Language of document : ECLI:EU:C:2024:612

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

TAMARA ĆAPETA

apresentadas em 11 de julho de 2024 (1)

Processo C369/23

Vivacom Bulgaria EAD

contra

Varhoven administrativen sad,

Natsionalna agentsia za prihodite

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Varhoven administrativen sad (Supremo Tribunal Administrativo, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Responsabilidade de um Estado‑Membro por danos causados a particulares devido a violações do direito da União imputáveis a um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância — Regulamentação nacional que prevê a competência de um órgão jurisdicional de última instância para conhecer de ações fundadas em violações do direito da União imputáveis a esse órgão jurisdicional — Artigo 19.°, n.° 1, segundo parágrafo, TUE — Artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Tutela jurisdicional efetiva — Tribunal independente e imparcial — Apreciação objetiva da imparcialidade»






I.      Introdução

1.        A imparcialidade é uma característica intrínseca dos órgãos jurisdicionais. Já em 399 a. C., Sócrates afirmou: «São quatro as tarefas de um juiz: ouvir com cortesia, responder com sabedoria, analisar com discernimento e decidir com imparcialidade.» (2)

2.        Um órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se sobre a sua própria violação do direito da União é imparcial?

3.        Esta questão coloca‑se no caso em apreço no âmbito de uma ação de indemnização intentada por uma empresa com fundamento na interpretação incorreta do direito da União por um órgão jurisdicional nacional de última instância.

II.    Matéria de facto do processo principal, questão prejudicial e tramitação processual no Tribunal de Justiça

4.        A Vivacom Bulgaria EAD (a seguir «Vivacom») é uma sociedade búlgara que presta serviços de telecomunicações.

5.        Durante os anos de 2007 e 2008, emitiu faturas a duas empresas romenas ao abrigo de contratos de compra e venda de cartões pré‑pagos e vouchers para serviços de telecomunicações, que indicavam o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) à taxa zero.

6.        Durante uma inspeção tributária, a Natsionalna agentsia za prihodite (Agência Nacional de Cobrança de Impostos, Bulgária; a seguir «NAP») considerou que não era possível provar que esses cartões e vouchers tinham sido recebidos por representantes das referidas empresas romenas. Assim, a NAP qualificou as operações como uma prestação de serviços cujo lugar de prestação se situava na Bulgária, onde a Vivacom exercia a sua atividade, em conformidade com a legislação nacional que transpôs a Diretiva IVA (3).

7.        Consequentemente, em 20 de junho de 2012, a NAP emitiu um aviso de liquidação à Vivacom, imputando‑lhe dívidas adicionais a título de IVA no montante total de 760 183,15 levs búlgaros (BGN) (cerca de 388 485 euros).

8.        A Vivacom pagou o montante devido e interpôs recurso administrativo do aviso de liquidação, que não obteve provimento.

9.        A Vivacom interpôs então recurso desse aviso no Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia, Bulgária; a seguir «ASSG»), que negou parcialmente provimento ao mesmo. Segundo esse órgão jurisdicional, a Vivacom era devedora do IVA, porque as operações em causa constituíam uma entrega de bens, mas, uma vez que os cartões e os vouchers não tinham saído do armazém dessa empresa, o lugar de entrega situava‑se em território búlgaro.

10.      A Vivacom interpôs recurso desse acórdão no Varhoven administrativen sad (Supremo Tribunal Administrativo, Bulgária; a seguir «VAS»). Por Acórdão de 16 de dezembro de 2014, esse órgão jurisdicional confirmou a decisão proferida em primeira instância. Em especial, o VAS concordou com a conclusão do ASSG de que a operação constituía uma entrega de bens e decidiu que a regulamentação nacional pertinente tinha sido corretamente aplicada. Sendo o VAS o órgão jurisdicional de última instância, a sua decisão era definitiva.

11.      Posteriormente, em 12 de dezembro de 2019, a Vivacom intentou uma ação de indemnização baseada na responsabilidade civil do Estado, conforme desenvolvida no direito da União, contra a NAP e o VAS, no ASSG. A Vivacom alegou que a NAP e o VAS tinham aplicado incorretamente as disposições pertinentes da Diretiva IVA, conforme interpretadas pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência.

12.      Por Acórdão de 18 de abril de 2022, o ASSG julgou a ação improcedente. Em especial, esse órgão jurisdicional concluiu pela inexistência de uma violação suficientemente grave do direito da União pela NAP ou pelo VAS.

13.      A este respeito, o ASSG entendeu que a NAP tinha aplicado corretamente a legislação pertinente. Esse tribunal considerou também que, embora o VAS tivesse qualificado incorretamente as operações como entregas de bens e não como prestações de serviços, o tratamento jurídico correto dessas operações não teria conduzido a um resultado diferente, uma vez que as condições de isenção do IVA não estavam preenchidas, e que o VAS tinha concluído corretamente que não havia fundamento para aplicar a jurisprudência do Tribunal de Justiça invocada pela Vivacom.

14.      A Vivacom interpôs recurso dessa decisão no VAS, o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo. A Vivacom alega, nomeadamente, que a qualidade simultânea do VAS como órgão jurisdicional de última instância e parte no litígio não cumpre a exigência de um processo equitativo num tribunal independente e imparcial ao abrigo do direito da União, mesmo que a secção seja diferente daquela que decidiu definitivamente o litígio fiscal.

15.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a questão da sua competência deve ser submetida ao Tribunal de Justiça antes de conhecer do mérito da causa.

16.      O órgão jurisdicional de reenvio explica que, por força das disposições do direito búlgaro (4), as ações de indemnização por danos causados por violações do direito da União imputáveis ao VAS são da competência dos órgãos jurisdicionais administrativos. Regra geral, os processos administrativos são julgados por órgãos jurisdicionais em duas instâncias. O VAS é o órgão jurisdicional de última instância, razão pela qual essas ações de indemnização por danos causados têm de ser apreciadas pelo mesmo em última instância.

17.      Por conseguinte, o referido órgão jurisdicional questiona se a regulamentação nacional que permite que o mesmo órgão jurisdicional intervenha no mesmo processo na qualidade de juiz e de demandado cumpre as exigências do artigo 19.°, n.° 1, segundo parágrafo, TUE relativamente a uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União, e do artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») relativamente a um tribunal independente e imparcial.

18.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a Vivacom não fornece nenhum elemento de prova concreto das circunstâncias que põem em causa a imparcialidade subjetiva dos juízes da secção do VAS, considerando antes que este é parcial por força da sua qualidade de demandado, e que o simples facto de a ação contra o VAS ser julgada em última instância perante o mesmo órgão jurisdicional, embora perante uma secção totalmente diferente, é suficiente para suscitar sérias dúvidas quanto à independência e à imparcialidade de cada secção desse órgão jurisdicional. O mesmo órgão jurisdicional observa ainda que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH») sobre o artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (a seguir «CEDH») não dá uma resposta definitiva à questão de saber se um determinado órgão jurisdicional pode conhecer de uma ação na qual é demandado (5).

19.      Nessas circunstâncias, o Varhoven administrativen sad (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 19.°, n.° 1, segundo parágrafo, TUE e o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia opõem‑se a uma regulamentação nacional, como o artigo 2.°‑C, n.° 1, ponto 1, da Zakon za otgovornostta na darzhavata i obshtinite za vredi (Lei relativa à Responsabilidade Civil do Estado e das Autarquias, a seguir “ZODOV”), em conjugação com o artigo 203.°, n.° 3 e o artigo 128.°, n.° 1, ponto 6, do Administrativnoprotsesualen kodeks (Código de Procedimento Administrativo, a seguir “APK”), segundo a qual uma ação de indemnização por danos causados por uma violação do direito da União intentada contra o Varhoven administrativen sad (Supremo Tribunal Administrativo) como demandado deve ser apreciada em última instância por este órgão jurisdicional?»

20.      Foram apresentadas observações escritas ao Tribunal de Justiça pela Vivacom Bulgaria, pelo VAS, pelo Governo Búlgaro e pela Comissão Europeia. Não foi realizada audiência.

III. Análise

A.      A questão suscitada pelo presente processo

21.      No seu Acórdão histórico proferido no processo Köbler (6), o Tribunal de Justiça sustentou que o princípio da responsabilidade de um Estado‑Membro por danos causados aos particulares por violações do direito da União é igualmente aplicável quando a violação em causa resulte de uma decisão de um órgão jurisdicional que decide em última instância (a seguir «responsabilidade Köbler») (7).

22.      Nesse acórdão, em resposta a argumentos aduzidos por alguns Estados‑Membros segundo os quais a dificuldade de se designar o órgão jurisdicional competente constituía um obstáculo à aplicação do princípio da responsabilidade do Estado às decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais que decidem em última instância (8), o Tribunal de Justiça explicou que a «aplicação do referido princípio não pode ser comprometida pela inexistência de foro competente» (9).

23.      Em conformidade com o princípio da autonomia processual, o Tribunal de Justiça deixou ao critério dos Estados‑Membros a definição das regras processuais que permitirão aos particulares intentar ações judiciais com fundamento na responsabilidade Köbler, recordando que essas regras devem satisfazer a exigência de uma tutela jurisdicional efetiva (10).

24.      O presente processo questiona a compatibilidade das regras que preveem a responsabilidade Köbler estabelecidas por um Estado‑Membro com a exigência de uma tutela jurisdicional efetiva.

25.      Esta exigência, que constitui um princípio geral do direito da União(11), está atualmente consagrada tanto no artigo 19.°, n.° 1, segundo parágrafo, TUE como no artigo 47.° da Carta, cuja interpretação foi solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

26.      O princípio da tutela jurisdicional efetiva tem o mesmo conteúdo, em termos da sua aplicação, em todo o direito da União (12). Exige, nomeadamente, que o órgão jurisdicional que conhece de uma ação em que é alegada uma violação de um direito baseado na União, como acontece no caso em apreço, seja independente e imparcial (13).

27.      De acordo com a jurisprudência, o Tribunal de Justiça reconheceu que a independência dos juízes apresenta dois aspetos: um externo e outro interno. O aspeto externo requer que a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receber ordens ou instruções de nenhuma proveniência, estando assim protegida contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões. O aspeto interno, também designado por imparcialidade judicial, visa assegurar o igual distanciamento dos juízes do processo em relação às partes e aos respetivos interesses, tendo em conta o objeto desse litígio. Exige o respeito pela objetividade e a inexistência de interesse na resolução do litígio que não seja a estrita aplicação da regra de direito (14).

28.      A questão suscitada pelo presente processo diz respeito à exigência de imparcialidade, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio se questiona, no essencial, se a regulamentação búlgara aplicável garante que o VAS, dada a sua posição de demandado, não tenha nenhum interesse no resultado da ação de indemnização para lá da aplicação da lei. Em suma, tal situação poderia estar em conflito com a máxima nemo judex in causa sua, segundo a qual ninguém deve ser juiz em causa própria.

29.      Nem o Acórdão Köbler nem a jurisprudência posterior (15) abordaram esta questão.

30.      A doutrina já reconheceu o potencial problema da imparcialidade (16). No entanto, com algumas exceções (17), não discutiu esta questão mais aprofundadamente.

31.      Antes de expor a minha posição sobre a questão da imparcialidade suscitada pelo presente processo, irei analisar a jurisprudência do Tribunal de Justiça e do TEDH que poderá ter alguma relevância para o caso em apreço.

B.      Análise da jurisprudência

1.      Jurisprudência do Tribunal de Justiça

32.      Na sua jurisprudência, o Tribunal de Justiça reconheceu, remetendo para a jurisprudência do TEDH, que o respeito da imparcialidade podia ser apreciado de diversas maneiras. A apreciação subjetiva tem em conta a convicção pessoal e o comportamento do juiz, ao passo que a apreciação objetiva consiste em perguntar se, independentemente da conduta pessoal do juiz, determinados factos verificáveis permitem suspeitar da sua imparcialidade. No contexto da apreciação objetiva da imparcialidade, até as aparências podem ser importantes (18).

33.      O Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre a exigência de imparcialidade dos órgãos jurisdicionais e de outros órgãos (19). Existem três grandes linhas jurisprudenciais que podem ter interesse para este processo. Porém, nenhum desses processos abordou a situação especial em causa no presente processo.

34.      Primeiro, existe jurisprudência sobre o conceito de «órgão jurisdicional de um dos Estados‑Membros» na aceção do artigo 267.° TFUE, na qual o Tribunal de Justiça verificou se o órgão jurisdicional de reenvio atuava como terceiro em relação aos interesses em causa. No entanto, essa apreciação da imparcialidade tinha por objetivo diferenciar as funções jurisdicional e administrativa (20), o que não corresponde à situação em causa no presente processo. Não há dúvida de que o VAS é um órgão jurisdicional; a única questão consiste em saber se, numa situação como a do presente processo, esse órgão jurisdicional pode ser considerado suficientemente imparcial.

35.      Segundo, existe jurisprudência sobre a imparcialidade tanto do Tribunal de Justiça como do Tribunal Geral no contexto de ações de indemnização por danos resultantes de alegadas violações, pelo Tribunal Geral, da obrigação de decidir num prazo razoável, em conformidade com o artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta (21). Porém, não creio que essa jurisprudência possa ser transposta para o caso em apreço por duas razões. A primeira diz respeito a ações de indemnização por danos imputáveis ao Tribunal Geral e, por conseguinte, não incide sobre uma situação em que o Tribunal de Justiça, enquanto órgão jurisdicional de última instância, decidiria sobre alegadas violações do direito da União que lhe fossem imputáveis (22). Quanto à segunda, a referida jurisprudência diz respeito a violações da exigência de decidir num prazo razoável, pelo que não é pertinente para o teor de decisões judiciais e alegados erros de interpretação e de aplicação do direito da União, como é o caso da responsabilidade Köbler.

36.      Terceiro, existe jurisprudência em que o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre a imparcialidade do Tribunal Geral devido à composição da secção que proferiu a decisão. Um grupo de processos diz respeito a situações em que alguns dos mesmos juízes integravam formações de julgamento sucessivas antes e após a devolução do processo pelo Tribunal de Justiça em sede de recurso (23). Outro grupo prende‑se com a intervenção dos mesmos juízes em processos conexos (24). Além disso, a questão colocou‑se a propósito de um alegado conflito de interesses relacionado com a antiga atividade profissional de um juiz (25). O Tribunal de Justiça não considerou que existisse um problema de imparcialidade em nenhum desses processos. No entanto, esses processos diferem do presente processo, uma vez que não têm por objeto uma situação em que juízes são chamados a decidir sobre as suas próprias violações do direito da União.

2.      Jurisprudência do TEDH

37.      Como o TEDH reconheceu na sua jurisprudência sobre o artigo 6.°, n.° 1, da CEDH, na grande maioria dos processos que suscitam questões de imparcialidade, tem‑se concentrado na apreciação objetiva (26).

38.      O TEDH ainda não se pronunciou num processo relacionado com uma situação comparável que envolvesse um órgão jurisdicional de última instância (27). Existem, no entanto, alguns processos que poderão ter alguma relevância para o caso em apreço.

39.      Por exemplo, alguns processos estavam relacionados com a imparcialidade dos juízes chamados a decidir se tinham cometido erros de interpretação ou de aplicação da lei na sua decisão anterior. O TEDH considerou que essas situações podiam suscitar preocupações justificadas quanto à parcialidade dos juízes. Todavia, nesses processos, eram os mesmos juízes que eram chamados a decidir se eles próprios tinham cometido esses erros, razão pela qual o TEDH concluiu pela existência de uma violação do artigo 6.°, n.° 1, da CEDH (28). Em contrapartida, no presente processo, a decisão sobre a responsabilidade competiria a juízes diferentes, apesar de se tratar do mesmo órgão jurisdicional.

40.      Além disso, os processos Mihalkov c. Bulgária (29) e Boyan Gospodinov c. Bulgária (30), invocados pelas partes perante o Tribunal de Justiça, diziam respeito a pedidos de indemnização por erro na condenação dos demandantes. Deixando de lado a complexidade dos factos subjacentes a esses dois processos, a questão da imparcialidade colocava‑se ao nível dos órgãos jurisdicionais de instância inferior cujas decisões eram passíveis de recurso. O TEDH concluiu pela existência de uma violação do artigo 6.°, n.° 1, da CEDH porque, por um lado, certos elementos suscitavam dúvidas legítimas quanto à imparcialidade dos órgãos jurisdicionais de instância inferior e, por outro, os órgãos jurisdicionais de instância superior não dissiparam essas dúvidas. O que pode ser pertinente para o caso em apreço é que os elementos que levaram o TEDH a considerar fundadas as dúvidas legítimas de imparcialidade prendiam‑se com o facto de os órgãos jurisdicionais inferiores em causa serem demandados nas ações de indemnização que tinham sido chamados a decidir e de a indemnização ser paga a partir do orçamento desses órgãos jurisdicionais.

41.      Em resumo, a jurisprudência do Tribunal de Justiça e do TEDH não fornece uma resposta clara à questão de saber se a apreciação objetiva da imparcialidade permite concluir que um órgão jurisdicional de última instância que decide em causa própria deve sempre ser considerado parcial.

42.      Por conseguinte, para apreciar objetivamente a imparcialidade no caso em apreço, importa, antes de mais, compreender em que consiste esse critério.

C.      Em que consiste o critério objetivo da imparcialidade?

43.      Como resulta do despacho de reenvio e das observações das partes, a imparcialidade subjetiva dos juízes que integram a formação de julgamento do VAS no presente processo não foi questionada.

44.      O presente processo diz sobretudo respeito à apreciação objetiva da imparcialidade. Pretende‑se saber se, do ponto de vista de um observador externo, o facto de o mesmo órgão jurisdicional de última instância ser simultaneamente juiz e parte causa uma perceção de parcialidade.

45.      Porque é que isso é importante?

46.      Citando o Tribunal de Justiça, «[e]stá em causa […] a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar aos particulares» (31).

47.      Assim, a apreciação objetiva da imparcialidade está relacionada com a função pública do princípio da imparcialidade judicial, além de proteger o direito fundamental das partes num litígio a um processo equitativo (32). Nesse sentido, este critério diz respeito às aparências, ou seja, à questão de saber se, aos olhos dos particulares, foram suficientemente dissipadas dúvidas legítimas sobre a imparcialidade (33).

48.      Uma situação como a que está em causa no presente processo, em que um órgão jurisdicional de última instância decide uma ação fundada numa violação do direito da União que lhe é imputável, afigura‑se, à primeira vista, suscetível de gerar dúvidas legítimas quanto à imparcialidade desse órgão jurisdicional. O VAS aparenta ser judex in causa sua.

49.      No entanto, resulta da posição das partes no presente processo que certos elementos decorrentes das regras aplicáveis ao VAS na situação vertente atenuam ou reforçam esta aparência de parcialidade.

50.      Por conseguinte, entendo que existem graus de probabilidade de os juízes que decidem um litígio serem parciais em relação à posição de uma das partes.

51.      Por exemplo, a probabilidade de parcialidade é maior se os mesmos juízes decidirem uma ação de indemnização por danos emergentes da sua própria decisão do que se essa ação for decidida por uma secção do mesmo órgão jurisdicional composta por juízes diferentes. A probabilidade de parcialidade é ainda menor se a ação for decidida por um órgão jurisdicional totalmente diferente. Indo um pouco mais longe, a probabilidade de parcialidade é ainda mais reduzida se a decisão incumbir a outro ramo do Governo. De certa forma, cada passo neste sentido faz com que a ação se apresente um pouco menos, aos olhos dos particulares, como uma situação em que os juízes do processo atuam em causa própria.

52.      Se se admitir que a imparcialidade não é absoluta, mas de graus variáveis, então a medida em que as dúvidas sobre a imparcialidade foram dissipadas também será variável. Assim sendo, o que importa perguntar é a que nível de probabilidade e em que condições é possível concluir que a aparência de imparcialidade aos olhos dos particulares está suficientemente assegurada.

53.      A resposta a esta pergunta, como refere a Comissão, depende de diferentes elementos do sistema jurídico em causa. Por conseguinte, a meu ver, não é possível dar uma resposta em abstrato para todos os Estados‑Membros. Por exemplo, alguns Estados‑Membros poderão ter apenas um órgão jurisdicional de última instância na hierarquia judicial, enquanto outros poderão ter dois ou mais (34). Os Estados‑Membros têm razões diferentes para organizar o seu sistema judicial de uma forma ou de outra.

54.      Tendo em conta as particularidades de cada sistema jurídico, a solução aceitável depende de um exercício de ponderação que, para determinar se é possível assegurar um grau mais baixo de probabilidade de parcialidade, tome em consideração outros interesses desse sistema (35). Dada a importância do princípio da imparcialidade judicial, os sistemas jurídicos nacionais devem atribuir um peso considerável a esse princípio no exercício de ponderação.

55.      Por conseguinte, cabe questionar, em cada processo, se a regulamentação, tal como aplicada, assegura o menor grau de probabilidade de parcialidade possível no quadro de um dado sistema jurídico. O órgão jurisdicional que responde a essa pergunta deve verificar se a inexistência de elementos adicionais suscetíveis de assegurar um grau de probabilidade de parcialidade ainda menor se justifica por outros interesses desse sistema.

56.      Tal exigência de ponderação não é nova no direito da União. Designada pela doutrina como a «procedural rule of reason» [«regra processual da razão»] (36), essa exigência foi desenvolvida em processos que suscitam questões sobre a efetividade da regulamentação nacional no contexto da autonomia processual nacional (37).

D.      Critério objetivo da imparcialidade no presente processo

57.      Pelo exposto, a resposta à questão prejudicial está, em última análise, nas mãos do órgão jurisdicional de reenvio. É esse órgão jurisdicional, e não o Tribunal de Justiça, que pode tomar em consideração outros interesses do sistema jurídico búlgaro para determinar se uma regulamentação que permite ao VAS decidir sobre a sua própria responsabilidade constitui efetivamente o menor grau de probabilidade de parcialidade possível.

58.      O que deve ser apreciado?

59.       Com base nas informações apresentadas ao Tribunal de Justiça, verifica‑se que existem vários elementos suscetíveis de dissipar as dúvidas quanto à imparcialidade do VAS no caso em apreço. Estes elementos dizem respeito ao recurso a uma secção diferente ou mesmo a um órgão jurisdicional diferente, à identidade do demandado e às regras orçamentais aplicáveis.

1.      Processo decidido por uma secção diferente

60.      Por um lado, como referiram o Governo Búlgaro e o VAS, as ações de indemnização com base em violações do direito da União imputáveis ao VAS são decididas por uma secção diferente deste órgão jurisdicional, composta por juízes diferentes daqueles que proferiram a decisão judicial em causa (38).

61.      Este elemento afigura‑se suscetível de dissipar, até certo ponto, dúvidas legítimas quanto à imparcialidade desse órgão jurisdicional.

62.      Uma análise comparativa superficial revela que esta prática também se verifica em alguns órgãos jurisdicionais de outros Estados‑Membros. Em várias situações em que os órgãos jurisdicionais de última instância foram chamados a decidir ações de indemnização por danos causados por violações do direito da União que lhes eram imputáveis, baseadas na responsabilidade Köbler, não foi suscitada nenhuma questão de imparcialidade, nem pelas partes nem pelos próprios juízes (39). Alguns órgãos jurisdicionais nacionais consideraram que não se coloca nenhum problema de imparcialidade quando o órgão jurisdicional decide com uma composição diferente (40).

63.      Uma questão conexa que pode ser importante, e que foi discutida nas observações das partes, é a forma como os processos são distribuídos. Se a secção chamada a pronunciar‑se sobre a responsabilidade no processo em causa for selecionada de forma aleatória, é provável que tal dissipe dúvidas legítimas quanto à falta de imparcialidade da secção do VAS que decide o processo.

2.      Processo decidido por um órgão jurisdicional diferente

64.      Uma secção diferente já assegura um maior distanciamento entre o órgão jurisdicional enquanto juiz e o órgão jurisdicional enquanto parte. Todavia, se a ação for decidida por um órgão jurisdicional diferente, como preconiza a Vivacom, é provável que existam ainda menos dúvidas quanto a uma eventual imparcialidade.

65.      Em resposta ao argumento da Vivacom, o Governo Búlgaro e o VAS explicam que o direito búlgaro não prevê um mecanismo que permita a outros órgãos jurisdicionais conhecer de ações de indemnização fundadas em violações do direito da União imputáveis ao VAS.

66.      Na sua apreciação objetiva da imparcialidade, o órgão jurisdicional de reenvio deve então determinar se a impossibilidade, por força do direito nacional, de transferir o processo para um órgão jurisdicional diferente pode ser justificada.

67.      A este respeito, o Governo Búlgaro e o VAS alegam que o direito nacional reflete a opção do legislador nacional de harmonizar as regras sobre a competência dos órgãos jurisdicionais administrativos e as competências em matéria administrativa para efeitos da instituição de um sistema coerente de justiça administrativa. A atribuição de competência a órgãos jurisdicionais diferentes para decidir ações em matéria administrativa desvirtuaria o sistema judicial estabelecido pela Constituição búlgara e pela legislação nacional pertinente, segundo o qual os órgãos jurisdicionais administrativos têm a sua própria competência em matéria administrativa.

68.      Naturalmente, é possível conceber um sistema judicial diferente do existente na Bulgária. Porém, em meu entender, a obrigação imposta aos órgãos jurisdicionais nacionais de identificarem o menor grau possível de probabilidade de parcialidade não exige a revisão dos sistemas judiciais existentes nos Estados‑Membros, especialmente quando esse sistema preveja outras garantias estruturais de imparcialidade. No caso em apreço, não se suscitaram questões sistémicas relativas à independência ou imparcialidade dos órgãos jurisdicionais na Bulgária.

69.      Por conseguinte, considero que os argumentos apresentados pelo Governo Búlgaro e pelo VAS são aceitáveis para justificar a decisão de manter a competência em matéria de responsabilidade civil no âmbito do sistema de órgãos jurisdicionais administrativos, mesmo que tal signifique que, caso seja interposto recurso, o mesmo órgão jurisdicional decidirá sobre a sua própria responsabilidade.

3.      Identidade do demandado

70.      No Acórdão Köbler, o Tribunal de Justiça deu como provada a responsabilidade do Estado por violações cometidas por órgãos jurisdicionais de última instância. Por conseguinte, o direito da União considera que o demandado é o Estado, e não necessariamente o órgão jurisdicional cuja alegada violação do direito da União está em causa.

71.      O facto de, formalmente, o demandado ser o Estado, e não o próprio órgão jurisdicional, parece reforçar a aparência de imparcialidade. Com efeito, é provável que o público encarasse o papel do Estado enquanto parte como distinto do papel do órgão jurisdicional que atua como juiz no processo em causa.

72.      No caso em apreço, este elemento não é totalmente claro. Segundo os argumentos da Vivacom, o VAS é o demandado no processo principal, no qual já expôs a sua posição (41). Em contrapartida, segundo os argumentos do VAS, o direito búlgaro estabelece que, nas ações de indemnização por danos resultantes de violações do direito da União, a responsabilidade recai sobre o Estado, e não sobre o órgão jurisdicional que proferiu a decisão que causou os danos a um particular. Por conseguinte, o VAS afirma ainda que, no presente processo, o VAS, enquanto entidade jurídica designada como demandado segundo o direito aplicável, é o substituto processual do Estado (42).

73.      No meu entender, mesmo que tal seja meramente uma questão de forma, a identificação do Estado búlgaro como demandado em vez do VAS teria sido provavelmente mais eficaz para dissipar dúvidas quanto à parcialidade deste último no presente litígio. A importância que deve ser dada a esta regra específica no exercício de ponderação é uma questão que incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar.

4.      Regras orçamentais

74.      Um aspeto que está estreitamente relacionado com a identidade do demandado é a questão das finanças. O que está aqui em causa é saber quem paga a indemnização se for provada a existência de responsabilidade Köbler. As regras orçamentais aplicáveis são, portanto, suscetíveis de dissipar ou reforçar as dúvidas quanto à imparcialidade.

75.      O pagamento de uma indemnização a partir do orçamento do Estado e não do orçamento do órgão jurisdicional em causa seria mais suscetível de dissipar as dúvidas quanto à imparcialidade desse órgão jurisdicional.

76.      Todavia, no presente processo, afigura‑se que, se a ação de indemnização for julgada procedente, o montante atribuído será retirado do orçamento do VAS.

77.      Esse facto, por si só, não leva necessariamente à conclusão de que existe um problema de imparcialidade. Como referido pelo VAS e pelo Governo Búlgaro, e não tendo sido contestado pela Vivacom, a concessão de uma indemnização não afeta a remuneração ou as condições de trabalho dos juízes. O TEDH teve em consideração a existência de uma rubrica específica no orçamento do órgão jurisdicional para diferenciar a decisão proferida no processo Mihalkov c. Bulgária e concluir num processo diferente pela inexistência de um problema de imparcialidade (43).

78.      A afirmação de que o Estado é o verdadeiro demandado é difícil de conciliar com o facto de a indemnização ser paga a partir do orçamento do VAS. Porém, se esta última regra orçamental encontrar uma justificação, por exemplo, na organização das finanças públicas da Bulgária, tal regra poderá, ainda assim, não obstar à conclusão pela existência de imparcialidade objetiva. A apreciação dessa questão cabe ao órgão jurisdicional nacional.

79.      Em suma, a decisão sobre a imparcialidade num caso concreto depende de diferentes elementos do sistema jurídico nacional considerados no seu conjunto e da forma como se articulam entre si.

80.      Considero que os elementos apresentados ao Tribunal de Justiça no presente processo, relativos à existência de uma secção diferente, à identidade do demandado e às regras orçamentais aplicáveis, permitem dissipar suficientemente as dúvidas legítimas quanto à falta de imparcialidade do VAS para conhecer de uma ação de indemnização por danos causados por uma violação do direito da União que lhe é imputável.

IV.    Conclusão

81.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão submetida a título prejudicial pelo Varhoven administrativen sad (Supremo Tribunal Administrativo, Bulgária) do seguinte modo:

O artigo 19.°, n.° 1, segundo parágrafo, TUE e o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

não se opõem a uma regulamentação nacional segundo a qual uma ação de indemnização por danos causados por uma violação do direito da União imputável a um órgão jurisdicional de última instância é apreciada por esse órgão jurisdicional e na qual esse mesmo órgão jurisdicional é demandado, desde que essa regulamentação assegure o menor grau de probabilidade possível de parcialidade no contexto de um determinado sistema jurídico.

Esta é uma questão que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, tomando em consideração os diferentes interesses prosseguidos pelo sistema de organização judiciária do Estado‑Membro em causa.


1      Língua original: inglês.


2      V. Geyh, C. G., «The Dimensions of Judicial Impartiality», Florida Law Review, vol. 65, n.º 2, 2014, p. 493, em especial p. 498.


3      Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1) (a seguir «Diretiva IVA»).


4      O órgão jurisdicional de reenvio refere, a esse respeito, que o artigo 2.º‑C, n.° 1, ponto 1), da Zakon za otgovornostta na darzhavata i obshtinite za vredi (Lei relativa à Responsabilidade Civil do Estado e das Autarquias; a seguir «ZODOV»), que regula o procedimento relativo às ações de indemnização por danos causados por uma violação do direito da União intentadas contra o Estado, e estabelece que, em caso de danos resultantes do exercício das funções jurisdicionais dos tribunais administrativos e do VAS, esses procedimentos estão sujeitos ao Administrativnoprotsesualen kodeks (Código do Procedimento Administrativo; a seguir «APK»). Nos termos do artigo 128.°, n.º 1, ponto 6), do APK, as ações de indemnização por danos resultantes do exercício das funções jurisdicionais dos tribunais administrativos e do VAS são da competência dos tribunais administrativos, incluindo, nos termos do artigo 203.°, n.º 3, do mesmo diploma, ações de indemnização por danos causados por uma violação suficientemente caracterizada do direito da União.


5      O órgão jurisdicional refere, nesse contexto, que o TEDH concluiu pela existência de violações do artigo 6.°, n.º 1, da CEDH nos Acórdãos de 10 de julho de 2008, Mihalkov c. Bulgária (CE:ECHR:2008:0410JUD006771901), e de 10 de setembro de 2018, Boyan Gospodinov c. Bulgária (CE:ECHR:2018:0405JUD002841707), mas não nas Decisões de 18 de junho de 2013, Valcheva e Abrashev c. Bulgária (CE:ECHR:2013:0618DEC000619411), e de 18 de junho de 2013, Balakchiev e o. c. Bulgária (CE:ECHR:2013:0618DEC006518710).


6      Acórdão de 30 de setembro de 2003 (C‑224/01, EU:C:2003:513, em especial n.os 30 a 50). Esse acórdão baseou‑se na jurisprudência anterior, incluindo os Acórdãos seminais de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428, em especial n.º 35), e de 5 de março de 1996, Brasserie du Pêcheur e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93, EU:C:1996:79, em especial n.º 31), que estabeleceram que o princípio da responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares por violações do direito da União que lhe sejam imputáveis é inerente ao sistema dos Tratados. V., mais recentemente, por exemplo, Acórdãos de 4 de outubro de 2018, Kantarev (C‑571/16, EU:C:2018:807, n.º 92), e de 24 de novembro de 2022, Varhoven administrativen sad (Revogação da disposição impugnada) (C‑289/21, EU:C:2022:920, n.º 35).


7      Para uma análise geral, v., por exemplo, Granger, M.‑P. F., «Francovich liability before national courts: 25 years on, has anything changed?», in Giliker, P. (E.), Research Handbook on EU Tort Law, Edward Elgar, Cheltenham e Northampton, 2017, p. 93; Varga, Z., The Effectiveness of the Köbler Liability in National Courts, Hart, Oxford, 2020.


8      V. Acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:513, em especial n.os 21, 28 e 44). V. também Conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:207, em especial n.os 18 e 21).


9      Acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:513, n.º 45). V., igualmente, Conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:207, n.os 107 a 114).


10      V. Acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:513, n.º 47).


11      V., por exemplo, Acórdãos de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C‑64/16, EU:C:2018:117, n.º 35), e de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes) (C‑204/21, EU:C:2023:442, n.º 69).


12      O advogado‑geral N. Emiliou sublinhou, nas suas Conclusões no processo Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» (C‑216/21, EU:C:2023:116, n.º 26), que é claro que existe um único princípio da independência dos juízes no âmbito do ordenamento jurídico da União e que o conteúdo do artigo 19.°, n.º 1, segundo parágrafo, TUE e do artigo 47.° da Carta, no que diz respeito à independência dos juízes, é, em substância, o mesmo.


13      V., por exemplo, Acórdãos de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596, n.os 57 e 58), e de 29 de março de 2022, Getin Noble Bank (C‑132/20, EU:C:2022:235, n.os 93 e 94).


14      V., por exemplo, Acórdãos de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.os 121 e 122), e de 18 de abril de 2024, OT e o. (Extinção de um Tribunal) (C‑634/22, EU:C:2024:340, n.º 35).


15      Em processos posteriores, o Tribunal de Justiça confirmou o princípio da responsabilidade do Estado por violações judiciais do direito da União estabelecido no Acórdão Köbler, mas em nenhum desses processos era suscitada essa questão de imparcialidade judicial. Com efeito, até à data, os processos submetidos ao Tribunal de Justiça em que está em causa a responsabilidade Köbler têm geralmente a sua origem em reenvios prejudiciais de órgãos jurisdicionais inferiores ou diferentes sobre violações do direito da União imputáveis a órgãos jurisdicionais de última instância. V. Acórdãos de 30 de setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:513) (órgão jurisdicional de primeira instância); de 13 de junho de 2006, Traghetti del Mediterraneo (C‑173/03, EU:C:2006:391) (órgão jurisdicional de primeira instância); de 9 de setembro de 2015, Ferreira da Silva e Brito e o. (C‑160/14, EU:C:2015:565) (órgão jurisdicional de primeira instância); de 28 de julho de 2016, Tomášová (C‑168/15, EU:C:2016:602) (incerteza quanto ao estatuto do órgão jurisdicional como órgão jurisdicional de última instância); e de 29 de julho de 2019, Hochtief Solutions Magyarországi Fióktelepe (C‑620/17, EU:C:2019:630) (órgão jurisdicional diferente). O Tribunal de Justiça pronunciou‑se igualmente sobre ações por incumprimento intentadas contra Estados‑Membros com fundamento em violações do direito da União cometidas por órgãos jurisdicionais de última instância, nas quais também não foi suscitada esta questão. V. Acórdãos de 9 de dezembro de 2003, Comissão/Itália (C‑129/00, EU:C:2003:656); de 12 de novembro de 2009, Comissão/Espanha (C‑154/08, EU:C:2009:695); de 4 de outubro de 2018, Comissão/França (Imposto sobre os rendimentos mobiliários retido na fonte) (C‑416/17, EU:C:2018:811); e de 14 de março de 2024, Comissão/Reino Unido (Acórdão do Supremo Tribunal) (C‑516/22, EU:C:2024:231); v., igualmente, Acórdão de 24 de novembro de 2011, Comissão/Itália (C‑379/10, EU:C:2011:775) (não execução do Acórdão Traghetti, já referido).


16      Para uma seleção, v., por exemplo, Toner, H., «Thinking the Unthinkable? State Liability for Judicial Acts after Factortame (III)», Yearbook of European Law, vol. 17, n.º 1, 1997, p. 165, em especial p. 187 e 188; Anagnostaras, G., «The Principle of State Liability for Judicial Breaches: The Impact of European Community Law», European Public Law, vol. 7, n.º 2, 2001, p. 281, em especial p. 295 e 296; Garde, A., «Member states’ liability for judicial acts or omissions: much ado about nothing?», Cambridge Law Journal, vol. 63, n.º 3, 2004, p. 564, em especial p. 566 e 567; van Dam, C., European Tort Law, Second edition, Oxford University Press, Oxford, 2013, p. 47; Demark, A., Contemporary Issues regarding Member State Liability for Infringements of EU Law by National Courts», EU and Comparative Law Issues and Challenges Series, vol. 4, 2020, p. 352, em especial p. 372.


17      Alguns autores discutiram a criação de procedimentos especiais ou de tribunais especiais para ações fundadas na responsabilidade Köbler. V., por exemplo, Wattel, P.J., «Köbler, CILFIT and Welthgrove: We Can’t Go On Meeting Like This», Common Market Law Review, vol. 41, n.º 1, 2004, p. 177, em especial p. 180. Outros contemplaram a possibilidade de atribuir a competência para tais ações ao Tribunal de Justiça. V., por exemplo, Hofstötter, B., NonCompliance of National Courts — Remedies in European Community Law and Beyond, TMC Asser Press, Haia, 2005, em especial p. 165 a 175.


18      V. Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.º 128) [que remete para TEDH, Acórdãos de 6 de maio de 2003, Kleyn e o. c. Países Baixos (CE:ECHR:2003:0506JUD003934398), e de 6 de novembro de 2018, Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal (CE:ECHR:2018:1106JUD005539113)].


19      Para uma síntese da jurisprudência, v. Conclusões do advogado‑geral P. Pikamäe no processo Parlamento/UZ (C‑894/19 P, EU:C:2021:497, n.os 54 a 118).


20      V., por exemplo, Acórdãos de 22 de dezembro de 2010, RTL Belgium (C‑517/09, EU:C:2010:821, em especial n.os 41 a 47); de 31 de janeiro de 2013, Belov (C‑394/11, EU:C:2013:48, em especial n.os 45 a 51); de 9 de outubro de 2014, TDC (C‑222/13, EU:C:2014:2265, em especial n.º 37); de 21 de janeiro de 2020, Banco de Santander (C‑274/14, EU:C:2020:17, em especial n.os 72 a 74); e de 3 de maio de 2022, CityRail (C‑453/20, EU:C:2022:341, em especial n.os 63 a 71).


21      V. Acórdão de 13 de dezembro de 2018, União Europeia/Kendrion (C‑150/17 P, EU:C:2018:1014, n.os 27 a 40).


22      A este respeito, note‑se que, no Acórdão de 5 de setembro de 2019, União Europeia/Guardian Europe e Guardian Europe/União Europeia (C‑447/17 P e C‑479/17 P, EU:C:2019:672, n.os 74 a 85), o Tribunal de Justiça considerou que a responsabilidade Köbler é transponível para o regime da responsabilidade extracontratual da União e que o Tribunal Geral pode ser equiparado a um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que não decide em última instância, pelo que as violações do direito da União resultantes de uma decisão do Tribunal Geral não podem desencadear a responsabilidade extracontratual da União; ao invés, a interposição de um recurso constitui o meio adequado para corrigir erros cometidos em decisões do Tribunal Geral.


23      V., por exemplo, Acórdãos de 1 de julho de 2008, Chronopost e La Poste/UFEX e o. (C‑341/06 P e C‑342/06 P, EU:C:2008:375, n.os 44 a 61), e de 4 de dezembro de 2019, H/Conselho (C‑413/18 P, não publicado, EU:C:2019:1044, n.os 45 a 63).


24      V., por exemplo, Acórdão de 19 de fevereiro de 2009, Gorostiaga Atxalandabaso/Parlamento (C‑308/07 P, EU:C:2009:103, n.os 41 a 50).


25      V., por exemplo, Acórdão de 24 de março de 2022, Wagenknecht/Comissão (C‑130/21 P, EU:C:2022:226, n.os 15 a 25).


26      O TEDH acrescentou que não existe uma separação estanque entre imparcialidade subjetiva e objetiva, uma vez que o comportamento de um juiz pode não só suscitar dúvidas objetivamente justificadas quanto à imparcialidade do ponto de vista do observador externo (aspeto objetivo) mas também quanto à questão da sua convicção pessoal (aspeto subjetivo). V., por exemplo, TEDH, Acórdãos de 23 de abril de 2015, Morice c. França (CE:ECHR:2015:0423JUD002936910, § 75), e de 6 de novembro de 2018, Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal (CE:ECHR:2018:1106JUD005539113, § 146).


27      Está atualmente pendente no TEDH um processo sobre uma questão semelhante à do presente processo. V. TEDH, processo Doynov c. Bulgária (petição n.º 27455/22), súmula jurídica, maio de 2023, que diz respeito a uma ação intentada ao abrigo do artigo 6.°, n.º 1, da CEDH com fundamento na falta de imparcialidade do VAS para decidir sobre a sua própria responsabilidade por uma alegada violação do direito da União.


28      V. TEDH, Acórdãos de 29 de julho de 2004, San Leonard Band Club c. Malta (CE:ECHR:2004:0729JUD007756201, §§ 61 a 66), e de 7 de julho de 2020, Scerri c. Malta (CE:ECHR:2020:0707JUD003631818, §§ 75 a 81).


29      V. TEDH, Acórdão de 10 de julho de 2008 (CE:ECHR:2008:0410JUD006771901, §§ 46 a 51).


30      V. TEDH, Acórdão de 10 de setembro de 2018 (CE:ECHR:2018:0405JUD002841707, §§ 54 a 60).


31      V. Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.º 128) [que remete para TEDH, Acórdãos de 6 de maio de 2003, Kleyn e o. c. Países Baixos (CE:ECHR:2003:0506JUD003934398), e de 6 de novembro de 2018, Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal (CE:ECHR:2018:1106JUD005539113)].


32      Comparar com Geyh, referido na nota 2 das presentes conclusões, que distingue as dimensões processual, política e ética da imparcialidade.


33      Como o Tribunal de Justiça reconheceu, «o ponto de vista duma parte entra em linha de conta mas não tem um papel decisivo. O elemento determinante consiste em saber se os receios em causa [relativamente à imparcialidade objetiva] podem ser considerados objetivamente justificados». V. Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.º 129).


34      V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Der Grüne Punkt Duales System Deutschland/Comissão (C‑385/07 P, EU:C:2009:210, n.º 337), nas quais este considerou que um critério a ter em conta relativamente à competência em matéria de responsabilidade extracontratual no sistema judicial ao nível da União é o facto de esse sistema ser composto apenas por dois órgãos jurisdicionais.


35      Quanto à ponderação de outros interesses em relação ao princípio nemo judex in causa sua, v. Vermeule, A., «Contra Nemo Iudex in Sua Causa: The Limits of Impartiality», Yale Law Journal, vol. 122, n.º 2, 2012, p. 384.


36      V. Prechal, S., «Community Law in National Courts: The Lessons from Van Schijndel», Common Market Law Review, vol. 35, n.º 3, 1998, p. 681, em especial p. 690.


37      V. Acórdãos de 14 de dezembro de 1995, Peterbroeck (C‑312/93, EU:C:1995:437, n.º 14), e de 14 de dezembro de 1995, van Schijndel e van Veen (C‑430/93 e C‑431/93, EU:C:1995:441, n.º 19). V. também, mais recentemente, por exemplo, Acórdãos de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi (C‑561/19, EU:C:2021:799, n.º 63), e de 23 de novembro de 2023, Provident Polska (C‑321/22, EU:C:2023:911, n.º 63).


38      Como indicou igualmente o VAS, a atividade judicial desse órgão jurisdicional é exercida sob a forma de coletivos de três ou cinco juízes e cada formação coletiva é autónoma, sem que haja nenhum tipo de interação com as outras formações coletivas ou com os outros juízes do VAS.


39      Por exemplo, em dois processos, os órgãos jurisdicionais de instância inferior concluíram pela existência de responsabilidade, mas estes acórdãos foram anulados em sede de recurso pelos órgãos jurisdicionais de última instância cuja aplicação incorreta do direito da União estava em causa e não foi suscitada nenhuma questão de imparcialidade. V. Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), Acórdão de 18 de novembro de 2016 (15‑21.438; FR:CCASS:2016:AP00630); Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), Acórdão de 12 de março de 2009 (9180/07.3TBBRG.G1.S1). Estes dois processos são analisados por Varga, referido na nota 7 das presentes conclusões, p. 57 e 58. V. também Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia), Acórdão de 20 de maio de 2022 (3‑20‑1684).


40      V., por exemplo, Grondwettelijk Hof/Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica), Acórdão de 23 de fevereiro de 2017 (29/2017); Conseil d’Etat (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França), Acórdão de 1 de abril de 2022 (443882; FR:CECHR:2022:443882.20220401); Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos), Acórdão de 21 de dezembro de 2018 (17/00424; NL:HR:2018:2396).


41      Com base na primeira página das presentes conclusões, que descreve o presente processo como «Vivacom Bulgaria EAD contra Varhoven administrativen sad e Natsionalna agentsia za prihodite», bem como no facto de o VAS ter apresentado observações escritas ao Tribunal de Justiça, poderia também subentender‑se que o VAS é formalmente demandado no presente processo.


42      Nas suas observações escritas, o VAS refere que, em todos os casos de responsabilidade civil abrangidos pela ZODOV e sobretudo no âmbito de ações de indemnização por danos resultantes de violações do direito da União, a responsabilidade recai sobre o Estado, e não sobre o órgão jurisdicional que proferiu a decisão que causou os danos a um particular, como indicam os acórdãos interpretativos 5/2013 e 7/2014 do Varhoven kasatsionen sad (Supremo Tribunal de Cassação, Bulgária).


43      V. TEDH, Decisões de 18 de junho de 2013, Valcheva e Abrashev c. Bulgária (CE:ECHR:2013:0618DEC000619411, § 100), e de 18 de junho de 2013, Balakchiev e o. c. Bulgária (CE:ECHR:2013:0618DEC006518710, § 61).