Language of document : ECLI:EU:C:2024:412

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 16 de maio de 2024 (1)

Processos apensos C289/23 [Corván] e C305/23 [Bacigán] (i)

Agencia Estatal de la Administración Tributaria

contra

A.

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil n.° 1 de Alicante (Tribunal de Comércio n.° 1 de Alicante, Espanha)]

e

S.E.I.

contra

Agencia Estatal de la Administración Tributaria

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil n.° 10 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.° 10 de Barcelona, Espanha)]

«Reenvio prejudicial — Diretiva (UE) 2019/1023 — Processos relativos à reestruturação, insolvência e perdão de dívidas — Pedido de exoneração de dívidas — Pessoa singular em situação de insolvência — Condições de acesso à exoneração de dívidas — Créditos públicos — Limite máximo de exoneração»






I.      Introdução

1.        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 23.°, n.os 2 e 4, da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência) (2).

2.        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem pessoas singulares em situação de insolvência (a seguir «devedores») à Agencia Estatal de Administración Tributaria (Agência Nacional da Administração Tributária, Espanha) (a seguir «AEAT»), a respeito de um pedido de exoneração de dívidas apresentado por esses devedores durante o processo de insolvência a eles respeitante. Com efeito, a AEAT opôs‑se aos pedidos de exoneração de dívidas devido à má‑fé do devedor (processo C‑289/23) ou à sua desonestidade (C‑305/23), recordando que os créditos públicos estavam excluídos da exoneração de dívidas.

3.        Este processo proporciona ao Tribunal de Justiça a oportunidade de clarificar a margem de manobra de que dispõem os Estados‑Membros para a transposição do artigo 23.°, n.os 1, 2 e 4, da Diretiva 2019/1023, que dispõe que estes, respetivamente, devem prever disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas em caso de desonestidade ou má‑fé do devedor, podem recusar ou limitar esse acesso em função de determinados comportamentos do devedor e podem excluir determinadas categorias específicas de créditos do mecanismo de perdão total das dívidas.

4.        A pedido do Tribunal de Justiça, centrarei a minha análise na segunda questão, alínea d), do processo C‑289/23, que, em substância, tem por objeto a margem de manobra dos Estados‑Membros na transposição da Diretiva 2019/1023 e, nomeadamente, a possibilidade de restringir a exoneração de dívidas relativas a créditos públicos a limites que não estejam relacionados com o montante real da dívida.

5.        Nas presentes conclusões, no final da minha análise, proporei responder ao Juzgado de lo Mercantil n.° 1 de Alicante (Tribunal de Comércio n.° 1 de Alicante, Espanha), órgão jurisdicional de reenvio neste processo, que os Estados‑Membros podem estabelecer uma limitação da exoneração de dívidas, para categorias específicas de créditos, sob a forma de um limite máximo acima do qual a exoneração não tem lugar, desde que essa limitação seja devidamente justificada.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

6.        O artigo 23.° da Diretiva 2019/1023, sob a epígrafe «Derrogações», tem a seguinte redação:

«1.      Em derrogação dos artigos 20.° a 22.°, os Estados‑Membros mantêm ou introduzem disposições que recusem ou limitem ou revoguem o acesso ao perdão de dívidas ou que revoguem o benefício do perdão, ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total da dívida ou períodos de inibição mais prolongados se, de acordo com o direito nacional, o empresário insolvente tiver agido de forma desonesta ou de má‑fé para com os credores ou outras partes interessadas quando contraiu as dívidas, durante o processo de insolvência ou durante o reembolso das dívidas, sem prejuízo das disposições nacionais em matéria de ónus da prova.

2.      Em derrogação dos artigos 20.° a 22.°, os Estados‑Membros podem manter ou introduzir disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas ou revoguem o benefício do perdão, ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total da dívida ou períodos de inibição mais prolongados em determinadas circunstâncias bem definidas e se tais derrogações forem devidamente justificadas, nomeadamente:

a)      Se o empresário insolvente tiver cometido violações consideráveis de obrigações decorrentes de um plano de reembolso ou de qualquer outra obrigação legal destinada a salvaguardar os interesses dos credores, nomeadamente a obrigação de maximizar os rendimentos dos credores;

b)      Se o empresário insolvente não tiver cumprido as obrigações de informação ou de cooperação previstas no direito nacional e da União;

c)      Se os pedidos de perdão de dívidas forem abusivos;

d)      Se for apresentado um pedido adicional de perdão dentro de um determinado prazo após ter sido concedido ao empresário insolvente um perdão total da dívida ou após lhe ter sido recusado um perdão total da dívida devido a uma grave violação das obrigações de informação ou cooperação;

e)      Se as custas do processo conducente ao perdão de dívidas não estiverem satisfeitas; ou

f)      Se for necessária uma derrogação para garantir o equilíbrio entre os direitos do devedor e os direitos de um ou mais credores.

[...]

4.      Os Estados‑Membros podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, ou restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados, nomeadamente no caso:

a)      Das dívidas garantidas;

b)      Das dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas;

c)      Das dívidas decorrentes de responsabilidade delitual;

d)      Das dívidas respeitantes a obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade;

e)      Das dívidas contraídas após a apresentação do pedido de abertura de um processo conducente a um perdão da dívida ou após a abertura de tal processo; e

f)      Das dívidas decorrentes da obrigação de pagar as custas do processo conducente a um perdão da dívida.

[...]»

B.      Direito espanhol

7.        A lei aplicável rationae temporis aos litígios no processo principal é o Real Decreto Legislativo 1/2020 por el que se aprueba el texto refundido de la Ley Concursal (Real Decreto Legislativo n.° 1/2020, que aprova o Texto Consolidado da Lei da Insolvência) (3), de 5 de maio de 2020, conforme alterado pela Ley 16/2022 de reforma del texto refundido de la Ley Concursal aprobado por el Real Decreto Legislativo 1/2020, de 5 de mayo, para la transposición de la [Diretiva 2019/1023] (Lei 16/2022 que altera o Texto Consolidado da Lei da Insolvência, aprovado pelo Real Decreto Legislativo n.° 1/2020 para a transposição da [Diretiva 2019/1023]) (4), de 5 de setembro de 2022 (a seguir «TRLC»).

8.        O preâmbulo desta lei enuncia:

«[...]

Quando o devedor insolvente é uma pessoa singular, o processo de insolvência visa identificar os devedores de boa‑fé e oferecer‑lhes uma exoneração parcial das suas dívidas, que lhes permita assim beneficiar de uma segunda oportunidade, evitando a sua passagem para a economia paralela ou para uma situação de marginalidade.

[...]

Uma das alterações mais drásticas da nova regulamentação consiste no facto de, em vez de subordinar a obtenção da exoneração à satisfação de um determinado tipo de dívidas (como previa o artigo 487.°, n.° 2, do [TRLC antes destas alterações]), se adotar um sistema de exoneração por mérito, no qual qualquer devedor, seja ou não empresário, desde que satisfaça o requisito de boa‑fé em que assenta este instituto, pode exonerar‑se de todas as suas dívidas, salvo aquelas que, excecionalmente e pela sua natureza especial, se considere que não podem legalmente ser objeto de exoneração. Mantém‑se a possibilidade, já aceite pelo legislador espanhol em 2015, de conceder a exoneração a qualquer devedor pessoa singular de boa‑fé, seja ou não empresário.

[...]

A boa‑fé do devedor continua a ser a pedra angular da exoneração. Em conformidade com as recomendações dos organismos internacionais, estabelece‑se uma delimitação normativa da boa‑fé, por referência a determinados comportamentos objetivos enumerados de forma exaustiva (numerus clausus), sem recurso a padrões de comportamento vagos ou insuficientemente específicos, ou cuja prova imponha ao devedor um ónus incomportável [...].

[...]

A exoneração de dívidas é alargada a todos os créditos no âmbito do processo coletivo e dos créditos sobre a massa insolvente. As exceções baseiam‑se, em certos casos, na importância especial da sua satisfação para uma sociedade justa e solidária fundada no Estado de Direito (como as dívidas relativas a obrigações de alimentos, as dívidas resultantes de créditos de direito público, as dívidas resultantes de infrações penais ou ainda as dívidas resultantes de responsabilidade extracontratual). Assim, a exoneração das dívidas de direito público está sujeita a certos limites e só pode ocorrer na primeira exoneração de dívidas, e não nas seguintes [...].

[...]»

9.        O artigo 486.° do TRLC prevê:

«O devedor pessoa singular, seja ou não empresário, pode pedir a exoneração das dívidas não pagas nos termos e condições estabelecidos na presente lei, desde que seja devedor de boa‑fé:

1)      Submetendo‑se a um plano de pagamentos sem prévia liquidação da massa insolvente, em conformidade com o regime de exoneração de dívidas previsto na subsecção 1 da secção 3 infra; ou

2)      Através da liquidação da massa insolvente, ficando neste caso a exoneração de dívidas submetida ao regime previsto na secção 3, subsecção 2, infra, se a causa do encerramento do processo de insolvência for o fim da fase de liquidação da massa insolvente ou a insuficiência dessa massa para satisfazer os créditos sobre a mesma.»

10.      O artigo 489.° do TRLC tem a seguinte redação:

«1.      A exoneração de dívidas estende‑se a todas as dívidas não satisfeitas, com exceção das seguintes:

[...]

5)      As dívidas resultantes de créditos de direito público. Não obstante, as dívidas cuja gestão da cobrança seja da competência da [AEAT] podem ser exoneradas até ao montante máximo de 10 000 euros por devedor; para os primeiros 5 000 euros de dívida, a exoneração será total e, a partir desse montante, a exoneração será de 50 % da dívida até ao máximo indicado. Do mesmo modo, as dívidas à segurança social podem ser exoneradas no mesmo montante e nas mesmas condições. O montante exonerado, até ao limite máximo supramencionado, é aplicado por ordem inversa à ordem de prioridade legalmente estabelecida na presente lei e, dentro de cada categoria, em função da sua antiguidade;

[...]

3       Um crédito de direito público pode ser exonerado até ao montante estabelecido no n.° 1, ponto 5, segundo período, mas unicamente na primeira exoneração de dívidas; nenhum montante poderá beneficiar de exoneração nas exonerações sucessivas que o mesmo devedor possa obter.»

III. Factos na origem dos litígios nos processos principais e questões prejudiciais

A.      Processo C289/23

11.      Em 7 de julho de 2022, A. apresentou um pedido de declaração de insolvência e declarou dívidas no valor de 537 787,69 euros. Dado que, em 26 de julho de 2022, o órgão jurisdicional de reenvio declarou a insolvência do devedor e encerrou o processo por insuficiência da massa insolvente em 28 de setembro de 2022, o referido devedor pediu uma exoneração total de dívidas. Em 19 de outubro de 2022, o referido órgão jurisdicional declarou admissível a oposição à exoneração de dívidas deduzida pela AEAT devido à existência de diversos créditos de direito público.

12.      No órgão jurisdicional de reenvio, a AEAT alega, por um lado, que a recusa de exoneração de dívidas se devia à existência, há menos de dez anos, de uma decisão definitiva de reversão da responsabilidade num total de 114 408,09 euros de dívidas e sanções fiscais da responsabilidade da sociedade de que o devedor era administrador, e que, por conseguinte, esse devedor não tinha atuado de boa‑fé. Acrescenta, por outro lado, que determinados créditos são públicos, pelo que estão excluídos da exoneração de dívidas.

13.      O referido órgão jurisdicional tem dúvidas sobre o modo como o legislador espanhol transpôs a Diretiva 2019/1023, em primeiro lugar, no que diz respeito ao conceito de «boa‑fé», que condiciona o acesso à exoneração de dividas e é definido objetivamente (nomeadamente não ter sido objeto de uma reversão da responsabilidade nos dez anos anteriores ao pedido de exoneração de dívidas), e, em segundo lugar, no que diz respeito à exclusão dos créditos públicos.

14.      Relativamente a este último aspeto, o referido órgão jurisdicional explica que a legislação espanhola prevê que os créditos públicos cuja cobrança é da competência da AEAT e da Tesoreria General de la Seguridad Social (Tesouraria Geral da Segurança Social, Espanha) podem ser objeto de uma exoneração parcial de dívidas. Com efeito, para estes créditos, a exoneração é limitada a 10 000 euros por devedor, especificando‑se que, para os primeiros 5 000 euros a exoneração é total e que, a partir desse montante, a exoneração atinge os 50 % do crédito até ao montante máximo de 10 000 euros. O montante exonerado é aplicado por ordem inversa à ordem de prioridade legalmente estabelecida e, dentro de cada categoria de créditos, em função da sua antiguidade.

15.      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em especial, sobre a falta de proporcionalidade da exoneração de dívidas autorizada pela lei em relação ao montante total do passivo, o que pode privar de efeito real a exoneração de dívidas.

16.      Nestas condições, o Juzgado de lo Mercantil n.° 1 de Alicante (Tribunal de Comércio n.° 1 de Alicante) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      a)      Deve o artigo 23.°, n.° 2, da Diretiva [2019/1023] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impede o acesso à exoneração de dívidas, na aceção do artigo 487.°, n.° 1, ponto 2, do [TRLC], na medida em que esse limite não se encontrava previsto na legislação anterior à transposição [desta] diretiva que reconhecia o direito à exoneração e foi introduzido ex novo pelo legislador? Concretamente, pode o legislador nacional, ao transpor a [referida] diretiva, introduzir maiores limitações ao acesso [à exoneração] do que as previstas na legislação anterior, em especial se esse limite não corresponder a nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 23.°, n.° 2, da [mesma] diretiva?

b)            Em caso de resposta negativa do Tribunal de Justiça à questão anterior, deve o artigo 23.°, n.° 2, da Diretiva 2019/1023, ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impede o acesso [à exoneração] quando, nos dez anos anteriores ao pedido de [exoneração], tenha sido aplicada uma sanção [ao devedor], mediante decisão administrativa definitiva, por infrações tributárias muito graves, respeitantes à segurança social ou à ordem social, ou quando, no mesmo prazo, tenha sido proferida uma decisão definitiva de reversão de responsabilidade, exceto se, na data da apresentação do pedido de exoneração, [o devedor] tenha respondido integralmente pela mesma (artigo 487.°, n.° 1, ponto 2, [do] TRLC), na medida em que esta causa implique a alteração do sistema de classificação dos créditos da insolvência?

c)            Em caso de resposta negativa do Tribunal de Justiça à questão anterior, deve o artigo 23.°, n.° 2, da Diretiva [2019/1023], ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impede o acesso [à exoneração] de dívidas na aceção do artigo 487.°, n.° 1, ponto 2, [do] TRLC, quando […] tenha sido proferida uma decisão definitiva de reversão de responsabilidade, exceto se, na data da apresentação do pedido de exoneração, [o devedor] tenha respondido integralmente pela mesma, na medida em que essa circunstância não é adequada para delimitar a má‑fé do devedor? Para esse efeito, é relevante o facto de a insolvência não ter sido declarada culposa?

d)            Em caso de resposta negativa do Tribunal de Justiça à questão anterior, deve o artigo 23.°, n.° 2, da Diretiva [2019/1023], ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impede o acesso à exoneração na aceção do artigo 487.°, n.° 1, ponto 2, [do] TRLC, por infrações ou decisões de reversão de responsabilidade que tenham sido proferidas ou decididas nos 10 anos anteriores ao pedido de exoneração sem ter em conta a data do facto gerador da responsabilidade e o eventual atraso na adoção da decisão de reversão de responsabilidade?

e)            Em caso de resposta negativa do Tribunal de Justiça às questões anteriores, deve o artigo 23.°, n.° 2, da Diretiva [2019/1023], ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impede o acesso à exoneração na aceção do artigo 487.°, n.° 1, ponto 2, [do] TRLC, na medida em que esse limite não tenha sido justificado devidamente pelo legislador nacional?

2)      a)      Deve o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva [2019/1023] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição como a prevista no artigo 487.°, n.° 1, ponto 2, [do] TRLC, que prevê causas que impedem o acesso à exoneração que não constam da lista que figura no artigo 23.°, n.° 4? Concretamente, deve‑se entender que a lista de causas constante do artigo 23.°, n.° 4, é uma lista de numerus clausus ou, pelo contrário, é uma lista de numerus apertus?

b)            Caso a lista seja de numerus apertus e o legislador nacional possa prever exceções diferentes das previstas na Diretiva, o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva [2019/1023] opõe‑se a uma legislação nacional que prevê uma regra geral de não [exoneração] de créditos de direito público, exceto em circunstâncias e montantes muito limitados, independentemente da natureza e das circunstâncias das dívidas concretas de direito público? Em especial, no âmbito do presente processo, é relevante o facto de a legislação anterior, tal como tinha sido interpretada pela jurisprudência do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), permitir alguma exoneração do crédito público e de a legislação de transposição ter limitado o alcance [da exoneração]?

c)            Em caso de resposta negativa do Tribunal de Justiça à questão anterior, deve‑se considerar que o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva [2019/1023], se opõe a uma legislação nacional como a que figura no artigo 489.°, n.° 1, ponto 5, [do] TRLC, que prevê uma regra geral de exclusão da exoneração de créditos públicos (salvo algumas exceções objeto da questão prejudicial seguinte), na medida em que concede um tratamento privilegiado aos credores públicos relativamente aos outros credores?

d)            Em especial, e no que respeita à questão anterior, é relevante o facto de a legislação prever alguma exoneração dos créditos públicos, mas apenas para determinadas dívidas e dentro de limites específicos que não estão relacionados com o montante real da dívida?

e)            Por último, deve o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva [2019/1023], ser interpretado no sentido de que se opõe a uma norma como a prevista no artigo 489.°, n.° 1, ponto 5, [do] TRLC, na medida em que a [exclusão da] exoneração [de dívidas] é justificada pela especial importância do […] pagamento [de certas dívidas] para uma sociedade justa e solidária, baseada no Estado de Direito e que a mesma se refere, em geral, ao crédito público sem ter em consideração a natureza concreta do crédito? Em especial, é relevante, para esse efeito, o facto de a justificação geral ser utilizada tanto para as dívidas constantes da lista do artigo 23.°, n.° 4, [desta] diretiva, como para circunstâncias ou dívidas que não constam dessas listas?»

B.      Processo C305/23 (para memória)

17.      No âmbito de um processo de liquidação judicial que conduziu, nomeadamente, à venda da sua habitação, S.E.I., pessoa singular, solicitou uma exoneração de dívidas e propôs um plano de pagamento das dívidas que considerava não serem suscetíveis de exoneração. A AEAT opôs‑se a este pedido com o fundamento de que, nos dez anos anteriores ao pedido de exoneração, S.E.I. tinha sido punido, por decisão administrativa definitiva (coima de 504,99 euros), por infrações tributárias muito graves e a sanção não tinha sido executada à data do pedido de exoneração de dívidas.

18.      Nestas condições, o Juzgado de lo Mercantil n.° 10 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.° 10 de Barcelona) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça uma série de questões prejudiciais que não são pertinentes no âmbito das presentes conclusões.

19.      Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 21 de junho de 2023, os processos C‑289/23 e C‑305/23 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

20.      S.E.I., o Governo Espanhol e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

IV.    Análise

21.      A pedido do Tribunal de Justiça, a minha análise centrar‑se‑á na segunda questão, alínea d), do processo C‑289/23, com a qual o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se a margem de manobra dos Estados‑Membros na transposição da Diretiva 2019/1023 permite restringir a exoneração dos créditos públicos a limites que não estejam relacionados com o montante real da dívida.

22.      Este processo, além da questão das categorias de créditos que podem não ser objeto de exoneração da dívida, recentemente decidida pelo Tribunal de Justiça (5), suscita a problemática do alcance quantitativo da exclusão dessa exoneração.

23.      A questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio revela que este último se interroga sobre o método do duplo limiar de 5 000 e 10 000 euros, adotado pelo legislador espanhol para a exoneração de dívidas de natureza fiscal ou social sem ter em conta o montante total da dívida fiscal ou social em causa.

24.      Nas suas observações, a Comissão concorda ao indicar que, embora esta limitação vá na direção correta, não existe a certeza de que seja suficiente para respeitar o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva 2019/1023. Subscreve o argumento do órgão jurisdicional de reenvio a favor do respeito do princípio da proporcionalidade em relação ao montante total da dívida na aplicação da exclusão da exoneração de dívidas.

25.      Recorde‑se que a referida diretiva exige que os Estados‑Membros assegurem que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida (6). Este artigo não impõe aos Estados‑Membros que garantam a exoneração total de dívidas dos empresários insolventes.

26.      Além disso, o artigo 23.° da Diretiva 2019/1023 estabelece uma série de situações que podem levar a recusar ou a limitar o acesso ao perdão de dívidas, a prever prazos mais longos para obter um perdão de dívida ou períodos de inibição mais prolongados, quer devido à desonestidade ou má‑fé do devedor (n.° 1), a outros comportamentos do devedor (n.° 2), à natureza do crédito em causa (n.° 4) ou à profissão do empresário (n.° 5).

27.      No entanto, o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva 2019/1023 deve ser interpretado no sentido de que a lista das determinadas categorias de dívida que ali figura não tem caráter exaustivo e de que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida diferentes das enumeradas nessa disposição, quando devidamente justificado (7).

28.      Assim, os Estados‑Membros podem acrescentar categorias específicas de créditos às seis categorias mencionadas nesse artigo 23.°, n.° 4.

29.      O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao artigo 23.°, n.° 2, da Diretiva 2019/1023, que prevê uma lista de seis tipos de comportamento que podem afetar nomeadamente a exoneração de dívidas. Os Estados‑Membros podem igualmente completar esta lista.

30.      Consequentemente, o número de derrogações à exoneração de dívidas pode ser elevado, uma vez que os Estados‑Membros dispõem de uma ampla margem de apreciação nesta matéria para tomar em consideração o seu sistema jurídico, dado o impacto que podem ter essas regras.

31.      O Tribunal de Justiça precisou que o legislador da União sujeitou expressamente o exercício da faculdade assim concedida no artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva 2019/1023 à condição de essas exclusões serem «devidamente justificad[a]s». Acrescentou que, quando o legislador nacional adota tais derrogações, os fundamentos das mesmas devem resultar do direito nacional ou do procedimento que lhes deu origem e que esses fundamentos devem prosseguir um interesse público legítimo (8).

32.      Por conseguinte, a ampla margem de apreciação dos Estados‑Membros para acrescentar categorias específicas de créditos está sujeita a estes dois requisitos, a saber, a existência de uma justificação no direito nacional e a prossecução de um interesse público legítimo.

33.      Além disso, a redação do artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva 2019/1023 indica que, para estas categorias específicas de créditos, os Estados‑Membros podem prever uma exclusão do perdão de dívidas, uma limitação da possibilidade de perdão ou um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados.

34.      Assim, o legislador da União não só permite a exclusão total da exoneração de dívidas como, além disso, não faz referência a um método específico de limitação da possibilidade de exoneração (limite máximo, proporção, limiares com variações de proporção) quando a exclusão é apenas parcial, o que confirma uma vez mais a ampla margem de apreciação deixada aos Estados‑Membros e a inexistência de harmonização na matéria.

35.      Em qualquer caso, seria paradoxal restringir mais a margem de apreciação dos Estados‑Membros para as limitações do que para a exclusão.

36.      Consequentemente, se for concebível uma limitação da exoneração de dívidas proporcional ao montante total das dívidas, nada impede a aplicação de um limite máximo para a exoneração, desde que tanto um como outro método sejam devidamente justificados. Uma exoneração de dívidas com um limite máximo pode ter por efeito incentivar uma reação mais rápida do empresário perante um aumento do montante da dívida. Esse empresário saberá que, além desse limite, sem reação da sua parte, a exoneração não terá lugar.

37.      A única referência a uma proporção encontra‑se no artigo 20.°, n.° 2, da Diretiva 2019/1023, quando se prevê que as dívidas podem ser perdoadas mediante o reembolso parcial das dívidas pelo empresário. Neste caso, a obrigação de reembolso deve ser fixada em função da situação individual do empresário e, em especial, deve ser proporcional aos seus rendimentos e ativos disponíveis durante o prazo para o perdão e ter em conta o interesse equitativo dos credores.

38.      Não me parece que esta referência, neste caso muito específico, a uma proporção entre o reembolso parcial pelo devedor e os seus rendimentos e ativos disponíveis seja suficiente para fazer dela uma obrigação para os Estados‑Membros quando estabelecem limitações da exoneração de dívidas.

39.      A aplicação, pelos Estados‑Membros, do princípio da proporcionalidade na transposição da Diretiva 2019/1023 não exige uma exoneração de dívidas proporcional ao passivo em vez de, por exemplo, uma exoneração de dívidas limitada. Em contrapartida, este princípio impõe aos Estados‑Membros que utilizem meios proporcionados para alcançar o resultado pretendido por aquela diretiva, a saber, a existência de um processo que possa levar à exoneração total das dívidas do empresário insolvente. Cabe, pois, a cada Estado‑Membro avaliar, à luz do seu direito em matéria de insolvência, do seu direito em matéria de garantias, dos regimes matrimoniais e do seu direito fiscal, a forma como este processo pode ser integrado num sistema global, tendo em conta que a própria diretiva não ignora o equilíbrio entre os direitos do devedor e os direitos de um ou vários credores (9).

40.      Não obstante, uma vez que a Diretiva 2019/1023 não procede a uma harmonização das exclusões da exoneração de dívidas e das respetivas modalidades, cabe a cada Estado‑Membro estabelecê‑las, na condição, porém, de que as normas que lhes digam respeito não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes sujeitas ao direito interno (princípio da equivalência) e não impossibilitem na prática ou dificultem excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (10).

41.      Parece‑me que esta diretiva é uma diretiva de harmonização mínima, cujo objetivo consiste em instaurar em cada Estado‑Membro um processo de exoneração total ou parcial de dívidas e que confere aos Estados‑Membros um amplo poder de apreciação quanto às regras de limitação dessa exoneração, desde que tais limitações, no respeito do princípio da efetividade, sejam devidamente justificadas e resultem do direito nacional ou do processo que conduziu a elas.

42.      Por conseguinte, proponho que se responda à segunda questão prejudicial, alínea d), do processo C‑289/23 que o artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva 2019/1023 deve ser interpretado no sentido de que é possível a limitação da exoneração de dívidas relativamente a uma categoria específica de créditos, através do estabelecimento de um limite máximo acima do qual nenhuma exoneração será concedida, desde que essa limitação seja devidamente justificada nos termos do direito nacional ou do processo que conduziu a ela.

V.      Conclusão

43.      Tendo em conta todas as considerações anteriores, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão prejudicial, alínea d), do Juzgado de lo Mercantil n.° 1 de Alicante (Tribunal de Comércio n.° 1 de Alicante) no Processo C‑289/23 como segue:

O artigo 23.°, n.° 4, da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência),

deve ser interpretado no sentido de que:

é possível a limitação da exoneração de dívidas relativamente a uma categoria específica de créditos, através do estabelecimento de um limite máximo acima do qual nenhuma exoneração será concedida, desde que essa limitação seja devidamente justificada nos termos do direito nacional ou do processo que conduziu a ela.


1      Língua original: francês.


i      Os nomes dos presentes processos são nomes fictícios. Não correspondem ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.


2      JO 2019, L 172, p. 18.


3      BOE no 127, de 7 de maio de 2020, p. 31518.


4      BOE no 214, de 6 de setembro de 2022, p. 123682.


5      V. Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos públicos do perdão de dívidas) (C‑687/22, EU:C:2024:287).


6      V. artigo 20.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da referida diretiva.


7      V. Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão das dívidas públicas do perdão de dívidas) (C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 39).


8      V. Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão das dívidas públicas do perdão de dívidas) (C‑687/22, EU:C:2024:287, n.° 42).


9      V. artigo 23.°, n.° 2, alínea f), dessa diretiva.


10      V. Acórdão de 25 de novembro de 2021, ALPINE BAU (C‑25/20, EU:C:2021:963, n.° 32 e jurisprudência aí referida).