Language of document : ECLI:EU:C:1999:269

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1 de Junho de 1999 (1)

«Concorrência — Aplicação oficiosa do artigo 81.° CE (ex-artigo 85.°) por um tribunal arbitral — Poder de um tribunal nacional anular as sentenças arbitrais»

No processo C-126/97,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE (ex-artigo 177.°), pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos), destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Eco Swiss China Time Ltd

e

Benetton International NV,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 81.° CE (ex-artigo 85.°),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, P. J. G. Kapteyn, J.-P. Puissochet, G. Hirsch e P. Jann, presidentes de secção, G. F. Mancini, J. C.

Moitinho de Almeida (relator), C. Gulmann, J. L. Murray, D. A. O. Edward, H. Ragnemalm, L. Sevón e M. Wathelet, juízes,

advogado-geral: A. Saggio,


secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,

vistas as observações escritas apresentadas:

—    em representação da Eco Swiss China Time Ltd, por P. V. F. Bos e Slotboom, advogados no foro de Roterdão, e S. C. Conway, attorney-at-Law admitted to the District of Columbia and Illinois Bar,

—    em representação da Benetton International NV, por I. van Bael e P. L'Ecluse, advogados no foro de Bruxelas, e H. A. Groen, advogado no foro da Haia,

—    em representação do Governo neerlandês, por M. A. Fierstra, consultor jurídico adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

—    em representação do Governo francês, por K. Rispal-Bellanger, subdirectora para o direito económico internacional e o direito comunitário na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e R. Loosli-Surrans, encarregada de missão na mesma direcção, na qualidade de agentes,

—    em representação do Governo italiano, pelo professor U. Leanza, chefe do Serviço do Contencioso Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, assistido por I. M. Braguglia, avvocato dello Stato,

—    em representação do Governo do Reino Unido, por J. E. Collins, Assistant Treasury Solicitor, na qualidade de agente, assistido por V. V. Veeder, QC,

—    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por C. W. A. Timmermans, director-geral adjunto, W. Wils e H. van Vliet, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Eco Swiss China Time Ltd, representada por P. V. F. Bos, L. W. H. van Dijk e M. van Empel, advogados no foro de Bruxelas, da Benetton International NV, representada por H. A. Groen e I. van Bael, do Governo neerlandês, representado por M. A. Fierstra, do Governo francês, representado por R. Loosli-Surrans, do Governo italiano, representado por I. M. Braguglia, do Governo do Reino Unido, representado por S. Boyd, QC, e P. Stanley, barrister,

e da Comissão, representada por C. W. A. Timmermans, W. Wils e H. van Vliet, na audiência de 7 de Julho de 1998,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 25 de Fevereiro de 1999,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por despacho de 21 de Março de 1997, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de Março seguinte, o Hoge Raad der Nederlanden submeteu, nos termos do artigo 234.° CE (ex-artigo 177.°), cinco questões prejudiciais relativas à interpretação do artigo 81.° CE (ex-artigo 85.°).

2.
    Essas questões foram submetidas no quadro de um recurso interposto pela Benetton International NV (a seguir «Benetton»), com vista a obter a suspensão da execução de uma decisão arbitral que a condenou a pagar à Eco Swiss China Time Ltd (a seguir «Eco Swiss») uma indemnização pelas perdas e danos decorrentes de rescisão do contrato de licença celebrado com esta última, em virtude de a referida decisão ser contrária à ordem pública, na acepção do artigo 1065.°, n.° 1, alínea e), do Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering (a seguir o «Código de Processo Civil»), dada a nulidade do contrato de licença à luz do disposto no artigo 81.° CE.

A legislação nacional

3.
    O artigo 1050.°, n.° 1, do Código de Processo Civil dispõe:

«Uma decisão arbitral só é susceptível de recurso arbitral se as partes o previram na convenção».

4.
    O artigo 1054.°, n.° 1, do referido código estabelece:

«O tribunal arbitral decide em conformidade com as regras de direito.»

5.
    O artigo 1059.° do mesmo código prevê:

«1. Só uma decisão arbitral final, completa ou parcial, é susceptível de adquirir força de caso julgado. A decisão transita em julgado no momento em que for proferida.

2. Se, porém, segundo a convenção celebrada pelas partes, uma decisão final, completa ou parcial, for susceptível de recurso arbitral, adquire força de caso julgado a partir da data em que o prazo de recurso se tiver esgotado ou, se for interposto recurso, a partir da data em que for proferida a decisão do recurso arbitral se, e na medida em que, a decisão proferida em primeira instância for confirmada.»

6.
    No que toca ao controlo jurisdicional das decisões arbitrais, o artigo 1064.° do Código de Processo Civil precisa:

«1. Só é possível impugnar jurisdicionalmente uma decisão arbitral final, completa ou parcial, não susceptível de recurso arbitral, ou uma decisão final, completa ou parcial, proferida em recurso arbitral, por via de recurso de anulação ou de recurso extraordinário, em conformidade com as disposições da presente secção.

2. O recurso de anulação é interposto para o Rechtbank em cuja secretaria deva, em virtude do disposto no artigo 1058.°, n.° 1, ser depositado o original da decisão.

3. Uma parte pode interpor recurso de anulação a partir do momento em que a decisão adquiriu força de caso julgado. O direito de recorrer extingue-se três meses após a data do depósito da decisão na secretaria do Rechtbank. Todavia, se a decisão revestida do exequátur for notificada à parte contrária, esta pode, não obstante a extinção do prazo de três meses mencionado na frase anterior, interpor recurso de anulação dentro dos três meses seguintes à notificação.

4. O recurso de anulação de uma decisão arbitral interlocutória só pode ser interposto conjuntamente com o recurso de anulação da decisão arbitral final, completa ou parcial.

...»

7.
    O artigo 1065.° do mesmo código prossegue:

«1. A anulação só pode ter lugar por um ou vários dos seguintes fundamentos:

a) ausência de válida convenção de arbitragem;

b) o tribunal arbitral ter sido constituído em violação das normas aplicáveis;

c) o tribunal arbitral não ter dado cumprimento à sua missão;

d) a decisão não ter sido assinada ou não ter sido fundamentada em conformidade com as disposições do artigo 1057.°;

e) a decisão, ou a forma como foi proferida, ser contrária à ordem pública ou aos bons costumes.

...

4. O fundamento referido no n.° 1, alínea c), não pode conduzir à anulação caso a parte que o apresente tenha participado no processo sem o ter invocado, apesar de estar ciente de que o tribunal arbitral não dava cumprimento à sua missão.»

8.
    Finalmente, o artigo 1066.°, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil precisa que o recurso de anulação não suspende a execução da decisão mas que o tribunal chamado a conhecer desse recurso pode, se tal se justificar e a pedido da parte recorrente, suspender a execução até se ter pronunciado definitivamente sobre o recurso de anulação. O pedido de suspensão baseia-se na previsível anulação das decisões arbitrais.

O litígio no processo principal

9.
    Em 1 de Julho de 1986, a Benetton, sociedade estabelecida em Amsterdão, celebrou um contrato de licença por um prazo de oito anos com a Eco Swiss, estabelecida em Kowloon (Hong Kong), e a Bulova Watch Company Inc. (a seguir «Bulova»), estabelecida em Wood Side (Nova Iorque). Por esse contrato, a Benetton concedeu à Eco Swiss o direito de fabricar relógios com a menção «Benetton by Bulova», os quais podiam ser em seguida vendidos pela Eco Swiss e pela Bulova.

10.
    O contrato de licença estipula, no seu artigo 26.°A, que qualquer litígio ou diferendo entre as partes será resolvido por arbitragem em conformidade com as regras do Nederlandse Arbitrage Instituut (Instituto Neerlandês de Arbitragem) e que os árbitros designados aplicarão o direito neerlandês.

11.
    Por carta de 24 de Junho de 1991, a Benetton rescindiu o contrato a partir de 24 de Setembro de 1991, ou seja, três meses antes do termo inicialmente previsto. A Benetton, a Eco Swiss e a Bulova instauraram um processo de arbitragem relativo a essa rescisão.

12.
    Na sua decisão de 4 de Fevereiro de 1993, denominada «Partial Final Award» (a seguir a «PFA») e depositada nesse mesmo dia na secretaria do Rechtbank te's- Gravenhage, os árbitros, entre outras coisas, ordenaram à Benetton que indemnizasse a Eco Swiss e a Bulova pelo prejuízo que tinham sofrido devido à rescisão do contrato de licença pela Benetton.

13.
    Não tendo as partes conseguido chegar a acordo sobre o montante da indemnização por perdas e danos que a Benetton devia pagar à Eco Swiss e à Bulova, os árbitros, por decisão de 23 de Junho de 1995, denominada «Final Arbitral Award» (a seguir a «FAA») e depositada em 26 do mesmo mês na secretaria do Rechtbank, ordenaram à Benetton o pagamento de 23 750 000 USD à Eco Swiss e de 2 800 000 USD à Bulova, em reparação do prejuízo por elas

sofrido. Por despacho de 17 de Julho de 1995, o presidente do Rechtbank autorizou a execução da FAA.

14.
    Em 14 de Julho de 1995, a Benetton pediu ao Rechtbank a anulação da PFA e da FAA alegando, nomeadamente, que essas decisões arbitrais eram contrárias à ordem pública em virtude da nulidade, à luz do artigo 81.° CE, do contrato de licença, embora nem as partes nem os árbitros tenham suscitado, no quadro do processo arbitral, a eventual contrariedade do contrato de licença a essa disposição.

15.
    Por decisão de 2 de Outubro de 1996, o Rechtbank indeferiu esse pedido, de forma que a Benetton interpôs recurso para o Gerechtshof te's-Gravenhage, perante o qual o processo está pendente.

16.
    Por requerimento apresentado em 24 de Julho de 1995 na secretaria do Rechtbank, a Benetton pediu ainda a esse órgão jurisdicional que, a título principal, suspendesse a execução da FAA e, a título subsidiário, ordenasse à Eco Swiss a prestação de uma caução.

17.
    Por despacho de 19 de Setembro de 1995, o Rechtbank deferiu apenas o pedido subsidiário.

18.
    A Benetton interpôs recurso dessa decisão. Por despacho de 28 de Março de 1996, o Gerechtshof deferiu, no essencial, o pedido principal.

19.
    O Gerechtshof considerou que o artigo 81.° CE é uma disposição de ordem pública, na acepção do artigo 1065.°, n.° 1, alínea e), do Código de Processo Civil, cuja violação pode implicar a anulação de uma decisão arbitral.

20.
    O Gerechtshof entendeu, todavia, que, no quadro da suspensão da execução que lhe era requerida, não podia verificar a conformidade ao artigo 1065.°, n.° 1, alínea e), de uma decisão final parcial como a PFA, na medida em que a Benetton nãotinha apresentado, como exige o artigo 1064.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, um pedido de anulação nos três meses posteriores ao depósito da referida decisão na secretaria do Rechtbank.

21.
    O Gerechtshof considerou, todavia, que podia verificar a conformidade da FAA ao disposto no artigo 1065.°, n.° 1, alínea e), particularmente no que toca à incidência do artigo 81.°, n.os 1 e 2, CE sobre a avaliação do prejuízo, pois, em sua opinião, a concessão de uma indemnização por perdas e danos destinada a compensar o prejuízo decorrente da rescisão culposa do contrato de licença equivaleria a conferir efeitos ao referido contrato, quando este é, pelo menos parcialmente, nulo por força do artigo 81.°, n.os 1 e 2, CE. Com efeito, o referido contrato permitiu às partes repartir entre si o mercado, pois que a Eco Swiss deixou de poder vender artigos de relojoaria em Itália e a Bulova nos outros Estados que eram, então, membros da Comunidade. Ora, tal como a Benetton e a Eco Swiss reconhecem,

o contrato de licença não foi notificado à Comissão e não está coberto por uma isenção por categoria.

22.
    Entendendo que, no quadro do processo de anulação, a FAA poderia ser julgada contrária à ordem pública, o Gerechtshof decidiu acolher o pedido de suspensão da execução na medida em que este se reportava à FAA.

23.
    A Eco Swiss recorreu para o Hoge Raad da decisão do Gerechtshof e a Benetton interpôs recurso subsidiário.

24.
    O Hoge Raad sublinha que uma decisão arbitral só é contrária à ordem pública, na acepção do artigo 1065.°, n.° 1, alínea e), do Código de Processo Civil, se o seu conteúdo ou a sua execução colidir com uma norma coactiva de carácter tão fundamental que nenhuma restrição de natureza processual possa constituir obstáculo à sua observância. Ora, segundo ele, a simples circunstância de o conteúdo ou a execução de uma decisão arbitral afastar a aplicação de uma proibição imposta pelo direito da concorrência não é, em geral, em direito neerlandês, considerada contrária à ordem pública.

25.
    Referindo-se ao acórdão de 14 de Dezembro de 1995, Van Schijndel e Van Veen (C-430/93 e C-431/93, Colect., p. I-4705), o Hoge Raad põe, todavia , a questão de saber se o mesmo se deverá passar quando, como no processo de que deve conhecer, está em causa uma disposição comunitária. O Hoge Raad deduz deste último acórdão que o artigo 81.° CE não deve ser considerado uma norma jurídica coactiva de carácter tão fundamental que nenhuma restrição de natureza processual possa constituir obstáculo à sua observância.

26.
    Ademais, na medida em que não é contestado que a questão de uma eventual nulidade do contrato de licença, à luz do artigo 81.° CE, não foi suscitada no decurso do processo arbitral, o Hoge Raad considera que os árbitros teriam ultrapassado os limites do litígio se tivessem examinado e decidido essa questão. Ora, neste último caso, a decisão arbitral seria anulável, em virtude do artigo 1065.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Civil, porque os árbitros não teriam dado cumprimento à sua missão. Segundo o Hoge Raad, as partes no litígio também não podiam invocar a eventual nulidade do contrato de licença, pela primeira vez, no quadro do processo de anulação.

27.
    O órgão jurisdicional de reenvio indica que tais normas processuais se justificam pelo interesse geral no funcionamento eficaz do processo arbitral e não se aplicam de uma maneira mais desfavorável às normas de direito comunitário do que às normas de direito nacional.

28.
    Todavia, o Hoge Raad põe a questão de saber se os princípios definidos pelo Tribunal de Justiça no acórdão Van Schijndel e Van Veen, já referido, se impõem igualmente aos árbitros, nomeadamente pelo facto de, em conformidade com o

acórdão de 23 de Março de 1982, Nordsee (102/81, Recueil, p. 1095), um tribunal arbitral instituído por uma convenção de direito de privado, sem intervenção das autoridades, não poder ser considerado um órgão jurisdicional nacional na acepção do artigo 234.° CE e não poder, portanto, submeter questões prejudiciais em aplicação desta disposição.

29.
    O Hoge Raad salienta, além disso, que, em direito processual neerlandês, quando os árbitros puseram termo a uma parte do litígio por uma decisão arbitral interlocutória com a natureza de decisão final, a referida decisão tem força de caso julgado, e que, se a anulação desta decisão não for pedida em tempo útil, a possibilidade de pedir a anulação de uma decisão arbitral posterior que desenvolve a decisão interlocutória está limitada pela força do caso julgado.O Hoge Raad interroga-se, no entanto, quanto à questão de saber se o direito comunitário proíbe o Gerechtshof de aplicar uma tal regra processual numa situação em que , como no caso em apreço, a decisão arbitral posterior, cuja anulação foi efectivamente pedida em tempo útil, constitui o desenvolvimento de uma decisão arbitral anterior.

30.
    Nestas condições, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)    Em que medida são os princípios resultantes do acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 1995, Van Schijndel e Van Veen (C-430/93 e C-431/93, Colect., p. I-4705) aplicáveis, com as devidas adaptações, a um litígio que tem por objecto um contrato de direito privado e que não é dirimido pelos órgãos jurisdicionais nacionais mas por árbitros, quando as partes não invocaram o artigo 85.° do Tratado CE e os árbitros, nos termos das normas de direito processual nacional vigentes, não têm competência para aplicar oficiosamente essa disposição?

2)    O juiz neerlandês, não obstante as normas de direito processual neerlandês descritas acima nos pontos 4.2 e 4.4 [segundo as quais uma parte só pode pedir a anulação de uma decisão arbitral com um número limitado de fundamentos, entre os quais o da contrariedade à ordem pública, contrariedade que, em geral, não abrange a simples circunstância de o conteúdo ou a execução da decisão arbitral afastar a aplicação de uma proibição imposta pelo direito da concorrência], deve considerar procedente um pedido de anulação de uma decisão arbitral — que, quanto ao restante, cumpre os requisitos legais — por causa de uma contradição dessa decisão com o artigo 85.° do Tratado CE, quando considerar que a referida contradição efectivamente se verifica?

3)    Não obstante as normas de direito processual neerlandês referidas no ponto 4.5 [segundo as quais os árbitros têm a obrigação de não exorbitar dos limites do litígio e de dar cumprimento à sua missão], o juiz é obrigado a decidir nesse sentido também quando, no processo arbitral, a questão da

aplicabilidade do artigo 85.° do Tratado CE ficou fora do âmbito do litígio e, por isso, os árbitros não se pronunciaram sobre tal questão?

4)    O direito comunitário impõe que não se aplique a regra de direito processual neerlandês descrita no ponto 5.3 [segundo a qual uma decisão arbitral interlocutória que reveste a natureza de decisão final adquire força de caso julgado e, em princípio, só pode ser objecto de um recurso de anulação nos três meses seguintes ao depósito da decisão na secretaria do Rechtbank], quando tal for necessário para se poder examinar, no processo de anulação intentado contra a segunda decisão arbitral, se um contrato, cuja validade jurídica foi estabelecida pela decisão arbitral interlocutória com força de caso julgado, é no entanto nulo, por infringir o artigo 85.° do Tratado CE?

5)    Ou, num caso como o descrito na questão 4, há que não aplicar uma disposição nos termos da qual a anulação de uma decisão interlocutória de um tribunal arbitral com a natureza de uma decisão final não pode ser pedida simultaneamente com a da decisão posterior desse tribunal?»

Quanto à segunda questão

31.
    Através da sua segunda questão, que deve examinar-se em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se um órgão jurisdicional que tem de conhecer de um pedido de anulação de uma decisão arbitral deve deferir tal pedido quando entenda que essa decisão é efectivamente contrária ao artigo 81.° CE, enquanto, segundo as suas regras de processo internas, só deve dar provimento a tal pedido por um número limitado de fundamentos, entre os quais figura a contrariedade à ordem pública, que não abrange, em geral, segundo o direito nacional aplicável, a simples circunstância de o conteúdo ou a execução da decisão arbitral impedir a aplicação de uma proibição imposta pelo direito nacional da concorrência.

32.
    Deve, em primeiro lugar, chamar-se a atenção para o facto de, no caso uma arbitragem convencional levantar questões de direito comunitário, os órgãos jurisdicionais poderem ser levados a examinar essas questões,nomeadamente no quadro do controlo da decisão arbitral, mais ou menos extenso consoante o caso, que lhes cabe em consequência de interposição de recurso, de dedução de oposição, de pedido de exequátur, ou de qualquer outra via de impugnação ou forma de controlo prevista na legislação nacional aplicável (v. o acórdão Nordsee, já referido, n.° 14 ).

33.
    O Tribunal de Justiça acrescentou, no n.° 15 do acórdão Nordsee, já referido, que cabe a esses órgãos jurisdicionais nacionais verificar se devem proceder ao reenvio para o Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, para obterem a interpretação ou a apreciação da validade das disposições de direito comunitário

que podem ser chamados a aplicar no quadro do controlo jurisdicional de uma decisão arbitral.

34.
    A este propósito, o Tribunal de Justiça considerou, nos n.os 10 a 12 do mesmo acórdão que um tribunal arbitral voluntário não constitui um «órgão jurisdicional de um Estado-Membro», na acepção do artigo 234.° CE, uma vez que não há qualquer obrigação, nem de direito nem de facto, de as partes contratantes confiarem os seus diferendos à arbitragem e que as autoridades públicas do Estado-Membro em causa não são implicadas na escolha da via da arbitragem nem chamadas a intervir oficiosamente no desenrolar do processo perante o árbitro.

35.
    Em seguida, deve observar-se que as exigências tendentes à eficácia do processo arbitral justificam que o controlo das decisões arbitrais revista um carácter limitado e que a anulação de uma decisão só possa ser obtida, ou o seu reconhecimento recusado, em casos excepcionais.

36.
    Todavia, o artigo 81.° CE constitui, em conformidade com o disposto no artigo 3.°, alínea g), do Tratado CE [que passou, após alteração, a artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE], uma disposição fundamental, indispensável para o cumprimento das missões confiadas à Comunidade e, em particular, para o funcionamento do mercado interno. A importância de tal disposição levou os autores do Tratado a estipular expressamente, no n.° 2 do artigo 81.° CE, a nulidade dos acordos e decisões proibidos por este artigo.

37.
    Segue-se que, na medida em que um órgão jurisdicional nacional deva, segundo as suas regras processuais internas, deferir um pedido de anulação de uma decisão arbitral baseado na violação das normas nacionais de ordem pública, deve igualmente deferir um tal pedido baseado na violação da proibição imposta pelo artigo 81.°, n.° 1, CE.

38.
    Esta conclusão não é posta em causa pelo facto de a Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958, sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, ratificada por todos os Estados-Membros, determinar queapenas certos vícios podem justificar a recusa do reconhecimento e da execução de uma decisão arbitral, os quais consistem na não observância ou na violação, pela decisão, dos limites da cláusula compromissória, na natureza não obrigatória da decisão para as partes ou na contrariedade do reconhecimento ou da execução à ordem pública do país em que esse reconhecimento ou execução foram pedidos [artigo V, n.os 1, alíneas c) e e), e 2, alínea b), da Convenção de Nova Iorque].

39.
    Com efeito, pelas razões mencionadas no n.° 36 do presente acórdão, o artigo 81.° CE pode ser considerado uma disposição de ordem pública, na acepção da referida Convenção.

40.
    Finalmente, importa recordar que, como foi salientado no n.° 34 do presente acórdão, os árbitros, diferentemente de um órgão jurisdicional nacional, não estão

em condições de pedir ao Tribunal de Justiça que decida a título prejudicial sobre questões atinentes à interpretação do direito comunitário. Ora, existe, para a ordem jurídica comunitária, um interesse manifesto em que, para evitar futuras divergências de interpretação, qualquer disposição de direito comunitário seja objecto de uma interpretação uniforme, independentemente das condições em que deva aplicar-se (acórdão de 25 de Junho de 1992, Federconsorzi, C-88/91, Colect., p. I-4035, n.° 7). Segue-se que, na situação que é objecto do presente processo e diferentemente do acórdão Van Schijndel e Van Veen, já citado, o direito comunitário exige que as questões atinentes à interpretação da proibição imposta pelo artigo 81.°, n.° 1, CE possam ser examinadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais chamados a pronunciar-se sobre a validade de uma decisão arbitral e possam constituir objecto, tal sendo o caso, de um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

41.
    Há, portanto, que responder à segunda questão que um órgão jurisdicional nacional chamado a conhecer de um pedido de anulação de uma decisão arbitral deve deferir tal pedido quando entenda que essa decisão é efectivamente contrária ao artigo 81.° CE, desde que deva, segundo as suas normas processuais internas, deferir um pedido de anulação baseado na violação de normas nacionais de ordem pública.

Quanto às primeira e terceira questões

42.
    Tendo em conta a resposta dada à segunda questão , não é necessário responder às primeira e terceira questões.

Quanto às quarta e quinta questões

43.
    Com as suas quarta e quinta questões, que devem examinar-se em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito comunitário impõe ao tribunal nacional a não aplicação das normas processuais internas segundo as quais uma decisão arbitral interlocutória com a natureza de decisão final que não foi objecto de recurso de anulação no prazo estabelecido adquire força de caso julgado e já não pode ser posta em causa por uma decisão arbitral posterior, especialmente quando isso seja necessário para poder examinar, no quadro do processo de anulação da decisão arbitral posterior, se um contrato que a decisão arbitral interlocutória declarou juridicamente válido é, todavia, nulo à luz do artigo 81.° CE.

44.
    Deve recordar-se que, segundo as normas processuais nacionais em causa no processo principal, a anulação de uma decisão arbitral interlocutória com a natureza de decisão final pode ser pedida no prazo de três meses a contar do depósito da referida decisão na secretaria do órgão jurisdicional competente.

45.
    Tal prazo, que não se afigura demasiado breve por comparação com os fixados nas ordens jurídicas dos outros Estados-Membros, não torna excessivamente difícil ou, na prática, impossível o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.

46.
    Além disso, importa sublinhar que, após o termo desse prazo, as normas processuais nacionais que limitam a possibilidade de pedir a anulação de uma decisão arbitral posterior que desenvolve uma decisão arbitral interlocutória com a natureza de decisão final por virtude da força de caso julgado de que se reveste esta última decisão se justificam pelos princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, tais como o da segurança jurídica e o do respeito do caso julgado que dele constitui a expressão.

47.
    Nestas condições, o direito comunitário não impõe a um órgão jurisdicional nacional a não aplicação de tais normas, mesmo que isso seja necessário para poder examinar, no quadro do processo de anulação de uma decisão arbitral posterior, se um contrato que a decisão arbitral interlocutória declarou juridicamente válido é, todavia, nulo à luz do artigo 81.° CE.

48.
    Há, portanto, que responder às quarta e quinta questões que o direito comunitário não impõe a um órgão jurisdicional nacional a não aplicação das normas processuais internas segundo as quais uma decisão arbitral interlocutória com a natureza de decisão final que não foi objecto de recurso de anulação no prazo estabelecido adquire força de caso julgado e já não pode ser posta em causa por uma decisão arbitral posterior, mesmo que isso seja necessário para poder examinar, no quadro do processo de anulação da decisão arbitral posterior, se um contrato que a decisão arbitral interlocutória declarou juridicamente válido é, todavia, nulo à luz do artigo 81.° CE.

Quanto às despesas

49.
    As despesas efectuadas pelos Governos neerlandês, francês, italiano e do Reino Unido, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden, por despacho de 21 de Março de 1997, declara:

1.
    Um órgão jurisdicional nacional chamado a conhecer de um pedido de anulação de uma decisão arbitral deve deferir tal pedido quando entenda que essa decisão é efectivamente contrária ao artigo 81.° CE (ex-artigo 85.°), desde que deva, segundo as suas normas processuais internas, deferir um pedido de anulação baseado na violação de normas nacionais de ordem pública.

2.
    O direito comunitário não impõe a um órgão jurisdicional nacional a não aplicação das normas processuais internas segundo as quais uma decisão arbitral interlocutória com a natureza de decisão final que não foi objecto de recurso de anulação no prazo estabelecido adquire força de caso julgado e já não pode ser posta em causa por uma decisão arbitral posterior, mesmo que isso seja necessário para poder examinar, no quadro do processo de anulação da decisão arbitral posterior, se um contrato que a decisão arbitral interlocutória declarou juridicamente válido é, todavia, nulo à luz do artigo 81.° CE.

Rodríguez Iglesias
Kapteyn
Puissochet

Hirsch

Jann
Mancini

Moitinho de Almeida

Gulmann
Murray

Edward        Ragnemalm        Sevón

Wathelet

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 1 de Junho de 1999.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: neerlandês.