Language of document : ECLI:EU:C:2024:260

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

TAMARA ĆAPETA

apresentadas em 21 de março de 2024 (1)

Processos apensos C779/21 P e C799/21 P

Comissão Europeia

contra

Frente Popular para a Libertação de SaguiaelHamra e Rio de Oro (Frente Polisário),

Conselho da União Europeia (C779/21 P)

e

Conselho da União Europeia

contra

Frente Popular para a Libertação de SaguiaelHamra e Rio de Oro (Frente Polisário) (C799/21 P)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Acordo de Associação UE‑Marrocos — Decisão do Conselho que autoriza o alargamento das preferências pautais aos produtos originários do Sara Ocidental — Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisario (C‑104/16 P, EU:C:2016:973) — “Consentimento” do povo do Sara Ocidental — Princípio do efeito relativo dos Tratados — Direito à autodeterminação»






I.      Introdução

1.        Nas suas relações com o resto do mundo, a União Europeia deve respeitar o direito internacional, incluindo os princípios da Carta das Nações Unidas (a seguir «Carta da ONU») (2).

2.        Neste contexto, o Tribunal de Justiça é confrontado com um conjunto de três processos que questionam se as instituições da União respeitaram o direito internacional nas suas relações com o território do Sara Ocidental.

3.        O presente conjunto de recursos suscita a questão de saber se a União Europeia respeitou o direito à autodeterminação e o princípio do efeito relativo dos Tratados quando alterou o acordo de associação com o Reino de Marrocos (3) com vista a alargar as preferências pautais aos bens originários do território do Sara Ocidental (4).

4.        No acórdão recorrido (5), o Tribunal Geral concluiu que a União Europeia não respeitou estas regras de direito internacional consuetudinário, conforme interpretadas pela jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça (6). Por conseguinte, este órgão jurisdicional anulou a Decisão (UE) 2019/217 (7), que aprovou as alterações ao Acordo de Associação (8). O Conselho e a Comissão recorrem agora deste acórdão para o Tribunal de Justiça.

5.        Os presentes recursos estão diretamente relacionados com um conjunto de recursos paralelos que contestam a validade da decisão do Conselho relativa à celebração do Acordo de parceria no domínio da pesca sustentável entre a União Europeia e o Reino de Marrocos (9), que abrange as águas adjacentes ao Sara Ocidental (10), e um reenvio prejudicial que procura obter orientações sobre a rotulagem correta do país de origem dos produtos originários do território do Sara Ocidental (11). Apresento hoje as minhas conclusões em todos estes processos. Devem ser consideradas em conjunto.

6.        Como demonstra a resenha histórica que apresentarei nas presentes conclusões, mas que também é pertinente para as minhas conclusões lidas hoje nos dois outros processos, decorridos quase cinquenta anos desde o início do processo de autodeterminação do povo do Sara Ocidental, este povo não está mais próximo de tomar uma decisão sobre o futuro estatuto do seu território.

7.        Embora tal represente um claro fracasso do processo político sob a égide da ONU, não significa que a resolução da questão do Sara Ocidental possa ser confiada aos órgãos jurisdicionais da União. Estes órgãos jurisdicionais não decidirão o futuro do Sara Ocidental.

II.    Antecedentes dos presentes processos

A.      Breve história da questão do Sara Ocidental

8.        O Sara Ocidental era uma colónia espanhola. O processo de descolonização do território teve início na década de 1960, altura em que Espanha reconheceu o seu estatuto de território não autónomo. Posteriormente, a Assembleia Geral das Nações Unidas acrescentou o Sara Ocidental à lista de territórios não autónomos (12). Ainda consta, na presente data, desta lista (13).

9.        Em 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Resolução 1541 (XV) (14). De acordo com esta resolução, pode considerar‑se que um território não autónomo atingiu a autonomia plena de uma de três formas: por 1) surgimento como Estado soberano independente; 2) livre associação com um Estado independente; ou 3) integração com um Estado independente (15).

10.      Em 1966, a Assembleia Geral das Nações Unidas confirmou o direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e convidou a Espanha a permitir e a organizar o exercício deste direito (16), que Espanha decidiu permitir através de um referendo.

11.      A Frente Polisário (17), um movimento anticolonial criado em 1973 (18), apoiou a ideia de um referendo.

12.      O Reino de Marrocos, contudo, opôs‑se à ideia de que a descolonização deveria ser realizada através de um referendo sobre a autodeterminação. Este Estado considerou que, antes da colonização do Sara Ocidental por Espanha, era (o que é atualmente) o Reino de Marrocos que exercia a soberania sobre este território. Por conseguinte, o Reino de Marrocos assumiu uma posição segundo a qual, durante o processo de descolonização, o Sara Ocidental deveria ser reintegrado no território do Reino de Marrocos (19). Esta posição mantém‑se até à data.

13.      Os pontos de vista divergentes acima referidos sobre a questão de saber quem possuía um título válido sobre o território do Sara Ocidental conduziram ao Parecer Consultivo sobre o Sara Ocidental, solicitado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (20).

14.      Nesse parecer consultivo, o Tribunal Internacional de Justiça (a seguir «TIJ») reconheceu o direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação (21). Declarou igualmente que «os elementos e informações levados ao seu conhecimento não demonstram a existência de nenhum vínculo de soberania territorial entre o território do Sara Ocidental, por um lado, e o Reino de Marrocos ou a entidade mauritana, por outro. O Tribunal não constatou, portanto, a existência de vínculos jurídicos suscetíveis de alterar a aplicação da Resolução 1514 (XV) à descolonização do Sara Ocidental e, particularmente, do princípio da autodeterminação através da expressão livre e autêntica da vontade das populações do território» (22).

15.      Em 1975, interpretando o parecer do TIJ no sentido de que não consagra o direito à autodeterminação do povo do Sara Ocidental, mas antes no sentido de que confirma a soberania histórica do Reino de Marrocos sobre esse território (23), o Rei Hassan II convidou os cidadãos marroquinos para uma «Marcha Verde», durante a qual cerca de 350 000 pessoas entraram no território do Sara Ocidental como demonstração do direito soberano do Reino de Marrocos sobre este território. O Conselho de Segurança das Nações Unidas reagiu, apelando ao Reino de Marrocos para que pusesse imediatamente termo à marcha (24).

16.      Aproximadamente na mesma altura, Espanha, o Reino de Marrocos e a República Islâmica da Mauritânia assinaram a Declaração de Princípios sobre o Sara Ocidental (também conhecida por «Acordos de Madrid») (25), através da qual o território do Sara Ocidental foi dividido entre estes dois últimos Estados. Pouco tempo depois, em janeiro de 1976, o exército marroquino entrou no território do Sara Ocidental.

17.      Em 26 de fevereiro de 1976, a Espanha informou o Secretário‑Geral das Nações Unidas de que tinha posto termo à sua presença no Sara Ocidental e renunciado à sua posição de potência administrante ao abrigo do artigo 73.° da Carta da ONU (26).

18.      No dia seguinte à saída de Espanha do Sara Ocidental, a Frente Polisário declarou a instauração da República Árabe Sarauí Democrática (a seguir «RASD») (27). A sede do Governo da RASD situa‑se num campo de refugiados sarauís em Tindouf (Argélia).

19.      Atualmente, a RASD é reconhecida por 47 Estados‑Membros da ONU (28). Nem a União Europeia nem nenhum dos seus Estados‑Membros reconheceram a RASD.

20.      Após a entrada do Reino de Marrocos no território do Sara Ocidental, e até setembro de 1991, quando foi acordado um cessar‑fogo, o Reino de Marrocos e a Frente Polisário estiveram envolvidos num conflito armado. Deste conflito resultaram mais de 100 000 refugiados do Sara Ocidental, a maioria dos quais vive atualmente em campos de refugiados na Argélia (29).

21.      O cessar‑fogo de 1991 abriu a possibilidade de renovar o diálogo político sobre a resolução da questão do Sara Ocidental. No entanto, como não foi encontrada uma solução, os combates recomeçaram em 2020.

22.      Desde a década de 1970, as Nações Unidas têm‑se empenhado em encontrar uma solução para a descolonização do Sara Ocidental. Nessa altura, a Assembleia Geral das Nações Unidas lançou e posteriormente apoiou a ideia da organização de um referendo através do qual o povo do Sara Ocidental pudesse expressar a sua vontade relativamente ao futuro desse território. A ideia de um referendo sobre a autodeterminação foi renovada num plano de resolução, que foi objeto de um acordo «de princípio» por parte da Frente Polisário e do Reino de Marrocos e que precedeu o cessar‑fogo de 1991.

23.      Para acompanhar, entre outros aspetos, o cessar‑fogo e ajudar na organização desse referendo, o Conselho de Segurança das Nações Unidas instituiu, em abril de 1991, a Missão das Nações Unidas para a organização de um Referendo no Sara Ocidental (a seguir «MINURSO») (30), cujo mandato é prorrogado todos os anos e que continua a existir até à data (31). Apesar de iniciativas suplementares (32) e da finalização, por parte da MINURSO, da lista de pessoas que teriam direito a votar num referendo, até ao momento não foi organizado nenhum referendo.

24.      Para além das Nações Unidas, a União Africana (e a sua antecessora, a Organização de Unidade Africana) também se empenhou em encontrar uma solução para a questão do Sara Ocidental. Apoiou o direito do povo sarauí à autodeterminação. Em 1984, a RASD tornou‑se membro da Organização de Unidade Africana, o que levou o Reino de Marrocos a retirar‑se dessa organização como forma de protesto. Em janeiro de 2017, o Reino de Marrocos apresentou um pedido de adesão e foi reintegrado como membro na União Africana (33).

25.      Em 2006, o Secretário‑Geral das Nações Unidas considerou que as partes teriam de encontrar «um compromisso entre a legalidade internacional e a realidade política», o que só poderia ser alcançado através de negociações diretas (34).

26.      Em 2007, tanto a Frente Polisário como o Reino de Marrocos apresentaram os seus planos para resolver a questão do Sara Ocidental. A Frente Polisário manteve a sua posição segundo a qual o direito à autodeterminação exige a realização de um referendo. O Reino de Marrocos apresentou um plano que prevê a autonomia do Sara Ocidental sob a soberania marroquina (35).

27.      A doutrina indica que, desde 2018, o apoio do Reino de Marrocos ao plano de autonomia de 2007 parece ter vindo a aumentar (36). De igual modo, o discurso das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas parece ter mudado (37). Assim, a partir de 2018, o texto das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o Sara Ocidental sublinha a necessidade de «alcançar uma solução política realista, pragmática, duradoura e mutuamente aceitável para a questão do Sara Ocidental, baseada no compromisso» (38).

28.      Ao mesmo tempo, as recentes resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas reiteram que qualquer solução política tem de prever «a autodeterminação do povo do Sara Ocidental no contexto de mecanismos coerentes com os princípios e objetivos da Carta [da ONU]» (39).

B.      Quanto à pertinência dos Acórdãos Conselho/Frente Polisário e Western Sahara Campaign UK

29.      A União Europeia e os seus Estados‑Membros estabeleceram com o Reino de Marrocos uma Parceria Euro‑Mediterrânica com base num Acordo de Associação celebrado em 1996.

30.      No quadro deste Acordo de Associação, a União Europeia e o Reino de Marrocos celebraram uma série de acordos, nomeadamente o Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012 (40) e o Acordo de parceria no domínio da pesca de 2006 (41).

31.      A Frente Polisário interpôs um recurso de anulação do Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012, que resultou no Acórdão do Tribunal de Justiça Conselho/Frente Polisário.

32.      Em primeira instância, o Tribunal Geral considerou que a Frente Polisário tinha legitimidade para interpor o recurso e anulou a decisão do Conselho que aprovava a celebração do Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012, com base no facto de o Conselho não ter verificado se a exploração dos produtos originários do Sara Ocidental exportados para a União Europeia não era feita em prejuízo da população do referido território (42).

33.      Em sede de recurso, no Acórdão Conselho/Frente Polisário, o Tribunal de Justiça não abordou nem a admissibilidade da argumentação da Frente Polisário nem a conclusão do Tribunal Geral quanto ao mérito. Em vez disso, ao interpretar a expressão «Reino de Marrocos», que designava o território ao qual se aplicava o Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012, o Tribunal de Justiça concluiu que este acordo não se aplicava ao território do Sara Ocidental (43). Por esta razão, o recurso da Frente Polisário foi julgado inadmissível (44).

34.      No n.° 106 do seu Acórdão Conselho/Frente Polisário, o Tribunal de Justiça considerou que «o povo do Sara Ocidental deve ser visto como um “terceiro” na aceção do princípio do efeito relativo dos tratados». Por conseguinte, o povo do Sara Ocidental deve dar o seu «consentimento» para que o Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012 se aplique ao Sara Ocidental, «sem que seja necessário determinar se essa execução é suscetível de o prejudicar ou, pelo contrário, de o beneficiar.»

35.      O Acórdão Western Sahara Campaign UK seguiu um raciocínio semelhante. Neste acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que o Acordo de Parceria no domínio da pesca de 2006, que também faz parte da estrutura criada pelo Acordo de Associação com Marrocos (45), não abrange o território do Sara Ocidental nem as águas adjacentes ao mesmo, pois o termo «Reino de Marrocos» não abrange o território do Sara Ocidental (46). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça concluiu que seria contrário ao direito à autodeterminação e ao princípio do efeito relativo dos Tratados interpretar este acordo como sendo aplicável ao Sara Ocidental.

C.      Quanto ao acordo controvertido e à decisão impugnada

36.      Após o seu Acórdão Conselho/Frente Polisário, «o Conselho autorizou a Comissão a encetar negociações com o Reino de Marrocos com vista ao estabelecimento, nos termos do acórdão do Tribunal da Justiça, de uma base jurídica para a concessão das preferências pautais previstas no Acordo de Associação aos produtos originários do Sara Ocidental» (47).

37.      A decisão impugnada explicava, assim, as razões da celebração do novo acordo da seguinte forma:

«(4)      Desde a entrada em vigor do Acordo de Associação, os produtos provenientes do Sara Ocidental e certificados de origem marroquina foram importados na União com as preferências pautais previstas nas disposições aplicáveis do referido Acordo.

(5)      No [Acórdão Conselho/Frente Polisário], o Tribunal de Justiça precisou, porém, que o Acordo de Associação abrangia apenas o território do Reino de Marrocos, e não o Sara Ocidental, território não autónomo.

(6)      É importante assegurar que os fluxos comerciais que foram desenvolvidos ao longo dos anos não sejam perturbados e estabelecer garantias adequadas para a proteção do direito internacional, incluindo os direitos humanos, e o desenvolvimento sustentável dos territórios em causa. Em 29 de maio de 2017, o Conselho autorizou a Comissão a encetar negociações com o Reino de Marrocos com vista ao estabelecimento, nos termos do acórdão do Tribunal da Justiça, de uma base jurídica para a concessão das preferências pautais previstas no Acordo de Associação aos produtos originários do Sara Ocidental. Um acordo entre a União Europeia e o Reino de Marrocos constitui o único meio de assegurar que a importação de produtos originários do Sara Ocidental beneficia de uma origem preferencial, uma vez que as autoridades marroquinas são as únicas capazes de assegurar a observância das regras necessárias à concessão desse tipo de preferências» (48).

38.      O acordo controvertido foi celebrado em 25 de outubro de 2018, sob forma de troca de cartas. Insere no Acordo de Associação uma declaração comum que alarga o tratamento pautal preferencial aos produtos originários do território do Sara Ocidental.

39.      A declaração comum prevê o seguinte:

«1.      Os produtos originários do Sara Ocidental sujeitos ao controlo das autoridades aduaneiras do Reino de Marrocos beneficiam das preferências comerciais concedidas pela União Europeia aos produtos abrangidos pelo Acordo de Associação.

2.      O Protocolo n.° 4 é aplicável mutatis mutandis para efeitos da definição do caráter originário dos produtos referidos no n.° 1, incluindo no que se refere às provas de origem.

3.      As autoridades aduaneiras dos Estados‑Membros da União Europeia e do Reino de Marrocos ficam encarregadas de assegurar a aplicação do Protocolo n.° 4 a esses produtos» (49).

40.      Tanto as cartas da União Europeia como as do Reino de Marrocos que fazem parte do acordo controvertido referem expressamente que o «[a]cordo é celebrado sem prejuízo das posições respetivas da União Europeia sobre o estatuto do Sara Ocidental e do Reino de Marrocos sobre a referida região».

41.      As cartas reiteram ainda que «[a]mbas as partes reafirmam o seu apoio ao processo das Nações Unidas e apoiam os esforços do secretário‑geral para encontrar uma solução política definitiva em conformidade com os princípios e os objetivos da Carta das Nações Unidas e com base nas resoluções do Conselho de Segurança.»

42.      O acordo controvertido foi aprovado pela União Europeia através da decisão impugnada.

43.      Em reação ao n.° 106 do Acórdão Conselho/Frente Polisário, é apresentada a seguinte explicação nos considerandos 7 a 10 da decisão impugnada:

«(7)      A Comissão avaliou as potenciais repercussões de um tal acordo para o desenvolvimento sustentável, nomeadamente no que se refere às vantagens e desvantagens das preferências pautais concedidas aos produtos do Sara Ocidental para as populações abrangidas e aos efeitos para a exploração dos recursos naturais dos territórios em causa. Dado o seu caráter indireto, os efeitos dos benefícios pautais para o emprego, os direitos humanos e a exploração dos recursos naturais são muito difíceis de avaliar. Além disso, não é fácil obter informações objetivas a esse respeito.

(8)      Não obstante, a avaliação demonstrou que, globalmente, as vantagens para a economia do Sara Ocidental da concessão das preferências pautais previstas no Acordo de Associação aos produtos originários do Sara Ocidental, nomeadamente a potente alavanca económica e, portanto, de desenvolvimento social que representa essa concessão, superam as desvantagens referidas no processo de consultas, designadamente a utilização extensiva dos recursos naturais, sobretudo dos recursos hídricos subterrâneos, relativamente à qual foram tomadas medidas.

(9)      Foi estimado que o alargamento das preferências pautais aos produtos originários do Sara Ocidental terá um impacto globalmente positivo para as populações abrangidas. É provável que esse impacto prossiga e que possa até aumentar no futuro. A avaliação indica que o alargamento do benefício das preferências pautais aos produtos do Sara Ocidental é de molde a promover as condições de investimento e a favorecer um crescimento rápido e significativo, propício ao emprego local. A existência, no Sara Ocidental, de atividades económicas e de produções que teriam o maior interesse em beneficiar das preferências pautais previstas no Acordo de Associação mostra que a não concessão de preferências pautais comprometeria significativamente as exportações do Sara Ocidental, nomeadamente de produtos da pesca e de produtos agrícolas. Foi estimado que a concessão de preferências pautais deverá ter um impacto positivo no desenvolvimento da economia do Sara Ocidental, fomentando o investimento.

(10)      Atendendo às considerações sobre o consentimento no acórdão do Tribunal de Justiça, a Comissão, em ligação com o Serviço Europeu para a Ação Externa, tomou todas as medidas razoáveis e possíveis no contexto atual para associar da forma adequada as populações abrangidas, a fim de assegurar o seu consentimento relativamente a um tal acordo. Foi realizado um vasto processo de consultas e os agentes socioeconómicos e políticos que participaram nas consultas mostraram‑se maioritariamente favoráveis ao alargamento das preferências pautais previstas no Acordo de Associação ao Sara Ocidental. Aqueles que rejeitaram o alargamento consideraram essencialmente que um tal acordo sancionava a posição de Marrocos em relação ao território do Sara Ocidental. Ora, nada nos termos desse acordo permite considerar que é reconhecida a soberania de Marrocos sobre o Sara Ocidental. Além disso, a União envidará esforços redobrados para apoiar o processo de resolução pacífica do diferendo lançado e desenvolvido sob a égide das Nações Unidas.»

D.      Quanto ao acórdão recorrido

44.      Em 27 de abril de 2019, a Frente Polisário interpôs um recurso pedindo a anulação da decisão impugnada.

45.      Em 29 de setembro de 2021, o Tribunal Geral proferiu o acórdão recorrido, através do qual anulou a decisão impugnada(50).

46.      No que diz respeito à admissibilidade do recurso, o Tribunal Geral julgou improcedentes os dois principais fundamentos de inadmissibilidade do Conselho, relativos à capacidade judiciária da Frente Polisário e à sua legitimidade em relação à decisão impugnada (51).

47.      Relativamente ao mérito do recurso, o Tribunal Geral julgou improcedente o primeiro fundamento de anulação da Frente Polisário relativo à alegada falta de capacidade do Conselho para adotar a decisão impugnada (52). Em contrapartida, julgou procedente o terceiro fundamento de anulação da Frente Polisário relativo à obrigação de o Conselho se conformar com as exigências deduzidas da jurisprudência relativa ao direito à autodeterminação e ao princípio do efeito relativo dos Tratados (53). O Tribunal Geral não examinou os outros fundamentos de anulação invocados pela Frente Polisário.

E.      Tramitação processual no Tribunal de Justiça

48.      Com os seus recursos interpostos em 14 de dezembro de 2021 e 16 de dezembro de 2021, a Comissão e o Conselho pedem, respetivamente, que o Tribunal de Justiça anule o acórdão recorrido na sua totalidade, se pronuncie sobre as questões suscitadas, negue provimento ao recurso em primeira instância e condene a Frente Polisário nas despesas. A título subsidiário, estas instituições pedem que o Tribunal de Justiça mantenha os efeitos da decisão impugnada por um período de doze meses a contar da data da prolação do seu acórdão.

49.      Esta linha de ação é apoiada pela Confédération marocaine de l’agriculture et du développement rural, bem como pelos Governos Belga, Espanhol, Francês, Húngaro, Português e Eslovaco.

50.      Foi realizada uma audiência em 23 e 24 de outubro de 2023, na qual a Comissão, o Conselho, a Frente Polisário, a Confédération marocaine de l’agriculture et du développement rural e os Governos Belga, Francês, Espanhol e Húngaro apresentaram alegações orais.

III. Análise

A.      Quanto à interpretação do direito internacional

51.      Em comparação com o sistema jurídico da União ou dos seus Estados‑Membros, o direito internacional é um sistema menos compacto e, no que respeita à determinação da uniformidade do sentido das suas normas, muito mais descentralizado.

52.      Embora o direito internacional tenha o seu próprio sistema de fontes jurídicas (54) e algumas regras de interpretação geralmente aceites (55), não dispõe de um intérprete final cujas interpretações vinculem todos os participantes no sistema (56).

53.      A este respeito, na interpretação do conteúdo das regras do direito internacional consuetudinário que fazem parte do sistema jurídico da União, as instituições da União, incluindo os órgãos jurisdicionais da União, não estão limitadas pelas diferentes interpretações da mesma regra dadas por outros sujeitos do direito internacional (57).

54.      No entanto, ao interpretar o sentido do direito internacional para efeitos da ordem jurídica da União, o Tribunal de Justiça deve determinar se foi alcançado um certo nível de consenso sobre o sentido de uma determinada norma a nível do direito internacional. Tal resulta, a meu ver, do compromisso da União Europeia de contribuir para a rigorosa observância e para o desenvolvimento do direito internacional, como previsto no artigo 3.°, n.° 5, TUE.

55.      Da mesma forma que as instituições da União não estão vinculadas pelas interpretações do direito internacional dadas por outros sujeitos desta ordem jurídica, a interpretação que o Tribunal de Justiça atribui a uma regra de direito internacional só é vinculativa no âmbito da ordem jurídica da União. Contudo, ao atribuir o significado a uma regra de direito internacional, é importante que o Tribunal de Justiça tenha presente o facto de que a sua interpretação tem efeitos ao nível do direito internacional e contribui para a criação do costume e para a elaboração do seu sentido (58).

56.      A interpretação do direito internacional no âmbito do sistema jurídico da União também suscita a questão da relação entre os órgãos jurisdicionais da União e as instituições políticas da União quando se trata de interpretar quais são as obrigações que o direito internacional impõe à União Europeia.

57.      No domínio da política externa da União Europeia, as instituições políticas da União dispõem de uma ampla margem de apreciação (59). A decisão de celebrar um acordo internacional com outro Estado, incluindo a decisão de alargar potencialmente a aplicação desse acordo a um território terceiro, faz parte dessa margem. O Tribunal de Justiça não pode pôr em causa esta escolha.

58.      No entanto, quando é tomada uma decisão política sobre o estabelecimento de relações com um Estado ou território terceiro, o Tribunal de Justiça não só está habilitado a fiscalizar se as relações externas da União Europeia estão em conformidade com as exigências constitucionais impostas pelo TUE e pelo TFUE, como é mesmo obrigado a fazê‑lo (60).

59.      Como o Tribunal de Justiça explicou no seu Acórdão Air Transport Association of America e o., «como resulta do artigo 3.°, n.° 5, TUE, a União contribui para a rigorosa observância e o desenvolvimento do direito internacional. Por conseguinte, quando adota um ato, é obrigada a respeitar o direito internacional na sua totalidade, incluindo o direito internacional consuetudinário que vincula as instituições da União» (61).

60.      Na sua missão constitucional de assegurar o Estado de direito na União Europeia, o Tribunal de Justiça deve, por conseguinte, apreciar se, ao celebrar um acordo internacional, as instituições da União violaram os direitos que as regras de direito internacional consuetudinário conferem aos seus sujeitos.

61.      Tal exige que o Tribunal de Justiça interprete o conteúdo das regras de direito consuetudinário pertinentes. Numa situação em que existe uma opinio juris uniforme sobre a existência de uma obrigação jurídica (como a obrigação de reconhecer o direito à autodeterminação de um TNA), mas não sobre o seu conteúdo exato, a margem de apreciação das instituições políticas da União nas relações externas exige que o Tribunal de Justiça aceite a interpretação escolhida por estas instituições.

B.      Quanto ao âmbito de aplicação dos presentes recursos e à estrutura das presentes conclusões

62.      Em substância, a questão submetida ao Tribunal de Justiça nos presentes recursos diz respeito ao seguinte: a decisão impugnada autorizou a celebração de um acordo com o Reino de Marrocos que abrange o território do Sara Ocidental em violação do direito internacional consuetudinário, mais precisamente, do direito à autodeterminação e do princípio do efeito relativo dos tratados, como interpretado pelos Acórdãos do Tribunal de Justiça Conselho/Frente Polisário e Western Sahara Campaign UK (62)?

63.      Para responder a esta questão, importa ter em conta que a questão de saber se a União Europeia pode estabelecer relações com o território do Sara Ocidental não se insere no âmbito do presente recurso (63); este elemento, que o Tribunal Geral rejeitou em primeira instância, não foi objeto de recurso subordinado (64).

64.      Por conseguinte, a questão submetida ao Tribunal de Justiça limita‑se às conclusões a que o Tribunal Geral chegou, na sua análise do terceiro fundamento apresentado pela Frente Polisário. A este respeito, o Tribunal Geral considerou que a decisão impugnada era contrária ao direito à autodeterminação e ao princípio dos efeitos relativos dos tratados, conforme essas regras foram interpretadas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Conselho/Frente Polisário. Outros aspetos relativos a estas regras foram suscitados separadamente no recurso inicial, mas o Tribunal Geral não os abordou, considerando o recurso procedente com base no terceiro fundamento (65).

65.      Os presentes recursos não permitem, por conseguinte, ao Tribunal de Justiça dar uma interpretação sobre a forma como o direito à autodeterminação rege a relação entre a União Europeia e Marrocos no que respeita ao Sara Ocidental além do que estava em causa no Acórdão Conselho/Frente Polisário.

66.      No entanto, uma vez que algumas das questões suscitadas por estes recursos estão estreitamente relacionadas com as questões que continuam pendentes no Tribunal Geral (66), também as examinarei sucintamente.

67.      A minha análise está estruturada da forma que passo a expor. Começarei por explicar por que razão considero que a Frente Polisário tem legitimidade para interpor o presente recurso (ponto C). Passando ao mérito da causa, demonstrarei em seguida que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao aceitar como procedente o terceiro fundamento da Frente Polisário (ponto D). Para o efeito, interpretarei, em primeiro lugar, os Acórdãos Conselho/Frente Polisário e Western Sahara Campaign UK para precisar que elementos destes acórdãos são pertinentes para o presente conjunto de recursos (subponto D.1). Em segundo lugar, explicarei por que razão a constatação do Tribunal Geral quanto à falta de consentimento no sentido do efeito relativo dos tratados é errada e por que razão, por conseguinte, este órgão jurisdicional considerou incorretamente que a decisão impugnada violava o direito internacional como interpretado no Acórdão Conselho/Frente Polisário (subponto D.2). Em seguida, analisarei se o acordo controvertido celebrado pelo Conselho trata o território do Sara Ocidental como um território separado e distinto, em conformidade com a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao conteúdo do direito à autodeterminação no Acórdão Conselho/Frente Polisário no que respeita a esse território (subponto D.3). Por último, realçarei sucintamente as obrigações decorrentes do direito à autodeterminação que ficaram sem resposta no acórdão recorrido, mas que, contudo, vinculam a União Europeia nas suas relações com o território do Sara Ocidental (ponto E), antes de expor as consequências das minhas conclusões (ponto IV).

C.      Quanto à admissibilidade e possibilidade de invocar o direito internacional consuetudinário perante os órgãos jurisdicionais da União

1.      Legitimidade

68.      A meu ver, o direito da Frente Polisário de interpor o recurso de anulação no presente processo pode decorrer do estatuto jurídico do povo do Sara Ocidental por força parte do direito internacional público que vincula a União Europeia. É este povo que pode alegar que a decisão impugnada lhe diz direta e individualmente respeito.

69.      O povo do Sara Ocidental é titular do direito à autodeterminação, reconhecido pelo Tribunal de Justiça como um princípio de direito internacional consuetudinário que cria obrigações vinculativas para a União Europeia (67).

70.      Este direito, como o Tribunal Geral explicou em substância (68), existe mesmo na falta e antes do ato do seu exercício efetivo. O seu objetivo é, entre outros, permitir a este povo escolher o seu futuro político.

71.      A este respeito, uma vez que o povo do Sara Ocidental é titular de direitos ao abrigo do direito internacional, este povo é também dotado (pelo menos de um tipo derivado) de personalidade jurídica ao abrigo dessa ordem jurídica (69).

72.      No seu Acórdão Venezuela/Conselho (Afetação de um Estado terceiro) (70), o Tribunal de Justiça confirmou que as entidades dotadas de personalidade jurídica ao abrigo do direito internacional podem ter legitimidade para recorrer aos órgãos jurisdicionais da União se um ato das instituições da União lhes disser direta e individualmente respeito (71).

73.      Passo, assim, às condições para que um ato diga direta e individualmente respeito, conforme resultam do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

74.      A decisão impugnada diz diretamente respeito ao povo do Sara Ocidental, enquanto entidade coletiva e, portanto, enquanto unidade com direito à autodeterminação (72).

75.      Em primeiro lugar, esta decisão diz respeito a um território relativamente ao qual o povo do Sara Ocidental é titular do direito à autodeterminação. Por conseguinte, afeta necessariamente os direitos de que as pessoas gozam em relação a esse território, incluindo o direito de gozo dos seus recursos naturais. A decisão impugnada afeta, portanto, o estatuto jurídico do povo do Sara Ocidental.

76.      Em segundo lugar, a obrigação de conceder um tratamento preferencial aos produtos originários do Sara Ocidental vincula a União Europeia sem a necessidade de nenhum ato discricionário adicional à decisão impugnada. A decisão impugnada, portanto, também afeta diretamente o estatuto jurídico do povo do Sara Ocidental.

77.      A decisão impugnada também diz individualmente respeito a este povo.

78.      Trata‑se do único povo ao qual é reconhecida a titularidade do direito à autodeterminação em relação ao território do Sara Ocidental. Por conseguinte, este povo é diferenciado nessa posição de qualquer outro sujeito (73).

79.      No entanto, ao contrário da Venezuela ou de qualquer outro Estado a que se possa reconhecer legitimidade perante o Tribunal de Justiça, o povo do Sara Ocidental não tem um representante eleito ou reconhecido de outra forma (74).

80.      Sem um representante eleito ou reconhecido coletivamente, como pode este povo defender o seu direito coletivo à autodeterminação perante os órgãos jurisdicionais da União (75)?

81.      A Frente Polisário não é reconhecida como «o» representante do povo do Sara Ocidental nem pelas Nações Unidas (76) nem pela União Europeia (77).

82.      A Frente Polisário é um movimento de libertação autoproclamado (78), que surgiu para lutar por um determinado tipo de modelo futuro de governação do território do Sara Ocidental: o da independência deste território em relação ao Reino de Marrocos, bem como a criação de um Estado sarauí soberano e autónomo (79).

83.      No entanto, nunca foi eleita pelo povo do Sara Ocidental para esse papel, nem se pode determinar com certeza se a Frente Polisário tem o apoio do povo (na sua maioria) (80).

84.      Como expliquei no n.° 9 das presentes conclusões, o exercício do direito à autodeterminação implica três resultados possíveis, sendo a formação de um Estado independente apenas um desses três resultados. Reconhecer que a Frente Polisário detém o título «do» representante do povo do Sara Ocidental não estaria, por conseguinte, em conformidade com a posição de neutralidade da União Europeia relativamente ao resultado do processo de autodeterminação (81).

85.      Este tipo de reconhecimento também não constitui uma opção para o Tribunal de Justiça, uma vez que seria contrário à decisão de política externa da União Europeia e dos Estados‑Membros de não reconhecer à Frente Polisário um estatuto especial (82).

86.      No entanto, mesmo que não seja um representante exclusivo, não se pode negar que a Frente Polisário é um interlocutor no processo das Nações Unidas de autodeterminação do território do Sara Ocidental e que pode ser vista nesse processo como refletindo os interesses e os desejos de (pelo menos) parte do povo do Sara Ocidental.

87.      Além disso, esta entidade detém 20 % do território do Sara Ocidental, pelo que exerce um controlo efetivo sobre esse território e o povo que aí vive (83). Por conseguinte, a Frente Polisário tem interesse em defender a integridade territorial do território do Sara Ocidental, como garantida pelo direito à autodeterminação do povo deste território (84).

88.      Daqui resulta, na minha opinião, que, uma vez que a Frente Polisário pretende interpor um recurso nos órgãos jurisdicionais da União para assegurar que o compromisso da União com o território do Sara Ocidental não interfira com os direitos conferidos pelo direito internacional consuetudinário ao povo do Sara Ocidental, há que reconhecer à Frente Polisário um estatuto de representante, pelo menos parcial, desse povo (85).

89.      Se assim não fosse, o povo do Sara Ocidental, que, no seu estado atual, não é inteiramente determinável nem representado por um representante único ou reconhecido, ver‑se‑ia privado da possibilidade de fazer valer, perante os órgãos jurisdicionais da União, os direitos que coletivamente lhe advêm da parte do direito internacional público que também faz parte do direito da União Europeia (86).

90.      Este tipo de resultado não seria compatível com o Estado de direito, valor consagrado no artigo 2.° TUE (87) e que constitui um dos pilares constitucionais da União Europeia (88).

91.      Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça confirme a conclusão do Tribunal Geral de que o recurso em primeira instância é admissível, embora com a substituição da sua fundamentação.

2.      Invocação do direito internacional consuetudinário nos órgãos jurisdicionais da União

92.      Nos seus recursos, a Comissão e o Conselho, baseando‑se no Acórdão Air Transport Association of America e o., alegam ainda que a Frente Polisário não pode invocar o direito internacional consuetudinário perante os órgãos jurisdicionais da União para impugnar a validade da decisão impugnada.

93.      Não subscrevo este entendimento. A meu ver, o Tribunal de Justiça pode exercer o seu poder de fiscalização jurisdicional relativamente à parte do direito internacional que vincula a União Europeia para apreciar a compatibilidade da decisão impugnada de celebrar o acordo internacional controvertido. Esta decisão diz respeito direta e individualmente ao povo do Sara Ocidental, podendo a mesma interferir com os seus direitos ao abrigo dos princípios do direito internacional consuetudinário.

94.      Ao conhecer do presente processo, o Tribunal de Justiça não se transforma, como se alega, num órgão jurisdicional internacional. Pelo contrário, constitui um dever constitucional do Tribunal de Justiça garantir que, na aplicação dos tratados, as instituições da União não violam o direito. Por força do artigo 3.°, n.° 5, TUE, esse direito inclui o direito internacional consuetudinário e os princípios consagrados na Carta da ONU. Além disso, não existe outro órgão jurisdicional que possa conhecer desta impugnação.

95.      Na medida em que os princípios de direito internacional consuetudinário em causa são suficientemente claros para permitir ao Tribunal de Justiça apreciar se o Conselho foi impedido de celebrar o acordo internacional controvertido através da adoção da decisão impugnada, a Frente Polisário pode invocar essas regras de direito internacional perante o Tribunal de Justiça.

D.      O Tribunal Geral julgou erradamente procedente o terceiro fundamento da Frente Polisário

1.      Interpretação do Acórdão Conselho/Frente Polisário

96.      Recorde‑se que o âmbito dos presentes recursos diz apenas respeito à questão de saber se a decisão impugnada violou a interpretação do Tribunal de Justiça no que respeita ao direito à autodeterminação e ao princípio do efeito relativo dos tratados, como interpretado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Conselho/Frente Polisário. Por conseguinte, há que apreciar o que o Tribunal de Justiça pretendeu exatamente estabelecer nesse acórdão.

97.      Para concluir que o acordo controvertido não se aplicava ao território do Sara Ocidental, o Tribunal de Justiça seguiu o seguinte raciocínio.

98.      Reconheceu que o território do Sara Ocidental constitui um território não soberano em aplicação do artigo 73.° da Carta da ONU (89). Em seguida, observou que um território não soberano goza do direito à autodeterminação, que constitui «um direito oponível erga omnes e um dos princípios essenciais do direito internacional» (90). O Tribunal de Justiça considerou, por conseguinte, que o direito à autodeterminação faz parte das regras de direito internacional público aplicáveis às relações entre a União Europeia e o Reino de Marrocos, que os órgãos jurisdicionais da União devem ter em conta (91).

99.      Por força da Carta da ONU, um território não soberano possui um «estatuto separado e distinto» (92). O Tribunal de Justiça concluiu, por conseguinte, que o termo «Reino de Marrocos» não pode ser interpretado no sentido de que inclui o território do Sara Ocidental no âmbito de aplicação do Acordo de Associação (93).

100. O Tribunal de Justiça declarou ainda que um acordo internacional pode vincular um Estado relativamente a outro território, mas que tal intenção deve decorrer desse acordo ou ser determinada de outro modo (94). Considerou, no entanto, que não se pode concluir, contrariamente ao entendimento do Tribunal Geral, que o Acordo de Associação possa ser interpretado no sentido de que prevê tacitamente a sua aplicação ao território do Sara Ocidental (95).

101. Em seguida, o Tribunal de Justiça debruçou‑se sobre o princípio do efeito relativo dos Tratados. Considerou que este princípio constitui um princípio geral de direito internacional, codificado no artigo 34.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (a seguir «Convenção de Viena») (96). De acordo com este princípio, os tratados internacionais não impõem obrigações nem conferem direitos a Estados terceiros sem o consentimento destes (97).

102. Por último, o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 106 do seu Acórdão Conselho/Frente Polisário, objeto de discussão no presente processo, que «o povo do Sara Ocidental deve ser visto como um “terceiro” na aceção do princípio do efeito relativo dos tratados». Por conseguinte, o povo do Sara Ocidental deve dar o seu «consentimento» para que o Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012 se aplique ao território do Sara Ocidental. Isto é assim «sem que seja necessário determinar se essa execução é suscetível de o prejudicar ou, pelo contrário, de o beneficiar» (98).

103. Uma vez que não ficou provado que o povo do Sara Ocidental tivesse dado o seu consentimento para ser afetado pelo Acordo de Associação, o Tribunal de Justiça concluiu que seria contrário ao direito à autodeterminação e ao princípio do efeito relativo dos tratados interpretar este acordo como sendo aplicável ao território do Sara Ocidental (99).

104. Que regras podem ser extrapoladas destas considerações do Tribunal de Justiça?

105. Em relação ao direito à autodeterminação, o Tribunal de Justiça esclareceu duas questões. Em primeiro lugar, declarou que o direito à autodeterminação é uma regra consuetudinária de direito internacional que se aplica erga omnes e, por conseguinte, vincula a União Europeia. Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça considerou que o direito à autodeterminação exige que o Sara Ocidental seja tratado como um território separado do Reino de Marrocos.

106. O Tribunal de Justiça não discutiu o conteúdo do direito à autodeterminação (100). No entanto, indicou que o povo do Sara Ocidental, que goza de um direito à autodeterminação em relação ao TNA do Sara Ocidental, deve dar o seu «consentimento» a um acordo que pretende aplicar‑se a esse território.

107. O Tribunal de Justiça chegou a esta conclusão com base no direito à autodeterminação? Na minha opinião, não. Deduziu a exigência de consentimento das regras que regem o efeito relativo dos tratados e, especialmente, por referência ao artigo 34.° da Convenção de Viena.

108. A União Europeia não é parte na Convenção de Viena e as suas regras não a podem vincular. No entanto, o Tribunal de Justiça entendeu que o artigo 34.° da Convenção de Viena é a expressão de uma regra de direito internacional consuetudinário (101) que vincula a União nas suas ações (102).

109. O artigo 34.° da Convenção de Viena prevê que um tratado não cria obrigações nem direitos para um Estado terceiro sem o consentimento deste. Embora esta disposição se refira ao consentimento dos «Estados», o Tribunal de Justiça considerou que esta mesma regra se aplica aos territórios não autónomos (103).

110. Embora se possa argumentar que essa determinação constitui a interpretação do Tribunal de Justiça do princípio do efeito relativo dos tratados, não se pode, por si só, excluir, do ponto de vista do direito internacional, que o artigo 34.° da Convenção de Viena possa também aplicar‑se a um TNA como um «terceiro» (104).

111. Porém, tal não resolve a questão de saber como, se é que pode, um território não soberano, como o Sara Ocidental, pode prestar o seu consentimento para ficar vinculado por um acordo internacional.

112. No Acórdão Conselho/Frente Polisário, o Tribunal de Justiça não precisou de discutir esta questão. Limitou‑se a explicar que, de facto, o povo do Sara Ocidental não deu o seu consentimento para ficar vinculado por um acordo internacional entre a União Europeia e o Reino de Marrocos. Isto permitiu ao Tribunal de Justiça concluir que o Acordo de Associação não se alargou ao território do Sara Ocidental; nem as partes o previram expressamente, nem o terceiro (neste caso, o povo do Sara Ocidental) deu o seu consentimento a esse alargamento.

113. Neste acórdão, não houve, portanto, necessidade de apreciar como um acordo celebrado com o Reino de Marrocos podia ser legalmente aplicado ao território do Sara Ocidental, pela simples razão de que o Tribunal de Justiça considerou que não se aplicava de todo ao Sara Ocidental. Consequentemente, o Tribunal Geral concluiu corretamente que «no[s] [Acórdãos Frente Polisário/Conselho e Western Sahara Campaign UK] os órgãos jurisdicionais da União não se pronunciaram sobre litígios relativos a acordos entre a União e o Reino de Marrocos que contivessem uma estipulação expressa que incluísse o Sara Ocidental no âmbito de aplicação territorial do acordo», o que é o caso no presente processo.

114. Considerada nesta ótica, a exigência de consentimento, como expressa no n.° 106 do Acórdão Conselho/Frente Polisário, não deve ser entendida como uma instrução sobre a questão de saber se ou como um acordo entre a União Europeia e o Reino de Marrocos poderia abarcar o território do Sara Ocidental. Pelo contrário, esta afirmação deve ser entendida apenas como um dos argumentos que explicam por que razão o âmbito de aplicação do acordo controvertido nesse processo não podia incluir o território do Sara Ocidental.

115. É a esta luz que apreciarei se o Tribunal Geral interpretou corretamente a exigência de consentimento, como refletida no Acórdão Conselho/Frente Polisário.

2.      O efeito relativo dos tratados e a exigência de consentimento

a)      Conclusões do Tribunal Geral

116. No caso em apreço, é incontestável que a intenção da União Europeia e do Reino de Marrocos era celebrar um acordo bilateral que se aplicaria ao território do Sara Ocidental (105).

117. O Tribunal Geral iniciou a sua análise de mérito do terceiro fundamento da Frente Polisário apreciando se o Conselho tinha respeitado a exigência de consentimento, como imposta pelo n.° 106 do Acórdão Conselho/Frente Polisário.

118. Explicou que, no Acórdão Conselho/Frente Polisário, o Tribunal de Justiça não indicou o modo como esse consentimento podia ser expresso (106). Consequentemente, o Tribunal Geral recorreu à Convenção de Viena para determinar os modos como o consentimento pode ser expresso.

119. Em relação aos Estados, a Convenção de Viena trata esta questão nos artigos 35.° e 36.° Por força destas disposições, o consentimento para a aplicação do tratado que impõe obrigações a um terceiro Estado exige uma aceitação expressa por escrito. Em contrapartida, o consentimento é tácito quando um tratado apenas confere direitos ao terceiro Estado.

120. Tendo em conta estas disposições da Convenção de Viena, o Tribunal Geral deduziu que, uma vez que o acordo controvertido não conferia direitos, mas antes impunha obrigações ao povo do Sara Ocidental (107), o consentimento teria de ser dado expressamente (108).

121. O Tribunal Geral apreciou depois a questão de saber se tinha sido obtido o consentimento expresso do povo do Sara Ocidental e concluiu que as consultas realizadas pela Comissão e pelo SEAE não podiam ser entendidas no sentido de terem recolhido o consentimento deste povo (109).

122. Posso concordar com esta constatação do Tribunal Geral.

123. Existe uma diferença entre os conceitos de «população» de um TNA e de «povo» desse TNA, implicando este último uma unidade política, com direito à autodeterminação, enquanto o primeiro visa os habitantes de um território (110).

124. A Comissão e o SEAE realizaram consultas com as «populações em causa», que, como bem observou o Tribunal Geral, abrangiam «no essencial, as populações que se encontram atualmente no território do Sara Ocidental, independentemente da sua pertença ao povo desse território» (111). Estas consultas não podem, por conseguinte, equivaler à obtenção do consentimento do «povo» do território não soberano do Sara Ocidental.

125. As partes e os intervenientes nos presentes recursos argumentaram extensamente sobre a questão de saber se os artigos 35.° e 36.° da Convenção de Viena são sequer aplicáveis a um território não soberano e vinculativos para a União Europeia. Há razões para concluir que estas disposições não codificam regras de direito internacional consuetudinário (112), pelo menos quando o princípio do efeito relativo dos tratados é interpretado como sendo aplicável aos territórios não autónomos. Se esse é, com efeito, o estado atual do direito internacional, essas disposições da Convenção de Viena não podem vincular a União Europeia.

126. No entanto, a meu ver, a questão de saber se os artigos 35.° e 36.° da Convenção de Viena estabelecem, com efeito, o modo como o consentimento deve ser dado no caso de um território não soberano é irrelevante.

127. Como passarei a explicar, a minha posição é que o povo do Sara Ocidental, como «terceiro» na aceção do artigo 34.° da Convenção de Viena, não pode, no seu estado atual de organização, dar sozinho o consentimento necessário. Tal não significa, porém, que o consentimento não possa ser dado em seu nome.

b)      O povo do Sara Ocidental não pode dar o seu «consentimento» para ficar vinculado pelo acordo controvertido

128. É claro o modo como um Estado dá o seu consentimento para ficar vinculado por um acordo internacional. No entanto, está longe de ser claro o modo como um território não soberano pode dar esse consentimento (113).

129. Quando um Estado é um terceiro em relação ao qual dois outros Estados pretendem alargar a aplicação do seu acordo, presume‑se que esse terceiro Estado tem capacidade, ao abrigo do direito internacional, para celebrar ele próprio esse acordo internacional. Precisamente por esta razão, deve dar o seu consentimento se não tiver celebrado o acordo por si próprio, mas aceitar ficar vinculado por um acordo de outros Estados.

130. A situação de «um povo», enquanto guardião do direito à autodeterminação de um território não soberano, é diferente. Este povo não pode celebrar um acordo internacional antes de ter exercido o seu direito à autodeterminação, ou seja, antes de ter atingido um certo grau de autonomia.

131. No caso particular do povo do Sara Ocidental, não existe nenhum representante escolhido ou aceite que possa dar o seu consentimento em seu nome. Mesmo que a Frente Polisário participe nas negociações políticas sobre a resolução da questão do Sara Ocidental, esse papel não é o mesmo que o de um representante eleito ou reconhecido do povo sarauí para expressar a sua vontade coletiva. Este último papel só pode ser atribuído através do exercício do direito à autodeterminação pelo povo sarauí, que a comunidade internacional continua a não conseguir organizar (114).

132. O povo sarauí não pode expressar a sua posição sem um representante eleito ou reconhecido coletivamente. Mesmo que se estabelecesse claramente quais as pessoas que pertencem ao povo sarauí, seria impossível obter o consentimento coletivo deste povo através de consultas com cada um dos membros desse grupo.

133. A partir do momento em que o povo sarauí exercer o seu direito à autodeterminação, adquirirá a capacidade de dar o seu consentimento a um acordo internacional que vincule o seu território ou até mesmo de celebrar ele próprio um tal acordo.

134. Até esse momento, o povo sarauí não pode dar o seu consentimento para ficar vinculado por um acordo internacional.

135. Como explicaram o Conselho e a Comissão, o próprio conceito de não ser autónomo implica que o povo que ainda não exerceu o seu direito à autodeterminação não dispõe de um meio ou de uma estrutura para exprimir os seus desejos ou decisões.

136. Isto significa que ou outra pessoa está habilitada a expressar o seu consentimento para ficar vinculado por um acordo internacional em seu nome ou que esse consentimento não pode ser expresso de todo.

c)      Pode o Reino de Marrocos consentir no acordo controvertido em nome do povo do Sara Ocidental?

137. Se, como indiquei, o povo do Sara Ocidental não pode dar o seu «consentimento», na aceção atribuída a este conceito pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Conselho/Frente Polisário, quer através de consultas à população que vive no território do Sara Ocidental, quer através da Frente Polisário, quem pode aprovar a celebração de um acordo internacional com o território do Sara Ocidental em nome desse povo?

138. O quadro de referência adequado no âmbito do qual se deve responder a esta questão é o direito da descolonização.

139. Esse quadro figura principalmente no capítulo XI da Carta da ONU, com a epígrafe «Declaração relativa a territórios não autónomos», nomeadamente no artigo 73.° (115).

140. Foi neste quadro que o Tribunal de Justiça interpretou o sentido do direito à autodeterminação no Acórdão Conselho/Frente Polisário (116).

141. O capítulo XI da Carta da ONU é uma expressão do compromisso da comunidade internacional para com o direito à autodeterminação no processo de descolonização (117).

142. O artigo 73.° da Carta da ONU enuncia as regras que regulam a situação dos territórios não autónomos antes de poderem exercer o seu direito à autodeterminação.

143. Esta disposição implica, em primeiro lugar, que os territórios cujos povos ainda não se governem completamente a si mesmos sejam administrados por um Estado diferente do desses povos. A disposição refere‑se a esses Estados como «membros [da ONU] que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração» de territórios não autónomos. Designarei estes Estados por «potências administrantes».

144. Antes de o povo de um territórios não autónomos exercer o seu direito à autodeterminação, que é o objetivo último do artigo 73.° da Carta da ONU, é a potência administrante que celebra os acordos internacionais relativos a esses territórios.

145. Daqui resulta que é a potência administrante que está igualmente habilitada a dar o «consentimento» para a aplicação de um acordo celebrado entre dois outros Estados ao território que essa potência administra.

146. O Sara Ocidental é, neste aspeto, um caso único. A lista da ONU de todos os territórios não autónomos restantes indica a potência administrante de cada território, exceto no caso do Sara Ocidental (118).

147. O artigo 73.° da Carta da ONU define as potências administrantes como «os membros das Nações Unidas que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos ainda não se governem completamente a si mesmos» (119).

148. A utilização da expressão «assumiram [...] responsabilidades» parece referir‑se aos Estados que controlavam um território não autónomo no momento da entrada em vigor da Carta da ONU.

149. No caso do Sara Ocidental, o Estado colonial que detinha essa responsabilidade era o Reino de Espanha. No entanto, Espanha renunciou unilateralmente a essa responsabilidade (120).

150. O artigo 73.° da Carta da ONU refere‑se igualmente aos Estados que «assumam responsabilidades» por um território não autónomo.

151. No seu recurso no presente processo, o Conselho considerou que o artigo 73.° da Carta da ONU se aplica ao Reino de Marrocos enquanto potência administrante, uma vez que este Estado assumiu responsabilidades pelo território do Sara Ocidental. Tanto o Conselho como a Comissão confirmaram esta posição na audiência. Segundo as explicações destas instituições, a qualificação do Reino de Marrocos de potência administrante «assumida» decorre do facto de o Reino de Marrocos deter um controlo efetivo sobre a maior parte do território do Sara Ocidental.

152. Se o Reino de Marrocos puder ser juridicamente qualificado de potência administrante do Sara Ocidental, estará habilitado, por força do direito internacional, a celebrar um acordo internacional em nome do território do Sara Ocidental para vincular este território. Terá igualmente poderes para dar o seu consentimento à aplicação de um acordo celebrado entre terceiros Estados ao território do Sara Ocidental, desde que esse acordo cumpra as condições decorrentes do artigo 73.° da Carta da ONU (v. n.os 180 a 190 das presentes conclusões).

153. Alguma doutrina opõe‑se a esta possibilidade, alegando que o estatuto de potência administrante é um estatuto jurídico atribuído pela ONU, que, na falta desse tipo de reconhecimento, não pode ser unilateralmente assumido (121).

154. No entanto, o artigo 73.° da Carta da ONU não associa o estatuto de potência administrante a nenhum tipo de procedimento ou reconhecimento formal. Pelo contrário, a sua redação sugere que se refere a um certo tipo de situação factual.

155. Segundo o direito internacional, um Estado que controla de facto um território tem três qualificações jurídicas possíveis: soberano, administrante ou ocupante (122).

156. Relativamente ao Sara Ocidental, as instituições políticas da União não tratam o Reino de Marrocos como potência ocupante (123), nem como soberana (124), mas sim como potência administrante. Isto significa que aceitam a soberania do povo sarauí sobre o território do Sara Ocidental, embora o Reino de Marrocos detenha atualmente o controlo deste território.

157. Esta posição não está em contradição com a neutralidade assumida pela União Europeia relativamente ao resultado do processo sobre o Sara Ocidental sob a égide da ONU, uma vez que o tratamento como potência administrante não exclui nenhum resultado possível do exercício do direito à autodeterminação (125).

158. Esta interpretação também não parece contrariar o objetivo do direito à autodeterminação, que encontra expressão no artigo 73.° da Carta da ONU, desde que não impeça o povo de um território não autónomo de exercer esse direito no futuro.

159. Por conseguinte, não é contrário ao direito internacional considerar o Reino de Marrocos a potência administrante do Sara Ocidental e, consequentemente, com capacidade para «consentir», em nome do povo do Sara Ocidental como «terceiro» na aceção da interpretação do efeito relativo dos tratados dada pelo Tribunal de Justiça, num acordo que afete o território do Sara Ocidental.

160. Qual é o efeito desta conclusão para a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao conceito de «potência administrante»?

161. Na condução das relações externas da União Europeia, as instituições políticas da União dispõem de uma ampla margem de apreciação (126).

162. Tal entendimento é extensivo à interpretação das normas aplicáveis numa situação, como a que está em causa, em que não existe uma posição clara ao abrigo do direito internacional sobre a questão de saber se se pode considerar que um Estado assumiu a responsabilidade por um território não autónomo, na aceção do artigo 73.° da Carta da ONU, através de um controlo jurisdicional efetivo desse território.

163. Na falta de regras claras de direito da União ou do direito internacional que se oponham a tal posição, a decisão das instituições políticas da União de considerar o Reino de Marrocos potência administrante («de facto»), na aceção do artigo 73.° da Carta da ONU, não pode ser impugnada no Tribunal de Justiça (127).

164. Nesta medida, o Tribunal de Justiça deve aceitar a posição do Conselho e da Comissão enquanto possível interpretação do direito internacional.

165. É certo que o próprio Reino de Marrocos não aceitou o estatuto de potência administrante em relação ao território do Sara Ocidental (128). A sua posição é a de que exerce soberania sobre esse território (129).

166. Contudo, isso não impede a União Europeia de tratar unilateralmente o Reino de Marrocos como a potência administrante («de facto») do território do Sara Ocidental nas suas relações económicas com este último território.

167. A Comissão explicou na audiência que a União Europeia se limitaria a fazê‑lo através da utilização de cláusulas «sem prejuízo», sendo o recurso às mesmas um método aceite (e prático) de estabelecer relações com terceiros Estados ou territórios (130).

168. Todavia, o facto de a União Europeia e o Reino de Marrocos terem acordado discordar sobre o estatuto do Reino de Marrocos em relação ao território do Sara Ocidental ao celebrarem o acordo controvertido pode, como examinarei no ponto E das presentes conclusões, impor exigências adicionais às instituições da União necessárias para cumprir as obrigações decorrentes do direito internacional.

169. A análise exposta, supra, leva‑me a concluir que, ao adotar a decisão impugnada, o Conselho não violou o princípio do efeito relativo dos tratados, como interpretado no Acórdão Conselho/Frente Polisário. Esta instituição obteve o consentimento do povo do Sara Ocidental como terceiro ao acordo controvertido através do Reino de Marrocos, na qualidade de potência administrante deste território.

3.      Tratamento de Marrocos e do Sara Ocidental como territórios separados

170. A única obrigação que o Tribunal de Justiça considerou ser vinculativa para a União Europeia com base no direito à autodeterminação no Acórdão Conselho/Frente Polisário foi a de tratar o território do Sara Ocidental como distinto do território do Reino de Marrocos (131).

171. Esta obrigação não é posta em causa pelo facto de se considerar o Reino de Marrocos uma potência administrante na aceção do artigo 73.° da Carta da ONU. Muito pelo contrário, a atribuição unilateral ao Reino de Marrocos do estatuto de potência administrante, com todas as obrigações conexas decorrentes desse estatuto, nega a este Estado a soberania sobre o território do Sara Ocidental (132).

172. Por outras palavras, o Reino de Marrocos celebrou separadamente com a União Europeia um acordo internacional relativo ao seu próprio território e, em seguida, consentiu na sua aplicação ao território separado do Sara Ocidental, que administra atualmente.

173. Como expliquei nas minhas Conclusões no processo Confédération paysanne (Melões e tomates do Sara Ocidental), que também estão a ser lidas hoje, o tratamento separado do território do Sara Ocidental em relação ao do Reino de Marrocos impõe que as declarações aduaneiras e os rótulos de país de origem dos produtos originários do território do Sara Ocidental indiquem o Sara Ocidental como o seu local de origem, excluindo qualquer indicação da origem no Reino de Marrocos (133). Tal está relacionado, nomeadamente, com os produtos originários do Sara Ocidental que beneficiam de um tratamento preferencial com base no acordo controvertido aquando da sua importação para o território aduaneiro da União Europeia.

174. Daqui resulta que, ao adotar a decisão impugnada, o Conselho não violou a exigência de tratar o território do Reino de Marrocos e o território do Sara Ocidental como dois territórios distintos, exigência que resulta do direito à autodeterminação, segundo a interpretação do Tribunal de Justiça no Acórdão Conselho/Frente Polisário.

4.      Conclusão provisória

175. A decisão impugnada não viola nem o princípio do efeito relativo dos tratados nem o aspeto do direito à autodeterminação que estava em causa no Acórdão Conselho/Frente Polisário.

176. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça anule o acórdão recorrido na parte em que julga procedente o terceiro fundamento da Frente Polisário.

E.      Outras obrigações que vinculam a União Europeia com base no direito à autodeterminação do povo sarauí

177. A observação de que o direito à autodeterminação não foi violado, uma vez que o Tribunal de Justiça teve a oportunidade de o interpretar no seu Acórdão Conselho/Frente Polisário, não conduz necessariamente à conclusão de que as instituições da União respeitaram todas as obrigações decorrentes do direito à autodeterminação aquando da celebração do acordo controvertido com o Reino de Marrocos.

178. O Tribunal de Justiça ainda não teve oportunidade de explicar quais são as outras obrigações que impendem sobre a União Europeia em virtude do direito à autodeterminação do povo sarauí. No entanto, uma vez que esta questão não foi decidida pelo Tribunal Geral, não faz parte do âmbito dos presentes recursos, pelo que o Tribunal de Justiça não pode esclarecer esta questão de forma autónoma no presente processo.

179. Dito isto, considero necessário mencionar sucintamente duas questões decorrentes do direito à autodeterminação que são pertinentes num cenário em que o Reino de Marrocos é tratado pelas instituições da União como a potência administrante («de facto») do território do Sara Ocidental.

180. Em primeiro lugar, o artigo 73.° da Carta da ONU impõe às potências administrantes uma obrigação frequentemente designada por «obrigação de missão sagrada». Esta disposição estabelece o «primado dos interesses dos habitantes [dos territórios não autónomos]» e que as potências administrantes «aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem‑estar dos habitantes desses territórios».

181. Antes de o povo sarauí exercer o seu direito à autodeterminação, o Reino de Marrocos, enquanto administrante («de facto») do seu território, deve agir exclusivamente em benefício dos «habitantes do território» do Sara Ocidental. O consentimento do Reino de Marrocos em nome do povo sarauí, no sentido do efeito relativo dos tratados, deve igualmente respeitar esta obrigação.

182. O artigo 73.° da Carta da ONU atribui, em princípio, a obrigação de «missão sagrada» à potência administrante. No entanto, é evidente que o Tribunal de Justiça não tem competência para julgar o respeito do direito internacional público por parte de um Estado estrangeiro, incluindo os princípios da Carta da ONU.

183. Apesar disso, o direito à autodeterminação consagrado no artigo 73.° da Carta da ONU pode também impor obrigações aos Estados (ou organizações internacionais) que estabelecem relações com uma potência administrante relativamente ao TNA que esta administra.

184. No contexto do presente processo, o Conselho e a Comissão consideraram que a obrigação de «missão sagrada» vincula igualmente a União Europeia nas suas relações com a potência administrante («de facto») do território não autónomo do Sara Ocidental. Mesmo que a União Europeia não seja parte na Carta da ONU, esta vincula‑a nas suas relações externas com base no artigo 21.° TUE.

185. Por conseguinte, pode concluir‑se que as instituições da União só podem celebrar acordos relativos ao Sara Ocidental com o Reino de Marrocos, enquanto potência administrante deste território, se esses acordos beneficiarem os «habitantes desse território».

186. Esta obrigação tem, a meu ver, uma importância acrescida resultante do facto de o Reino de Marrocos se considerar o Estado soberano e não o administrante em relação ao território do Sara Ocidental. Consequentemente, não se considera sujeito à obrigação de «missão sagrada» normalmente assumida pelas potências administrantes ao abrigo do artigo 73.° da Carta da ONU. As instituições da União devem, por conseguinte, certificar‑se de que os acordos celebrados beneficiam os «habitantes do território» do Sara Ocidental, como exigido pelo artigo 73.° da Carta da ONU.

187. Esta conclusão suscita necessariamente questões que não foram discutidas perante o Tribunal Geral: o que se entende por «habitantes do território», expressão que figura no artigo 73.° da Carta da ONU? As consultas realizadas pela Comissão e pelo SEAE cumprem a exigência de as instituições da União verificarem se o acordo controvertido é benéfico para os «habitantes do território»?

188. Em segundo lugar, continua a colocar‑se a questão de saber que obrigações impendem sobre as instituições da União para respeitarem o direito do povo sarauí ao gozo dos recursos naturais do território não autónomo do Sara Ocidental.

189. Pode discutir‑se se o direito de gozo dos recursos naturais é um direito autónomo que emana do princípio da soberania do Estado ou se representa uma componente do direito à autodeterminação (134). No entanto, em ambas as opções, este direito parece fazer parte do direito internacional consuetudinário (135) e, por conseguinte, é vinculativo para a União Europeia.

190. No que se refere à exploração dos recursos naturais dos territórios não autónomos, parece existir um certo consenso, criado em torno da carta de Hans Corell de 2002 (136), segundo o qual a potência administrante pode explorar os recursos naturais, quando as atividades de exploração dos recursos sejam realizadas em benefício da população dos territórios não autónomos ou em consulta com os seus representantes (137).

191. O acordo controvertido, em si mesmo, não autoriza a utilização dos recursos naturais do território do Sara Ocidental. No entanto, afeta indiretamente esse direito. Que obrigações resultam para as instituições da União neste contexto?

192. Poderão as instituições da União concluir que a sua obrigação de não violar o direito do povo sarauí ao gozo dos seus recursos naturais foi cumprida através do resultado das consultas com a população local, em relação à qual a maioria dos que participaram nas consultas avaliou como benéfico o alargamento das tarifas preferenciais aos produtos originários do território do Sara Ocidental?

193. Embora o Tribunal Geral tenha discutido a adequação das consultas no seu acórdão, fê‑lo no contexto de determinar se estas podem equivaler ao «consentimento» dado pelo povo do Sara Ocidental ao acordo controvertido, no sentido do efeito relativo dos tratados (138). Responder à mesma questão no contexto do direito de gozo dos recursos naturais exige uma avaliação nova e diferente.

194. As questões suscitadas na presente secção não foram discutidas no processo no Tribunal Geral. Este órgão jurisdicional, na minha opinião, decidiu erradamente que as instituições da União não respeitaram a exigência de consentimento decorrente do Acórdão Conselho/Frente Polisário. Contudo, estas questões parecem estar abrangidas pelos restantes fundamentos da Frente Polisário invocados no seu recurso de anulação. É por esta razão que considero necessário remeter o presente processo ao Tribunal Geral.

IV.    Consequências

195. Por força do artigo 61.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal de Justiça pode decidir definitivamente o litígio, se estiver em condições de ser julgado.

196. No presente processo, esta condição não está cumprida.

197. Embora conclua que o terceiro fundamento da Frente Polisário invocado em primeira instância deva ser julgado improcedente pelas razões acima expostas, no que respeita aos outros fundamentos ainda não apreciados pelo Tribunal Geral, as condições do litígio não permitem ao Tribunal de Justiça decidi‑lo definitivamente.

198. Por conseguinte, sou de opinião que o processo deve ser remetido ao Tribunal Geral para julgamento (139).

V.      Conclusão

199. Tendo em conta o exposto, supra, proponho que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar parcialmente provimento aos recursos, por falta de mérito, e declarar admissível o recurso interposto pela Frente Popular para a Libertação de Saguia el‑Hamra e Rio de Oro (Frente Polisário);

–        conceder parcialmente provimento aos recursos, anular o acórdão recorrido na parte em que julga procedente o terceiro fundamento invocado pela Frente Polisário e julgar este fundamento improcedente;

–        remeter o processo ao Tribunal Geral da União Europeia para que este decida dos fundamentos sobre os quais ainda não se pronunciou; e

–        reservar para final a decisão quanto às despesas.


1      Língua original: inglês.


2      V. artigo 3.°, n.° 5, TUE.


3      Acordo Euro‑Mediterrânico que cria uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro (JO 2000, L 70, p. 2; a seguir «Acordo de Associação»).


4      Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União Europeia e o Reino de Marrocos sobre a alteração dos Protocolos n.° 1 e n.° 4 do Acordo Euro‑Mediterrânico que cria uma Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro (JO 2019, L 34, p. 4; a seguir «acordo controvertido»).


5      Acórdão de 29 de setembro de 2021, Frente Polisário/Conselho (T‑279/19, EU:T:2021:639; a seguir «acórdão recorrido»).


6      Ou seja, nos Acórdãos de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973; a seguir «Acórdão Conselho/Frente Polisário»), e de 27 de fevereiro de 2018, Western Sahara Campaign UK (C‑266/16, EU:C:2018:118; a seguir «Acórdão Western Sahara Campaign UK»).


7      Decisão do Conselho, de 28 de janeiro de 2019, relativa à celebração do Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União Europeia e o Reino de Marrocos sobre a alteração dos Protocolos n.° 1 e n.° 4 do Acordo Euro‑Mediterrânico que cria uma Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro (JO 2019, L 34, p. 1; a seguir «decisão impugnada»).


8      Acórdão recorrido, n.os 391 e 392.


9      JO 2019, L 77, p. 8; a seguir «Acordo de parceria no domínio da pesca sustentável».


10      Processos apensos C‑778/21 P e C‑798/21 P, Comissão e Conselho/Frente Polisário.


11      Processo C‑399/22, Confédération paysanne (Melões e tomates do Sara Ocidental).


12      Nações Unidas, Relatório do Comité da Informação dos Territórios Não Autónomos, Suplemento n.° 14 (A/5514) (1963), anexo III, «Lista de territórios não autónomos abrangidos pelo capítulo XI da Carta em 31 de dezembro de 1962, classificados por região geográfica», p. 34.


13      Dezassete territórios permanecem inscritos na lista de territórios não autónomos, sendo o Sara Ocidental o único território deste tipo situado em África, disponível em https://www.un.org/dppa/decolonization/en/nsgt.


14      Resolução 1541 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 15 de dezembro de 1960, «Princípios que devem orientar os membros na determinação da existência ou não de uma obrigação de transmitir as informações exigidas pelo artigo 73.°, alínea e), da Carta».


15      V. princípio VI.A do anexo da Resolução 1541 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 15 de dezembro de 1960, Princípios que devem orientar os membros na determinação da existência ou não de uma obrigação de transmitir as informações exigidas pelo artigo 73.°, alínea e), da Carta; referido no Parecer Consultivo sobre o Sara Ocidental (TJI, Recueil 1975, p. 12, n.° 57). V. também Crawford, J., The creation of states in international law, 2.ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2007, p. 621.


16      Resolução 2229 (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 20 de dezembro de 1966, «Questão do Ifni e do Sara espanhol».


17      Frente Popular para a Libertação de Saguia el‑Hamra e Rio de Oro (a seguir «Frente Polisário»).


18      Segundo Deubel (Deubel, T.F., Between homeland and exile: Poetry, memory, and identity in Sahrawi communities, Dissertação de doutoramento, Universidade do Arizona, 2010, p. 76, disponível em http://hdl.handle.net/10150/146067), a identidade sarauí começou a formar‑se em oposição à colonização espanhola. Afirmou‑se na década de 1970 em reação ao processo de descolonização, que influenciou a formação dos movimentos anticoloniais. Os primeiros movimentos anticoloniais foram criados por jovens dirigentes educados nos países vizinhos, incluindo no Reino de Marrocos, e sob a forte influência de movimentos de descolonização existentes noutros países, especialmente na Argélia.


19      V., a este respeito, Parecer Consultivo sobre o Sara Ocidental (TIJ, Recueil 1975, p. 12, n.° 49).


20      Afigura‑se que o parecer consultivo foi solicitado por iniciativa do Reino de Marrocos, que começou por tentar obter o acordo de Espanha para submeter o seu litígio sobre a soberania do Sara Ocidental ao TIJ para que este proferisse uma decisão no âmbito de um processo contencioso. V. Parecer Consultivo sobre o Sara Ocidental (TIJ, Recueil 1975, p. 12, n.os 29 e 36).


21      Parecer consultivo sobre o Sara Ocidental (TIJ, Recueil 1975, p 12, n.° 162).


22      Parecer consultivo sobre o Sara Ocidental (TIJ, Recueil 1975, p 12, n.° 162).


23      Marrocos sublinhou o primeiro período do n.° 162 do Parecer Consultivo sobre o Sara Ocidental (TIJ, Recueil 1975, p. 12), que afirma que «[o]s elementos e informações levados ao conhecimento do Tribunal mostram a existência, no momento da colonização espanhola, de vínculos jurídicos de vassalagem entre o sultão de Marrocos e algumas tribos que viviam no território do Sara Ocidental».


24      Resolução 380 (1975) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 6 de novembro de 1975 (que apela ao Reino de Marrocos para retirar as suas tropas do Sara Ocidental).


25      V. Recueil des traités des Nations unies, vol. 988, p. 259.


26      Esta disposição figura no capítulo XI da Carta da ONU, que trata dos territórios não autónomos. Obriga, nomeadamente, os membros da ONU «que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos ainda não se governem completamente a si mesmos», a «[p]romover o seu governo próprio, ter na devida conta as aspirações políticas dos povos e auxiliá‑los no desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas livres.»


27      A relação atual entre a RASD e a Frente Polisário não é clara, nem foi tornada mais compreensível na audiência.


28      No início, mais países reconheceram a RASD, mas, entretanto, revogaram esse reconhecimento.


29      Relativamente à situação atual e ao número de refugiados, v. ficha informativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, «Algéria», disponível em https://reliefweb.int/report/algeria/unhcr‑algeria‑fact‑sheet‑april‑2023.


30      V. Resolução 690 (1991) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 29 de abril de 1991 (que decide «instituir, sob a sua autoridade, uma Missão [da ONU] para a organização de um Referendo no Sara Ocidental»).


31      Relativamente à última renovação, até 31 de outubro de 2024, v. Resolução 2703 (2023) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 30 de outubro de 2023.


32      V., por exemplo, Plano Baker de 2001 (e a sua revisão de 2003) (formalmente, «Plano de paz para a autodeterminação do povo do Sara Ocidental»), decorrente de conversações sob os auspícios do representante da ONU James Baker III; v., a este respeito, Zunes, S. e Mundy, J., Western Sahara: War, nationalism, and conflict irresolution, 2.ª edição, Syracuse University Press, 2022, capítulo 9.


33      Em 2018, em resposta a esta reintegração, Bernard Mornah, um cidadão ganês, apresentou um pedido contra oito Estados‑Membros da União Africana no Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos, alegando que esses Estados tinham violado várias obrigações por força da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos ao aceitarem reintegrar o Reino de Marrocos na União Africana sem que fosse solicitado a este Estado que cessasse a sua alegada ocupação do território do Sara Ocidental. No entanto, o Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos indeferiu essa impugnação, concluindo que os Estados demandados não tinham violado as suas obrigações por força da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, incluindo o direito à autodeterminação, ao admitir o Reino de Marrocos como membro da União Africana. Ao mesmo tempo, o referido órgão jurisdicional confirmou o direito do povo sarauí à autodeterminação e considerou o direito à autodeterminação uma norma imperativa de direito internacional. V. Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos, Acórdão de 22 de setembro de 2018, Bernard Anbataayela Mornah c. República do Benim e o. [pedido n.° 028/2018), n.° 343, alínea v)].


34      V. relatório do Secretário‑Geral das Nações Unidas de 19 de abril de 2006, «Situation concerning Western Sahara (S/2006/249)», n.os 32 e 34. V. também Allen, S. e Trinidad, J., The Western Sahara question and international law. Recognition doctrine and selfdetermination, Routledge, Oxford, 2024, p. 17.


35      V. Serviço de Investigação do Congresso dos Estados Unidos, «Western Sahara», RS20962, atualizado em 8 de outubro de 2014, p. 4.


36      Também foi alegado que a mudança de política de alguns Estados‑Membros das Nações Unidas pode ter sido motivada pela proclamação do presidente Donald J. Trump em 2020, reconhecendo a soberania do Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental (v. «Proclamação sobre o reconhecimento da soberania do Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental», disponível em https://trumpwhitehouse.archives.gov/presidential‑actions/proclamation‑recognizing‑sovereignty‑kingdom‑morocco‑western‑sahara). Para uma visão detalhada dos desenvolvimentos políticos no Conselho de Segurança das Nações Unidas, da Assembleia Geral e das posições individuais dos Estados‑Membros das Nações Unidas, bem como para uma discussão das implicações do apoio crescente à posição marroquina sobre o Sara Ocidental, v. Allen, S. e Trinidad, J., The Western Sahara question and international law. Recognition doctrine and selfdetermination, Routledge, Oxford, 2024, pp. 47 e segs.


37      V., mais recentemente, Resolução 2703 (2023) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 30 de outubro de 2023.


38      V. por exemplo, Resolução 2703 (2023) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 30 de outubro de 2023, ponto 2. V. também Allen, S. e Trinidad, J., The Western Sahara question and international law. Recognition doctrine and selfdetermination, Routledge, Oxford, 2024, p. 48 (que apresenta a linguagem evolutiva das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas desde 2018).


39      V., mais recentemente, Resolução 2703 (2023) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 30 de outubro de 2023, ponto 4.


40      JO 2012, L 241, p. 4; a seguir «Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012».


41      JO 2006, L 141, p 4; a seguir «Acordo de Parceria no domínio da pesca de 2006».


42      V., neste sentido, Acórdão de 10 de dezembro de 2015, Frente Polisário/Conselho (T‑512/12, EU:T:2015:953, n.os 114 e 241).


43      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.os 82 e segs.


44      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 133.


45      Acórdão Western Sahara Campaign UK, n.os 59 a 61.


46      Acórdão Western Sahara Campaign UK, n.os 64 e 69.


47      Decisão impugnada, considerando 6. V. também Conselho, Resultado da reunião do Conselho, 3544.ª reunião do Conselho, Competitividade (mercado interno, indústria, investigação e espaço) (9716/17, 29 e 30 de maio de 2017), p. 22.


48      Decisão impugnada, considerandos 4 a 6.


49      Declaração comum do Acordo de Associação (JO 2019, L 34, p. 4). Nota de rodapé suprimida.


50      No entanto, este órgão jurisdicional decidiu igualmente manter os efeitos da decisão impugnada durante um período que não exceda o prazo previsto no artigo 56.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia ou, se um recurso for interposto dentro desse prazo, até à prolação do acórdão do Tribunal de Justiça que decida desse recurso. Acórdão recorrido, n.° 396.


51      Acórdão recorrido, n.os 79 a 114 e 133 a 238.


52      Acórdão recorrido, n.os 240 a 250.


53      Acórdão recorrido, n.os 251 a 396.


54      Em conformidade com o artigo 38.°, n.° 1, do Estatuto do TIJ, as fontes do direito internacional são os tratados e as convenções, o costume, os princípios gerais de direito e as decisões e a doutrina. V. também, em termos gerais, Shaw, M. N., International Law, Cambridge University Press, Cambridge, 2006, p. 69 e segs.


55      Os artigos 31.° a 33.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, celebrada em Viena em 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331) (a seguir «CVDT»), estabelecem regras relativas à interpretação dos tratados internacionais. Algumas destas regras podem ser entendidas como a codificação do direito internacional consuetudinário. Por outro lado, o direito internacional consuetudinário exige que o intérprete determine, em primeiro lugar, se uma determinada regra representa o costume e, em seguida, interprete o seu significado numa situação concreta. Para o efeito, é necessário estabelecer a prática e a opinio juris dos Estados. Através desse exercício, o costume pode ainda adquirir um significado diferente num sistema que não dispõe de um intérprete com autoridade. Quanto à diferença entre chegar a uma decisão de que uma determinada regra constitui uma norma de direito internacional consuetudinário e a interpretação posterior do conteúdo dessa regra, v. Merkouris, P., «Interpretation of Customary International Law: Delineating the States in Its Life Cycle», in Merkouris, P., Follesdal, A., Ulfstein, G., Westerman, P. (eds.), The interpretation of customary international law in international courts: Methods of interpretation, normative interactions and the role of coherence, Cambridge University Press, Cambridge, 2023, p. 136.


56      Em conformidade com o artigo 38.°, n.° 1, alínea d), do Estatuto do TIJ, as decisões judiciais, incluindo as deste órgão jurisdicional, são apenas um meio subsidiário para determinar as regras de direito internacional.


57      Para exemplos de padrões de diferença entre interpretações do direito internacional, v. Roberts, A., «Patterns of difference and dominance», in Roberts, A., Is international law international?, Oxford University Press, Oxford, 2017, p. 232 e segs.


58      V., a este respeito, Malenovský, J., «Le juge et la coutume internationale: perspectives de l’Union européenne et de la Cour de justice», The Law and Practice of International Courts and Tribunals, vol. 12, 2013, p. 218 e Odermatt, J., «The European Union’s role in the making and confirmation of customary international law», in Lusa Bordin, F., Müller, A., e Pascual‑Vives, F. (eds), The European Union and Customary International Law, Cambridge University Press, Cambridge, 2023, pp. 74 e 75.


59      V., a este respeito, Acórdãos de 21 de dezembro de 2016, Swiss International Air Lines (C‑272/15, EU:C:2016:993, n.° 24), e de 9 de junho de 2022, Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des études économiques (C‑673/20, EU:C:2022:449, n.° 99) (nos quais o Tribunal de Justiça considerou que, na condução das relações externas, as instituições da União dispõem de uma grande flexibilidade na tomada de decisões políticas, o que implica necessariamente escolhas de natureza política).


60      Assim, considerei que, mesmo no domínio da política externa e de segurança comum, em que a competência do Tribunal de Justiça é limitada, a sua competência para controlar a conformidade da ação da União com os direitos fundamentais não pode ser excluída. V., neste sentido, minhas Conclusões nos processos apensos KS e KD/Conselho e o. e Comissão/KS e KD (C‑29/22 P e C‑44/22 P, EU:C:2023:901, n.os 115 a 120). Este processo ainda está pendente no Tribunal de Justiça.


61      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864, n.° 101) (a seguir «Air Transport Association of America e o.»).


62      No contexto dos argumentos que contestam a validade do terceiro fundamento invocado pela Frente Polisário, o Tribunal Geral considerou que esta parte podia invocar o Acórdão Conselho/Frente Polisário e a interpretação que nele é acolhida do direito à autodeterminação e do princípio do efeito relativo dos tratados para impugnar a validade da decisão impugnada. V. acórdão recorrido, n.° 297.


63      A meu ver, esta questão também não tem qualquer fundamento, uma vez que deve existir uma via para a União Europeia interagir com determinados territórios em que tem um interesse legítimo, sem ter necessariamente de comprometer a imparcialidade da União Europeia ou dos seus Estados‑Membros em relação ao estatuto desses territórios. Esta política assente em dois pilares foi descrita pelos comentadores como procurando abrir «um espaço político e jurídico» que separa o estabelecimento de relações do reconhecimento; v. Fischer, S., «The EU's non‑recognition and engagement policy towards Abkhazia and South Ossetia», Instituto Europeu de Estudos de Segurança (1‑2 de dezembro de 2010), p. 3, e Coppieters, B., «Engagement without recognition», in Vosioka, G., Doyle, J., Newman, E., «Routledge Handbook of State Recognition» (1.ª ed., 2019, Routledge: Londres), p. 243‑244 (que descreve a forma como a abordagem da União relativamente aos territórios contestados segue a fórmula do «não reconhecimento e estabelecimento de relações» ou do «estabelecimento de relações sem reconhecimento»). Para um exemplo prático desta abordagem, no que respeita ao conflito em torno da Abcásia, v. Conselho de Cooperação União Europeia‑Geórgia, 14.ª reunião de 12 de dezembro de 2023 (UE‑GE 4651/1/13), ponto 4.


64      V., neste sentido, acórdão recorrido, n.os  187 a 189 e 240 a 250.


65      Em primeira instância, a Frente Polisário invocou um total de dez fundamentos para o seu recurso, sendo que apenas o primeiro e o terceiro fundamentos constituíram a base do acórdão recorrido. Os outros oito fundamentos também suscitam outras questões de direito internacional, como o respeito pelo direito internacional humanitário (segundo fundamento); o direito à autodeterminação (sétimo fundamento); o efeito relativo dos tratados (oitavo fundamento); o direito da responsabilidade internacional (décimo fundamento), bem como questões de direito da União, como a proteção da confiança legítima e a proporcionalidade (quinto e sexto fundamentos). Uma vez que o Tribunal Geral não apreciou estes fundamentos no acórdão recorrido, os mesmos estão excluídos do âmbito dos presentes recursos.


66      Essas questões também estavam presentes, direta ou indiretamente, nos recursos subjacentes aos Despachos de 19 de julho de 2018, Frente Polisário/Conselho (T‑180/14, não publicado, EU:T:2018:496) (relativo a um protocolo que fixa as possibilidades de pesca nas águas adjacentes ao Sara Ocidental); de 30 de novembro de 2018, Frente Polisário/Conselho (T‑275/18, não publicado, EU:T:2018:869) (respeitante a um acordo relativo aos serviços aéreos celebrado com o Reino de Marrocos); e ao Despacho de 8 de fevereiro de 2019, Frente Polisário/Conselho (T‑376/18, não publicado, EU:T:2019:77) (relativo a uma decisão do Conselho que autoriza a abertura de negociações de um acordo de parceria no domínio da pesca com o Reino de Marrocos à luz do Acórdão Western Sahara Campaign UK).


67      V. Conselho/Frente Polisário, n.os 88 a 89 e  Western Sahara Campaign UK, n.° 63. Quanto a estes acórdãos, v. adiante n.os 96 e segs. das presentes conclusões.


68      V., neste sentido, acórdão recorrido, n.os 295 e 360.


69      V., por exemplo, Weller, M., Escaping the selfdetermination trap, Nijhoff, Leiden, 2008, pp. 16 a 17, e nota 15 («As entidades verdadeiramente coloniais com direito à autodeterminação gozam de personalidade jurídica mesmo antes da administração do ato de autodeterminação, têm direito à unidade territorial, a não serem sujeitas ao uso da força e a medidas repressivas, podem lutar através de um movimento de libertação nacional e, incontestavelmente, receber apoio internacional à sua luta. Podem ainda aplicar unilateralmente o direito dos conflitos armados internacionais, em vez do direito dos conflitos armados internos, muito mais limitado, que abrange os conflitos internos») e Knoll, B, The Legal Status of Territories Subject to Administration by International Organizations, Cambridge University Press, Cambridge, 2009, p. 124) (que considera que «uma entidade é um sujeito de direito na medida em que as regras da ordem jurídica internacional a ela se referem»).


70      Acórdão de 22 de junho de 2021 (C‑872/19 P, EU:C:2021:507).


71      Acórdão de 22 de junho de 2021, Venezuela/Conselho (Afetação de um Estado terceiro) (C‑872/19 P, EU:C:2021:507, n.° 34).


72      Como referido pelo Tribunal Geral no n.° 144 do acórdão recorrido, segundo jurisprudência constante, o requisito segundo o qual a decisão objeto de recurso deve dizer diretamente respeito a uma pessoa singular ou coletiva, conforme previsto no artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, requer a reunião de dois critérios cumulativos. Em primeiro lugar, a medida contestada da União deve produzir diretamente efeitos na situação jurídica do particular. Em segundo lugar, não deve deixar nenhuma margem de apreciação aos seus destinatários que estão incumbidos da sua aplicação, uma vez que tem caráter puramente automático e decorre exclusivamente da regulamentação da União, sem aplicação de outras regras intermediárias. V. também Acórdão de 12 de julho de 2022, Nord Stream 2/Parlamento e Conselho (C‑348/20 P, EU:C:2022:548, n.° 43).


73      Consequentemente, está preenchida a condição estrita de o ato dizer individualmente respeito, decorrente do Acórdão de 15 de julho de 1963, Plaumann/Comissão (25/62, EU:C:1963:17, p. 107).


74      Uma questão algo semelhante foi evitada no processo que deu origem ao Acórdão de 22 de junho de 2021, Venezuela/Conselho (Afetação de um Estado terceiro) (C‑872/19 P, EU:C:2021:507), uma vez que, quando este processo foi submetido pela primeira vez ao Tribunal Geral, a República Bolivariana da Venezuela encontrava‑se no meio de uma luta de reivindicações concorrentes de representação deste país entre Nicolás Maduro e Juan Guaidó, estando os Estados‑Membros divididos quanto à questão de saber quem podia agir na qualidade de presidente da República Bolivariana da Venezuela. No entanto, a questão da capacidade para autorizar um processo judicial em nome desta república não teve de ser abordada pelo Tribunal de Justiça, uma vez que, em janeiro de 2021, o Conselho emitiu conclusões que resolveram esse impasse a favor de Nicolás Maduro. V. Conselho da União Europeia, Conclusões do Conselho sobre a Venezuela (25 de janeiro de 2021, 5582/21).


75      Na audiência, a Comissão considerou que nenhuma das sessenta organizações, ONG, federações de agricultores, representantes locais eleitos, organizações agrícolas ou outros agentes envolvidos nas consultas teria legitimidade para interpor recurso da decisão impugnada.


76      A este respeito, posso concordar com a posição do Conselho e da Comissão, segundo a qual o facto de a Resolução 34/37 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 21 de novembro de 1979, «Questão do Sara Ocidental», se ter referido à Frente Polisário como o representante do povo do Sara Ocidental, não constitui, por si só, prova suficiente para sustentar a alegação de que essa parte é efetivamente reconhecida nessa qualidade pelas Nações Unidas e pela comunidade internacional.


77      Comparemos a situação deste movimento com o papel da Autoridade Palestiniana da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que, «nos termos do Acordo Provisório Israelo‑Palestiniano de 28 de setembro de 1995 sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza [...] pode celebrar acordos internacionais em benefício da Autoridade Palestiniana [...] em determinados domínios». V. proposta de decisão do Conselho relativa à conclusão pela Comunidade Europeia de um Acordo de Associação Provisório Euro‑Mediterrânico sobre comércio e cooperação entre a Comunidade Europeia e a OLP em benefício da Autoridade Palestiniana da Cisjordânia e da Faixa de Gaza (apresentada pela Comissão) (COM(97)51 final).


78      No entanto, nunca foi atribuído à Frente Polisário o título de «movimento de libertação popular» pelas Nações Unidas ou pela União Europeia e os seus Estados‑Membros. Sobre o estatuto e os poderes de um «movimento de libertação popular», v. Crawford, J., Brownlie's Principles of Public International Law, 9.ª edição, Oxford University Press, 2019, p. 113, que explica que as entidades políticas reconhecidas como movimentos de libertação têm uma série de direitos e deveres legais, que abrangem, entre outros, a capacidade de celebrar acordos internacionais vinculativos com outras pessoas coletivas internacionais e o direito de participar nos trabalhos das Nações Unidas como observador, sendo este direito expressamente conferido em várias resoluções da Assembleia Geral.


79      V. também, neste sentido, acórdão recorrido, n.os 6 e 104. Do mesmo modo, o preâmbulo e os artigos 1.°, 24.°, 32.°, 46.°, 144.° e 146.° da «Constituição» da RASD. O seu artigo 32.° explica, nomeadamente, que «até à recuperação completa da soberania nacional, a Frente Polisário será o quadro político que unirá e mobilizará politicamente os sarauís para exprimir as suas aspirações e os seus direitos legítimos à autodeterminação e à independência e para defender a sua unidade nacional e concluir a construção do seu Estado sarauí independente».


80      Se tivéssemos de encontrar um paralelo com a organização de uma sociedade democrática ocidental, a Frente Polisário representaria, na melhor das hipóteses, um dos partidos políticos candidatos a um mandato num governo ainda por estabelecer. No entanto, um partido ainda não eleito não poderia representar esse governo.


81      A posição atual da União Europeia parece ser a de que o processo político sobre a questão do Sara Ocidental deve ter por objetivo encontrar «uma solução política justa, realista, pragmática, duradoura e mutuamente aceitável [...], baseada no “compromisso”»; v. declaração conjunta da União Europeia e de Marrocos para a décima quarta reunião do Conselho de Associação (27 de junho de 2019), n.° 13, disponível em https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2019/06/27/joint-declaration-by-the-european-union-and-the-kingdom-of-morocco-for-the-fourteenth-meeting-of-the-association-council/.


82      V., por analogia, Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Swiss International Air Lines (C‑272/15, EU:C:2016:993, n.° 24) (no qual o Tribunal de Justiça considerou que a condução das relações externas implica decisões de natureza política, para as quais a União Europeia deve poder decidir livremente o tipo de tratamento a conceder a Estados terceiros).


83      V., sobre as consequências decorrentes do controlo efetivo, Parecer Consultivo de 21 de junho de 1971 relativo às consequências jurídicas para os Estados da presença contínua da África do Sul na Namíbia (Sudoeste Africano), não obstante a Resolução 276 (1970) do Conselho de Segurança (TIJ, Recueil 1971, p. 16, n.° 118) (que explica que «o controlo físico de um território, e não a soberania ou a legitimidade do título, é a base da responsabilidade do Estado por atos que afetam outros Estados»).


84      V., a este respeito, Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, Declaração sobre a concessão de independência aos países e povos coloniais (14 de dezembro de 1960) (que declara que «qualquer tentativa que vise a rutura parcial ou total da unidade nacional e da integridade territorial de um país é incompatível com os objetivos e princípios da Carta [da ONU]»).


85      No entanto, esse reconhecimento só deverá ser concedido quando procurar verdadeiramente representar os interesses do povo do Sara Ocidental (ou de parte do mesmo). V., por analogia, Acórdão de 21 de setembro de 2023, China Chamber of Commerce for Import and Export of Machinery and Electronic Products e o./Comissão (C‑478/21 P, EU:C:2023:685, n.° 67) (que condiciona o estatuto de «associação representativa» à existência de interesses gerais e coletivos dos importadores ou exportadores num Estado terceiro, bem como à inexistência de ingerência de um Estado terceiro).


86      V., por analogia, Acórdão de 22 de junho de 2021, Venezuela/Conselho (Afetação de um Estado terceiro) (C‑872/19 P, EU:C:2021:507, n.° 34) (que reconhece o estatuto de «pessoa coletiva» de um Estado terceiro, pois, caso contrário, este Estado não teria nenhuma via para proteger os seus interesses em caso de violação dos seus direitos).


87      V., a este respeito, Acórdãos de 16 de fevereiro de 2022, Hungria/Parlamento e Conselho (C‑156/21, EU:C:2022:97, n.os 127 e 128), e de 16 de fevereiro de 2022, Polónia/Parlamento e Conselho (C‑157/21, EU:C:2022:98, n.os 192 e 193).


88      V., neste sentido, Acórdão de 23 de abril de 1986, Les Verts/Parlamento (294/83, EU:C:1986:166, n.° 23).


89      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 93.


90      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 88 e jurisprudência referida. O Tribunal de Justiça referiu‑se ao parecer consultivo sobre o Sara Ocidental, n.os 54 a 56, e ao Acórdão do TIJ de 30 de junho de 1995 proferido no processo Timor oriental [Portugal c. Austrália] (TIJ, Recueil 1995, p. 90, n.° 29).


91      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 89.


92      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 90. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal de Justiça invocou a Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 24 de outubro de 1970, «Declaração relativa aos princípios do direito internacional relativos às relações amigáveis e à cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas».


93      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 92.


94      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 98.


95      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 99. Para críticas à análise do Tribunal de Justiça da falta de intenção da União Europeia e do Reino de Marrocos em relação ao Acordo de Liberalização das trocas comerciais de 2012 no Acórdão Conselho/Frente Polisário, v. Kassoti, E., «The EU and Western Sahara: an assessment of recent developments», European Law Review, vol. 43(5), p. 746 e segs., que considerou que a intenção das partes de incluir o Sara Ocidental já era clara nas circunstâncias do caso.


96      Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, celebrada em Viena em 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331).


97      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 100.


98      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 106.


99      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 106. Foi também assim que o Tribunal de Justiça resumiu as suas constatações no Acórdão Western Sahara Campaign UK (n.° 63).


100      V., neste sentido, também Molnar, T., «The Court of Justice of the EU and the Interpretation of Customary International Law: Close Encounters of a Third Kind?», in Merkouris, P., Follesdal, A., Ulfstein, G., Westerman, P. (eds), The interpretation of customary international law in international courts: Methods of interpretation, normative interactions and the role of coherence, Cambridge University Press, Cambridge, 2023, pp. 14 e 15 (que considera que «o Tribunal de Justiça da União Europeia se absteve de interpretar verdadeiramente o direito à autodeterminação»).


101      V., neste sentido, Acórdão de 25 de fevereiro de 2010, Brita (C‑386/08, EU:C:2010:91, n.os 44 e 52), e Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 100 (que considera que o artigo 34.° da Convenção de Viena constitui uma «expressão especial» do princípio do efeito relativo dos tratados). Para um exemplo em que a CVDT não refletiu, segundo o Tribunal de Justiça, o direito internacional consuetudinário, v. Acórdão de 16 de junho de 1998, Racke (C‑162/96, EU:C:1998:293, n.° 59).


102      Resulta da jurisprudência que o direito internacional consuetudinário vincula a União Europeia. V., por exemplo, Air Transport Association of America e o., n.° 101 e jurisprudência referida.


103      Antes do Acórdão Conselho/Frente Polisário, o Tribunal de Justiça já tinha considerado que um «terceiro», na aceção do princípio do efeito relativo dos tratados, como consolidado no artigo 34.° da CVDT, não tem de dizer respeito apenas a um «Estado». Assim, no seu Acórdão de 25 de fevereiro de 2010, Brita (C‑386/08, EU:C:2010:91, n.° 52), considerou que interpretar o Acordo de Associação CE‑Israel (JO 2000, L 147, p. 3) no sentido de que as autoridades aduaneiras israelitas estão investidas de competências relativamente a produtos originários da Cisjordânia equivaleria a impor uma obrigação às autoridades aduaneiras palestinianas sem o consentimento da Organização de Libertação da Palestina.


104      Para uma opinião diferente, v. Odermatt, J., «International law as a challenge to EU acts: Front Polisario II», Common Market Law Review, vol. 60(1), nota de rodapé 61 e texto nas pp. 230 e 231.


105      Por conseguinte, o Tribunal de Justiça não pode concluir, como no Acórdão Conselho/Frente Polisário, que o âmbito de aplicação do acordo controvertido não inclui o território do Sara Ocidental.


106      Acórdão recorrido, n.° 311.


107      O Tribunal Geral considerou que o acordo controvertido só era suscetível de criar direitos para os particulares, como os exportadores dos produtos abrangidos por esse acordo, e não para o povo do Sara Ocidental, enquanto «terceiro» a esse acordo. V. acórdão recorrido, n.os 321 e 322. A doutrina e os documentos preparatórios da CVDT consideram certamente que se pode estabelecer uma distinção entre os tratados que criam benefícios factuais para pessoas singulares ou coletivas em terceiros Estados e os que criam direitos e obrigações para esse terceiro Estado. V., a este respeito, Dahm, G., Delbrück, J., Wolfrum, R., Völkerrecht / Der Staat und andere Völkerrechtssubjekte; Räume unter internationaler Verwaltung,  Band I/3 2.ª edição, De Gruyter, Berlin, 2002, p. 617; Fizmaurice, M., «Third Parties and the law of Treaties», in von Bogdandy, A. e Wolfrum, R. (eds), Max Planck Yearbook of United Nations Law, vol. 6, 2002, pp. 104 a 105; e Waldock, H., «Third Report on the Law of Treaties», Yearbook of the International Law Commission, vol. 2, 1964, p. 21 [todos eles estabelecem uma distinção entre verdadeiros tratados a favor de terceiros (ou seja, os que concedem ao terceiro os seus direitos próprios) e tratados a favor de terceiros em sentido técnico (os que oferecem vantagens ao terceiro ou aos seus sujeitos sem participação no tratado ou que conferem determinados direitos)].


108      Acórdão recorrido, n.os 323 a 326.


109      Acórdão recorrido, n.° 384.


110      V., a este respeito, Wrange, P., «Self‑Determination, occupation and the authority to exploit natural resources: trajectories from four European judgments on Western Sahara», Israel Law Review, vol. 52(1), 2019, p. 18.


111      Acórdão recorrido, n.° 337.


112      V., em relação ao artigo 35.° da Convenção de Viena, Laly‑Chevalier, C. e Rezek, F., «Article 35 — Convention de 1969», in Corten, O. e Klein, P. (eds), Les conventions de Vienne sur le droit des traités — commentaire article par article, vol. II, Bruylant, Bruxelas, 2006, p. 1429, e Proells, A., «Article 35 General rule regarding third States» in Dörr, O., Schmalenbach, K. (eds), Vienna Convention on the law of Treaties: A commentary, Springer, Berlim, 2018, p. 707. V. também, em relação ao artigo 36.° da Convenção de Viena, d'Argent, P. In Corten, O. e Klein, P., ibidem, pp. 1468 e 1469, e Proells, A. in Dörr, O., Schmalenbach, K., ibidem, p. 720.


113      V., a este respeito, Odermatt, J., «International law as a challenge to EU acts: Front Polisario II», Common Market Law Review, vol. 60(1), p. 231, que explica que «no caso dos Estados ou das organizações internacionais, é claro o modo como o consentimento deve ser dado: através de consentimento escrito. Como demonstra o caso em apreço, a determinação do consentimento de um terceiro, nomeadamente de um povo que vive sob ocupação, é uma tarefa mais difícil».


114      V., a este respeito, a minha análise nos n.os 79 a 88 das presentes conclusões.


115      Segundo Crawford, a visão habitual, ainda que restritiva, é a de que o capítulo XI se destinava a ser aplicado apenas a «territórios, conhecidos como colónias no momento da aprovação da Carta». O território do Sara Ocidental preenche este critério. V. também Crawford, J., The Creation of States in International Law, 2.ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2007, p. 607.


116      Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.os 23, 93 e 105.


117      Como afirma Crawford, «foi em grande medida através do capítulo XI que os Membros alargaram e elaboraram o funcionamento do direito à autodeterminação». V. Crawford, J., The Creation of States in International Law, 2.ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2007, p. 603.


118      Nações Unidas, «Lista de territórios não autónomos por região», disponível em https://www.un.org/dppa/decolonization/en/nsgt.


119      O sublinhado é meu.


120      V. n.° 17 das presentes conclusões. Nas suas Conclusões no processo Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:677, n.os 188 a 191), o advogado‑geral M. Wathelet sugeriu que a Espanha não podia legalmente renunciar à sua qualidade de potência administrante e que, por conseguinte, não se pode excluir que esse Estado‑Membro continue a ser, até à data, a potência administrante do território do Sara Ocidental.


121      V., por exemplo, Chapaux, V., «The sovereignty over natural resources: “the question of the EU‑Morocco Fisheries Agreement”», in Arts, K. e Pinto Leite, P. (eds), International Law and the Question of Western Sahara, International Platform of Jurists for East Timor, University of Michigan, 2008, p. 241.


122      Torres‑Spelliscy, G., «National Resources in Non‑Self‑Governing Territories», in Boukhars, A. e Rousselier, J. (eds), Perspective on Western Sahara: Myths, Nationalisms and Geopolitics, Rowman & Littlefield, Lanham, 2013, p. 241.


123      Nem a União Europeia nem os seus Estados‑Membros consideram o Reino de Marrocos uma potência ocupante. O mesmo se aplica ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em duas resoluções, que remontam à década de 1970, a Assembleia Geral das Nações Unidas considerou a anexação do Sara Ocidental pelo Reino de Marrocos uma ocupação deste território. Esta situação difere, nomeadamente, da situação relativa ao Estado de Israel e ao território da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que a comunidade internacional, incluindo a União Europeia e os seus Estados‑Membros, considera como uma situação de ocupação. V, nomeadamente, Parecer Consultivo do TIJ de 9 de julho de 2004, sobre as consequências jurídicas da construção de um muro no território palestiniano ocupado (TIJ, Recueil 2004, p. 136, n.° 78). V. também Acórdão de 12 de novembro de 2019, Organisation juive européenne e Vignoble Psagot (C‑363/18, EU:C:2019:954, n.os 34, 35 e 48). A presente situação distingue‑se igualmente da que esteve na origem do Acórdão Timor oriental (Portugal c. Austrália) (TJI, Recueil 1995, p. 90), em que a presença da República da Indonésia em Timor oriental foi considerada pela comunidade internacional uma ocupação. Além disso, Portugal detinha o estatuto de potência administrante desse território. Em contrapartida, grande parte da doutrina considera que o estatuto do Reino de Marrocos no Sara Ocidental é o de ocupante. V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Western Sahara Campaign (C‑266/16, EU:C:2018:1, nota 223).


124      Esta conclusão pode ser retirada com base na sua escolha de tratar o Sara Ocidental como um território não autónomo e o povo sarauí como o titular do direito de escolher o futuro desse território. Da mesma forma, tratar o Reino de Marrocos como uma potência administrante significa que não pode gozar de uma soberania plena, tendo em conta as suas obrigações por força do artigo 73.° da Carta da ONU, incluindo a obrigação de abrir caminho para que o povo sarauí possa escolher a forma de exercer a sua soberania.


125      Esta posição de neutralidade está expressa no considerando 3 da decisão impugnada: «A União não conjetura o resultado do processo político sobre o estatuto final do Sara Ocidental que se desenrola sob a égide das Nações Unidas e continuou a reafirmar o seu empenhamento na resolução do diferendo no Sara Ocidental, inscrito pelas Nações Unidas na lista de territórios não autónomos, onde ainda figura atualmente, administrado hoje em dia, em grande parte, pelo Reino de Marrocos. A União apoia sem reservas os esforços envidados pelo Secretário‑Geral das Nações Unidas e pelo seu enviado pessoal para ajudar as partes a encontrar uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sara Ocidental no âmbito de acordos conformes aos princípios e objetivos da Carta das Nações Unidas tal como enunciados nas resoluções do Conselho de Segurança das Nações, nomeadamente as Resoluções 2152 (2014), 2218 (2015), 2385 (2016), 2351 (2017) e 2414 (2018).»


126      V., nomeadamente, Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Swiss International Air Lines (C‑272/15, EU:C:2016:993, n.° 24).


127      A ampla margem de apreciação de que as instituições da União dispõem nas relações externas (comerciais), na parte em que essa gestão implica apreciações políticas e económicas complexas, significa que o Tribunal de Justiça só pode exercer as suas competências de fiscalização nos casos em que essas instituições tenham cometido um erro manifesto. V., neste sentido, Acórdão de 4 de outubro de 1983, Fediol/Comissão (191/82, EU:C:1983:259, n.° 30). Isto significa que, se não existirem regras internacionais claras com base nas quais o Tribunal de Justiça possa proceder a essa fiscalização, a interpretação escolhida pelas instituições da União não pode representar um erro manifesto.


128      V. também, a este respeito, Acórdão Western Sahara Campaign UK, n.° 72 (em que o Tribunal de Justiça explicou que «o Reino de Marrocos excluiu categoricamente ser uma potência ocupante ou uma potência administrante do território do Sara Ocidental»).


129      Presumo que é também por essa razão que o Reino de Marrocos não parece transmitir relatórios regulares às Nações Unidas relativos ao território do Sara Ocidental, como seria exigido a uma potência administrante por força do artigo 73.°, alínea e), da Carta da ONU.


130      V., por exemplo, Acordo de Estabilização e de Associação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Kosovo *, por outro (JO 2016, L 71, p. 3; a seguir «Acordo de Associação UE‑Kosovo») [este acordo, na parte pertinente, especifica que «em nada prejudica as posições sobre o estatuto e está em consonância com a Resolução 1244/1999 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e com o parecer do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) sobre a declaração de independência do Kosovo»], Acordo de parceria económica entre os Estados do Cariforum, por um lado, e a Comunidade Europeia e os seus Estados‑Membros, por outro (JO 2008, L 289, p. 3) e Acordo de Parceria Económica entre a União Europeia e os seus Estados‑Membros, por um lado, e os Estados do APE SADC, por outro (JO 2016, L 250, p. 3), cujo anexo IX do protocolo n.° 1 e anexo VIII contêm, respetivamente, uma lista de vários territórios não autónomos que «não prejudica o estatuto destes países e territórios nem a evolução desse estatuto».


131      V., neste sentido, Acórdão Conselho/Frente Polisário, n.° 92.


132      Como explica Crawford, «na medida em que a soberania implica o direito irrestrito de controlar ou dispor do território em questão, a obrigação prevista no artigo 73.°, alínea b), e o princípio associado da autodeterminação limitam substancialmente a soberania de um Estado administrante». V. Crawford, J., The Creation of States in International Law, 2.ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2007, p. 615. O facto de o Reino de Marrocos não exercer a «plenitude» das suas competências soberanas sobre o território do Sara Ocidental foi também uma das razões pelas quais o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973, n.° 95), concluiu que o Acordo de Associação não se aplicava a este território.


133      V. minhas Conclusões no processo C‑399/22, Confédération paysanne (Melões e tomates do Sara Ocidental), n.° 138.


134      Em relação aos territórios não autónomos, a Resolução 50/33 da Assembleia Geral das Nações Unidas, por exemplo, «reafirma o direito inalienável dos povos dos territórios coloniais e não autónomos à autodeterminação e independência e ao gozo dos recursos naturais dos seus territórios, bem como o seu direito de dispor desses recursos no seu melhor interesse». A Resolução 1803 (XVII) da Assembleia Geral das Nações Unidas, por exemplo, qualifica o direito de soberania permanente sobre as riquezas e os recursos naturais como «um elemento fundamental do direito à autodeterminação» (Doc. A/RES/1803 (XVII) da ONU, de 14 de dezembro de 1962, preâmbulo, n.° 2).


135      V., por exemplo, Gilbert, J., Natural Resources and Human Rights: An Appraisal, Oxford University Press, Oxford, 2018, p. 12 e doutrina referida.


136      Carta de 29 de janeiro de 2002 do Subsecretário‑Geral dos Assuntos Jurídicos, consultor jurídico, dirigida ao presidente do Conselho de Segurança (S/2002/161).


137      Ibidem, n.° 24. Como o Tribunal Geral assinalou com razão, esta carta não constitui uma fonte de direito e, de qualquer modo, não é juridicamente vinculativa. V. acórdão recorrido, n.° 385. No entanto, a opinião de Corell adquiriu um peso significativo na doutrina, que a admite frequentemente como a interpretação correta do direito internacional. V., por exemplo, Torres‑Spelliscy, G., «National Resources in Non‑Self‑Governing Territories», in Boukhars, A. e Rousselier, J. (eds), Perspective on Western Sahara: Myths, Nationalisms and Geopolitics, Rowman & Littlefield, Lanham, 2013, p. 235.


138      Acórdão recorrido, n.os 328 a 384.


139      V. segunda alternativa no artigo 61.°, primeiro parágrafo, segundo período, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.