Language of document : ECLI:EU:C:2024:153

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 22 de fevereiro de 2024 (1)

Processo C40/23 P

Comissão Europeia

contra

Reino dos Países Baixos

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Artigos 107.o e 108.o TFUE — Regulamento (UE) 2015/1589 — Artigo 4.o, n.o 3 — Declaração de compatibilidade com o mercado interno de uma medida que não foi qualificada de auxílio de Estado — Princípio da segurança jurídica»






1.        Com o presente recurso, a Comissão Europeia recorre do Acórdão do Tribunal Geral, de 16 de novembro de 2022, Reino dos Países Baixos/Comissão (2) que anulou a Decisão C(2020) 2998 final (3).

2.        Segundo o Tribunal Geral, a Comissão excedeu as suas competências ao declarar, nessa decisão, a compatibilidade com o mercado interno de uma medida que não qualificara previamente de «auxílio» na aceção do artigo 107.o TFUE, n.o 1.

3.        O debate entre a Comissão e o Governo Neerlandês dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de se pronunciar pela primeira vez (salvo erro da minha parte) sobre uma questão relevante para o regime de controlo dos auxílios concedidos pelos Estados instituído pelos artigos 107.o e 108.o TFUE definido pelo Regulamento (UE) 2015/1589 (4).

I.      Factos na origem do litígio

4.        Os antecedentes do litígio estão expostos nos n.os 2 a 18 do acórdão recorrido e podem ser resumidos nos seguintes termos:

–        Em 27 de março de 2019, em conformidade com a Diretiva (UE) 2015/1535 (5), as autoridades neerlandesas notificaram a Comissão do projeto de lei relativo à proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade.

–        O projeto de lei, que não foi notificado à Comissão em conformidade com o artigo 108.o, n.o 3, TFUE, tinha por objeto a redução de emissões de dióxido de carbono (CO2). Nele se previa a possibilidade de compensar o prejuízo causado a uma central de carvão que, em relação às outras centrais, fosse afetada de forma desproporcionada pela proibição da utilização de carvão na produção de eletricidade.

–        Na sequência da notificação do projeto de lei em aplicação da Diretiva 2015/1535, a Comissão iniciou, por iniciativa própria, a análise das informações relativas a um alegado auxílio.

–        A Comissão pediu às autoridades neerlandesas determinadas informações e estas responderam reiteradamente que a indemnização prevista na lei não constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

–        A lei foi adotada em 11 de dezembro de 2019 e entrou em vigor em 20 de dezembro seguinte. Nessa data, existiam nos Países Baixos cinco centrais elétricas a carvão (6).

–        Como a central Hemweg 8, devido às suas características (7), não pôde beneficiar do período transitório de cinco a dez anos concedido às outras quatro centrais e se viu obrigada a encerrar no final de 2019, a sua proprietária (Vattenfall) obteve do ministro dos Assuntos Económicos e do Clima neerlandês uma indemnização de 52,5 milhões de euros.

–        Em 12 de maio de 2020, a Comissão adotou a decisão em causa, na qual concluiu que a medida de indemnização à Vattenfall pelo encerramento da Hemweg 8 era compatível com o mercado interno, em conformidade com o artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE.

–        No n.o 48 da decisão afirmava‑se, em relação à eventual existência de um auxílio de Estado, que, «tendo em conta as informações fornecidas pelas autoridades neerlandesas, não pod[ia] concluir‑se, com suficiente grau de certeza, que […] [havia] direito a indemnização num montante de 52,5 milhões de euros». A Comissão deduziu daqui que não se podia excluir que a medida analisada «concede um auxílio de Estado à empresa em causa».

–        No n.o 49 da decisão, a Comissão afirmou que, de qualquer modo, «não [havia], […] que retirar uma conclusão definitiva […] quanto à questão de saber se a medida confer[ia] ou não uma vantagem ao gestor e constitu[ía], portanto, um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, uma vez que, mesmo na presença de um auxílio de Estado, [ela] considera[va] que a medida [era] compatível com o mercado interno» (8).

II.    Tramitação processual no Tribunal Geral e acórdão recorrido

5.        Em 27 de julho de 2020, o Reino dos Países Baixos recorreu da decisão para o Tribunal Geral.

6.        Em apoio do seu recurso, o Reino dos Países Baixos invocou cinco fundamentos:

–        Os três primeiros fundamentos foram invocados «na hipótese de se entender que a decisão impugnada implica necessariamente a qualificação da medida em causa como auxílio» (9).

–        Os quarto e quinto fundamentos são dirigidos «contra a decisão impugnada por não se pronunciar sobre a questão de saber se a medida em causa constitui ou não um auxílio de Estado» (10). Tratava‑se de fundamentos que se baseavam, respetivamente: a) na incompetência da Comissão para declarar uma medida compatível com o mercado interno, ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, sem a ter previamente qualificado de auxílio de Estado; e b) na violação do princípio da segurança jurídica.

7.        O Tribunal Geral julgou procedentes os dois últimos fundamentos e anulou a decisão.

8.        Os argumentos que o levaram a julgar procedente o quarto fundamento de recurso foram, em substância, os seguintes:

–        «A utilização do termo “auxílio”, no artigo 107.o, n.o 3, TFUE, implica que a compatibilidade de uma medida nacional com o mercado interno só pode ser apreciada depois de essa medida ter sido qualificada de auxílio» (11).

–        «É jurisprudência constante que, quando a Comissão não puder adquirir a convicção, no termo da fase preliminar de investigação, de que uma medida estatal não constitui “um auxílio”, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, ou de que, se for qualificada [de] auxílio, é compatível com o Tratado, ou quando este procedimento não lhe permitir ultrapassar todas as dificuldades levantadas pela apreciação da compatibilidade da medida em causa, esta instituição tem o dever de dar início ao procedimento previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE, sem dispor, nesta matéria, de uma margem de apreciação» (12).

–        «Só uma medida abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, ou seja, uma medida qualificada de auxílio de Estado, pode ser considerada pela Comissão compatível com o mercado interno» (13).

–        Esta conclusão é corroborada pelo artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, interpretado à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

–        Daqui resulta que «o artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, aplicável ao caso em apreço por força do artigo 15.o, n.o 1, do referido Regulamento […] fixa, portanto, uma lista exaustiva das decisões que a Comissão pode adotar no termo da análise preliminar da medida nacional em causa, entre as quais não figura a possibilidade de adotar uma decisão que declara uma medida nacional compatível com o mercado interno sem que a Comissão se tenha previamente pronunciado sobre a qualificação dessa medida como auxílio de Estado» (14).

–        No caso em apreço, «é pacífico que a Comissão tinha dúvidas quanto à qualificação da medida em causa [de] auxílio […], pelo que […] decidiu não se pronunciar sobre essa questão na decisão impugnada, concluindo que a medida em causa era compatível com o mercado interno». Por conseguinte, «a Comissão adotou uma decisão contrária tanto ao artigo 107.o, n.o 3, TFUE, como ao artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589» (15).

–        Em definitivo, «ao considerar, na decisão impugnada, que a medida em causa era compatível com o mercado interno, sem se pronunciar previamente sobre a questão de saber se tal medida constituía um auxílio, a Comissão excedeu as suas competências» (16).

9.        No que se refere à violação do princípio da segurança jurídica, o quinto fundamento de recurso foi julgado procedente na seguinte fundamentação do Tribunal Geral:

–        «A Comissão declarou, na decisão impugnada, que a medida em causa era compatível com o mercado interno. Todavia, não se procedeu à qualificação dessa medida, quando resulta […] que se trata de um pressuposto necessário ao exame da compatibilidade da referida medida com o mercado interno» (17).

–        «Na hipótese de os concorrentes da Vattenfall intentarem um processo nos órgãos jurisdicionais nacionais sobre a legalidade da medida em causa e se estes a qualificarem de auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, daí resultaria uma violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, devido à falta de notificação da medida em causa à Comissão e incumbiria ao Reino dos Países Baixos exigir da Vattenfall juros relativos ao período de ilegalidade» (18).

–        «A falta de qualificação da medida em causa deixou o Reino dos Países Baixos numa situação incerta quanto à concessão de um novo auxílio ao abrigo das regras relativas à cumulação de auxílios» (19).

–        «Não se pode, portanto, concluir que a decisão impugnada permitia ao Reino dos Países Baixos, destinatário da decisão impugnada, conhecer com exatidão os seus direitos e obrigações e agir em conformidade» (20).

–        «Nestas circunstâncias, há que declarar que a Comissão, ao decidir não se pronunciar sobre a questão de saber se a medida em causa devia ser qualificada de auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, violou o princípio da segurança jurídica» (21).

III. Recurso de decisão do Tribunal Geral e tramitação processual no Tribunal de Justiça

10.      No seu recurso, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 26 de janeiro de 2023, a Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        Anular o acórdão recorrido;

–        Julgar improcedentes os quarto e quinto fundamentos invocados no processo no Tribunal Geral;

–        No uso da competência que lhe é reconhecida pelo artigo 61.o, primeiro parágrafo, segundo período, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, decidir definitivamente o litígio e negar provimento ao recurso na íntegra; e

–        Condenar o Reino dos Países Baixos nas despesas.

11.      A Comissão apresenta um único fundamento de recurso, que divide em duas partes. Invoca, respetivamente: a) a interpretação errada do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, e do artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589; e b) um erro de direito na interpretação do princípio da segurança jurídica.

12.      Caso o acórdão recorrido seja anulado, a Comissão pede que sejam declarados inadmissíveis ou, pelo menos, improcedentes, os três primeiros fundamentos de recurso, e que os quarto e quinto fundamentos sejam julgados improcedentes.

13.      O Governo dos Países Baixos pede que seja negado provimento ao recurso e que a Comissão seja condenada nas despesas.

14.      Foram apresentadas réplica e tréplica.

IV.    Apreciação

A.      Primeira parte do fundamento de recurso: interpretação errada do artigo 107.o, n.o 3, TFUE e do artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589

1.      Alegações da Comissão e do Reino dos Países Baixos

15.      A Comissão alega que o acórdão recorrido se baseou numa interpretação demasiado restritiva do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, e do artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, ao declarar que aquela instituição não tem competência para adotar a decisão.

16.      Segundo a Comissão:

–        O Tribunal Geral parte da premissa (infundada) de que a competência devia estar expressamente prevista numa disposição específica do Regulamento 2015/1589.

–        A interpretação das disposições invocadas à luz dos seus objetivos confirma que nenhum deles exige que a medida seja previamente qualificada de auxílio de Estado para que seja possível decidir da compatibilidade da mesma com o mercado interno.

–        A interpretação levada a cabo pelo Tribunal Geral comporta, pelo contrário, todos os prejuízos da incerteza inerente a um processo desnecessariamente prolongado em situações nas quais pode ser antecipadamente excluída a incompatibilidade de uma medida com o mercado interno.

17.      O Governo Neerlandês defende que a solução do acórdão recorrido está correta. Considera que:

–        O conceito de «auxílio», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, é fundamental no que diz respeito às competências da Comissão. De acordo com a jurisprudência, a Comissão deve verificar, em primeiro lugar, se existe um auxílio de Estado e, em seguida, se o mesmo é compatível com o mercado interno.

–        Em determinadas situações, pode ser mais simples declarar que uma medida é compatível com o mercado interno do que determinar se a mesma constitui um auxílio de Estado. No entanto, a Comissão só pode excluir a incompatibilidade se não houver divergências entre o Estado‑Membro e a Comissão quanto à qualificação da medida em causa de auxílio de Estado.

–        Como no presente caso há um litígio a esse respeito e a medida controvertida não foi notificada, a Comissão, na qualidade de guardiã dos Tratados, não podia omitir um elemento essencial do regime dos auxílios estatais.

2.      Análise

18.      A descrição do problema suscitado por esta primeira parte do fundamento de recurso faz, em princípio, com que o mesmo pareça simples, mas da resposta que lhe é dada resulta que se trata de um problema delicado e complexo.

19.      Adianto, desde já, que, na minha opinião, o Tribunal Geral não tem razão ao considerar que a Comissão, que fez precisamente uso dos poderes que lhe são conferidos pelos artigos 107.o e 108.o TFUE e pelo Regulamento 2015/1589, «excedeu as suas competências» na sua decisão (22).

20.      Segundo o Tribunal Geral, a Comissão não tem, em nenhum caso, competência para adotar uma decisão em que declare a compatibilidade de uma medida estatal com o mercado interno, se previamente não a tiver qualificado de auxílio de Estado.

21.      Na minha opinião, esta tese enferma de um erro de direito que deve ser sanado (23).

22.      Entre as competências atribuídas à Comissão pelos artigos 107.o e 108.o TFUE está a de encerrar um procedimento de análise preliminar (tramitado ao abrigo do artigo 4.o do Regulamento 2015/1589) sem levantar objeções à medida nacional analisada. Assim aconteceu no presente caso.

23.      Diferente é o caso de, ao pronunciar‑se nesse sentido, uma determinada decisão enfermar de um vício que conduza à sua invalidade (que não a falta de competência) por aplicar o artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE a uma medida analisada, sem esclarecer previamente o seu caráter de auxílio estatal (24).

24.      Assim, deixando de lado o atinente à competência da Comissão, o presente recurso centrar‑se‑á na questão de saber se o regime de controlo dos auxílios de Estado (artigos 107.o e 108.o TFUE e Regulamento 2015/1589) deve ser objeto de uma interpretação restrita ou, pelo contrário, permite acolher a tese da Comissão. Esta instituição preconiza uma abordagem teleológica e funcional das funções que lhe são atribuídas na qualidade de garante da concorrência no âmbito do mercado interno.

25.      É certo que não são poucos, nem desprovidos de razões sólidas, os argumentos a favor de uma interpretação restrita, como a assumida pelo Tribunal Geral e defendida pelo Governo Neerlandês no presente recurso.

26.      No entanto, em situações como as do presente processo, considero que pode ser necessária uma releitura das disposições aplicáveis, para que o seu sentido literal seja teleologicamente matizado e acabe por conduzir a admitir a validade da decisão.

27.      Referir‑me‑ei, em primeiro lugar, à interpretação em que se baseia o acórdão recorrido.

a)      Interpretação restrita

28.      Numa primeira abordagem, o Tribunal Geral interpreta os artigos 107.o e 108.o TFUE numa sequência lógica:

–        Antes de mais, importa determinar se a medida constitui um «auxílio». Isto é, saber se os fundos ou vantagens públicas concedidos a uma empresa ou a um setor de produção o são apenas a título da simples vontade de conferir um auxílio ou uma vantagem (25).

–        Se a Comissão tem dúvidas sobre a qualificação da medida como «auxílio», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, deve dar início a um procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE.

29.      Esta mesma sequência podia ser deduzida do artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, relativo aos auxílios notificados (26). Como indica o Tribunal Geral (27), a organização da análise dos auxílios de Estado em duas fases sucessivas e centradas em questões diferentes é confirmada pelo previsto neste artigo, por força do qual:

–        A Comissão deve considerar, em primeiro lugar, «após uma análise preliminar», que a medida projetada e notificada por um Estado‑Membro «não constitui um auxílio» (n.o 2).

–        «Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que não há dúvidas quanto à compatibilidade da medida notificada com o mercado interno, na medida em que está abrangida pelo artigo 107.o, n.o 1, do TFUE, decidirá que essa medida é compatível com o mercado interno (“decisão de não levantar objeções”). A decisão referirá expressamente a derrogação do TFUE que foi aplicada» (n.o 3) (28).

–        «Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que a medida notificada suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno, decidirá dar início ao procedimento formal de investigação nos termos do artigo 108.o, n.o 2, do TFUE […]» (n.o 4).

30.      Dos artigos 107.o e 108.o TFUE, conjugados com o artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, decorreria, assim, que a apreciação dos auxílios é um processo em que: a) primeiro, há que constatar a existência de um auxílio estatal; e b) em seguida, apreciar se, mesmo sendo, em princípio, ilícito, este auxílio é compatível com o mercado interno.

31.      Admitir esta abordagem, adotada no acórdão recorrido, implica que a Comissão não pode pronunciar‑se sobre a compatibilidade com o mercado interno da medida controvertida sem ter decidido previamente que a mesma constitui um auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

32.      Reconheço que esta interpretação tem fundamentos sólidos nos textos legais aplicáveis. No entanto, pelo que irei expor em seguida, não considero que seja a única possível nem que seja a aplicável a este caso. Além disso, mesmo que a leitura de diversos acórdãos do Tribunal de Justiça pareça corroborá‑la, é discutível se essa jurisprudência pode ser transposta para casos como o sub judice.

b)      Interpretação decorrente da jurisprudência do Tribunal de Justiça?

33.      Importa esclarecer, antes de mais, que a solução preconizada pelo acórdão recorrido não foi até agora (salvo erro da minha parte) assumida por nenhuma decisão expressa do Tribunal de Justiça proferida em circunstâncias análogas às do presente litígio.

34.      Como precisou a Comissão (29), o Acórdão British Aggregates, invocado no n.o 54 do acórdão recorrido, na parte que o Tribunal Geral traz à colação, refere‑se à extensão da fiscalização judicial (exaustiva) das apreciações da Comissão no que respeita à qualificação de uma medida de auxílio de Estado. Este acórdão não se pronuncia sobre a competência da Comissão para declarar a compatibilidade de uma medida com o mercado interno sem verificar previamente a sua natureza de auxílio de Estado (30).

35.      Assim sucede igualmente com o Acórdão de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex (31), cujos n.os 43 e 44 são referidos no n.o 58 do acórdão recorrido:

–        Por um lado, os mencionados n.os 43 e 44 limitam‑se a reproduzir, em substância, o artigo 4.o do Regulamento (CE) n.o 659/1999 (32);

–        Por outro lado, naquele processo, a decisão da Comissão tinha confirmado a existência de um auxílio de Estado, em relação ao qual decidiu não levantar objeções uma vez terminada a análise preliminar da compatibilidade da medida com o mercado interno. O debate quanto ao mérito incidia sobre os elementos utilizados pela Comissão para declarar esta compatibilidade.

36.      Na verdade, não faltam decisões do Tribunal de Justiça em que efetivamente se afirma que a qualificação de uma medida como auxílio é algo que importa decidir previamente à apreciação da sua compatibilidade com o mercado interno. No entanto, trata‑se de afirmações que, em meu entender, são feitas a título incidental, não sendo necessariamente relevantes para a fundamentação da decisão adotada casuisticamente pelo Tribunal de Justiça.

37.      O Acórdão de 16 de março de 2021, Comissão/Polónia (33), afirma, por exemplo, que «a Comissão é obrigada a dar início ao procedimento formal de investigação se, na sequência da análise preliminar prevista no artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, não ficar convencida de que a medida notificada é compatível com o mercado interno. O mesmo acontece quando continua a ter dúvidas sobre a própria qualificação como “auxílio”, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE» (34).

38.      No entanto, o referido acórdão tinha por objeto cada um dos recursos interpostos da decisão da Comissão de dar início a um procedimento formal de investigação e contra a posterior decisão que qualificava a medida fiscal controvertida de auxílio de Estado incompatível com o mercado interno.

39.      Quanto ao Acórdão de 24 de novembro de 2020, Viasat Broadcasting UK (35), o mesmo declara que «a questão de saber se uma medida deve ser qualificada [de] auxílio de Estado, prévia à eventual verificação do caráter incompatível de um auxílio na aceção do artigo 107.o TFUE é, no entanto, necessária para o cumprimento da missão confiada ao beneficiário da medida em causa, na aceção do artigo 106.o, n.o 2, TFUE […]. Por conseguinte, a Comissão deve, antes de examinar eventualmente uma medida à luz desta disposição, poder fiscalizar se essa medida constitui um auxílio de Estado […]» (36).

40.      Ora, a questão objeto de debate naquele recurso era a de saber se havia que «pagar juros relativos ao período durante o qual as medidas de auxílio de que beneficiou foram ilegalmente executadas antes da adoção da decisão final da Comissão Europeia que as declara compatíveis com o mercado interno».

41.      Por último, o Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Comissão/Braesch e o (37). declara que, «quando, no termo da fase preliminar de exame prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE, a Comissão considerar que a medida notificada constitui um “auxílio de Estado”, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, que não suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno, adota uma decisão […] pela qual declara que essa medida é compatível com o mercado interno, ao abrigo das disposições do artigo 107.o, n.o 3, TFUE».

42.      Mais uma vez, nesta ocasião, o Tribunal de Justiça não abordou a questão que aqui é objeto de debate. A decisão da Comissão sobre a qual versava o litígio declarou que determinadas medidas constituíam «auxílios de Estado», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, que podiam ser considerados compatíveis com o mercado interno por motivos de estabilidade financeira, ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, alínea b) (38).

43.      No que se refere a decisões anteriores do Tribunal Geral, a Comissão salienta que, no Acórdão de 20 de junho de 2019 (39), este Tribunal reconheceu que a Comissão podia apreciar a compatibilidade de uma medida estatal com o mercado interno «na hipótese de esta medida constituir um auxílio». Admitiu, assim, que uma decisão da Comissão pode declarar a medida compatível com o mercado interno, sem necessidade de ter decidido previamente qualificar essa medida de auxílio (40).

44.      A questão suscitada no presente processo (uma vez mais, salvo erro da minha parte) não foi decidida até agora pelo Tribunal de Justiça, que ainda não foi confrontado com uma situação em que se discuta a competência da Comissão para declarar a compatibilidade com o mercado interno de uma medida não qualificada previamente de auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

c)      Interpretação integrada e funcional

45.      Considero que cabe fazer uma interpretação alternativa à anteriormente exposta, partindo do pressuposto de que a licitude de qualquer auxílio de Estado depende da verificação da sua compatibilidade com o mercado interno.

46.      Tendo em consideração as circunstâncias do caso, a questão decisiva não é tanto, repito, a de saber se a Comissão tem competência para declarar que uma medida é compatível com o mercado interno, mas a de saber em que condições pode declarar a incompatibilidade dessa medida.

47.      Na minha opinião, dos artigos 107.o e 108.o TFUE resulta a atribuição de uma competência geral à Comissão para velar pela inviolabilidade da concorrência no mercado interno. Esta competência é atribuída para garantir que os Estados‑Membros não falseiem ou ameacem falsear a concorrência através da concessão de auxílios financiados com recursos estatais (41).

48.      Prova da existência desta competência geral é o conteúdo do artigo 12.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589: «a Comissão pode, por sua própria iniciativa, examinar informações de qualquer fonte sobre um auxílio alegadamente ilegal» (42).

49.      O poder previsto neste artigo demonstra que a Comissão tem um dever de vigilância ativa para salvaguardar a inviolabilidade da concorrência no mercado interno. Este dever não se limita à análise dos projetos de auxílio notificados pelos Estados‑Membros ou às denúncias eventualmente apresentadas pelos interessados, mas estende‑se, de um modo geral, a quaisquer medidas públicas suscetíveis de falsear a concorrência no mercado interno.

50.      À luz deste dever geral de vigilância, o silêncio da Comissão perante uma medida que não lhe foi notificada, que não foi objeto de denúncia por um interessado ou que, seja qual for o meio pelo qual chegou ao seu conhecimento, não lhe suscitou suficiente desconfiança para a incitar a agir por sua própria iniciativa, significa, em última análise, uma declaração implícita de compatibilidade com o mercado interno, isto é, a assunção de que não se trata de uma medida suscetível de falsear a concorrência.

51.      Neste mesmo sentido, recordo que, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 6, do Regulamento 2015/1589, se considera que a Comissão autoriza a medida quando não tomar uma decisão em conformidade com os n.os 2, 3 ou 4 do mesmo artigo, no prazo previsto no n.o 5 da mesma disposição. Ou seja, a autorização considera‑se concedida sem que a Comissão se tenha pronunciado expressamente, num ou noutro sentido, sobre a natureza de auxílio da medida nacional.

52.      Ora, concordo com a Comissão (43) quando afirma que dificilmente se compreende que os efeitos da inação desta instituição (autorizar tacitamente a medida, apesar de a natureza de auxílio desta não ter sido objeto de prévia apreciação) não se possam produzir quando a mesma decide expressamente não levantar objeções a essa mesma medida por considerar que a mesma é compatível com o mercado interno, quer se trate ou não de um auxílio de Estado.

53.      Contrariamente ao que acontece com a declaração de compatibilidade, que, insisto, não exige necessariamente que a medida analisada seja previamente definida como auxílio, a Comissão só pode emitir uma declaração expressa de incompatibilidade de um auxílio público em casos estritamente definidos, ou seja, quando, após os procedimentos previstos no artigo 108.o TFUE, haja lugar, ao abrigo do artigo 107.o TFUE, a essa concreta declaração a respeito das medidas constitutivas de um auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Mais precisamente, as medidas que correspondam em todos os seus elementos à definição desta última disposição, devem em seguida ser avaliadas na perspetiva da incompatibilidade com o mercado interno (44).

54.      Por conseguinte, e no que diz respeito ao caso em apreço, quando a Comissão exclui inequivocamente, numa primeira análise preliminar, que a medida controvertida seja incompatível com o mercado interno, limita‑se a cumprir a sua obrigação geral de velar pela inviolabilidade da concorrência.

55.      Quer se trate ou não de um auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, o importante é que, de qualquer modo, a medida controvertida não tenha efeitos negativos indesejados na concorrência (45) e no comércio entre os Estados‑Membros, bem como que contribua para atingir um objetivo de interesse comum claramente definido (a preservação do ambiente através da redução das emissões poluentes).

56.      Se a Comissão tivesse chegado à conclusão contrária e tivesse advertido, prima facie, que aquela medida poderia ser incompatível com o mercado interno, teria de ter iniciado o procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE. No âmbito deste procedimento, depois de verificar, em relação a todos os pontos (46), que se tratava de um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, podia emitir, sendo caso disso, uma declaração de ilegalidade.

57.      Quanto ao demais, estou de acordo com a Comissão (47) no que respeita ao facto de, para efeitos da tomada de uma decisão como a aqui controvertida, o artigo 107.o TFUE não especificar a ordem pela qual esta instituição deve abordar a análise da questão de saber se uma medida nacional é um auxílio de Estado ou se é compatível com o mercado interno. A interpretação desta disposição levada a cabo pelo Tribunal Geral restringe indevidamente as possibilidades de atuação que aquela disposição confere à Comissão.

58.      Esta abordagem, além de fazer jus à competência geral atribuída à Comissão na defesa do mercado interno contra eventuais distorções provocadas por auxílios públicos, está naturalmente em conformidade com as exigências do princípio da boa administração, como a própria Comissão alega.

59.      Com efeito, faria pouco sentido dedicar os escassos recursos de uma instituição da União à instrução de um procedimento formal de investigação como o do artigo 108.o, n.o 2, TFUE (por vezes, delicado e complexo) apenas para determinar a natureza de auxílio estatal de uma medida, quando, uma rigorosa análise preliminar (48) permite excluir inequivocamente que a mesma seja incompatível com o mercado interno, mesmo que se trate de um auxílio (49).

60.      Em suma, considero que há que julgar procedente a primeira parte do fundamento de recurso, uma vez que a Comissão era competente para tomar a decisão e esta não enferma de nenhum vício que conduza à sua invalidade pelo facto de declarar compatível com o mercado interno (e não levantar objeções contra) a medida nacional controvertida, quer esta seja, ou não, um auxílio estatal.

B.      Segunda parte do fundamento de recurso

1.      Alegações da Comissão e do Reino dos Países Baixos

61.      A Comissão imputa ao acórdão recorrido um erro de direito na interpretação do princípio da segurança jurídica. Em apoio da sua tese, invoca os seguintes argumentos:

–        A decisão contribui para a segurança jurídica ao afirmar que a medida controvertida é compatível com o mercado interno. Em particular, dela consta claramente que a Comissão não abrirá o processo formal de investigação nem ordenará a recuperação da indemnização controvertida.

–        A solução do Tribunal Geral pressupõe ao invés que, em casos como o presente, a Comissão deve proceder a uma análise aprofundada e complexa para determinar se a medida constitui um auxílio, o que prejudicará a segurança jurídica em vez de a reforçar.

–        Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (50), embora a Comissão, caso considere que uma medida é compatível com o mercado interno, disso deva dar conhecimento ao Estado‑Membro, a mesma não é, em contrapartida, obrigada a tomar uma decisão se, durante a análise preliminar, concluir que não deve iniciar o procedimento do artigo 108.o, n.o 2, TFUE.

–        Por conseguinte, embora o princípio da segurança jurídica não seja afetado pelo facto de a Comissão não tomar uma decisão (e, portanto, não se pronunciar sobre a qualificação da medida como auxílio de Estado), tal princípio também não seria violado se, como acontece no presente caso, a Comissão decidir não levantar objeções, por considerar que a medida é compatível com o mercado interno (sem se pronunciar sobre a sua qualificação como auxílio de Estado).

–        Mesmo que a Comissão tivesse concluído pela inexistência de um auxílio de Estado, os concorrentes teriam a possibilidade de contestar esta decisão. Do mesmo modo, poderiam ter exigido o pagamento de juros relativos ao período abrangido pela ilegalidade, apesar de a Comissão ter considerado que a medida era um auxílio de Estado ou apesar de não a ter analisado.

–        O Regulamento 2015/1589 não obriga a dar início a uma análise preliminar de uma medida não notificada. A existir incerteza jurídica no processo em apreço, a mesma seria imputável ao Reino dos Países Baixos e à sociedade indemnizada, que decidiram, respetivamente, pagar e aceitar a indemnização sem a notificar à Comissão.

–        A alegada incerteza suscitada em caso de cumulação com pagamentos posteriores é meramente hipotética e não convence.

–        Mesmo que tivesse constatado a existência de um auxílio de Estado, a Comissão podia não ter quantificado o seu montante exato, contrariamente ao alegado pelo Tribunal Geral.

62.      O Governo dos Países Baixos insiste no argumento de que a Comissão não era competente para adotar a decisão controvertida e, por conseguinte, violou o princípio da legalidade, o que implica uma violação do princípio da segurança jurídica. A este acrescenta ainda os seguintes argumentos:

–        Ao não se pronunciar sobre a existência de um auxílio de Estado, a Comissão deixou o Governo Neerlandês numa situação de insegurança, uma vez que a situação e as relações jurídicas não são nem claras nem previsíveis. Não se compreende por que motivo a segurança seria afetada, em vez de reforçada, por uma análise pormenorizada da questão, não tendo sido explicada a razão pela qual essa análise deveria necessariamente ser longa e complexa.

–        É irrelevante que não esteja atualmente pendente nenhum processo nos tribunais nacionais, pois a possibilidade de tal ocorrer constitui um dos motivos pelos quais a decisão viola o princípio da segurança jurídica.

–        A cumulação da medida com pagamentos posteriores é frequentemente hipotética, dado que se trata de um evento futuro, mas o determinante é que a mesma seja possível e que os Estados‑Membros devam tomar esse elemento em consideração.

2.      Análise

63.      Admitindo, como proponho, que a Comissão é competente para declarar compatível com o mercado interno uma medida que não qualificou previamente de auxílio, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, a decisão terá sido tomada em conformidade com o princípio da legalidade. De igual modo, também o princípio da segurança jurídica terá sido respeitado.

64.      Se, como procurei explicar, a Comissão pode declarar uma medida de financiamento público compatível com o mercado interno (mas não, repito, declarar a sua incompatibilidade sem a qualificar previamente de auxílio, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE), aquela declaração tem, na realidade, o efeito de excluir a própria existência de um auxílio ilícito do ponto de vista do direito da União.

65.      A ilegalidade de um (hipotético) auxílio público depende indissociavelmente da sua compatibilidade com o mercado interno. Só os auxílios que, afetando as trocas entre os Estados‑Membros, além de serem públicos, falseiem ou ameacem falsear a concorrência, são incompatíveis com o mercado interno e, portanto, ilícitos.

66.      Por conseguinte, apreciar a compatibilidade com o mercado interno de uma medida com estas características, quer a mesma seja ou não um auxílio de Estado, equivale a determinar que, ainda que a referida medida tenha a natureza de auxílio, não se trata de um auxílio ilegal na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

67.      Nestas condições, a declaração de compatibilidade com o mercado interno que consta da decisão comporta uma confirmação implícita de que não existe um auxílio ilegal na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

68.      Partindo desta premissa, não vejo razões para considerar a existência de uma violação do princípio da segurança jurídica neste processo.

69.      Em primeiro lugar, ao não levantar objeções à medida, a decisão confirma a sua validade e, indiretamente, a apreciação do Governo dos Países Baixos, deixando o caminho livre à sua execução sem reservas na perspetiva do direito da União.

70.      Em segundo lugar, considero infundada a preocupação a respeito de uma futura e hipotética decisão judicial nacional que qualifique de auxílio contrário ao artigo 107.o, n.o 1, TFUE a medida que a Comissão declarou compatível com o mercado interno e, portanto, lícita do ponto de vista do direito da União. A decisão da Comissão assim tomada não pode ser revista pelos tribunais nacionais.

71.      O Tribunal Geral concorda com a tese do Governo dos Países Baixos ao defender, no n.o 65 do acórdão recorrido, que os concorrentes da Vattenfall poderiam iniciar um procedimento nos tribunais nacionais para que estes «qualificassem [a medida controvertida] de auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE». No entanto, como acabo de indicar, a decisão da Comissão obsta, no fundo, a esta possibilidade.

72.      Em terceiro lugar, também não considero que possam ocorrer posteriores problemas relacionados com uma futura cumulação de novos auxílios por não observarem as normas que obrigam a ter em conta o montante total dos recebidos ou impõem determinados limites a essa cumulação (51).

73.      O caráter hipotético desta censura é identificável, entre outras razões, pelo facto de não haver registo de que o Governo dos Países Baixos tenha notificado formalmente à Comissão as (posteriores) decisões decorrentes da aplicação da Lei relativa à proibição do carvão na produção de eletricidade (52). Se for esse o caso, não se compreende como se poderia verificar, a posteriori, uma cumulação de auxílios a esse título.

74.      Considero, em suma, que também esta segunda parte do fundamento de recurso deve ser julgada procedente.

C.      Decisão definitiva do litígio

75.      De acordo com o artigo 61.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o recurso for julgado procedente, o Tribunal de Justiça anula o acórdão recorrido e, se for esse o caso, decide definitivamente o litígio, se estiver em condições de ser julgado.

76.      Na minha opinião, o estado do litígio permite a sua decisão definitiva pelo Tribunal de Justiça.

77.      O Governo Neerlandês apresentou os três primeiros fundamentos de anulação no Tribunal Geral na hipótese de se entender que a decisão tinha qualificado a medida controvertida de auxílio de Estado. Ora, como reconheceu o Tribunal Geral ao não proceder à sua análise (53), estes três fundamentos partem de uma premissa incorreta: a decisão não se pronunciou sobre a natureza da medida, limitando‑se a declarar que, mesmo que fosse um auxílio estatal, a medida em causa seria compatível com o mercado interno.

78.      Os quarto e quinto fundamentos de recurso baseavam‑se, respetivamente, na incompetência da Comissão para adotar a decisão e na violação do princípio da segurança jurídica. Atendendo ao acima exposto, ambos os fundamentos são improcedentes.

79.      Por conseguinte, deve ser negado provimento ao recurso do Governo dos Países Baixos.

D.      Quanto às despesas

80.      Nos termos do artigo 184.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, e conforme requerido pela Comissão, o Reino dos Países Baixos é condenado nas despesas.

V.      Conclusão

81.      Face às considerações acima expostas, proponho ao Tribunal de Justiça:

–        Negar provimento ao recurso.

–        Anular o Acórdão proferido pelo Tribunal Geral em 16 de novembro de 2022, Reino dos Países Baixos/Comissão (T‑469/20, EU:T:2022:713).

–        Exercer a faculdade de decidir definitivamente o litígio, prevista no artigo 61.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, negando provimento ao recurso de anulação interposto pelo Reino dos Países Baixos, por ser infundado.

–        Condenar o Reino dos Países Baixos nas despesas.


1      Língua original: espanhol.


2      Processo T‑469/20, EU:T:2022:713 (a seguir «acórdão recorrido»).


3      Decisão da Comissão, de 12 de maio de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA.54537 (2020/NN) — Países Baixos, Proibição de utilização de carvão na produção de eletricidade nos Países Baixos (JO 2020, C 220, p. 2) (a seguir «decisão»).


4      Regulamento do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o [TFUE] (codificação) (JO 2015, L 248, p. 9).


5      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (codificação) (JO 2015, L 241, p. 1).


6      A saber, a Amercentrale 9, a Eemshaven A/B, a Engie Maasvlakte, a MPP3 e a Hemweg 8.


7      Segundo o n.o 10 do acórdão recorrido, a Hemweg 8 não queimava biomassa, não produzia energia renovável e o seu rendimento era o mais baixo das cinco centrais.


8      Nos n.os 54 a 87 da decisão, a Comissão expôs longamente as razões pelas quais considerava que a medida controvertida era compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE. Na sua réplica (n.o 20), a Comissão precisa que, «mesmo supondo que o pagamento à Vattenfall lhe conferia uma vantagem na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, o mesmo era compatível com o n.o 3, alínea c), uma vez que, expresso em termos muito simples, a cessação da utilização de carvão na central de Hemweg é benéfica em termos ambientais».


9      N.o 36 do acórdão recorrido. O primeiro fundamento era relativo à violação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, quanto à existência de uma vantagem, o segundo a uma aplicação errada do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, quanto ao ónus da prova e o terceiro a uma violação do dever de fundamentação.


10      N.o 36 do acórdão recorrido.


11      N.o 53 do acórdão recorrido.


12      N.o 54 do acórdão recorrido, com referência do Acórdão de 22 de dezembro de 2008, British Aggregates/Comissão (C‑487/06 P, EU:C:2008:757, n.o 113) (a seguir «Acórdão British Aggregates/Comissão»).


13      N.o 55 do acórdão recorrido.


14      N.o 59 do acórdão recorrido.


15      N.os 60 e 61 do acórdão recorrido.


16      N.o 62 do acórdão recorrido.


17      N.o 64 do acórdão recorrido.


18      N.o 65 do acórdão recorrido.


19      N.o 66 do acórdão recorrido.


20      N.o 70 do acórdão recorrido.


21      N.o 71 do acórdão recorrido.


22      N.o 62 do acórdão recorrido.


23      De facto, parece‑me que o Governo dos Países Baixos nem sequer concorda inteiramente com essa tese, já que reconhece, no n.o 43 da sua contestação, que a Comissão poderia adotar uma decisão como a controvertida (deixando em suspenso a questão de saber se se trata, ou não, de um auxílio) se não houvesse discordância sobre este ponto entre o Estado‑Membro e a Comissão. Deste modo, em meu entender, confirma que não se trata de um verdadeiro problema de competência, pois, numa situação como a dos presentes autos, a meu ver dificilmente se pode admitir que a competência da Comissão pode depender da posição, coincidente ou divergente, do Estado‑Membro.


24      O Governo dos Países Baixos não nega que, caso seja um auxílio de Estado (o que contesta), a medida poderia fundamentar‑se no artigo 107.o, n.o 3, alínea c) TFUE. A Comissão, por seu lado, como já se referiu, não afirma nem nega que essa medida constitua um auxílio, limita‑se a afirmar que, na hipótese de o ser, a mesma seria admissível nos termos daquela disposição.


25      A transferência desses fundos com base numa indemnização legalmente devida é feita a um título diferente do da concessão de uma vantagem.


26      Embora o artigo 4.o do Regulamento 2015/1589 se refira aos auxílios notificados, a Comissão pode levara a cabo, por sua própria iniciativa, um exame de um auxílio eventualmente ilegal (não notificado): nesse caso, este exame termina com uma declaração nos termos do artigo 4.o, n.os 2, 3 ou 4. Assim dispõe o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589. A Comissão adotou a decisão sem que o Governo dos Países Baixos lhe notificasse a medida.


27      N.os 56 a 59 do acórdão recorrido.


28      A Comissão alega que a expressão «na medida em que está abrangida pelo artigo 107.o, n.o 1» utilizada no artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, não pode ser interpretada, como faz o Tribunal Geral, no sentido de que a compatibilidade só pode ser analisada se a medida tiver sido qualificada de auxílio de Estado (n.o 33 do recurso). Na sua opinião, aquela expressão está subordinada à proposição principal da disposição («decidirá que essa medida é compatível com o mercado interno»), o que significa que, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, a Comissão pode pronunciar‑se sobre a compatibilidade de uma medida sem decidir definitivamente a questão de saber se constitui um auxílio (n.os 35 e 36 do recurso).


29      N.o 29 do recurso.


30      O Governo dos Países Baixos admite esta observação da Comissão, embora precise que não significa que «não se possa deduzir nenhuma conclusão pertinente» daquele acórdão (n.o 31 da contestação do Governo Neerlandês).


31      Processo C‑83/09 P, EU:C:2011:341.


32      Regulamento do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo [88.o] do Tratado CE (JO 1999, L 83, p. 1).


33      Processo C‑562/19 P, EU:C:2021:201.


34      N.o 50.


35      Processo C‑445/19, EU:C:2020:952.


36      N.o 35.


37      Processo C‑284/21 P, EU:C:2023:58, n.o 64.


38      Sem pretender ser exaustivo, pode referir‑se ainda o Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Club Hotel Loutraki e o./Comissão (C‑131/15 P, EU:C:2016:989), em cujo n.o 33 se afirma que as dúvidas sobre a qualificação de uma medida de auxílio devem levar à abertura de um procedimento formal de investigação. Neste caso estava em causa a questão de saber se a Comissão tinha razão ao declarar a inexistência de um auxílio na sequência de uma análise preliminar.


39      Acórdão a&o hostel and hotel Berlin/Comissão (T‑578/17, não publicado, EU:T:2019:437, n.os 72 a 79).


40      N.o 73 do acórdão proferido no processo T‑578/17. O Tribunal Geral acrescentou, nesse mesmo número, que a Comissão podia agir assim, mas que isso não significava que o seu controlo da compatibilidade da medida pudesse ser menos aprofundado: «o facto de a existência de um auxílio só ser admitida hipoteticamente não reduz em absoluto a profundidade da análise que a Comissão é obrigada a realizar no que se refere à incompatibilidade [da medida]. Com efeito, se assim não fosse, a Comissão teria poderes para verificar a compatibilidade de uma medida estatal com o mercado interno de uma forma menos aprofundada, consoante a sua opção, discricionária, de deixar em aberto a questão de saber se se trata ou não de um auxílio de Estado».


41      Uma competência do mesmo teor resulta da regulação da fiscalização da concorrência no âmbito das empresas (artigos 101.o a 106.o TFUE).


42      Neste sentido, o artigo 105.o, n.o 1, TFUE dispõe que a Comissão, sem prejuízo da competência atribuída aos Estados‑Membros no artigo 104.o TFUE, velará pela aplicação dos princípios enunciados nos artigos 101.o e 102.o TFUE, e, designadamente, instruirá oficiosamente os casos de presumível infração a estes princípios, que visam evitar práticas concertadas ou a exploração abusiva de posições dominantes no mercado.


43      N.o 50 do recurso.


44      A incompatibilidade com o mercado interno é uma qualidade fundamental dos auxílios na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. As derrogações previstas nos seus n.os 2 e 3 pressupõem que a incompatibilidade prevista no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, só é definitiva depois de excluída a ocorrência de alguma dessas derrogações.


45      Uma medida pode ter certos efeitos negativos limitados sobre a concorrência e as trocas comerciais, mas será admissível se o balanço global (por exemplo, do ponto de vista de uma maior proteção do ambiente) for positivo em termos gerais para o interesse comum. A este último interesse é dirigido, precisamente, o artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE.


46      Tanto no que se refere à condição relativa à vantagem (auxílio baseado apenas na intenção de favorecer um concorrente) como ao financiamento com recursos públicos e ao efeito de distorção da concorrência.


47      N.o 24 do recurso.


48      V. nota 8 das presentes conclusões.


49      Acresce a esta consideração que, no caso em apreço, a parte que impugna a decisão, ou seja, o Reino dos Países Baixos, não o faz por divergências substanciais quanto à decisão final. O Reino dos Países Baixos dificilmente poderia discordar da mesma, uma vez que a Comissão não levantou nenhuma objeção à medida estatal, o que facilita a sua execução sem reservas do ponto de vista do direito da União.


50      Referência ao Acórdão de 11 de dezembro de 1973, Lorenz (120/73, EU:C:1973:152).


51      O Tribunal Geral refere como tais o ponto 81 das Orientações relativas a auxílios estatais à proteção ambiental e à energia 2014‑2020 (2014/C 200/01) (JO 2014, C 200, p. 1) e o artigo 8.o do Regulamento (UE) n.o 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o [TFUE] e 108.o [TFUE] (JO 2014, L 187, p. 1).


52      Assim é reconhecido pelo Governo Neerlandês no n.o 18 da sua tréplica, ao mesmo tempo que precisa que o artigo 4.o, n.o 3, desta lei o obriga a notificar à Comissão as decisões adotadas para a executar.


53      N.o 37 do acórdão recorrido.