Language of document : ECLI:EU:C:2019:1114

Processo C752/18

Deutsche Umwelthilfe e.V.

contra

Freistaat Bayern

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bayerischer Verwaltungsgerichtshof)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 19 de dezembro de 2019

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Artigo 6.°, artigo 47.°, primeiro parágrafo, e artigo 52.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Diretiva 2008/50/CE — Qualidade do ar ambiente — Plano relativo à qualidade do ar — Valores limite para o dióxido de azoto — Obrigação de adotar as medidas adequadas para assegurar um período de excedência mínimo — Obrigação dos órgãos jurisdicionais nacionais de tomarem quaisquer medidas necessárias — Recusa, por parte de um governo regional, de dar cumprimento a uma intimação judicial — Possibilidade de detenção coerciva de altos representantes políticos ou altos funcionários da região em questão — Proteção jurisdicional efetiva — Direito à liberdade pessoal — Base legal — Proporcionalidade»

1.        Ambiente — Poluição atmosférica — Qualidade do ar ambiente — Diretiva 2008/50 — Obrigações claras, precisas e incondicionais decorrentes desta diretiva — Violação por um EstadoMembro — Órgãos jurisdicionais nacionais que devem tomar quaisquer medida necessárias para garantir o respeito das referidas obrigações — Adoção de uma detenção coerciva contra titulares de uma função abrangida pelo exercício da autoridade pública — Requisitos — Base legal suficientemente acessível, precisa e previsível — Ponderação do direito a um recurso efetivo e do direito à liberdade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 47.°, n.° 1, e 52.°, n.° 1; Diretiva 2008/50 do Parlamento Europeu e do Conselho)

(cf. n.os 29‑33, 41‑45, 51‑52, 56 e disp.)

2.        Ambiente — Poluição atmosférica — Qualidade do ar ambiente — Diretiva 2008/50 — Obrigações claras, precisas e incondicionais decorrentes desta diretiva — Violação por um EstadoMembro — Recurso destinado a obter o respeito das referidas obrigações — Direito a um recurso efetivo — Alcance

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°, n.° 1; Diretiva 2008/50 do Parlamento Europeu e do Conselho)

(cf. n.os 34‑40)

3.        Direitos fundamentais — Direito a uma proteção jurisdicional efetiva — Limites — Respeito do direito à liberdade de terceiros — Aplicação da detenção coerciva a uma pessoa a fim de assegurar o respeito do direito a uma proteção jurisdicional efetiva de outra pessoa — Requisitos — Base legal suficientemente acessível, precisa e previsível para a adoção dessa medida coerciva — Respeito do princípio da proporcionalidade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 6.° e 47.°, n.° 1)

(cf. n.os 46‑50)

Resumo

Uma detenção coerciva só pode ser imposta a responsáveis do Land da Baviera a fim de os intimar a adotar medidas de saneamento do ar ambiente em Munique (tais como uma proibição de circulação de certos veículos diesel) se existir para esse fim uma base legal nacional suficientemente acessível, precisa e previsível na sua aplicação e se essa medida coerciva for proporcionada. Incumbe ao Tribunal Administrativo Superior da Baviera verificar se estas condições estão preenchidas.

No Acórdão Deutsche Umwelthilfe (C‑752/18), proferido em 19 de dezembro de 2019, o Tribunal de Justiça, reunido em Grande Secção, pronunciou‑se pela primeira vez, sobre a questão de saber se os órgãos jurisdicionais nacionais estão habilitados, ou até obrigados, a impor detenções coercivas a responsáveis das autoridades nacionais que recusem de maneira persistente conformar‑se com uma decisão que os intime dar execução às suas obrigações por força do direito da União.

O Tribunal foi chamado a pronunciar‑se no âmbito de um litígio que opõe a Deutsche Umwelthilfe, uma organização de defesa do ambiente, ao Land da Baviera, a propósito da recusa persistente deste último de adotar, em execução da Diretiva 2008/50 relativa à qualidade do ar ambiente (1), as medidas necessárias ao respeito do valor‑limite fixado para o dióxido de azoto na cidade de Munique. Condenado uma primeira vez, em 2012, a modificar o seu plano de ação aplicável nesta cidade para a qualidade do ar, e depois, uma segunda vez, em 2016, sob pena de aplicação de uma sanção pecuniária compulsiva, a dar cumprimento às suas obrigações, que incluíam a imposição de proibições de circulação para certos veículos a motor diesel em várias zonas urbanas, o Land da Baviera recusou‑se, no entanto, a cumprir estas intimações, tendo, em consequência sido condenado, uma terceira vez, em 2017, ao pagamento de uma sanção pecuniária no montante de 4 000 euros, que pagou. Dado que o Land da Baviera continuou a recusar‑se a dar cumprimento a estas intimações e tendo anunciado publicamente que não respeitaria as suas obrigações, a Deutsche Umwelthilfe interpôs novo recurso destinado a obter, por um lado, a liquidação de uma nova sanção pecuniária compulsória de 4 000 euros, a que foi dado provimento por Despacho de 28 de janeiro de 2018, e, por outro, a imposição de uma detenção coerciva aos responsáveis do Land da Baviera (isto é, à ministra do Ambiente e da Proteção dos Consumidores do Land da Baviera ou, não sendo possível, ao ministro‑presidente), a que foi negado provimento por despacho do mesmo dia. Chamado a pronunciar‑se pelo Land da Baviera, o órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal Superior Administrativo do Land da Baviera, por um lado, confirmou a liquidação da sanção pecuniária compulsória e, por outro, decidiu apresentar ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial a propósito da imposição eventual de uma detenção coerciva. Com efeito, ao constatar que a condenação ao pagamento de sanções pecuniárias compulsórias não era suscetível de levar a uma modificação do comportamento do Land da Baviera, na medida em que, sendo contabilizadas como receitas do Land, não acarretavam nenhuma perda patrimonial, e que a aplicação de uma medida de detenção coerciva estava excluída por razões constitucionais internas, o referido tribunal submeteu ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial destinada a determinar, em substância, se o direito da União, em especial o direito a um recurso efetivo garantido no artigo 47.° Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), devia ser interpretado no sentido de que habilita, ou até obriga, os órgãos jurisdicionais nacionais a adotar tal medida.

O Tribunal de Justiça declarou que, em circunstâncias caracterizadas por uma recusa persistente de uma autoridade nacional de se conformar com uma decisão judicial que a intima a dar cumprimento a uma obrigação clara, precisa e incondicional decorrente do direito da União, designadamente da Diretiva 2008/50, incumbia ao órgão jurisdicional nacional competente impor a detenção coerciva de responsáveis do Land da Baviera desde que duas condições estejam preenchidas. Por um lado, deve existir, em direito interno, uma base jurídica para a adoção de tal medida que seja suficientemente acessível, precisa e previsível na sua aplicação. Por outro lado, deve ser respeitado o princípio da proporcionalidade.

A este respeito, o Tribunal começou por recordar que incumbia aos Estados‑Membros assegurar, ao aplicarem o direito da União, o respeito do direito a uma proteção jurisdicional efetiva, garantido tanto pelo artigo 47.° da Carta como, no domínio do ambiente, pelo artigo 9.°, n.° 4, da Convenção de Aarhus (2). Ora, o referido direito é tanto mais importante porquanto o facto de não adotar as medidas exigidas, no domínio abrangido pela Diretiva, 2008/50 poria em perigo a saúde das pessoas. Ora, uma legislação nacional que conduz a uma situação na qual a decisão de um órgão jurisdicional é inoperante viola o conteúdo essencial desse direito e priva‑o de qualquer efeito útil. Em tal situação, o Tribunal recordou que cabe ao juiz nacional dar do seu direito nacional uma interpretação que seja, em toda a medida do possível, conforme com os objetivos prosseguidos por aquelas disposições ou, na falta desta, afastar a aplicação de qualquer disposição nacional contrária ao direito da União de efeito direito.

Todavia, o Tribunal precisou igualmente que o respeito desta última obrigação não pode levar à violação do outro direito fundamental que é o direito à liberdade, garantido pelo artigo 6.° da Carta e no qual a detenção coerciva introduz uma limitação. Uma vez que o direito a uma proteção jurisdicional efetiva não é um direito absoluto e pode comportar restrições, em conformidade com o artigo 52.°, n.° 1, da Carta, impõe‑se uma ponderação dos direitos fundamentais em causa. Ora, para responder às exigências desta disposição, uma lei que habilite um juiz a privar uma pessoa da sua liberdade deve, antes de mais, ser de aplicação suficientemente acessível, precisa a fim de evitar qualquer perigo de arbitrariedade, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar. Por outro lado, uma vez que a imposição de uma detenção coerciva implica uma privação de liberdade, só é possível recorrer a esta medida, respeitando as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, quando não exista nenhuma medida menos restritiva (tais como, por exemplo, sanções pecuniárias compulsórias de montante elevado, repetidas num espaço de tempo curto, e cujo pagamento não resulte, afinal, em proveito do orçamento do qual provêm), o que cabe igualmente ao órgão jurisdicional examinar. Só na hipótese de se concluir que a limitação ao direito à liberdade decorrente da imposição de uma detenção coerciva respeita essas condições é que o direito da União não só autoriza como exige o recurso a tal medida, precisando‑se, no entanto, que uma violação da Diretiva 2008/50 pode, por outro lado, ser declarada pelo Tribunal no âmbito de uma ação por incumprimento ou acionar a responsabilidade do Estado pelos danos daí resultantes.


1      Diretiva 2008/50/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2008, relativa à qualidade do ar ambiente e a um ar mais limpo na Europa (JO 2008, L 152, p. 1).


2      Convenção sobre o acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente foi assinada em Aarhus, em 25 de junho de 1998, e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2005/370/CE do Conselho, de 17 de fevereiro de 2005 (JO 1998, L 124, p. 1).