Language of document : ECLI:EU:C:2021:902

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

11 de novembro de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2014/41/UE — Decisão europeia de investigação em matéria penal — Artigo 14.o — Vias de recurso — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.o — Inexistência de vias de recurso no Estado‑Membro de emissão — Decisão que ordena buscas, apreensões e uma inquirição de testemunha por videoconferência»

No processo C‑852/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária), por Decisão de 7 de novembro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de novembro de 2019, no processo penal instaurado contra

Ivan Gavanozov,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, J.‑C. Bonichot e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e T. Machovičová, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo francês, por E. de Moustier, A. Daniel e N. Vincent, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por A. Giordano, avvocato dello Stato,

—        em representação do Governo austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e C. Leeb, na qualidade de agentes,

—        em representação da Comissão Europeia, inicialmente por I. Zaloguin e R. Troosters, e em seguida por I. Zaloguin e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de abril de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 4, e do artigo 14.o, n.os 1 a 4, da Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal (JO 2014, L 130, p. 1), bem como dos artigos 7.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra Ivan Gavanozov, acusado de chefiar uma associação criminosa e de ter cometido infrações fiscais.

 Quadro jurídico

 Diretiva 2014/41

3        Os considerandos 2, 6, 18, 19 e 22 da Diretiva 2014/41 têm a seguinte redação:

«(2)      Nos termos do artigo 82.o, n.o 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), a cooperação judiciária em matéria penal na União assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais, princípio esse comummente referido, desde o Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de outubro de 1999, como a pedra angular da cooperação judiciária em matéria penal na União.

[…]

(6)       No Programa de Estocolmo, aprovado pelo Conselho Europeu de 10‑11 de dezembro de 2009, o Conselho Europeu considerou que os trabalhos para a criação de um sistema global de obtenção de elementos de prova nos processos de dimensão transfronteiriça, com base no princípio do reconhecimento mútuo, deveriam ser prosseguidos. O Conselho Europeu indicou que os instrumentos existentes neste domínio constituíam um regime fragmentário e que era necessária uma nova abordagem baseada no princípio do reconhecimento mútuo mas tendo em conta a flexibilidade do sistema tradicional de auxílio judiciário mútuo. Por conseguinte, o Conselho Europeu apelou à criação de um sistema global, destinado a substituir todos os instrumentos existentes neste domínio, incluindo a Decisão‑Quadro 2008/978/JAI, que abranja tanto quanto possível todos os tipos de elementos de prova, que contenha prazos de execução e que limite, tanto quanto possível, os motivos de recusa.

[…]

(18)       Tal como sucede com outros instrumentos de reconhecimento mútuo, a presente diretiva não tem por efeito modificar a obrigação de respeitar os direitos fundamentais e os princípios jurídicos fundamentais consagrados no artigo 6.o do Tratado da União Europeia (TUE) e na Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia]. Para o tornar claro, deverá ser inserida no texto uma disposição específica nesse sentido.

(19)      A criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça na União baseia‑se na confiança mútua e na presunção de que os outros Estados‑Membros cumprem o direito da União e, em particular, respeitam os direitos fundamentais. No entanto, essa presunção é refutável. Em consequência, se houver motivos substanciais para supor que a execução de uma medida de investigação indicada na DEI se traduziria na violação de um direito fundamental da pessoa em causa, e que o Estado de execução ignoraria as suas obrigações relativamente à proteção dos direitos reconhecidos na Carta, a execução da DEI deverá ser recusada.

[…]

(22)      As vias de recurso contra uma DEI deverão ser pelo menos idênticas às que existem em processos nacionais contra a medida de investigação em causa. Os Estados‑Membros garantem, de acordo com a lei nacional, a aplicabilidade destas vias de recurso, incluindo a informação em tempo útil a qualquer parte interessada sobre as possibilidades de interpor recurso. Quando as objeções à DEI forem apresentadas pela parte interessada no Estado de execução relativamente aos fundamentos materiais da emissão da DEI, é conveniente que a autoridade de emissão seja informada dessa contestação, e disso seja dado conhecimento à parte interessada.»

4        O artigo 1.o desta diretiva enuncia:

«1.      A decisão europeia de investigação (DEI) é uma decisão judicial emitida ou validada por uma autoridade judiciária de um Estado‑Membro (“Estado de emissão”) para que sejam executadas noutro Estado‑Membro (“Estado de execução”) uma ou várias medidas de investigação específicas, tendo em vista a obtenção de elementos de prova em conformidade com a presente diretiva.

[…]

2.      Os Estados‑Membros executam uma DEI com base no princípio do reconhecimento mútuo e nos termos da presente diretiva.

[…]

4.      A presente diretiva não tem por efeito alterar a obrigação de respeitar os direitos e os princípios jurídicos fundamentais consagrados no artigo 6.o do TUE, incluindo os direitos de defesa das pessoas sujeitas a ação penal, nem prejudica quaisquer obrigações que nesta matéria incumbam às autoridades judiciárias.»

5        O artigo 4.o da referida diretiva prevê:

«A DEI pode ser emitida:

a)      Relativamente a processos penais instaurados por uma autoridade judiciária, ou que possam ser instaurados perante uma tal autoridade, relativamente a uma infração penal ao abrigo do direito interno do Estado de emissão;

[…]»

6        O artigo 6.o, n.o 1, da mesma diretiva dispõe:

«A autoridade de emissão só pode emitir uma DEI se estiverem reunidas as seguintes condições:

a)      A emissão da DEI é necessária e proporcionada para efeitos dos processos a que se refere o artigo 4.o, tendo em conta os direitos do suspeito ou do arguido; e

b)      A medida ou medidas de investigação indicadas na DEI poderiam ter sido ordenadas nas mesmas condições em processos nacionais semelhantes.»

7        Nos termos do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41:

«A autoridade de execução deve reconhecer uma DEI transmitida em conformidade com a presente diretiva, sem impor outras formalidades, e garante a sua execução nas condições que seriam aplicáveis se a medida de investigação em causa tivesse sido ordenada por uma autoridade do Estado de execução, salvo se essa autoridade decidir invocar um dos motivos de não reconhecimento ou de não execução ou um dos motivos de adiamento previstos na presente diretiva.»

8        O artigo 11.o, n.o 1, desta diretiva tem a seguinte redação:

«Sem prejuízo do artigo 1.o, n.o 4, o reconhecimento ou a execução de uma DEI podem ser recusados no Estado de execução se:

[…]

f)      Se houver motivos substanciais para crer que a execução da medida de investigação indicada na DEI será incompatível com as obrigações do Estado de execução nos termos do artigo 6.o do TUE e da Carta;

[…]»

9        O artigo 14.o da referida diretiva enuncia:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que sejam aplicáveis às medidas de investigação indicadas na DEI vias de recurso equivalentes às existentes em processos nacionais semelhantes.

2.      Os fundamentos materiais subjacentes à emissão de uma DEI só podem ser impugnados em ação interposta no Estado de emissão, sem prejuízo das garantias dos direitos fundamentais no Estado de execução.

3.      Se tal não comprometer a necessidade de garantir a confidencialidade da investigação, ao abrigo do artigo 19.o, n.o 1, a autoridade de emissão e a autoridade de execução tomam as medidas adequadas para assegurar que seja prestada informação sobre as possibilidades, de interpor recurso existentes ao abrigo da lei nacional, quando forem aplicáveis e em tempo útil para permitir o seu exercício efetivo.

4.      Os Estados‑Membros asseguram‑se de que os prazos para interpor recurso sejam os mesmos que os previstos em processos nacionais semelhantes e sejam aplicados de forma a garantir a possibilidade do exercício efetivo do recurso pelas partes interessadas.

[…]»

10      O artigo 24.o da mesma diretiva prevê:

«1.      Caso uma pessoa se encontre no território do Estado de execução e deva ser ouvida como testemunha ou perito pelas autoridades competentes do Estado de emissão, a autoridade de emissão pode emitir uma DEI para ouvir a testemunha ou perito por videoconferência ou outros meios de transmissão audiovisual, nos termos dos n.os 5 a 7.

[…]

7.      Cada Estado‑Membro toma as medidas necessárias para garantir que, caso a pessoa seja ouvida no seu território de acordo com o presente artigo e se recuse a prestar depoimento quando é obrigada a fazê‑lo, ou preste falsas declarações, a sua lei nacional é aplicada como se a audição se realizasse no âmbito de um processo nacional.»

 Direito búlgaro

11      O artigo 107.o, n.o 2, do nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal, DV n.o 86, de 28 de outubro de 2005), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «NPK»), dispõe:

«A requerimento das partes ou oficiosamente, o tribunal efetua a medidas instrutórias quando tal seja necessário para a descoberta da verdade objetiva.»

12      Nos termos do artigo 117.o do NPK:

«Todos os factos que tenham sido presenciados por uma testemunha e contribuam para a descoberta da verdade podem ser provados mediante depoimento de testemunha».

13      O artigo 161.o, n.o 3, do NPK tem a seguinte redação:

«No processo judicial, as buscas e apreensões são determinadas por decisão do tribunal em que o processo está pendente.»

14      O artigo 341.o, n.o 3, do NPK enuncia:

«Os demais despachos e decisões não admitem recurso para o tribunal superior em separado do recurso que vier a ser interposto da sentença».

15      O artigo 6.o, n.o 1, da zakon za evropeyskata zapoved za razsledvane (Lei sobre a Decisão Europeia de Investigação, DV n.o 16, de 20 de fevereiro de 2018), prevê:

«O órgão competente nos termos do artigo 5.o, n.o 1, emite, após apreciação do caso concreto, uma decisão europeia de investigação caso estejam reunidas cumulativamente as seguintes condições:

1.      A emissão de uma decisão europeia de investigação seja considerada necessária e adequada do ponto de vista do objetivo do processo‑crime, devendo ser ponderados os direitos dos arguidos ou acusados;

2.      As medidas de investigação e demais medidas processuais para cujo cumprimento é emitida a decisão europeia de investigação possam ser levadas a cabo, nos termos do direito búlgaro, nas mesmas condições num caso semelhante.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16      I. Gavanozov foi sujeito, na Bulgária, a um processo penal por participação numa associação criminosa constituída para cometer infrações fiscais.

17      Em concreto, é suspeito de ter importado para a Bulgária, por intermédio de sociedades de fachada, açúcar proveniente de outros Estados‑Membros, fornecendo‑se nomeadamente junto de uma sociedade sediada na República Checa e representada por Y, bem como de ter posteriormente vendido esse açúcar no mercado búlgaro sem pagar nem liquidar o imposto sobre o valor acrescentado (IVA), apresentando documentos inexatos segundo os quais o referido açúcar tinha sido exportado para a Roménia.

18      Neste contexto, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) decidiu, em 11 de maio de 2017, emitir uma decisão europeia de investigação para que as autoridades checas efetuassem buscas e apreensões tanto nas instalações da referida sociedade sediada na República Checa como no domicílio de Y, e procedessem à inquirição, por videoconferência, deste último na qualidade de testemunha.

19      Na sequência da adoção dessa decisão e perante dificuldades no preenchimento da secção J do formulário constante do anexo A da Diretiva 2014/41, intitulado «Vias de recurso», o referido órgão jurisdicional questionou o Tribunal de Justiça sobre a interpretação de várias disposições desta diretiva.

20      Tendo em conta, nomeadamente, a resposta dada pelo mesmo órgão jurisdicional a um pedido de informações que lhe tinha sido dirigido pelo Tribunal de Justiça, este último declarou, no n.o 38 do Acórdão de 24 de outubro de 2019, Gavanozov (C‑324/17, EU:C:2019:892), que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, lido em conjugação com a secção J do formulário constante do anexo A desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que a autoridade judiciária de um Estado‑Membro não tem, no momento da emissão de uma decisão europeia de investigação, de incluir uma descrição das vias de recurso eventualmente previstas no seu Estado‑Membro, contra a emissão dessa decisão.

21      Na sua decisão de reenvio, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) realça que o direito búlgaro não prevê nenhuma via de recurso contra decisões que ordenam a realização de buscas e de apreensões ou a inquirição de testemunhas, nem contra a emissão de uma decisão europeia de investigação.

22      Neste contexto, este órgão jurisdicional pretende saber se o direito búlgaro é contrário ao direito da União e, nesse caso, se pode emitir uma decisão europeia de investigação que tem tenha por objeto essas medidas de investigação.

23      Nestas circunstâncias, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Uma legislação nacional que não prevê vias de recurso contra a emissão de uma decisão europeia de investigação para serem efetuadas buscas no domicílio e em estabelecimentos comerciais e apreendidos determinados bens e ainda para inquirição de uma testemunha é compatível com os artigos 14.o, n.os 1 a 4, e 1.o, n.o 4, e com os considerandos 18 e 22 da Diretiva 2014/41, bem como com os artigos 47.o e 7.o da Carta, em conjugação com os artigos 13.o e 8.o da [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”)]?

2)      Pode, nestas circunstâncias, ser emitida uma decisão europeia de investigação?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

24      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 4, e o artigo 14.o, n.os 1 a 4, da Diretiva 2014/41, lidos à luz dos seus considerandos 18 e 22, bem como os artigos 7.o e 47.o da Carta, lidos em conjugação com os artigos 8.o e 13.o da CEDH, devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado‑Membro de emissão de uma decisão europeia de investigação que não prevê nenhuma via de recurso contra a emissão de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência.

25      Nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, os Estados‑Membros asseguram que sejam aplicáveis às medidas de investigação indicadas na decisão europeia de investigação vias de recurso equivalentes às existentes em processos nacionais semelhantes.

26      Embora esta disposição, lida à luz do considerando 22 da mesma diretiva, preveja uma obrigação geral para os Estados‑Membros de assegurarem que vias de recurso pelo menos equivalentes às existentes em processos nacionais semelhantes sejam aplicáveis às medidas de investigação indicadas na decisão europeia de investigação [v., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.o 60], não exige que os Estados‑Membros prevejam vias de recurso adicionais às existentes no âmbito de processos nacionais semelhantes.

27      Essa exigência também não resulta da redação do artigo 14.o, n.o 2, da referida diretiva, que precisa apenas que os fundamentos materiais subjacentes à emissão de uma decisão europeia de investigação só podem ser impugnados em ação interposta no Estado‑Membro de emissão.

28      Dito isto, importa recordar que os Estados‑Membros, quando dão execução ao direito da União, são obrigados a assegurar o respeito do direito à ação consagrado no artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, que constitui uma reafirmação do princípio da tutela jurisdicional efetiva [Acórdão de 15 de abril de 2021, État belge (Elementos posteriores à decisão de transferência), C‑194/19, EU:C:2021:270, n.o 43 e jurisprudência referida].

29      Ora, uma vez que o processo de emissão e de execução de uma decisão europeia de investigação é regulado pela Diretiva 2014/41, constitui uma aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, que determina a aplicabilidade do artigo 47.o da Carta (v., por analogia, Acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund, C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 50 e jurisprudência referida).

30      Este último artigo dispõe, no seu primeiro parágrafo, que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal, nos termos previstos neste artigo.

31      No que diz respeito, em primeiro lugar, à emissão de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, importa salientar que tais medidas constituem ingerências no direito de todas as pessoas ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações, garantido no artigo 7.o da Carta. Além disso, as apreensões são suscetíveis de violar o artigo 17.o, n.o 1, da Carta, que reconhece a todas as pessoas o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte.

32      Todas as pessoas que pretendam invocar a proteção conferida por estas disposições no âmbito de um processo relativo a uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões devem, por conseguinte, beneficiar de um direito à ação garantido no artigo 47.o da Carta.

33      Esse direito implica necessariamente que as pessoas afetadas por tais medidas de investigação disponham de vias de recurso adequadas que lhes permitam, por um lado, impugnar a regularidade e a necessidade das mesmas, e, por outro, pedir uma compensação adequada se tais medidas forem ordenadas ou executadas ilegalmente. Compete aos Estados‑Membros prever na sua ordem jurídica interna as vias de recurso necessárias para o efeito.

34      Esta interpretação do artigo 47.o da Carta corresponde, aliás, à interpretação do artigo 13.o da CEDH adotada pelo TEDH na sua jurisprudência. Com efeito, decorre da jurisprudência do TEDH que, por força desta última disposição, que corresponde, em substância, ao artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, as pessoas afetadas por buscas e apreensões devem poder ter acesso a um processo que lhes permita impugnar a regularidade e a necessidade das buscas e das apreensões efetuadas e obter uma compensação adequada se essas medidas tiverem sido ordenadas ou executadas ilegalmente (v., neste sentido, TEDH, de 22 de maio de 2008, Iliya Stefanov c. Bulgária, CE:ECHR:2008:0522JUD006575501, § 59; 31 de março de 2016, Stoyanov e o. c. Bulgária, CE:ECHR:2016:0331JUD005538810, §§ 152 a 154; e 19 de janeiro de 2017, Posevini c. Bulgária, CE:ECHR:2017:0119JUD006363814, §§ 84 a 86).

35      Por outro lado, o direito de a pessoa afetada impugnar a regularidade e a necessidade dessas medidas implica que essa pessoa deve poder recorrer da decisão europeia de investigação que ordena a execução das referidas medidas.

36      A este respeito, importa salientar que o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 define a decisão europeia de investigação como uma decisão judicial emitida ou validada por uma autoridade judiciária de um Estado‑Membro para que sejam executadas noutro Estado‑Membro uma ou mais medidas de investigação específicas, tendo em vista a obtenção de elementos de prova em conformidade com esta diretiva.

37      Nos termos do artigo 1.o, n.o 2, da referida diretiva, os Estados‑Membros executam uma decisão europeia de investigação com base no princípio do reconhecimento mútuo e nos termos da mesma diretiva.

38      Além disso, resulta do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 que a autoridade de execução deve reconhecer uma decisão europeia de investigação transmitida em conformidade com esta diretiva, sem impor outras formalidades, e garante a sua execução nas condições que seriam aplicáveis se a medida de investigação em causa tivesse sido ordenada por uma autoridade do Estado de execução, salvo se essa autoridade decidir invocar um dos motivos de não reconhecimento ou de não execução ou um dos motivos de adiamento previstos por esta diretiva.

39      Destes elementos resulta que, no âmbito de um processo relativo a uma decisão europeia de investigação, as medidas de investigação são ordenadas pela autoridade competente do Estado‑Membro de emissão e executadas pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de execução, as quais estão, em princípio, obrigadas a reconhecer uma decisão europeia de investigação transmitida em conformidade com a Diretiva 2014/41 sem que seja necessária qualquer outra formalidade.

40      Além disso, em conformidade com o artigo 14.o, n.o 2, da Diretiva 2014/41, os fundamentos materiais subjacentes à emissão de uma decisão europeia de investigação só podem ser impugnados em ação interposta no Estado‑Membro de emissão.

41      Consequentemente, para que as pessoas afetadas pela execução de uma decisão europeia de investigação emitida ou validada por uma autoridade judiciária desse Estado‑Membro e que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões possam exercer utilmente o seu direito garantido pelo artigo 47.o da Carta, incumbe ao referido Estado‑Membro assegurar que essas pessoas dispõem de um recurso num tribunal desse Estado‑Membro que lhes permite impugnar a necessidade e a regularidade da referida decisão, pelo menos, no que respeita aos fundamentos materiais subjacentes à emissão de tal decisão europeia de investigação.

42      Em segundo lugar, no que se refere à emissão de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto uma inquirição de testemunha por videoconferência, importa salientar que o artigo 24.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 prevê que, caso uma pessoa que se encontre no território do Estado‑Membro de execução deve ser ouvida como testemunha ou perito pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão, a autoridade de emissão pode emitir uma decisão europeia de investigação para ouvir a testemunha ou o perito por videoconferência ou por outro meio de transmissão, nos termos dos n.os 5 a 7 deste artigo 24.o

43      O artigo 24.o, n.o 7, da referida diretiva precisa que cada Estado‑Membro toma as medidas necessárias para garantir que, caso a pessoa seja ouvida no seu território de acordo com este artigo e se recuse a prestar depoimento quando é obrigada a fazê‑lo, ou preste falsas declarações, a sua lei nacional é aplicada como se a audição se realizasse no âmbito de um processo nacional.

44      Daqui resulta que a recusa de prestar depoimento no âmbito da execução de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto uma inquirição de testemunha por videoconferência é suscetível de ter consequências significativas para a pessoa em causa com base nas normas previstas para o efeito na legislação do Estado‑Membro de execução. Em particular, essa pessoa pode ser obrigada a comparecer na audição e a responder às questões colocadas nesse âmbito, sob pena de sanções.

45      Ora, segundo jurisprudência constante, a proteção contra as intervenções arbitrárias e desproporcionadas do poder público na esfera privada de qualquer pessoa, singular ou coletiva, constitui um princípio geral de direito da União (Acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund, C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 51 e jurisprudência referida).

46      O Tribunal de Justiça precisou que essa proteção pode ser invocada por qualquer pessoa, enquanto direito garantido pelo direito da União, na aceção do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, para contestar na justiça um ato lesivo, como seja uma ordem para a prestação de informações ou uma sanção aplicada pelo incumprimento dessa ordem [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 58 e jurisprudência referida].

47      Consequentemente, há que considerar que a execução de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto uma inquirição de testemunha por videoconferência é suscetível de lesar a pessoa em causa e que esta deve, por conseguinte, dispor de uma via de recurso contra essa decisão, em conformidade com o artigo 47.o da Carta.

48      Ora, os tribunais do Estado‑Membro de execução não são competentes, em conformidade com o artigo 14.o, n.o 2, da Diretiva 2014/41, para examinar os fundamentos materiais de uma decisão europeia de investigação que ordena a inquirição de uma testemunha por videoconferência.

49      Daqui decorre que compete ao Estado‑Membro de emissão assegurar que todas as pessoas obrigadas a comparecer numa audição para serem ouvidas como testemunhas ou para responderem às questões que lhes tenham sido colocadas nessa audição no âmbito da execução de uma decisão europeia de investigação dispõem de um recurso num tribunal desse Estado‑Membro que lhes permita impugnar, pelo menos, os fundamentos materiais subjacentes à emissão dessa decisão europeia de investigação.

50      À luz das considerações precedentes, há que responder à primeira questão prejudicial que o artigo 14.o da Diretiva 2014/41, lido em conjugação com o artigo 24.o, n.o 7, desta diretiva e com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação de um Estado‑Membro de emissão de uma decisão europeia de investigação que não prevê nenhuma via de recurso contra a emissão de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência.

 Quanto à segunda questão

51      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 4, e o artigo 14.o, n.os 1 a 4, da Diretiva 2014/41, lidos à luz dos considerandos 18 e 22 desta diretiva, bem como os artigos 7.o e 47.o da Carta, lidos em conjugação com os artigos 8.o e 13.o da CEDH, devem ser interpretados no sentido de que se opõem à emissão, pela autoridade competente de um Estado‑Membro, de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência, quando a legislação desse Estado‑Membro não prevê nenhuma via de recurso contra a emissão dessa decisão europeia de investigação.

52      O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 subordina a emissão de uma decisão europeia de investigação ao cumprimento de duas condições. Por um lado, essa emissão deve ser necessária e proporcionada para efeitos dos processos a que se refere o artigo 4.o desta diretiva, tendo em conta os direitos do suspeito ou do arguido. Por outro lado, a medida ou medidas de investigação indicadas na decisão europeia de investigação devem poder ser ordenadas nas mesmas condições em processos nacionais semelhantes.

53      É certo que esta disposição não menciona a tomada em consideração, na emissão de uma decisão europeia de investigação, dos direitos das pessoas afetadas pelas medidas de investigação indicadas nesta decisão que não sejam o suspeito ou o arguido.

54      Todavia, é necessário recordar que decorre, nomeadamente, dos considerandos 2, 6 e 19 da referida diretiva que a decisão europeia de investigação é um instrumento abrangido pela cooperação judiciária em matéria penal prevista no artigo 82.o, n.o 1, TFUE, que se baseia no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e das decisões judiciais. Este princípio, que constitui a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal, baseia‑se ele próprio na confiança mútua e na presunção ilidível de que os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União e, em especial, os direitos fundamentais [v., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.o 40].

55      No âmbito de um processo relativo a uma decisão europeia de investigação, a garantia desses direitos decorre, em primeira linha, da responsabilidade do Estado‑Membro de emissão, relativamente ao qual se presume que respeita o direito da União e, em particular, os direitos fundamentais reconhecidos por este último (v., por analogia, Acórdão de 23 de janeiro de 2018, Piotrowski, C‑367/16, EU:C:2018:27, n.o 50).

56      Todavia, a impossibilidade de impugnar, no Estado‑Membro de emissão, a necessidade e a regularidade de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência, pelo menos, no que respeita aos fundamentos materiais subjacentes à sua emissão, constitui uma violação do direito à ação, consagrado no artigo 47.o da Carta, suscetível de excluir que o reconhecimento mútuo possa ser aplicado e de beneficiar esse Estado‑Membro.

57      Por outro lado, importa recordar que compete aos Estados‑Membros, designadamente, por força do princípio da cooperação leal, enunciado no artigo 4.o, n.o 3, primeiro parágrafo, TUE, assegurar, nos respetivos territórios, a aplicação e o respeito do direito da União e tomar, para esse efeito, todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, Achmea, C‑284/16, EU:C:2018:158, n.o 34 e jurisprudência referida).

58      Por conseguinte, tendo em conta, nomeadamente, o papel essencial do princípio do reconhecimento mútuo no sistema instituído pela Diretiva 2014/41, compete ao Estado‑Membro de emissão criar as condições em que a autoridade de execução poderá prestar utilmente a sua assistência em conformidade com o direito da União.

59      Além disso, como resulta do n.o 43 do presente acórdão, a Diretiva 2014/41 baseia‑se no princípio da execução da decisão europeia de investigação. O seu artigo 11.o, n.o 1, alínea f), permite às autoridades de execução derrogar este princípio, a título excecional, após uma apreciação casuística, se houver motivos substanciais para crer que a execução de uma decisão europeia de investigação será incompatível com os direitos fundamentais garantidos, nomeadamente, pela Carta. Todavia, na falta de vias de recurso no Estado de emissão, a aplicação desta disposição tornar‑se‑ia sistemática. Esta consequência seria contrária tanto à economia geral da Diretiva 2014/41 como ao princípio da confiança mútua.

60      Por conseguinte, como salientou o advogado‑geral nos n.os 81 a 84 das suas Conclusões, a emissão de uma decisão europeia de investigação relativamente à qual existem motivos substanciais para crer que a sua execução conduziria a uma violação do artigo 47.o da Carta e cuja execução deve, por esta razão, ser recusada pelo Estado‑Membro de execução em conformidade com o artigo 11.o, n.o 1, alínea f), da referida diretiva não é compatível com os princípios da confiança mútua e da cooperação leal.

61      Ora, como decorre da análise da primeira questão, a execução de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência cuja regularidade não pode ser objeto de recurso num tribunal do Estado‑Membro de emissão é suscetível de implicar uma violação do direito à ação consagrado no artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta.

62      À luz das considerações precedentes, há que responder à segunda questão prejudicial que o artigo 6.o da Diretiva 2014/41, lido em conjugação com o artigo 47.o da Carta e com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à emissão, pela autoridade competente de um Estado‑Membro, de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência, quando a legislação desse Estado‑Membro não prevê nenhuma via de recurso contra a emissão dessa decisão europeia de investigação.

 Quanto às despesas

63      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 14.o da Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal, lido em conjugação com o artigo 24.o, n.o 7, desta diretiva e com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação de um EstadoMembro de emissão de uma decisão europeia de investigação que não prevê nenhuma via de recurso contra a emissão de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência.

2)      O artigo 6.o da Diretiva 2014/41, lido em conjugação com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à emissão, pela autoridade competente de um EstadoMembro, de uma decisão europeia de investigação que tem por objeto a realização de buscas e de apreensões, bem como uma inquirição de testemunha por videoconferência, quando a legislação desse EstadoMembro não prevê nenhuma via de recurso contra a emissão dessa decisão europeia de investigação.

Assinaturas


*      Língua do processo: búlgaro.