Language of document : ECLI:EU:C:2012:297

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 15 de maio de 2012 (1)

Processo C‑79/11

Procura della Repubblica

contra

Maurizio Giovanardi

Andrea Lastini

Filippo Ricci

Vito Piglionica

Massimiliano Pempori

Gezim Lakja

Elettrifer Srl

Rete Ferroviaria Italiana SpA

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Firenze (Itália)]

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Responsabilidade penal das pessoas coletivas — Direito a indemnização das vítimas de crimes»





1.        Com o presente pedido de decisão prejudicial, o Tribunal de Justiça é chamado a interpretar as disposições da Decisão‑Quadro 2001/220 relativa ao estatuto da vítima em processo penal (2) e, em especial, o artigo 9.° dessa decisão.

2.        A questão consiste em saber se, e em caso afirmativo, em que medida, a vítima de um ato criminal pode exigir uma indemnização pelos danos sofridos em consequência desse ato, não só à pessoa ou pessoas singulares que perpetraram o ato, mas também a uma pessoa coletiva que, segundo a ordem jurídica nacional do Estado‑Membro em questão, é considerada responsável pela sua prática.

 Quadro jurídico

 Legislação da União Europeia

3.        Na sua reunião especial realizada em Tampere, em 15 e 16 de outubro de 1999, sobre a criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça na União Europeia, o Conselho Europeu deliberou, inter alia, a elaboração de normas mínimas sobre a proteção das vítimas da criminalidade. Essas normas deviam incluir os direitos das vítimas a obter indemnização pelos danos emergentes de um ato criminal (3).

4.        A decisão‑quadro foi adotada para aplicar essa deliberação (4).

5.        Os quarto, quinto e sétimo considerandos da decisão‑quadro referem:

«(4)      Os Estados‑Membros devem aproximar as suas disposições legislativas e regulamentares na medida do necessário para realizar o objetivo de garantir um nível elevado de proteção às vítimas do crime, independentemente do Estado‑Membro em que se encontrem.

(5)      As necessidades da vítima devem ser consideradas e tratadas de forma abrangente e articulada, evitando soluções parcelares ou incoerentes que possam dar lugar a uma vitimização secundária.

[…]

(7)      As medidas de apoio às vítimas do crime, nomeadamente as disposições em matéria de indemnização e mediação, não dizem respeito a soluções próprias do processo civil.»

6.        O artigo 1.° contém as seguintes definições:

«a) ‘Vítima’: a pessoa singular que sofreu um dano […] diretamente causad[o] por ações ou omissões que infrinjam a legislação penal de um Estado‑Membro;

[…]

c) ‘Processo penal’: o processo penal na aceção da legislação nacional aplicável».

Não há uma definição do termo «autor da infração».

7.        O artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro (intitulado «Direito a indemnização no âmbito do processo penal») refere:

«Cada Estado‑Membro assegura às vítimas de infração penal o direito de obter uma decisão, dentro de um prazo razoável, sobre a indemnização pelo autor da infração no âmbito do processo penal, salvo se a lei nacional prever que, em relação a determinados casos, a indemnização será efetuada noutro âmbito.»

 Legislação nacional

8.        O artigo 185.° do Codice Penale (Código Penal italiano) estipula que as pessoas que cometeram uma infração estão obrigadas a ressarcir a vítima por todos os danos que lhe tenham causado com os seus atos. Esses atos podem igualmente constituir uma obrigação de indemnização a pessoa ou pessoas (singulares ou coletivas) responsáveis pelo comportamento do autor da infração.

9.        O artigo 74.° do Codice di procedura penale (Código de Processo Penal italiano) confere às vítimas de uma infração penal o direito de se constituírem parte civil no processo crime contra os arguidos. Se o seu pedido for julgado procedente nesse processo, a vítima poderá obter do arguido uma indemnização como a que obteria se tivesse intentado nos tribunais civis uma ação separada contra o arguido, tendo por objeto os mesmos danos, mas (na maioria dos casos) num momento anterior.

10.      Até à adoção do Decreto Legislativo n.° 231/2001 (a seguir «Decreto Legislativo»), o direito italiano seguia a máxima societas delinquere non potest (5). Embora as pessoas coletivas pudessem ser indiretamente responsabilizadas pelos atos ilícitos das pessoas pelas quais eram responsáveis numa ação civil, não podiam, enquanto tal, ser objeto de um processo pela prática de uma infração penal segundo o direito italiano.

11.      O artigo 1.° desse decreto atribui às pessoas coletivas responsabilidade, formalmente qualificada como responsabilidade «administrativa» por atos ilícitos. A disposição alarga a responsabilidade às sociedades com personalidade jurídica e às associações, incluindo as que não tenham personalidade jurídica. Não se aplica, porém, ao Estado nem às autarquias locais, aos organismos públicos não económicos nem aos órgãos com funções constitucionais (6).

12.      O capítulo I do Decreto Legislativo está dividido em três secções. A primeira, de caráter geral, estabelece os critérios que devem ser satisfeitos para que uma pessoa coletiva incorra em responsabilidade por parte do decreto. A terceira secção especifica (por referência às disposições do Código Criminal) as infrações específicas pelas quais uma pessoa coletiva pode ser declarada responsável.

13.      No que diz respeito aos critérios aplicáveis, o artigo 5.° do Decreto Legislativo especifica as pessoas singulares que, enquanto autores de um crime, podem fazer incorrer a pessoa coletiva em responsabilidade. Trata‑se essencialmente, a) das pessoas que exercem funções de administração ou de direção e b) das pessoas sujeitas ao controlo das pessoas que exercem essas funções. Os artigos 6.° e 7.° especificam ainda as circunstâncias em que uma pessoa coletiva pode incorrer em responsabilidade. Quando a infração em causa foi cometida por um indivíduo que tem funções executivas ou de direção, presume‑se a responsabilidade da pessoa coletiva. A presunção só pode ser elidida se essa pessoa coletiva puder demonstrar que tinha adotado e aplicado de forma eficaz um sistema organizativo e diretivo suscetível de impedir que as infrações em questão fossem cometidas ou que o indivíduo em questão tinha evitado ou utilizado de forma abusiva esse sistema. No que diz respeito aos indivíduos que não têm funções executivas ou de direção, não se presume a responsabilidade da pessoa coletiva. Pelo contrário, é necessário demonstrar que a prática de uma infração foi permitida em consequência da não aplicação das necessárias normas de direção ou de supervisão.

14.      Por força do artigo 25‑septies do Decreto Legislativo, as infrações enumeradas na secção especial incluem o homicídio por negligência e a ofensa à integridade física de que resultem lesões graves.

15.      Importa referir quatro outras disposições do Decreto Legislativo. O artigo 8.° prevê que a responsabilidade de uma pessoa coletiva relativa a uma infração pode ser autónoma, ou seja, pode subsistir responsabilidade mesmo que a pessoa singular que cometeu a infração em causa não possa ser identificada ou constituída arguida. O artigo 34.° refere que as regras processuais que se aplicam a uma pessoa coletiva constituída arguida segundo as disposições acima mencionadas são as previstas no Decreto Legislativo e, sendo caso disso, as previstas no Código de Processo Penal e no Decreto Legislativo n.° 271/1989 (7). O artigo 35.° prevê ainda que as regras processuais aplicáveis a uma pessoa singular acusada de um crime devem ser aplicadas a uma pessoa coletiva que foi constituída arguida nos termos das disposições acima mencionadas, tanto quanto seja aplicável. Por força do artigo 36.°, o tribunal competente para julgar as pessoas coletivas constituídas arguidas é o tribunal penal competente para conhecer das infrações cometidas por pessoas singulares.

16.      O artigo 74.° do Código de Processo Penal prevê que a vítima de uma infração (ou os seus sucessores) pode constituir‑se parte civil no processo penal instaurado contra, nomeadamente, a pessoa acusada de ter cometido a infração, com vista a obter a indemnização pelos danos sofridos em consequência da infração.

17.      O artigo 83.° do Código de Processo Penal refere:

«O responsável civil pelos atos de um arguido pode ser citado em processo penal a pedido da [vítima desses atos] […] O arguido pode ser citado como pessoa civilmente responsável por facto praticado pelos co‑arguidos, no caso de ser absolvido ou de sobre ele recair despacho de não pronúncia.»

 Factos, tramitação e questão prejudicial

18.      Em 2 de outubro de 2008 ocorreu um acidente num nó ferroviário nas proximidades de Florença. O acidente ocorreu alegadamente em consequência de erro humano (constitutivo de negligência nos termos dos artigos 41.°, 113.° e 589.°(II) e (IV) do Código Penal italiano) imputado a M. Giovanardi e outros quatro indivíduos (8). Foi deduzida acusação contra estes indivíduos pelo Pubblico Ministero (Ministério Público) junto do Ufficio del Giudice delle indagini preliminari (Gabinete do Juiz Instrutor) no Tribunale di Firenze (Tribunal da Comarca de Florença) em 28 de julho de 2010. Os indivíduos em questão eram funcionários da Rete Ferroviaria Italiana (a seguir «RFI»), a empresa pública que explora os caminhos de ferro. Em consequência do acidente, Alessandro Marrai morreu, Alfio Bardelli sofreu a amputação de uma perna e Andrea Tomberli ficou gravemente ferido. Todas as vítimas eram também funcionários da RFI.

19.      O ato de acusação dos indivíduos em causa deduz igualmente acusação contra duas pessoas coletivas chamadas a responder pelo acidente, a saber, a Elettri Fer s.r.l (a seguir «Elettri Fer») e a RFI. O referido despacho de acusação baseia‑se, inter alia, no artigo 25‑septies do Decreto Legislativo.

20.      No processo no órgão jurisdicional de reenvio, Alfio Bardelli e os representantes do familiar de Alessandro Marrai (a seguir «requerentes no processo principal») apresentaram pedidos de constituição de parte civil nos termos do artigo 74.° e seguintes do Código de Processo Penal. Pretendem obter o ressarcimento de todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais que sofreram em consequência do acidente e solicitam ao Juiz que admita a constituição como partes civis, não só contra os arguidos que cometeram alegadamente as infrações penais em causa, mas também contra a Elettri Fer e a RFI.

21.      O órgão jurisdicional nacional é chamado a decidir sobre a oposição deduzida contra esse pedido com o fundamento de que o direito italiano não permite às vítimas de crimes, nem aos seus representantes, deduzir um pedido de indemnização civil diretamente contra pessoas coletivas no âmbito do processo penal.

22.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que a questão suscitada pela oposição é extremamente discutida, mas continua, na sua opinião, até à presente data, por resolver. Observa que, nos termos do direito nacional, uma infração cometida por uma pessoa coletiva deve ser qualificada como indireta e subsidiária e, portanto, não pode ser considerada causal relativamente à prática das infrações em questão. Depois de ter examinado os argumentos a favor e contra a oposição, conclui que, mesmo não estando afastadas todas as dúvidas, a interpretação correta do direito nacional sustenta os argumentos das partes que apresentaram a oposição.

23.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A legislação italiana em matéria de responsabilidade administrativa das entidades/pessoas coletivas, constante do [Decreto Legislativo] e posteriores alterações, ao não prever «expressamente» a possibilidade de as mesmas serem chamadas a responder pelos danos causados às vítimas de infrações penais no processo penal, está em conformidade com as normas comunitárias em matéria de proteção das vítimas de crimes em processo penal?»

24.      Os representantes do familiar de A. Marrai, os Governos alemão, italiano, neerlandês e austríaco e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Na audiência que teve lugar em 15 de março de 2012, apresentaram alegações orais os representantes do familiar de A. Marrai, os Governos alemão e italiano e a Comissão.

 Análise

 Observações preliminares

 Competência do Tribunal de Justiça

25.      A decisão‑quadro foi adotada com base nos artigos 31.° e 34.°, n.° 2, alínea b), UE. Essas disposições faziam parte do Título VI do Tratado UE, intitulado «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal». O artigo 35.°, n.° 1, UE previa que o Tribunal de Justiça era competente para decidir a título prejudicial sobre, inter alia, a interpretação das decisões‑quadro adotadas ao abrigo desse Título, sempre sob reserva das condições constantes nesse artigo. Essas condições incluíam a exigência, nos termos do artigo 35.°, n.° 2, UE, de que os Estados‑Membros declarassem primeiro que aceitavam a competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial para os efeitos do número anterior. A República Italiana fê‑lo por declaração com efeitos a partir de 1 de maio de 1999 (9).

26.      Já depois da adoção da decisão‑quadro, entrou em vigor o Tratado de Lisboa (10).

27.      Como explicou o Tribunal de Justiça no acórdão de 21 de dezembro de 2011, X (11), resulta dos artigos 9.° e 10.°, n.° 1, do Protocolo n.° 36 relativo às disposições transitórias, anexo ao Tratado sobre o Funcionamento da UE, que os efeitos jurídicos da decisão‑quadro são preservados, não obstante a entrada em vigor desse Tratado e que as competências conferidas ao Tribunal de Justiça em matéria de decisões prejudiciais permanecem inalteradas (12).

28.      Assim sendo, o Tribunal de Justiça é competente para decidir a título prejudicial.

 Diretiva 2004/80

29.      Embora o órgão jurisdicional de reenvio não o refira expressamente na questão prejudicial, indica no despacho de reenvio que pretende ser esclarecido não só quanto à interpretação da decisão‑quadro, mas também quanto à aplicabilidade da Diretiva 2004/80 (13) às circunstâncias acima descritas.

30.      Como resulta claramente do artigo 1.° dessa diretiva, esta só se aplica nos casos em que foi cometido um «crime doloso violento» e em que existe um elemento transfronteiriço. No presente processo não foi sugerido que, na medida em que foram cometidas infrações penais, estas tenham sido cometidas dolosamente. Também não existe um elemento transfronteiriço. Assim sendo, a diretiva não pode ser aplicada nas presentes circunstâncias (14) e não a tomarei seguidamente em conta.

  Questão prejudicial

31.      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende obter esclarecimentos no que respeita à compatibilidade de determinadas normas nacionais com o artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro. Não há dúvida de que o direito nacional permite à vítima de uma infração penal cometida por pessoa singular reclamar uma indemnização a essa pessoa apresentando um pedido para esse fim, enquanto parte civil no processo penal (15). No entanto, quando a infração foi cometida por uma pessoa coletiva, o órgão jurisdicional de reenvio entende que a dedução desse pedido é inadmissível e que a vítima deve intentar uma ação civil específica para esse efeito (16). O órgão jurisdicional de reenvio observa que, para a interposição dessa ação civil, a vítima tem duas opções. Pode esperar que a condenação, se for o caso, das pessoas que praticaram a infração em causa adquira força de caso julgado, o que pode demorar anos (pelo menos se for interposto um recurso da decisão de condenação ou da sentença), antes de intentar uma ação nos tribunais civis, a qual, por sua vez, também poderá demorar anos. Alternativamente, poderá intentar imediatamente uma ação civil paralela, mas mesmo que o faça, os prazos são «muito longos» e as despesas são muito mais significativas.

32.      Na medida em que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a compatibilidade de uma medida nacional com o direito da União, o Tribunal de Justiça não é competente para a sua apreciação. Pode, todavia, fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação do direito da União que lhe possam permitir apreciar essa compatibilidade com vista à resolução do litígio que lhe foi submetido (17). Como observa corretamente a Comissão, a questão pode ser reformulada para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio. No essencial, trata‑se de saber se o artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro permite estabelecer uma distinção entre pessoas singulares e coletivas que cometeram uma infração, no que diz respeito ao direito da vítima a obter ressarcimento pelos danos causados em consequência dessa infração, no processo criminal instaurado contra essas pessoas.

33.      Nas suas observações, os Governos alemão, neerlandês e austríaco foram unânimes em sublinhar o poder de apreciação que a decisão‑quadro confere aos Estados‑Membros na sua aplicação. O Tribunal de Justiça já reconheceu efetivamente o amplo poder de apreciação que existe a este respeito (18). Este aspeto torna‑se particularmente pertinente no caso de um resultado poder ser contrário às normas constitucionais do Estado‑Membro em questão, ao passo que outra forma de resolução poderá não o ser (19). Ao mesmo tempo, porém, não se pode esquecer que a decisão‑quadro se destinou a impor aos Estados‑Membros obrigações no que diz respeito aos objetivos que pretende alcançar. Daí resulta que o Tribunal de Justiça deve atuar neste domínio com prudência. Mas isto não significa que se deva abster de qualquer intervenção.

34.      Antes de abordar a questão da interpretação a dar ao artigo 9.°, n.° 1, é útil considerar brevemente o que essa disposição não faz. Não impõe aos Estados‑Membros a obrigação de alterar o seu direito penal de modo a introduzir ou a alargar o seu conceito de responsabilidade penal das pessoas coletivas (20). Por outras palavras, não obriga um Estado‑Membro a criar uma responsabilidade onde esta não exista. Assim, um Estado‑Membro, cuja ordem jurídica prevê que só as pessoas singulares podem ser condenadas pela prática de um crime, não viola as disposições da decisão‑quadro se não prever que a responsabilidade seja extensiva às pessoas coletivas que pudessem ser consideradas correlativamente responsáveis por essa infração, e a possibilidade de reclamar uma indemnização a essas pessoas coletivas por força do artigo 9.°, n.° 1. A vítima que pretenda obter uma indemnização em consequência de um ato ilícito pelo qual a pessoa coletiva em questão seja alegadamente responsável nesse Estado‑Membro terá de intentar uma ação civil, com todas as consequências que daí decorram em direito.

35.      No entanto, isso não é o que se verifica no caso em apreço. Da conjugação do despacho de reenvio, das observações escritas submetidas ao Tribunal de Justiça e das alegações orais apresentadas na audiência, parece‑me que, ao abrigo do direito italiano:

¾        as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas pela prática de um ato ilícito por força das disposições do Decreto Legislativo;

¾        o ato ilícito pelo qual as pessoas coletivas podem ser pronunciadas é qualificado como uma infração administrativa: essa qualificação foi adotada para evitar possíveis problemas, nos termos da Constituição Italiana, se um ato cometido por uma pessoa coletiva fosse especificamente qualificado como «penal»;

¾        os critérios estabelecidos na secção geral do Decreto Legislativo para a definição do ato ilícito são estabelecidos por referência expressa às disposições do Código Penal (21);

¾        um ato ilícito cometido por uma pessoa coletiva não deve ser considerado o mesmo ato que um ato equivalente cometido pela pessoa singular; essa responsabilidade é qualificada como «indireta e subsidiária»; para que haja lugar a responsabilidade por parte de uma pessoa coletiva é necessário demonstrar que esta é responsável pelas ações dos seus quadros superiores e/ou funcionários;

¾        daí resulta que uma pessoa coletiva não tem de ser considerada o «perpetrador» direto da infração cometida por uma pessoa singular;

¾        a responsabilidade por parte de uma pessoa coletiva tem, não obstante, como pressuposto fundamental, o facto de um ato ilícito ter sido cometido por uma pessoa singular (22); por outras palavras, sem a prática desse ato (infração penal), não poderia haver qualquer responsabilidade por parte da pessoa coletiva em questão;

¾        o processo contra uma pessoa coletiva é intentado nos tribunais penais; está sujeito às disposições do Código de Processo Penal e é apenso ao processo penal contra a(s) pessoa(s) singular(es) que perpetraram alegadamente o ato ilícito em questão (23).

36.      Embora o direito italiano não permita à vítima reclamar indemnização a uma pessoa coletiva no processo penal, constituindo‑se parte civil nesse processo, nos termos do artigo 74.° do Código de Processo Penal, parece que, na prática, o mesmo resultado pode ser alcançado por outra via. Num acórdão proferido em outubro de 2010, a 6.ª Secção Penal da Corte Suprema di Cassazione decidiu: «[...] nos termos do processo previsto no Decreto Legislativo, a situação de uma vítima está, em todo o caso, garantida, uma vez que esta pode, não só tomar medidas imediatas para proteger os seus interesses intentando uma ação civil, mas também requerer a citação da pessoa coletiva, com fundamento na sua responsabilidade civil, nos termos do artigo 83.° do Código de Processo Penal, no processo destinado a estabelecer a responsabilidade penal do perpetrador de um ato ilícito cometido no interesse ou em benefício da pessoa coletiva, e pode — em geral — fazê‑lo no mesmo processo que foi proposto para determinar a responsabilidade da pessoa coletiva (24).»

37.      Incumbe naturalmente ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a declaração anterior repercute fielmente a situação nos termos do direito nacional.

38.      As regras que descrevi acima são compatíveis com o artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro?

39.      O artigo 9.°, n.° 1, protege as vítimas de crimes, obrigando os Estados‑Membros a adotar medidas para a indemnização dessas vítimas, dentro de um prazo razoável e por meio do processo penal. Como salienta a Comissão, a definição nestes termos das modalidades de ressarcimento permite às vítimas beneficiar, em princípio, de um processo simultaneamente mais rápido e menos dispendioso do que no caso de serem obrigadas a exercer os seus direitos por meio da instauração de um processo civil separado.

40.      A disposição em questão divide‑se em duas partes. A primeira parte estabelece a regra geral de que os Estados‑Membros estão obrigados a assegurar às vítimas de infração penal o direito de obter, dentro de um prazo razoável, uma decisão sobre a indemnização pelo autor da infração no âmbito do processo penal. A segunda parte é uma exceção a essa regra geral. Aplica‑se quando, «em relação a determinados casos», a lei nacional prever que a indemnização será efetuada noutro âmbito.

41.      Examinarei a regra geral estabelecida na primeira parte do artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro antes de me debruçar sobre a exceção prevista na segunda parte.

 Regra geral

42.      Quais são os pressupostos fundamentais da obrigação imposta aos Estados‑Membros pelo artigo 9.°, n.° 1, de assegurar que seja tomada, dentro de um prazo razoável, uma decisão, sobre a indemnização da vítima pelos danos sofridos em consequência de uma infração penal? Em primeiro lugar, é necessário que tenha sido cometido um crime. Em segundo lugar, a ordem jurídica do Estado‑Membro em questão, deve permitir instaurar um processo penal contra o arguido por esse ato. Em terceiro lugar, deve haver um processo penal.

43.      Se considerarmos um exemplo simples, a aplicação desses pressupostos é clara. Suponhamos que, num determinado Estado‑Membro, a condução imprudente de «X» no exercício da sua atividade profissional ao serviço de ‘Y’ (a pessoa coletiva) deu origem a um acidente que causou danos a uma ou mais vítimas. Esse Estado‑Membro aceita o princípio da responsabilidade das pessoas coletivas por infrações penais e instaura processos normais nos tribunais penais contra as pessoas coletivas que alegadamente praticaram esses atos. Suponhamos ainda que o conceito de «autor da infração» contido no artigo 9.°, n.° 1, pode ser aplicado às pessoas coletivas (voltarei a este ponto mais adiante (25)). Em consequência desse acidente, é intentada uma ação contra X (a pessoa singular diretamente responsável pelo acidente) e Y (a pessoa coletiva indiretamente responsável pelo acidente) no tribunal penal. São acusados de infrações estreitamente ligados. Resulta claramente deste exemplo que a decisão‑quadro exige que um Estado‑Membro, cuja ordem jurídica ainda não prevê a possibilidade de as vítimas reclamarem e (se for caso disso) obterem uma indemnização através do processo penal, altere o direito nacional de modo a cumprir o disposto no artigo 9.°, n.° 1.

44.      Todavia, o caso em apreço não é tão simples.

45.      Partindo de cada um dos pressupostos descritos no n.° 42 supra, parece‑me, em primeiro lugar, que a decisão‑quadro não se refere tanto à qualificação técnica da «infração» nos termos do direito nacional, como à sua natureza fundamental. A decisão‑quadro, mais do que a forma, visa a substância. Embora observando o amplo poder de apreciação que é conferido às autoridades nacionais quanto às modalidades concretas de prossecução dos objetivos subjacentes à decisão‑quadro, o Tribunal de Justiça também já declarou que é necessário fazer uma interpretação teleológica, sob pena de privar a decisão do seu efeito útil (26).

46.      Assim, não pode ter pertinência, para efeitos de determinar a conformidade com o artigo 9.°, n.° 1, o facto de a ordem jurídica qualificar a infração em causa como «indireta e subsidiária». A responsabilidade penal das pessoas coletivas não pode, por natureza, ser direta ou primária. Por uma questão de exaustividade, gostaria de acrescentar que não é necessário que a ação penal exercida contra as pessoas singulares e contra as pessoas coletivas tenha por objeto o mesmo ato. O artigo 9.°, n.° 1, também não exige, para que as pessoas coletivas sejam abrangidas pelo seu âmbito de aplicação, que a ação penal seja primeiro exercida contra uma ou mais pessoas singulares, pela infração em causa.

47.      No que diz respeito à qualificação ao abrigo do direito italiano do ilícito cometido por uma pessoa coletiva como ilícito «administrativo» (27), parece‑me que se deve, não obstante, aplicar o mesmo princípio de interpretação. Resulta claramente do quarto considerando da decisão‑quadro que o seu objetivo é garantir um «nível elevado de proteção» às vítimas do crime. Por força do artigo 9.°, n.° 1, um dos meios através dos quais se pretende alcançar esse objetivo é a disponibilização da indemnização a essas vítimas através do processo penal instaurado pelo ato ilícito que deu origem aos danos em causa. Reconheço, sem dificuldade, que a adoção da decisão‑quadro não obrigou os Estados‑Membros a introduzir no seu direito nacional a noção de responsabilidade penal das pessoas coletivas, quando esta não fazia já anteriormente parte da sua ordem jurídica (28). Porém, parece‑me que um Estado‑Membro que aceita efetivamente esse conceito como parte da respetiva ordem jurídica não pode, posteriormente, ser dispensado da obrigação de conceder proteção em conformidade com o artigo 9.°, n.° 1, com fundamentos que são essencialmente formais.

48.      Neste caso, a ordem jurídica do Estado‑Membro em questão prevê a responsabilidade por atos ilícitos das pessoas coletivas, segundo modalidades que preveem (1) que os critérios para a definição do ato ilícito são estabelecidos por referência às disposições do Código Penal (2) que a responsabilidade por esse ato tem como pressuposto fundamental o facto de ter sido cometido um ato ilícito por uma pessoa singular e (3) que o processo contra a pessoa coletiva é instaurado no tribunal penal, está sujeito às disposições do Código de Processo Penal e, em circunstâncias normais, é apenso ao processo contra a(s) pessoa(s) singular(es) que alegadamente perpetraram o ato ilícito em questão. O artigo 9.°, n.° 1, deve ser interpretado de modo teleológico fazendo prevalecer a substância sobre a forma. Por conseguinte, o facto de o direito nacional qualificar a responsabilidade das pessoas coletivas por esses atos ilícitos como «administrativa» não é suficiente, na minha opinião, para excluir a aplicação desse artigo e, portanto, a obrigação de conceder proteção à vítima desses atos.

49.      Em segundo lugar, o ato em questão deve dar origem a um processo que é instaurado contra um ator da infração. Embora o artigo 1.°, alínea a), da decisão‑quadro defina o termo «vítima», não contém uma definição correspondente da expressão «autor da infração» (29). Nestas circunstâncias, parece‑me que a expressão deve ser entendida no seu sentido natural e habitual. Trata‑se de um termo amplo, utilizado num contexto em que, se o legislador tivesse pretendido expressar‑se em sentido estrito, o teria feito. Por conseguinte, não tenho qualquer dificuldade em concluir que a expressão «autor da infração» deve ser interpretada no sentido de incluir não só pessoas singulares, mas também pessoas coletivas acusadas da prática de atos ilícitos.

50.      Em terceiro lugar, deve haver um processo penal. Essa exigência é óbvia; sem processo penal, o artigo 9.°, n.° 1, não teria sentido. O artigo 1.°, alínea c), da decisão‑quadro prevê que esse conceito deve ser entendido por referência ao direito nacional aplicável. Não existe, por outras palavras, um conceito europeu harmonizado do que o termo «processo penal» é suposto abranger. Uma vez que, no caso em apreço, parece não haver qualquer dúvida de que o processo em questão é um processo penal — o que foi confirmado pelo Governo italiano na audiência — (30), não aprofundarei este elemento.

51.      Se estas condições estiverem preenchidas, o Estado‑Membro em questão será obrigado a assegurar a existência no direito nacional de disposições que permitam à vítima de um ato ilícito participar no processo penal de modo a poder, no âmbito desse processo, deduzir um pedido de indemnização adequada contra o(s) arguido(s). As pessoas coletivas também estão abrangidas.

52.      No n.° 36, supra, referi um acórdão da Corte Suprema di Cassazione para o qual o Governo italiano chamou a atenção do Tribunal de Justiça nas suas observações e que foi longamente discutido na audiência. Segundo esse acórdão, as vítimas de atos ilícitos com a participação de pessoas coletivas não podem, efetivamente, recorrer ao artigo 74.° do Código de Processo Penal para se constituírem parte civil num processo instaurado contra pessoas coletivas. No entanto, são, de facto, protegidas, uma vez que (1) podem intentar uma ação civil para reclamar o seu direito de ressarcimento contra essas pessoas e (2) podem invocar o artigo 83.° desse Código para reclamar o seu direito de ressarcimento no tribunal penal por outra via. A primeira destas — isto é, a possibilidade de intentar uma ação civil — não é pertinente para a presente discussão. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio indicou que os prazos envolvidos nessa via podem ser longos (31). Se for assim, a proteção que a decisão‑quadro pretende conceder não será alcançada. Em contrapartida, a possibilidade de invocar o artigo 83.° do Código parece‑me ser potencialmente pertinente. Se essa é, de facto, uma via possível para as vítimas desses atos ilícitos, o facto de o direito italiano poder obstar a que estas se constituam parte civil nesse processo não afeta a questão de saber se a legislação nacional preenche as condições do artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

53.      As partes expressaram opiniões diferentes quanto à aplicabilidade desse acórdão ao processo principal. A resposta a essa questão incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio.

54.      À luz de todas as considerações anteriores, entendo que a regra geral estabelecida na primeira parte do artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro deve ser interpretada no sentido de que quando um Estado‑Membro prevê, na respetiva ordem jurídica nacional, a possibilidade de instaurar um processo por ato ilícito contra pessoas coletivas, o facto de essa ordem jurídica qualificar a responsabilidade por esse ato como «indireta e subsidiária» e/ou «administrativa» não dispensa o Estado‑Membro em causa da obrigação de aplicar esse artigo relativamente às pessoas coletivas quando (1) os critérios para a definição do ato ilícito são estabelecidos por referência às disposições do Código Penal (2) a responsabilidade por esse ato assenta essencialmente no facto de ter sido cometido um ato ilícito por uma pessoa singular e (3) o processo contra a pessoa coletiva é instaurado no tribunal penal, está sujeito às disposições do Código de Processo Penal e, em circunstâncias normais, é apenso ao processo contra a(s) pessoa(s) singular(es) que alegadamente perpetraram o ato ilícito em questão.

 Exceção

55.      A regra geral formulada no artigo 9.°, n.° 1, não se aplica «se a lei nacional prever que, em relação a determinados casos, a indemnização será efetuada noutro âmbito».

56.      Os Governos alemão e neerlandês alegam que a exceção se aplica ao processo principal. Quando as vítimas possam apresentar os seus pedidos contra as pessoas coletivas que alegadamente praticaram as infrações nos tribunais civis, os Estados‑Membros não estão obrigados a assegurar que esses pedidos sejam apresentados no âmbito do processo penal intentado contra essas pessoas.

57.      Não concordo.

58.      Como derrogação à regra geral estabelecida na primeira parte do artigo 9.°, n.° 1, a exceção deve ser interpretada de forma estrita (32). Se se interpretasse a exceção de modo a excluir da regra geral todos os casos que envolvam uma categoria específica de autor da infração, isto é, as pessoas coletivas, correr‑se‑ia o risco de transformar a exceção na regra. Esse resultado não pode ter sido desejado pelo legislador. A exceção foi formulada para se aplicar «em relação a determinados casos». A esse respeito, refere os trabalhos preparatórios da decisão‑quadro que mencionam uma discussão que teve lugar numa reunião do grupo de trabalho competente do Conselho na qual era objeto de apreciação o texto do projeto da decisão‑quadro (33). A ata dessa reunião refere que as delegações sueca, austríaca e alemã tinham proposto a eliminação das palavras em questão (34). A ata refere ainda que a Presidência (francesa) tinha salientado que «sem [essa] frase, o primeiro parágrafo não teria sentido».

59.      Isto não significa que nunca possa haver circunstâncias em que a exceção se aplique. A esse respeito, concordo com a Comissão que deve haver circunstâncias objetivas que justifiquem esse resultado. Estas podem incluir casos em que a regra geral não pode ser aplicada por motivos práticos, por exemplo, quando os danos sofridos em consequência da infração não podem ser provados, ou não podem ser provados com suficiente precisão para permitir a formulação de um pedido de ressarcimento enquanto não for encerrado o processo penal instaurado contra o autor da infração. A exclusão das pessoas coletivas, como uma categoria, do âmbito de aplicação do artigo 9.°, n.° 1, não pode, todavia, ser objetivamente justificada.

60.      Concluo, portanto, que a exceção à regra geral prevista na segunda parte do artigo 9.°, n.° 1, não pode ser interpretada de modo a excluir da regra geral estabelecida na primeira parte desse artigo todos os casos que envolvam uma categoria específica de autor da infração, como as pessoas coletivas.

 Observações finais

 Aplicação dos princípios acima referidos

61.      No processo principal, incumbirá ao órgão jurisdicional de reenvio realizar as seguintes diligências. Em primeiro lugar, deve determinar se foi cometido um crime na aceção do artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro pelas pessoas coletivas em questão. Para essa determinação, deve ter em conta não só as regras nacionais relativas à natureza de um ato ilícito, mas também os princípios descritos no n.° 46, supra. Em segundo lugar, deve verificar se essas pessoas podem ser qualificadas autores da infração para os efeitos dessa disposição. Na apreciação dessa questão, deve ter em conta as observações feitas no n.° 48, supra. Em terceiro lugar, deve avaliar se o processo em questão é um processo penal nos termos desse artigo. Para esse efeito, deve ter em conta as considerações referidas no n.° 48, supra. Por último, deve determinar se existem circunstâncias excecionais que justifiquem a aplicação da exceção prevista na segunda parte do artigo 9.°, n.° 1. Se, depois disto, concluir que a regra geral se aplica e que a exceção não se aplica, deve prosseguir verificando se o direito nacional respeita, de facto, essa regra geral.

62.      A esse respeito, faço as seguintes observações gerais.

63.      O Tribunal de Justiça já decidiu que o princípio de que o direito nacional deve ser interpretado em conformidade com o direito da União se impõe relativamente às decisões‑quadro adotadas no âmbito do título VI do Tratado da União Europeia. Ao aplicar o direito nacional, o órgão jurisdicional de reenvio chamado a proceder à sua interpretação é obrigado a fazê‑lo, na medida do possível, à luz do teor e da finalidade da decisão‑quadro, a fim de atingir o resultado visado por esta última e de se conformar, assim, com as disposições do Tratado (35).

64.      Ao mesmo tempo, porém, o Tribunal de Justiça já declarou, por diversas vezes, que a obrigação de o órgão jurisdicional de reenvio interpretar o direito nacional em conformidade com o direito da União está limitada pelos princípios gerais de direito, nomeadamente os da segurança jurídica e da não retroatividade. Por outras palavras, o princípio não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional. No entanto, o princípio exige que o órgão jurisdicional de reenvio tome em consideração, sendo caso disso, o direito nacional no seu todo para apreciar em que medida este pode ser objeto de uma interpretação que não conduza a um resultado contrário ao pretendido pela decisão‑quadro (36).

65.      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio observa que a interpretação do direito nacional da forma proposta pelos requerentes no processo principal poderia violar a regra de direito nacional que obsta à aplicação analógica do Código Penal in malam partem.

66.       Não é só o direito nacional que proíbe a aplicação das disposições de direito penal dessa forma. Já em 1963, a Comissão Europeia dos Direitos do Homem decidiu que uma tal aplicação violaria o artigo 7.°, n.° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos termos do qual ninguém pode ser condenado por uma ação ou uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infração, segundo o direito nacional ou internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida (37). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem adotou uma abordagem semelhante na sua jurisprudência (38).

67.      O artigo 7.°, n.° 1, da Convenção é formulado em termos idênticos aos da parte relevante do artigo 49.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A partir da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 1 de dezembro de 2009, a Carta tem força de direito primário (39). Por força do artigo 52.°, n.° 3, da Carta, os direitos estabelecidos nos termos desta correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção devem ter sentido e âmbito iguais aos conferidos por essa convenção.

68.      A aplicação por analogia das disposições do direito penal nacional in malam partem podem ou não violar o direito nacional (questão sobre a qual não me pronuncio). Resta, todavia, a questão da aplicação desse princípio no contexto do artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

69.      O artigo 9.°, n.° 1, não obriga de nenhuma forma um Estado‑Membro a alterar os aspetos materiais do direito penal nacional (40). Essa disposição também não afeta o montante da indemnização a atribuir à vítima pelas perdas ou danos sofridos em consequência da prática de um ato ilícito — nada na decisão‑quadro prevê que o montante em questão deva ser calculado de forma diferente consoante se trate de processo penal ou de processo civil. Ao procurar proteger os interesses das vítimas de crimes, o que a decisão faz é antecipar o momento em que a indemnização em questão poderá ser paga. Trata‑se de uma questão processual, que não afeta, de modo algum, a responsabilidade penal de quem responde pelos danos. Assim sendo, não vislumbro qualquer fundamento que justifique a aplicação do princípio in malam partem à interpretação do artigo 9.°, n.° 1, da decisão‑quadro que proponho nas presentes conclusões.

 Conclusão

70.      Entendo, por conseguinte que o Tribunal de Justiça deve responder à questão prejudicial apresentada pelo Tribunale di Firenze do seguinte modo:

«A regra geral estabelecida na primeira parte do artigo 9.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal deve ser interpretada no sentido de que quando um Estado‑Membro prevê, na respetiva ordem jurídica nacional, a possibilidade de instaurar um processo por ato ilícito contra pessoas coletivas, o facto de essa ordem jurídica qualificar a responsabilidade por esse ato como ‘indireta e subsidiária’ e/ou ‘administrativa’ não dispensa o Estado‑Membro em causa da obrigação de aplicar esse artigo relativamente às pessoas coletivas quando (1) os critérios para a definição do ato ilícito são estabelecidos por referência às disposições do Código Penal (2) a responsabilidade por esse ato tem como pressuposto fundamental o facto de ter sido cometido um ato ilícito por uma pessoa singular e (3) o processo contra a pessoa coletiva é instaurado no tribunal penal, está sujeito às disposições do Código de Processo Penal e, em circunstâncias normais, é apenso ao processo contra a(s) pessoa(s) singular(es) que alegadamente perpetraram o ato ilícito em questão.

A exceção a essa regra geral estabelecida pela segunda parte do artigo 9.°, n.° 1, deve ser interpretada de forma estrita. Não pode ser interpretada de modo a excluir da regra geral estabelecida na primeira parte desse artigo todos os casos que envolvam uma categoria específica de autor da infração, como as pessoas coletivas.»


1 —      Língua original: inglês.


2 —      Decisão‑quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal (JO L 82, p. 1) (a seguir «decisão‑quadro»).


3 —      V. n.° 32 das conclusões do Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de outubro de 1999.


4 —      V. terceiro considerando da decisão‑quadro.


5 —      Ou, na formulação também apresentada logo a seguir no despacho de reenvio, «no soul to damn, no body to kick».


6 —      Na audiência foi confirmado que nenhuma das pessoas coletivas mencionadas no n.° 19, infra, está abrangida por essa isenção.


7 —      Decreto Legislativo de 28 de julho de 1989 que contém normas de aplicação, de coordenação e transitórias relativas ao Código de Processo Criminal.


8 —      Essa é a posição que consta do despacho de reenvio. Os autos do processo nacional sugerem que poderá haver, de facto, um total de seis indivíduos acusados das infrações penais em questão, o que se reflete na lista das partes que figura na primeira página das presentes conclusões.


9 —      V., a esse respeito, a informação relativa à data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão em JO L 114, p. 56.


10 —      Em 1 de dezembro de 2009.


11 —      C‑507/10, Colet., p. I‑14241. V. n.os 18 a 22.


12 —      Por força do artigo 10.°, n.° 3, do Protocolo, a disposição transitória a que se refere o artigo 10.°, n.° 1, deixará de produzir efeitos, na falta de qualquer alteração da medida de que é parte integrante, cinco anos após a data de entrada em vigor do Tratado de Lisboa, ou seja, em 30 de novembro de 2014.


13 —      Diretiva 2004/80/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas da criminalidade (JO L 261, p. 15).


14 —      V., a esse respeito, acórdão de 28 de junho de 2007, Dell’Orto (C‑467/05, Colet., p. I‑5557, n.° 57.


15 —      Por força do artigo 74.° do Código de Processo Penal.


16 —      V. também n.° 36 adiante.


17 —      V., nesse sentido, inter alia, acórdão de 8 de junho de 2006, WWF Italia e o. (C‑60/05, Colet., p. I‑5083, n.° 18).


18 —       V. acórdão de 21 de outubro de 2010, Eredics e Sápi (C‑205/09, Colet., p. I‑10231, n.° 38).


19 —      V., no que respeita à situação na Itália, n.° 33 infra.


20 —      V., nesse sentido, as conclusões apresentadas em 12 de maio de 2011 pela advogada‑geral J. Kokott no processo Gueye e Sánchez (C‑483/09 e C‑1/10, Colet., p. I‑8263, n.° 39).


21 —      V. n.° 12, supra.


22 —      V. acórdão da Corte Suprema di Cassazione de 5 de outubro de 2010, Cass. pen. n.° 2251/11, secção 11.2.2, onde esse tribunal qualificou a prática da infração penal por pessoas singulares como um «pressuposto fundamental» para que haja lugar à responsabilidade das pessoas coletivas que devem responder pela atuação dessas pessoas singulares.


23 —      A apensação não terá lugar (como é óbvio) quando se apliquem as disposições do artigo 8.° do decreto legislativo e o processo seja intentado apenas contra a pessoa coletiva.


24 —      V. secção 11.2.5 do acórdão referido na nota 24, supra.


25 —      V. n.° 48.


26 —      V., nesse sentido, o acórdão Gueye e Sánchez, já referido na nota 18 supra, n.os 57 e 58. Embora esse processo se refira à interpretação do artigo 3.° da decisão‑quadro, os artigos 3.° e 9.° encontram expressão no contexto de uma decisão que foi adotada com vista a garantir que as necessidades da vítima sejam consideradas e tratadas de forma abrangente. Na minha opinião, não há nenhum motivo para interpretar, a esse respeito, o artigo 9.° de forma diferente do artigo 3.°


27 —      V. n.° 11, supra.


28 —       V. n.° 33, supra.


29 —      Na audiência foram discutidos o acórdão do Tribunal de Justiça Dell’Orto, já referido na nota 13 supra, e as conclusões apresentadas pela advogada‑geral J. Kokott nesse processo. Embora o acórdão Dell’Orto confirme que, tanto numa interpretação literal como numa interpretação teleológica, uma «vítima» só pode ser uma pessoa singular, esse processo não fornece qualquer orientação quanto à interpretação correta do termo «autor da infração».


30 —      Por força do artigo 36.° do Decreto legislativo. V. n.° 13, supra.


31 —      V. n.° 31, supra.


32 —      V., nesse sentido, as conclusões apresentadas em 8 de março de 2007 pela advogada‑geral J. Kokott no processo Dell’Orto, já referido na nota 13, supra, n.os 81 e 82.


33 —      V. relatório do grupo de trabalho «Cooperação em matéria penal» de 11 de julho de 2000, referência 10387/00 COPEN 54.


34 —      À data dos factos, a redação em causa era «em relação a determinados casos específicos». Não considero que a eliminação da palavra «específicos» tenha qualquer relevância.


35 —      V. acórdão de 16 de junho de 2005, Pupino (C‑105/03, Colet., p. I‑5285, n.° 43).


36 —      V., nesse sentido, acórdão Pupino, já referido na nota 35, supra, n.os 44 e 47. V. também, num contexto diferente, acórdão de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, Colet., p. I‑8835, n.os 118 e 119).


37 —      V. X/Áustria, queixa n.° 1852/63, Yearbook 8, p. 190, 198. V. também X/Reino Unido, queixa n.° 6683/74, 3, D.R. 95.


38 —      V. Kokkinakis/Grécia, queixa n.° 14307/88, 260‑A, n.° 51.


39 —      V. artigo 6.°, n.° 1, TEU.


40 —      V. n.° 33, supra,