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer;

[…]»

 Regulamento n.o 1013/2006

5        Nos termos dos considerandos 1, 7 e 14 do Regulamento n.o 1013/2006:

«(1)      O principal e mais predominante objetivo e elemento do presente regulamento é a proteção do ambiente, sendo os seus efeitos no comércio internacional meramente secundários.

[…]

(7)      É importante organizar e regulamentar a fiscalização e o controlo das transferências de resíduos de um modo que tome em consideração a necessidade de preservar, proteger e melhorar a qualidade do ambiente e da saúde humana e que promova uma aplicação mais uniforme do regulamento em toda a [União].

[…]

(14)      No caso das transferências de resíduos destinados a operações de eliminação e dos resíduos não constantes dos Anexos III, III‑A ou III‑B destinados a operações de valorização, justifica‑se que seja garantida uma otimização da fiscalização e controlo através da exigência de um consentimento escrito prévio para essas transferências. Esse procedimento deverá, por seu lado, implicar uma notificação prévia, a fim de permitir que as autoridades competentes se encontrem devidamente informadas, de modo a poderem tomar todas as medidas necessárias para a proteção da saúde humana e do ambiente. Tal permitirá também a essas autoridades apresentar objeções fundamentadas relativamente a essas transferências.»

6        O artigo 1.o deste regulamento dispõe:

«1.      O presente regulamento estabelece procedimentos e regimes de controlo relativos a transferências de resíduos, de acordo com a origem, o destino e o itinerário dessas transferências, o tipo de resíduos transferidos e o tipo de tratamento a aplicar aos resíduos no seu destino.

[…]

3.      Não são abrangidas pelo presente regulamento:

a)      As descargas em terra de resíduos gerados pelo funcionamento normal dos navios e das plataformas offshore, incluindo águas residuais e produtos residuais, desde que esses resíduos se encontrem abrangidos pelas disposições da Convenção Internacional sobre a Prevenção da Poluição por Navios[, assinada em Londres, em 2 de novembro de 1973, conforme completada pelo Protocolo de 17 de fevereiro de 1978] (Marpol 73/78) ou por outros instrumentos internacionais vinculativos;

b)      Os resíduos gerados a bordo de veículos, comboios, aeronaves e navios, até que tais resíduos sejam descarregados com vista a serem valorizados ou eliminados;

[…]»

7        Segundo o artigo 2.o do referido regulamento:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1)      “Resíduos”, os resíduos definidos na alínea a) do n.o 1 do artigo 1.o da Diretiva [2006/12];

[…]

34)      “Transferência”: o transporte de resíduos com vista à valorização ou à eliminação […]

[…]»

8        O artigo 3.o, n.o 1, do mesmo regulamento dispõe:

«As transferências dos resíduos a seguir enumerados estão sujeitas ao procedimento prévio de notificação e consentimento escrito nos termos do presente título:

a)      Quando destinadas a operações de eliminação:

todos os resíduos;

b)      Quando destinadas a operações de valorização:

i)      resíduos enumerados no Anexo IV, que inclui resíduos constantes dos anexos II e VIII da Convenção de Basileia [sobre o controlo dos movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua eliminação, assinada em 22 de março de 1989, aprovada em nome da Comunidade Económica Europeia pela Decisão 93/98/CEE do Conselho, de 1 de fevereiro de 1993 (JO 1993, L 39, p. 1)],

ii)      resíduos enumerados no Anexo IV‑A,

iii)      resíduos não classificados em qualquer rubrica própria nos Anexos III, III‑B, IV ou IV‑A,

iv)      misturas de resíduos não classificadas em qualquer rubrica própria nos Anexos III, III‑B, IV ou IV‑A, exceto se enumeradas no Anexo III‑A.»

9        O artigo 4.o do Regulamento n.o 1013/2006 prevê:

«Quando o notificador tiver intenção de transferir os resíduos referidos nas alíneas a) ou b) do n.o 1 do artigo 3.o, deve efetuar uma notificação escrita prévia à autoridade competente de expedição e por via desta, e, caso efetue uma notificação geral, deve cumprir o disposto no artigo 13.o

Quando é efetuada uma notificação devem ser cumpridos os seguintes requisitos:

1)      Documentos de notificação e de acompanhamento:

A notificação será efetuada por meio dos seguintes documentos:

a)      Documento de notificação do Anexo I‑A; e

b)      Documento de acompanhamento do Anexo I‑B.

Ao efetuar uma notificação, o notificador deve preencher o documento de notificação e, se pertinente, o documento de acompanhamento.

[…]

O documento de notificação e o documento de acompanhamento serão emitidos pela autoridade competente de expedição e postos à disposição do notificador.

[…]»

 Direito alemão

10      Nos termos do seu § 2, n.o 2, ponto 13, as disposições da Gesetz zur Förderung der Kreislaufwirtschaft und Sicherung der umweltverträglichen Bewirtschaftung von Abfällen (Kreislaufwirtschaftsgesetz — KrWG) (Lei destinada a promover a economia circular e a garantir a gestão sustentável dos resíduos), de 24 de fevereiro de 2012 (BGB1. 2012 I, p. 212), não são aplicáveis à recolha e transferência de resíduos de exploração de navios e de resíduos de carga, quando estas operações estejam submetidas à legislação federal ou do Land nos termos de convenções nacionais ou internacionais.

11      O § 32 da Niedersächsisches Abfallgesetz (Lei sobre os resíduos da Baixa Saxónia) dispõe:

«Para os efeitos da presente lei, entende‑se por:

[…]

6.      Resíduos dos navios:

a)      todos os resíduos (incluindo águas residuais e outros resíduos não resultantes da carga) gerados no decurso do funcionamento do navio e incluídos no âmbito de aplicação dos anexos I, IV e V da [Convenção Marpol 73/78], e

b)      os resíduos gerados pela carga na aceção do ponto 1.7.5 das Diretrizes sobre a execução da [Convenção Marpol 73/78];

7.      Resíduos de carga: matérias transportadas como carga em porões ou tanques de carga que ficam das operações de descarga e das operações de limpeza, incluindo excedentes de carga e descarga ou de derrames.»

12      Segundo o § 35, n.o 1, da Lei sobre os resíduos da Baixa Saxónia, antes de abandonar o porto, o capitão está obrigado a entregar todos os resíduos gerados pelo navio que se encontrem a bordo do mesmo numa instalação portuária de receção. O § 36, n.o 1, desta lei impõe a mesma obrigação no que respeita aos resíduos de carga.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

13      O Flaminia é um porta‑contentores pertencente à Conti e que, no período em causa no processo principal, arvorava pavilhão alemão.

14      Em 14 de julho de 2012, durante uma viagem de Charleston (Estados Unidos) para Antuérpia (Bélgica), deflagrou um incêndio e ocorreram explosões a bordo desse navio, enquanto este transportava 4 808 contentores, dos quais 151 considerados «de matérias perigosas». Depois de o incêndio ter sido controlado, a Conti obteve, em 21 de agosto de 2012, a autorização para rebocar o navio para águas alemãs. Em conformidade com a carta do Havariekommando (Centro de controlo em caso de urgência marítima, Alemanha), de 25 de agosto de 2012, foi imposta à Conti a obrigação de elaborar um plano para as operações subsequentes e de indicar os possíveis parceiros contratuais para a execução das medidas correspondentes.

15      Em 9 de setembro de 2012, o navio foi rebocado para Wilhelmshaven (Alemanha).

16      A Conti comprometeu‑se perante as autoridades alemãs, nomeadamente, a garantir a transferência, de forma segura, do navio para o estaleiro de reparação de Mangalia (Roménia) e a garantir o tratamento adequado das substâncias que se encontravam a bordo do navio.

17      Por carta de 30 de novembro de 2012, o Niedersächsisches Umweltministerium (Ministério do Ambiente do Land da Baixa Saxónia, Alemanha) comunicou à Conti que o próprio navio, «e a água de extinção que se encontrava a bordo, bem como os lodos e sucata, [deviam] ser considerados resíduos» e que, por conseguinte, era necessário seguir o procedimento de notificação. Por carta de 3 de dezembro de 2012, a Conti contestou esse entendimento.

18      Por Decisão de 4 de dezembro de 2012, o Gewerbeaufsichtsamt Oldenburg (Inspeção do Trabalho de Oldenburg, Alemanha) (a seguir «Inspeção do Trabalho») obrigou a Conti a dar início ao procedimento de notificação relativamente à sucata a bordo do navio e à água de extinção contaminada com lodos e resíduos de carga. Além disso, a Conti foi proibida de retirar o navio do local antes da conclusão do procedimento de notificação e da apresentação, em língua alemã, de um plano de eliminação dos resíduos passível de ser controlado.

19      Em 21 de dezembro de 2012, a carga ainda intacta foi retirada do navio e foi atestada a navegabilidade do mesmo até uma altura de 6 metros.

20      Foi iniciado e encerrado um procedimento de notificação para a transferência das águas de extinção para a Dinamarca. As operações de bombagem da água de extinção tiveram início em 18 de fevereiro de 2013. Em 26 de fevereiro de 2013, quando foi possível prever a quantidade de lodo de extinção que não podia ser extraída, foram acionados os ulteriores trâmites do procedimento de notificação com a Roménia.

21      A autorização de zarpar, pedida para 4 de março de 2013, foi emitida em 1 de março de 2013. Todavia, antes de o navio poder deixar o porto, 30 contentores com resíduos tiveram de ser descarregados, operação que se prolongou até 7 de março de 2013. Após o encerramento do procedimento de notificação com a Roménia, o navio pôde empreender a sua viagem em 15 de março de 2013. Na Roménia, comprovou‑se que havia a bordo aproximadamente 24 000 toneladas de resíduos.

22      Em 4 de janeiro de 2013, a Conti interpôs recurso administrativo na Inspeção do Trabalho da Decisão de 4 de dezembro de 2012. Alegou, no essencial, que não lhe devia ter sido imposto o procedimento de notificação previsto pelo Regulamento n.o 1013/2006, por não estar abrangida pelo âmbito de aplicação desse regulamento, e precisou que só se tinha submetido a esse procedimento para evitar atrasos. Por carta de 3 de abril de 2013, a Inspeção do Trabalho declarou que o recurso administrativo tinha ficado desprovido de objeto.

23      A Conti interpôs então recurso para o órgão jurisdicional de reenvio com vista à condenação do Land da Baixa Saxónia na reparação dos seus prejuízos, resultantes, em particular, do custo dos procedimentos de notificação que teve de suportar. Esta sociedade entende que é ilegal qualificar de resíduos as substâncias que se encontram no interior do navio e ordenar, em consequência, o início desses procedimentos. Alega, a este respeito, que não podia ser exigido um plano de eliminação dos resíduos ao abrigo do direito nacional, na medida em que o Regulamento n.o 1013/2006 se opõe à aplicação do direito nacional quando os resíduos a bordo de um navio se destinam a ser valorizados ou eliminados noutro Estado‑Membro.

24      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, na medida em que o prejuízo invocado pela Conti inclui os custos da execução do procedimento de notificação, a existência de um direito a indemnização pressupõe que o Regulamento n.o 1013/2006 não seja aplicável aos resíduos da avaria de que foi objeto o navio em causa no processo principal. Com efeito, só houve custos porque a Inspeção do Trabalho considerou necessária a realização de um procedimento de notificação.

25      Esse órgão jurisdicional considera que, na medida em que os resíduos deviam ser transferidos da Alemanha para a Roménia, era necessário um procedimento de notificação, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1013/2006. No entanto, interroga‑se sobre a questão de saber se a disposição derrogatória prevista no artigo 1.o, n.o 3, alínea b), deste regulamento era aplicável e sublinha que, se fosse esse o caso, a transferência dos resíduos em causa no processo principal estaria fora do âmbito de aplicação desse regulamento. A este respeito, o referido órgão jurisdicional considera que não resulta da redação desta última disposição, na qual figura a expressão «resíduos gerados a bordo de […] navios», nem dos documentos preparatórios que deram origem à adoção do Regulamento n.o 1013/2006, nem dos considerandos deste último, nem ainda da economia do referido regulamento, que os resíduos e os resíduos provenientes de avarias devem ser abrangidos por esta disposição derrogatória.

26      Nestas condições, o Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os resíduos provenientes de avarias, sob a forma de sucata e de água de extinção contaminada com lodos e resíduos de carga a bordo de um navio, constituem “resíduos gerados a bordo de veículos, comboios, aeronaves e navios”, na aceção do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006?»

 Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

27      Na sequência das conclusões apresentadas pelo advogado‑geral, o Land da Baixa Saxónia pediu, por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 5 de abril de 2019, que fosse ordenada a reabertura da fase oral do processo.

28      Em apoio do seu pedido, o Land da Baixa Saxónia alega, em substância, que uma questão decisiva para a solução do litígio no processo principal ainda não foi objeto de um verdadeiro debate no Tribunal de Justiça, no caso em apreço, a de saber se, à luz do seu artigo 1.o, n.o 3, alínea b), o Regulamento n.o 1013/2006 é igualmente aplicável quando o navio em causa se encontra em alto‑mar. O Land da Baixa Saxónia considera que uma aplicação desse regulamento ao primeiro trajeto da viagem do Flaminia, efetuado em alto‑mar, suscita a questão de saber se o referido regulamento é compatível com o direito internacional público, e mais especificamente com a Convenção de Basileia. O Land da Baixa Saxónia acrescenta que, na falta de reabertura da fase oral do processo, poderá ser necessário um novo pedido de decisão prejudicial no futuro.

29      A este respeito, importa salientar que, de acordo com o artigo 83.o do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a todo o momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecido, ou quando, após o encerramento dessa fase, uma parte invocar um facto novo que possa ter influência determinante na decisão do Tribunal, ou ainda quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

30      Ora, neste caso, o pedido de reabertura da fase oral do processo, apresentado pelo Land da Baixa Saxónia, não faz referência a nenhum facto novo e tem em vista, em substância, que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre duas questões que não foram suscitadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, relativas, por um lado, à aplicabilidade do Regulamento n.o 1013/2006 quando o navio em causa se encontra em alto‑mar e, por outro, à validade da isenção estabelecida no artigo 1.o, n.o 3, alínea b), desse regulamento à luz da Convenção de Basileia.

31      Além disso, o Tribunal de Justiça dispõe de todos os elementos necessários para decidir e não tem de analisar o presente processo com base num argumento que não foi debatido entre as partes e os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

32      Nestas condições, o Tribunal de Justiça, ouvido o advogado‑geral, considera que não há que ordenar a reabertura da fase oral do processo.

 Quanto à questão prejudicial

33      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006 deve ser interpretado no sentido de que resíduos sob a forma de sucata e de água de extinção contaminada com lodos e resíduos de carga, como os que estão em causa no processo principal, provenientes de uma avaria ocorrida a bordo de um navio, devem ser considerados resíduos gerados a bordo de navios, na aceção desta disposição.

34      A título preliminar, há que precisar que resulta da decisão de reenvio que os resíduos em causa no processo principal, na medida em que são substâncias ou objetos de que o detentor tem a intenção de se desfazer, estão abrangidos pelo conceito de «resíduos», na aceção do artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1013/2006, que remete para a definição que é dada a este conceito no artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12, posteriormente substituído pelo artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98, que contém uma definição, em substância, análoga do referido conceito.

35      Feita esta clarificação preliminar, importa recordar que o artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006 exclui do âmbito de aplicação deste regulamento os resíduos gerados a bordo de veículos, comboios, aeronaves e navios, até que tais resíduos sejam descarregados com vista a serem valorizados ou eliminados.

36      Daqui resulta que, como refere o órgão jurisdicional de reenvio, no caso de os resíduos em causa no processo principal deverem ser considerados abrangidos por esta disposição, o Regulamento n.o 1013/2006 não lhes era aplicável até ao momento em que deixaram o navio com vista a serem valorizados ou eliminados.

37      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para a interpretação de uma disposição de direito da União, há que ter em conta não só os seus termos, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 17 de outubro de 2018, Günter Hartmann Tabakvertrieb, C‑425/17, EU:C:2018:830, n.o 18 e jurisprudência referida).

38      Importa, além disso, salientar que, uma vez que prevê uma derrogação à aplicação das disposições do Regulamento n.o 1013/2006, o artigo 1.o, n.o 3, alínea b), deste regulamento deve, em princípio, ser objeto de interpretação estrita. Dito isto, este princípio da interpretação estrita não implica, no entanto, que os termos utilizados pela referida disposição para definir o alcance da derrogação aí prevista devam ser interpretados de maneira a privá‑la dos seus efeitos (v., por analogia, Acórdão de 11 de setembro de 2014, Fastweb, C‑19/13, EU:C:2014:2194, n.o 40 e jurisprudência referida).

39      No que respeita, em primeiro lugar, à redação do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006, resulta desta disposição que, para estar abrangida por esta exclusão do âmbito de aplicação deste regulamento, os resíduos devem ser gerados a bordo, nomeadamente, de um navio e não ter sido descarregados deste.

40      A este respeito, importa sublinhar, por um lado, que esta disposição não contém qualquer indicação quanto à origem dos resíduos ou à maneira como estes são gerados a bordo do navio em causa.

41      Como salientou o advogado‑geral no n.o 47 das suas conclusões, o legislador da União limitou‑se a precisar, no artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006, o local onde os resíduos devem ser gerados, a saber, a bordo, nomeadamente, de um navio, sem estabelecer exigências especiais quanto às circunstâncias em que esses resíduos são gerados.

42      Por outro lado, resulta do sentido habitual dos termos «até que tais resíduos sejam descarregados», utilizados neste artigo 1.o, n.o 3, alínea b), que, no que respeita a um navio, esta disposição só se aplica enquanto os resíduos em causa não tiverem saído desse navio para serem transferidos com vista a serem valorizados ou eliminados.

43      Resulta, assim, da redação do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006 que a exclusão do âmbito de aplicação deste regulamento, prevista por esta disposição, se aplica a resíduos gerados a bordo de um navio, independentemente das circunstâncias em que tais resíduos são gerados, até ao momento em que esses resíduos saem desse navio com vista a serem valorizados ou eliminados.

44      Em segundo lugar, esta conclusão é corroborada pelo contexto da referida disposição. Com efeito, o artigo 1.o, n.o 3, alínea a), deste regulamento visa a descarga em terra de resíduos gerados pelo funcionamento normal, nomeadamente, dos navios, incluindo águas residuais e produtos residuais, desde que esses resíduos se encontrem abrangidos pelas disposições da Convenção Marpol 73/78, ou por outros instrumentos internacionais vinculativos.

45      Assim, contrariamente à redação do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006, o artigo 1.o, n.o 3, alínea a), deste regulamento visa expressamente os resíduos gerados pelo funcionamento normal, nomeadamente, de um navio, o que confirma o facto de a exclusão prevista na primeira destas disposições, que não contém essa especificação, abranger os resíduos gerados a bordo de um navio, independentemente das circunstâncias em que foram gerados.

46      Em terceiro lugar, a interpretação do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006, que decorre da redação desta disposição, bem como do contexto em que se insere, não é posta em causa pelo objetivo prosseguido por este regulamento.

47      É certo que resulta do artigo 1.o, n.o 1, e do considerando 7 do Regulamento n.o 1013/2006 que este estabelece procedimentos e regimes de controlo relativos a transferências de resíduos de um modo que tome em consideração a necessidade de preservar, proteger e melhorar a qualidade do ambiente e da saúde humana. Em particular, resulta do artigo 3.o, n.o 1, e do artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento, conjugados com o seu considerando 14, que as transferências entre Estados‑Membros de resíduos destinados a eliminação e de resíduos perigosos destinados a valorização devem ser sujeitas a notificação escrita prévia das autoridades competentes, de modo a permitir‑lhes tomarem as medidas necessárias à proteção da saúde humana e do ambiente (Acórdão de 26 de novembro de 2015, Total Waste Recycling, C‑487/14, EU:C:2015:780, n.o 29 e jurisprudência referida).

48      Todavia, este objetivo de proteção do ambiente prosseguido pelo Regulamento n.o 1013/2006 não pode exigir que, apesar da exclusão clara prevista no artigo 1.o, n.o 3, alínea b), deste regulamento, o transporte de resíduos gerados a bordo de um navio de forma fortuita esteja sujeito às regras do referido regulamento e, em especial, em conformidade com o seu artigo 3.o, n.o 1, à obrigação de notificação e de consentimento escrito prévios. Com efeito, tendo em conta o caráter repentino e imprevisível da produção desse tipo de resíduos, seria na prática impossível ou excessivamente difícil que o responsável do navio em causa pudesse conhecer, em tempo útil, as informações necessárias para efeitos de uma aplicação correta dessas regras, que se destinam a garantir uma fiscalização e um controlo eficaz da transferência dos referidos resíduos, na aceção desse mesmo regulamento.

49      Assim, no caso de resíduos gerados por uma avaria, como os que estão em causa no processo principal, o referido responsável não estaria, com toda a probabilidade, em condições de, antes de acostar num porto, conhecer e fornecer todas as informações exigidas pelos formulários que figuram nos Anexos I‑A e I‑B do Regulamento n.o 1013/2006, relativos, nomeadamente, à designação, à composição e à identificação dos resíduos, bem como ao tipo de operação de eliminação ou de valorização prevista.

50      Por outro lado, há que observar, como salientou o advogado‑geral no n.o 65 das suas conclusões, que o facto de aplicar as regras previstas pelo Regulamento n.o 1013/2006 a resíduos gerados a bordo de um navio na sequência de uma avaria em alto‑mar poderia ter por efeito retardar a entrada do navio num porto seguro, o que aumentaria o risco de poluição dos mares e prejudicaria assim o objetivo prosseguido por este regulamento.

51      Importa, contudo, sublinhar que a exclusão prevista no artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006 não é aplicável em caso de abuso por parte dos responsáveis do navio em causa. Tais abusos consistem, nomeadamente, em comportamentos que visam retardar, de forma excessiva e sem justificação, a descarga dos resíduos com vista a serem valorizados ou eliminados. A este respeito, esse atraso deve ser apreciado em função, nomeadamente, da natureza desses resíduos e da importância do perigo que representam para o ambiente e para a saúde humana.

52      No caso em apreço, na medida em que os resíduos em causa no processo principal foram causados pela avaria ocorrida a bordo do Flaminia, quando este navegava em alto‑mar, estes devem ser considerados gerados a bordo de um navio, na aceção do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006. Assim, esta disposição aplica‑se a esses resíduos até ao momento em que estes saem desse navio com vista a serem valorizados ou eliminados.

53      Resulta das considerações precedentes que o artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1013/2006 deve ser interpretado no sentido de que resíduos sob a forma de sucata e de água de extinção contaminada com lodos e resíduos de carga, como os que estão em causa no processo principal, provenientes de uma avaria ocorrida a bordo de um navio, devem ser considerados resíduos gerados a bordo de navios, na aceção desta disposição, que estão, portanto, excluídos do âmbito de aplicação deste regulamento até que sejam descarregados com vista a serem valorizados ou eliminados.

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

O artigo 1.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento (CE) n.o 1013/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativo a transferências de resíduos, deve ser interpretado no sentido de que resíduos sob a forma de sucata e de água de extinção contaminada com lodos e resíduos de carga, como os que estão em causa no processo principal, provenientes de uma avaria ocorrida a bordo de um navio, devem ser considerados resíduos gerados a bordo de navios, na aceção desta disposição, que estão, portanto, excluídos do âmbito de aplicação deste regulamento até que sejam descarregados com vista a serem valorizados ou eliminados.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.