Language of document : ECLI:EU:C:2022:334

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ATHANASIOS RANTOS

apresentadas em 28 de abril de 2022 (1)

Processo C295/21

Allianz Benelux SA

contra

Estado belga, SPF Finances

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Diretiva 90/435/CEE — Regime fiscal comum aplicável às sociedades‑mães e sociedades afiliadas de Estados‑Membros diferentes — Artigo 4.o — Proibição de tributar lucros distribuídos — Reporte de excedentes de rendimentos definitivamente tributados para exercícios fiscais posteriores — Incorporação da sociedade que auferiu os lucros noutra sociedade — Regulamentação nacional que limita a transferência desses excedentes para a sociedade incorporante»






I.      Introdução

1.        Com o presente pedido de decisão prejudicial, a cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica) solicita ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a conformidade com o artigo 4.o da Diretiva 90/435/CEE (2), lido em conjugação com a Diretiva 78/855/CEE (3) e com a Diretiva 82/891/CEE (4), da prática belga que consiste em limitar o montante dos excedentes dos rendimentos definitivamente tributados (a seguir «RDT») transferido da sociedade incorporada para a sociedade incorporante quando da fusão das sociedades.

2.        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a companhia de seguros Allianz Benelux SA, com sede na Bélgica, ao Serviço Público Federal de Finanças (Bélgica) a propósito da determinação do resultado tributável dessa sociedade a título do imposto sobre as sociedades no que respeita aos exercícios fiscais relativos aos anos de 2004 a 2007.

3.        O Tribunal de Justiça já se debruçou, por diversas vezes, sobre o regime belga do imposto sobre o rendimento das sociedades e, em especial, sobre o regime dos RDT, que permite que os lucros em causa sejam deduzidos da matéria coletável de uma sociedade quando determinados requisitos muito específicos (5) estejam preenchidos. Embora o presente pedido de decisão prejudicial se inscreva na continuidade dos processos anteriormente submetidos à apreciação do Tribunal de Justiça, que diziam respeito à transferência dos excedentes dos RDT entre sociedades do mesmo grupo, caracteriza‑se, porém, pela existência de um contexto factual diferente, dado que se refere à transferência de excedentes dos RDT, realmente entre sociedades do mesmo grupo, mas provenientes de sociedades anteriormente independentes. Por conseguinte, coloca‑se a questão de saber se os princípios consagrados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça podem ser aplicados num litígio que tem fundamentalmente por objeto determinar se a limitação do reporte de uma dedução de natureza fiscal quando da sua transferência no âmbito de uma fusão é conforme ao direito da direito da União.

4.        Pelos fundamentos expostos nas presentes conclusões, considero que se deverá responder pela negativa à questão colocada.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Diretiva 90/435

5.        Importa sublinhar que o órgão jurisdicional de reenvio não indica qual a versão da Diretiva 90/435 aplicável no presente caso. Ora, uma vez que os exercícios fiscais controvertidos eram relativos aos anos de 2004 a 2007, tanto a versão inicial dessa diretiva como a versão alterada (6) são aplicáveis. Todavia, as alterações introduzidas no artigo 4.o da Diretiva 90/435 pela Diretiva 2003/123 não têm implicações ao nível do presente processo.

6.        Nos termos do terceiro considerando da Diretiva 90/435:

«Considerando que as disposições fiscais que regem atualmente as relações entre sociedades‑mães e afiliadas de Estados‑Membros diferentes variam sensivelmente de uns Estados‑Membros para os outros e são, em geral, menos favoráveis que as aplicáveis às relações entre sociedades‑mães e afiliadas de um mesmo Estado‑Membro; que, por esse facto, a cooperação entre sociedades de Estados‑Membros diferentes é penalizada em comparação com a cooperação entre sociedades de um mesmo Estado‑Membro; que se torna necessário eliminar essa penalização através da instituição de um regime comum e facilitar assim os agrupamentos de sociedades à escala comunitária.»

7.        O artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva tinha a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros aplicarão a presente diretiva:

—        à distribuição dos lucros obtidos por sociedades desse Estado e provenientes das suas afiliadas de outros Estados‑Membros,

—        à distribuição dos lucros efetuada por sociedades desse Estado a sociedades de outros Estados‑Membros, de que aquelas sejam afiliadas,

[…]»

8.        O artigo 4.o da referida diretiva estabelecia:

«1.      Sempre que uma sociedade‑mãe ou o seu estabelecimento estável, em virtude da associação com a sociedade sua afiliada, obtenha lucros distribuídos de outra forma que não seja por ocasião da liquidação desta última, o Estado da sociedade‑mãe e o Estado do estabelecimento estável da sociedade‑mãe:

—        ou se abstém de tributar esses lucros,

—        ou os tributa, autorizando a sociedade‑mãe e o estabelecimento estável a deduzir do montante do imposto devido a fração do imposto sobre as sociedades pago sobre tais lucros pela sociedade afiliada e por qualquer sociedade sub‑afiliada, sob condição de cada sociedade e respetiva sociedade sub‑afiliada satisfazerem em cada nível os requisitos previstos nos artigos 2.o e 3.o, até ao limite do montante do correspondente imposto devido.

—        […]

2.      Todavia, todos os Estados‑Membros conservam a faculdade de prever que os encargos respeitantes à participação e as menos‑valias resultantes da distribuição dos lucros da sociedade afiliada não sejam dedutíveis do lucro tributável da sociedade‑mãe. Se, nesse caso, as despesas de gestão relativas à participação forem fixadas de modo forfetário, o montante forfetário não pode exceder 5 % dos lucros distribuídos pela sociedade afiliada.

[…]»

9.        A Diretiva 90/435 foi revogada pela Diretiva 2011/96/EU (7), que entrou em vigor em 18 de janeiro de 2012. Porém, tendo em atenção a data em que ocorreram os factos do litígio no processo principal, a Diretiva 90/435 é‑lhes aplicável ratione temporis.

2.      Diretiva 78/855

10.      O artigo 19.o, n.o 1, da Diretiva 78/855 estabelece:

«1.      A fusão produz ipso iure e simultaneamente os seguintes efeitos:

a)      A transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, tanto no que a estas respeita, como relativamente a terceiros;

[…]»

B.      Direito belga

11.      O artigo 202.o do Código dos Impostos sobre os Rendimentos de 1992, na versão que se encontrava em vigor quando ocorreram os factos do litígio no processo principal (a seguir «CIR 1992»), prevê, no que respeita ao regime dos RDT:

«1.      Dos lucros do período de tributação também são deduzidos, desde que existam:

1.o      os dividendos, com exceção dos rendimentos obtidos por ocasião da cessão a uma sociedade das suas próprias ações ou participações sociais ou da partilha total ou parcial dos ativos de uma sociedade;

[…]»

12.      Nos termos do artigo 204.o, primeiro parágrafo, do CIR 1992:

«Os rendimentos que, de acordo com o disposto no artigo 202.o, § 1, 1.o, 3.o e 4.o, podem ser deduzidos devem fazer parte dos lucros do período de tributação até 95 % do montante recebido ou obtido eventualmente majorado das retenções na fonte reais ou fictícias […].»

13.      O artigo 205.o, n.o 2, do CIR 1992, está redigido nos seguintes termos:

«A dedução prevista no artigo 202.o está limitada ao montante dos lucros do período de tributação, após aplicação do artigo 199.o […].»

14.      O artigo 206.o, n.o 1, do CIR 1992, relativo à dedução dos prejuízos anteriores, dispõe:

«As perdas profissionais anteriores são sucessivamente deduzidas dos rendimentos profissionais de cada um dos períodos de tributação seguintes.»

15.      Nos termos do artigo 206.o, n.o 2, segundo parágrafo, do CIR 1992:

«Em caso de fusão ocorrida ao abrigo do artigo 211.o, § 1, as perdas profissionais suportadas por uma sociedade incorporada antes dessa fusão são dedutíveis pela sociedade incorporante na proporção da parte que representa o ativo líquido fiscal antes da fusão dos elementos incorporados da sociedade referida em primeiro lugar, no total, também antes da fusão, do ativo líquido fiscal da sociedade incorporante e do valor fiscal líquido dos elementos incorporados […].»

III. Litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

16.      No ano de 1995, a companhia de seguros AGF L’Escaut SA incorporou duas companhias de seguros belgas. Em 1999, outra companhia de seguros, a Assubel‑Vie SA, incorporou a AGF L’Escaut e cinco outras companhias de seguros.

17.      As sociedades incorporadas pela AGF L’Escaut e pela Assubel‑Vie, agora unidas sob a denominação social Allianz Benelux, dispunham de excedentes de RDT, que podiam ser reportados para os exercícios seguintes. Tinham, portanto, recebido, antes dessas fusões, dividendos das suas participações noutras sociedades, embora sofressem prejuízos.

18.      A Allianz Benelux reportou integralmente esses excedentes dos RDT durante os exercícios do período compreendido entre 2004 e 2007. Esse reporte integral foi indeferido pela Administração Fiscal.

19.      Na sequência de uma reclamação desse indeferimento apresentada pela Allianz Benelux, o diretor regional competente da autoridade tributária, por Decisão de 19 de dezembro de 2012, autorizou a transferência dos excedentes dos RDT para a sociedade incorporante, mas apenas na proporção prevista em matéria de perdas recuperáveis por essa sociedade no contexto de uma fusão (8). O indeferimento parcial do reporte dos excedentes dos RDT traduziu‑se assim num aumento da matéria coletável da referida sociedade num montante total de cerca de 13,6 milhões de euros pelos exercícios de tributação relativos aos anos de 2004 a 2007.

20.      A Allianz Benelux interpôs recurso dessa decisão no tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas, Bélgica). Por Decisão de 20 de maio de 2016, esse órgão jurisdicional julgou improcedente o pedido de reporte integral dos excedentes do RDT.

21.      A Allianz Benelux interpôs recurso dessa decisão para o órgão jurisdicional de reenvio. Essa sociedade alegou que o não reporte integral para uma sociedade incorporante dos RDT reportáveis de que dispunha uma sociedade incorporada implica, em primeiro lugar, tributar esses rendimentos, em segundo lugar, violar o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435 bem como, em terceiro lugar, violar o princípio da neutralidade fiscal.

22.      Nestas condições, a cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva [90/435], eventualmente conjugado com as disposições das Diretivas [78/855] e [82/891] sobre o direito das sociedades, ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que os lucros distribuídos a que se refere a diretiva são incluídos na matéria coletável da sociedade beneficiária dos dividendos antes de dela serem deduzidos até 95 % do seu montante e, se for caso disso, são objeto de reporte para os exercícios fiscais posteriores mas que, por não existir uma disposição específica que preveja, no caso de uma operação de reorganização de sociedades, que as deduções que foram objeto desse reporte no âmbito da sociedade incorporada são integralmente transferidas para a sociedade beneficiária, implica que esses lucros sejam indiretamente tributados por ocasião da referida operação em virtude da aplicação de uma disposição que limita a transferência das referidas deduções na proporção da fração que o ativo líquido fiscal antes da fusão dos elementos incorporados da sociedade incorporada representa no total, também antes da fusão, do ativo líquido fiscal da sociedade incorporante e do valor fiscal líquido dos elementos incorporados?»

23.      O Governo belga e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Além disso, tanto estas partes como a Allianz Benelux apresentaram alegações na audiência que teve lugar em 3 de fevereiro de 2022.

IV.    Análise

A.      Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

24.      Sublinho desde já que, na sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio se refere ao artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435, mas também às Diretivas 78/855 e 82/891, sem, no entanto, mencionar disposições concretas destas nem expor as razões pelas quais a elas se refere.

25.      No que respeita, em primeiro lugar, à Diretiva 82/891, note‑se que esta apenas regula o direito das sociedades no contexto das cisões de sociedades anónimas e, por conseguinte, não é aplicável no presente caso, que diz respeito a uma fusão.

26.      Em segundo lugar, quanto à Diretiva 78/855, esta apenas se refere aos aspetos de direito privado próprios das fusões e não inclui disposições de caráter fiscal que possam ser aplicáveis ao litígio no processo principal (9). De resto, esta conclusão é corroborada pelo facto de os aspetos fiscais das fusões na União se regerem, à data dos factos no processo principal, pela Diretiva 90/434/CEE (10).

27.      No que respeita à Diretiva 90/435, cabe esclarecer que esta tem por objetivo eliminar a dupla tributação dos lucros distribuídos por uma sociedade‑afiliada sediada num Estado‑Membro à sua sociedade‑mãe estabelecida noutro Estado‑Membro, a fim de facilitar os agrupamentos de sociedades à escala da União (11). Para esse efeito, o artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva prevê que, sempre que uma sociedade‑mãe estabelecida num Estado‑Membro receba lucros distribuídos por uma filial estabelecida noutro Estado‑Membro, o Estado da sociedade‑mãe deve, quer abster‑se de tributar esses lucros (sistema de isenção), ou autorizar a sociedade‑mãe a deduzir do montante do seu imposto a fração do imposto da afiliada correspondente a tais lucros (sistema de imputação).

28.      Quanto à aplicabilidade da Diretiva 90/435 ao litígio no processo principal, importa introduzir os seguintes esclarecimentos.

29.      Por um lado, conforme mencionado no n.o 27 das presentes conclusões, a Diretiva 90/435 visa eliminar a dupla tributação dos lucros distribuídos entre sociedades pertencentes ao mesmo grupo mas situadas em Estados‑Membros diferentes. Assim, nenhuma disposição desta diretiva prevê expressamente a sua aplicação no contexto de operações de fusão entre sociedades (anteriormente independentes). Se é verdade que entre os objetivos dessa diretiva figura o de «facilitar os agrupamentos de sociedades à escala da União», não é menos verdade que o agrupamento a que essa mesma diretiva se refere deve ser entendido como sendo principalmente de ordem «interna» e como dizendo respeito apenas a sociedades pertencentes ao mesmo grupo.

30.      Por outro lado, o artigo 1.o da Diretiva 90/435 refere‑se à distribuição de lucros obtidos por sociedades de um Estado‑Membro e provenientes das suas afiliadas com sede noutros Estados‑Membros. Por outro lado, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, em princípio, o artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, desta diretiva não regula as situações em que a sede da sociedade distribuidora dos dividendos está situada no mesmo Estado‑Membro que a sede da sociedade beneficiária desses dividendos (12).

31.      Ora, tendo em conta que a proveniência dos dividendos obtidos pelas sociedades incorporadas não resulta do pedido de decisão prejudicial, não se afigura possível determinar se transações como as que estão em causa no processo principal se regem pela Diretiva 90/435 e, designadamente, se não correspondem a uma situação puramente interna em que só estão em causa sociedades belgas.

32.      Observo, porém, que, por um lado, segundo jurisprudência constante, as questões prejudiciais relativas à interpretação do direito da União beneficiam de uma presunção de pertinência (13). Por outro, o Tribunal de Justiça já reconheceu que o direito interno belga remete, no que diz respeito ao regime dos RDT, para a Diretiva 90/435, e, por conseguinte, a admissibilidade de pedidos prejudiciais apresentados ao abrigo dessa remissão, ao declarar que o alcance da remissão que o direito nacional faz para o direito da União é uma questão que se rege apenas pelo direito nacional, o que portanto implicava, em princípio, o poder de remeter para disposições de direito da União relativamente a situações puramente internas não abrangidas, ratione materiae, pela regulamentação da União para a qual remete (14).

33.      Ora, no presente processo, resulta do pedido de decisão prejudicial que a autoridade tributária belga fundou explicitamente a sua decisão na jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de RDT.

34.      Atendendo às considerações precedentes, considero que a questão prejudicial é admissível, embora deva ser apreciada apenas à luz da Diretiva 90/435.

B.      Quanto ao mérito

1.      Adaptação do regime belga dos RDT de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça

35.      Começo por sublinhar que o Tribunal de Justiça já teve, por diversas vezes, a oportunidade de examinar a compatibilidade do regime belga dos RDT com a Diretiva 90/435.

36.      Assim, no Acórdão Cobelfret, o Tribunal de Justiça considerou que o regime belga de dedução dos RDT aplicável à data dos factos não era compatível com o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435 na medida em que a sua integral dedução dependia de um requisito não previsto nessa diretiva, isto é, o exercício fiscal em que esses dividendos foram obtidos devia apresentar um resultado positivo ou nulo. Segundo o Tribunal de Justiça, do não cumprimento desse requisito resultava uma tributação indireta dos dividendos obtidos nos exercícios fiscais posteriores devido à redução do reporte das perdas que implicava a inclusão prévia dos lucros obtidos na matéria coletável (15).

37.      Resulta dessa jurisprudência que, caso o lucro tributável do exercício em causa não seja suficiente para garantir a dedução integral dos RDT, o excedente não dedutível imediatamente deve ser reportado para os exercícios seguintes sem limitações no tempo.

38.      Importa igualmente esclarecer que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça reconheceu efeito direto ao artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435.

39.      Na sequência do Despacho KBC que confirmou o Acórdão Cobelfret, o regime belga dos RDT foi alterado através da introdução do reporte, ilimitado no tempo, da dedução dos RDT para os exercícios fiscais posteriores que não podiam ser imediatamente imputados devido a lucros insuficientes.

40.      O regime belga dos RDT foi novamente, alguns anos mais tarde, objeto da análise do Tribunal de Justiça, no contexto do Acórdão Brussels Securities em que estava em causa o método de reporte da dedução dos RDT e — mais precisamente — a ordem de imputação das deduções no imposto sobre as sociedades prevista então no ordenamento jurídico belga. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça concluiu que a imputação prioritária do reporte da dedução dos RDT podia causar a perda do benefício de outros tipos de reportes de deduções que, esses sim, estavam limitados no tempo (16). Assim, uma vez que a carga fiscal da sociedade‑mãe podia ser afetada, o Tribunal de Justiça considerou que esta era indiretamente tributada pelos dividendos recebidos da sua filial, em violação do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435 (17).

2.      A limitação do reporte dos excedentes de RDT no âmbito de uma fusão constitui uma tributação indireta?

41.      Recordo que, no presente processo, a autoridade tributária aplicou, por analogia à transferência dos excedentes dos RDT das sociedades incorporadas para a sociedade incorporante, o artigo 206.o, n.o 2, do CIR 1992, que diz respeito à transferência para a sociedade incorporante das perdas suportadas pela sociedade incorporada antes da fusão. Deste modo, importa determinar se essa redução dos excedentes dos RDT constitui uma tributação direta ou indireta dos dividendos isentos ao abrigo do artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435 (18).

42.      À semelhança da Comissão e do Governo belga, considero que se deve responder pela negativa à questão prejudicial.

43.      Em primeiro lugar, observo que a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à compatibilidade do regime belga dos RDT com o artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435 — e evocada nos n.os 36 a 40 das presentes conclusões — foi estabelecida num contexto factual e jurídico diferente.

44.      Assim, nos referidos processos, o Tribunal de Justiça examinou a compatibilidade do regime belga dos RDT aplicável à data dos factos com o direito da União num contexto factual que se integrava plenamente no âmbito de aplicação dessa disposição, no sentido de que nesses processos estavam em causa pagamentos entre uma sociedade «filha» e uma sociedade «mãe» dentro do mesmo grupo. Ora, o presente processo é relativo a um caso em que os excedentes dos RDT não são diretamente transferidos da sociedade‑filha para a sociedade‑mãe, mas em que a sociedade incorporada transmite excedentes dos RDT, que detém devido à sua participação (anterior) noutras sociedades, à sociedade (mãe) que a incorporou numa fase posterior.

45.      Por conseguinte, coloca‑se a questão de saber se essa jurisprudência pode ser transposta para o presente caso, que diz respeito não a um reporte de excedentes de RDT entre sociedades pertencentes ao mesmo grupo, mas a uma «transferência» de excedentes de RDT de uma sociedade anteriormente independente para outra sociedade na sequência de uma fusão.

46.      Ora, importa reconhecer, por um lado, que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435 não contempla a possibilidade de se autorizar um reporte incondicional dos excedentes de RDT da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, e, por outro, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça — designadamente o Acórdão Cobelfret — não pode ser interpretada nesse sentido, conforme sustenta erradamente a Allianz Benelux (19). Deste modo, considero que não existe nenhum elemento que nos possa levar a alargar o âmbito de aplicação do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435 nem o da referida jurisprudência do Tribunal de Justiça ao caso em apreço.

47.      Note‑se, em segundo lugar, que nenhuma outra disposição do direito da União parece consagrar o direito ao reporte incondicional dos excedentes de RDT da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, invocado pela Allianz Benelux. Observo, a este respeito, que a Diretiva 90/434, que trata dos aspetos fiscais das fusões, também não inclui disposições que permitam o reporte das perdas ou dos excedentes de RDT (ou de outras vantagens fiscais) no âmbito das fusões. A interpretação que o Tribunal de Justiça fez dessa diretiva em processos que têm traços comuns com o processo principal e que dizem respeito ao reporte de perdas (e de outras vantagens fiscais) no contexto de fusões também não admite a interpretação defendida pela Allianz Benelux (20).

48.      Em terceiro lugar, importa examinar se o regime dos RDT em causa no âmbito do presente processo implica uma tributação direta ou indireta incompatível com o artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435.

49.      Recordo que o Estado belga optou pelo sistema de isenção previsto no artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, desta diretiva para efeitos da transposição dessa medida para o direito interno.

50.      Assim, de acordo com as disposições do direito belga que transpõem a Diretiva 90/435, uma sociedade‑mãe pode deduzir do seu resultado 95 % dos dividendos recebidos das suas filiais a título de RDT. O regime dos RDT prevê que, num primeiro momento, os dividendos distribuídos pela filial sejam incluídos na matéria coletável da sociedade‑mãe. Num segundo momento, esses dividendos são deduzidos dessa matéria coletável na medida em que, para o período de tributação em causa, existam lucros tributáveis após dedução dos outros benefícios isentos.

51.      No presente processo, as sociedades incorporadas possuíam, quando da fusão por incorporação, excedentes de RDT e perdas. Quanto às perdas, a legislação belga aplicável previa que o montante das perdas transferidas e que podiam ser deduzidas pela sociedade incorporante estava limitado pro rata (21).

52.      Importa, por isso, determinar se essa redução dos excedentes de RDT constitui uma tributação direta ou indireta dos dividendos isentos ao abrigo do artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435.

53.      Ora, resulta claramente das considerações precedentes que o regime dos RDT não acarreta uma tributação direta da sociedade incorporante dada a dedução (quase) integral de que beneficia.

54.      No que respeita à tributação indireta, há que determinar se a obrigação de não tributar prevista no artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435 é de tal modo abrangente que esta disposição se opõe aos efeitos fiscais sobre a matéria coletável da sociedade beneficiária dos dividendos resultantes de uma limitação da transferência de reporte dos excedentes dos RDT quando de uma fusão por incorporação.

55.      A este propósito, sublinho que, no Acórdão Brussels Securities, o Tribunal de Justiça, a fim de verificar a existência de uma tributação indireta, comparou a situação em causa nesse processo, no quadro da qual a sociedade‑mãe, quando da dedução fiscal, teve de respeitar a ordem de prioridades de dedução do excedente por referência a outra dedução fiscal, com a situação que existiria se o Estado belga aplicasse um regime de isenção que consistisse em pura e simplesmente excluir os dividendos da matéria coletável (22).

56.      Considero, à semelhança da Comissão e do Governo belga, que o raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça no processo acima referido também se pode aplicar ao presente processo. Daqui decorre que uma imposição indireta só pode ter lugar caso a sociedade beneficiária se encontre numa situação menos favorável devido à aplicação da regulamentação nacional, do que se os dividendos recebidos pela sociedade‑mãe fossem pura e simplesmente excluídos do cálculo da matéria coletável.

57.      Ora, resulta desta comparação que a situação em que a limitação pro rata se aplica tanto ao reporte dos excedentes de RDT como ao reporte das perdas em caso de fusão não parece implicar uma tributação mais gravosa do que no caso em que os dividendos tinham sido excluídos da matéria coletável da sociedade beneficiária (23). A neutralidade fiscal parece ter sido respeitada em ambas as situações.

58.      Pelo contrário, como a Comissão sublinha corretamente, se os excedentes de RDT forem integralmente transferidos para a sociedade incorporante, apesar de à transferência de perdas se aplicar uma limitação pro rata, como a prevista na regulamentação nacional em causa, essa sociedade ver‑se‑ia numa situação mais favorável do que se o Estado belga tivesse previsto uma isenção simples.

59.      Refiro, a este propósito, que nem o órgão jurisdicional de reenvio nem a Allianz Benelux puderam apresentar um exemplo de uma tributação indireta dos dividendos isentos.

60.      Em quarto e último lugar, entendo que, embora a questão da justificação da medida belga em causa não se coloque no presente processo, a limitação introduzida pelo direito belga no que respeita ao alcance e à extensão da possibilidade de deduzir os montantes correspondentes aos RDT (no contexto de operações de fusão) parece, à primeira vista, poder encontrar justificação face ao objetivo legítimo da luta contra os abusos e a fraude fiscal (24) desde que, obviamente, a medida nacional seja necessária e respeite o princípio da proporcionalidade (25).

61.      Não obstante, importa sublinhar que a questão da justificação apenas se poria se se tivesse concluído existir uma violação do artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435, o que não se verifica no caso em apreço. Além disso, essa questão não foi suscitada nem pelo órgão jurisdicional de reenvio, nem pelas partes no processo. Considero, por isso, que não há necessidade de examinar mais aprofundadamente este aspeto.

62.      Atendendo às considerações precedentes, proponho que à questão prejudicial se responda que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que prevê que os dividendos obtidos por uma sociedade são integrados na sua matéria coletável antes de dela serem deduzidos até 95 % do seu montante e que, eventualmente, permite o reporte dessa dedução para os exercícios fiscais posteriores, mas que, todavia, no caso de uma incorporação dessa sociedade no contexto de uma fusão, limita a transferência do reporte dessa dedução à sociedade incorporante em proporção da fração que o ativo líquido fiscal da sociedade incorporada representa no total do ativo líquido fiscal da sociedade incorporante e da sociedade incorporada.

V.      Conclusão

63.      Atendendo às considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pela cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica) nos seguintes termos:

O artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 90/435/CEE do Conselho, de 23 de julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades‑mães e sociedades afiliadas de Estados‑Membros diferentes, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que prevê que os dividendos obtidos por uma sociedade são integrados na sua matéria coletável antes de dela serem deduzidos até 95 % do seu montante e que, eventualmente, permite o reporte dessa dedução para os exercícios fiscais posteriores, mas que, todavia, no caso de uma incorporação dessa sociedade no contexto de uma fusão, limita a transferência do reporte dessa dedução à sociedade incorporante em proporção da fração que o ativo líquido fiscal da sociedade incorporada representa no total do ativo líquido fiscal da sociedade incorporante e da sociedade incorporada.


1      Língua original: francês.


2      Diretiva 90/435/CEE do Conselho, de 23 de julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades‑mães e sociedades afiliadas de Estados‑Membros diferentes (JO 1990, L 225, p. 6).


3      Terceira Diretiva 78/855/CEE do Conselho, de 9 de outubro de 1978, fundada na alínea g) do n.o 3, do artigo 54.o, do Tratado e relativa à fusão das sociedades anónimas (JO 1978, L 295, p. 36)


4      Sexta Diretiva 82/891/CEE do Conselho, de 17 de dezembro de 1982, fundada na alínea g) do n.o 3, do artigo 54.o, do Tratado e relativa às cisões de sociedades anónimas (JO 1982, L 378, p. 47).


5      V., principalmente, Acórdão de 12 de fevereiro de 2009, Cobelfret (C‑138/07, a seguir «Acórdão Cobelfret», EU:C:2009:82), Despacho de 4 de junho de 2009, KBC Bank e Beleggen, Risicokapitaal, Beheer (C‑439/07 e C‑499/07, a seguir «Despacho KBC», EU:C:2009:339), e Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Brussels Securities (C‑389/18, a seguir «Acórdão Brussels Securities», EU:C:2019:1132).


6      Diretiva 2003/123/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 2003, que altera a Diretiva 90/435 (JO 2004, L 7, p. 41).


7      Diretiva 2011/96/UE do Conselho, de 30 de novembro de 2011, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades‑mães e sociedades afiliadas de Estados‑Membros diferentes (JO 2011, L 345, p. 8).


8      Não existindo base jurídica para a transferência dos RDT em caso de fusão, esse reporte limitado dos excedentes dos RDT das sociedades incorporadas foi autorizado em conformidade com a proporção definida no artigo 206.o, n.o 2, do CIR 1992 em matéria de perdas recuperáveis.


9      A única disposição que poderia ser pertinente para efeitos da resposta à questão prejudicial é o artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 78/855, que prevê que a fusão implica a transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, tanto no que a estas respeita, como relativamente a terceiros. A este propósito, embora, em teoria, se possa colocar a questão de saber se se deve considerar que os excedentes dos RDT em causa (ou outras vantagens fiscais, como os prejuízos transferíveis) fazem parte do património ativo da sociedade incorporada, a resposta a esta questão está longe de ser evidente com base nesta diretiva, que não parece regular os efeitos fiscais de uma fusão.


10      Diretiva do Conselho, de 23 de julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entradas de ativos e permutas de ações entre sociedades de Estados‑Membros diferentes (JO 1990, L 225, p. 1). Importa, contudo, esclarecer, conforme descrito no n.o 47 das presentes conclusões, que a Diretiva 90/434 não parece incluir disposições que sejam aplicáveis ao litígio no processo principal.


11      V. considerando terceira da Diretiva 90/435.


12      Despacho KBC, n.o 57.


13      Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Junqueras Vies (C‑502/19, EU:C:2019:1115), n.os 55 e 56 e jurisprudência referida).


14      Acórdão de 18 de outubro de 2012, Punch Graphix Prepress Belgium (C‑371/11, EU:C:2012:647, n.o 26), e Despacho KBC (n.os 58 e 59).


15      Acórdão Cobelfret, n.os 33 a 41.


16      Acórdão Brussels Securities, n.o 49.


17      Acórdão Brussels Securities, n.o 53.


18      Observo, a este respeito, que a aplicação por analogia de uma disposição de direito fiscal a uma situação que, em princípio, não parece estar coberta ratione materiae por essa disposição suscita questões do ponto de vista da segurança jurídica, que obrigam, designadamente, a que as disposições fiscais sejam interpretadas de forma estrita.


19      V. n.os 27, 29 e 36 das presentes conclusões.


20      V. n.o 60 das presentes conclusões.


21      Como à data dos factos não existia uma norma jurídica belga que previsse a transferência dos excedentes de RDT das sociedades incorporadas para a sociedade incorporante, a autoridade tributária aplicou por analogia essa mesma regra pro rata aos excedentes de RDT.


22      Ao adotar este raciocínio, o Tribunal de Justiça observou que, em determinadas situações, a regulamentação nacional em causa permitia que a sociedade‑mãe fosse tributada de forma mais pesada do que se os dividendos recebidos no contexto do regime fiscal sociedade‑mãe‑filial tivessem sido excluídos da sua matéria coletável.


23      A este respeito, observo que esta conclusão também encontra confirmação nos exemplos quantificados comparativos dessas duas hipóteses constantes das observações escritas do Governo belga e da Comissão. De resto, a Allianz Benelux não contestou esta conclusão na audiência.


24      Assim, se o reporte ilimitado de perdas e dos excedentes de RDT fosse autorizado no contexto de uma fusão, isso poderia permitir às sociedades proceder a aquisições (potencialmente fictícias) de outras sociedades que disponham dessas perdas ou excedentes de RDT apenas com o objetivo de obter uma vantagem fiscal ou de elisão fiscal. Ora, parece‑me que o facto de se optar por um critério objetivo, claro e previsível como o (de limitar pro rata) por referência ao ativo líquido fiscal dos elementos incorporados da sociedade incorporada e do total, também antes da fusão, do ativo líquido fiscal da sociedade incorporante e do valor fiscal líquido dos elementos incorporados permitia precisamente evitar essas práticas abusivas. Gostaria, no entanto, de especificar que não resulta nem da decisão de reenvio nem das observações das partes que o presente processo corresponde a uma dessas hipóteses.


25      A este propósito, o Tribunal de Justiça já declarou que, no âmbito de uma fusão, uma medida que exclui a possibilidade de a sociedade‑mãe com sede num Estado‑Membro deduzir dos seus rendimentos tributáveis as perdas da filial incorporada, com sede noutro Estado‑Membro, pode encontrar justificação na necessidade de preservar a repartição do poder de tributação entre os Estados‑Membros e de evitar os riscos de dupla utilização das perdas assim como de evasão fiscal [v., neste sentido, Acórdão de 21 de fevereiro de 2013, A (C‑123/11, EU:C:2013:84, n.os 40 a 46)]. Observo que a problemática da repartição do poder de tributação entre os Estados‑Membros não se coloca no presente processo uma vez que apenas as autoridades tributárias belgas parecem ser competentes.