Language of document : ECLI:EU:C:2024:64

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

LAILA MEDINA

apresentadas em 18 de janeiro de 2024 (1)

Processo C450/22

Caixabank, S. A., sucessora da Bankia, S. A. e da Banco Mare Nostrum, S. A.,

Caixa Ontinyent, S. A.,

Banco Santander, S. A., sucessora da Banco Popular Español, S. A. e da Banco Pastor, S. A.,

Targobank, S. A.,

Credifimo, S. A. U.,

Caja Rural de Teruel, S. C. C.,

Caja Rural de Navarra, S. C. C.,

Cajasiete Caja Rural, S. C. C.,

Caja Rural de Jaén, Barcelona e Madrid, S. C. C.,

Caja Laboral Popular, S. C. C. (Kutxa),

Caja Rural de Asturias, S. A.,

Arquia Bank, S. A., anteriormente Caja de Arquitectos, S. C. C.,

Nueva Caja Rural de Aragón, S. A.,

Caja Rural de Granada, S. C. C.,

Caja Rural del Sur, S. C. C.,

Caja Rural de Albacete, Ciudad Real e Cuenca, S. C. C. (Globalcaja),

Caja Rural Central, S. C. C. e o.,

Unicaja Banco, S. A., sucessora da Liberbank, S. A. e da Banco Castilla la Mancha, S. A.,

Banco de Sabadell, S. A.,

Banca March, S. A.,

Ibercaja Banco, S. A.,

Banca Pueyo, S. A.

contra

ADICAE,

M.A.G.G.,

M.R.E.M.,

A.B.C.,

Óptica Claravisión, S. L.,

A. T. M.,

F. A. C.,

A. P. O.,

P. S. C.,

J. V. M. B., sucessor de C.M.R.

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha)]

«Pedido de decisão prejudicial — Diretiva 93/13/CEE — Contratos celebrados entre profissionais e consumidores — Ação coletiva — Ação inibitória e de restituição — Contratos de mútuo hipotecário celebrados com um número considerável de bancos e de consumidores — Cláusula de taxa mínima que limita a variação da taxa de juro — Fiscalização abstrata da transparência — Conceito de “consumidor médio normalmente informado e razoavelmente atento e avisado”»






 I. Introdução

1.        O requisito de transparência das cláusulas contratuais desempenha um papel importante na garantia de uma proteção eficaz dos consumidores no âmbito da Diretiva 93/13/CEE (2). A apreciação da transparência das cláusulas contratuais envolve não só critérios formais mas também critérios materiais. O consumidor deve poder compreender plenamente as cláusulas contratuais e as suas consequências económicas. A adoção de uma abordagem material na jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito do requisito de transparência já foi descrita na doutrina como uma «evolução gradual para uma abordagem mais... assistencialista das cláusulas contratuais abusivas» (3).

2.        O litígio no processo principal suscita a questão de saber se a fiscalização judicial da transparência das cláusulas contratuais é admissível no âmbito de ações coletivas de reparação e, em caso afirmativo, em que condições e segundo que método. O Tribunal de Justiça deverá também aprofundar o conceito de «consumidor médio» no contexto de ações coletivas que apresentam as características de processos de grande envergadura, envolvendo um número significativo de instituições financeiras e de contratos.

 II. Quadro Jurídico

 Direito da União Europeia

 Diretiva 93/13

3.        O artigo 4.° da Diretiva 93/13 enuncia:

«1. Sem prejuízo do artigo 7.°, o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.

2. A avaliação do caráter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.»

4.        O artigo 5.° da Diretiva 93/13 prevê:

«No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível. Em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor. Esta regra de interpretação não é aplicável no âmbito dos processos previstos no n.° 2 do artigo 7.°»

5.        O artigo 7.° da Diretiva 93/13 enuncia:

«1. Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.

2. Os meios a que se refere o n.° 1 incluirão disposições que habilitem as pessoas ou organizações que, segundo a legislação nacional, têm um interesse legítimo na defesa do consumidor, a recorrer, segundo o direito nacional, aos tribunais ou aos órgãos administrativos competentes para decidir se determinadas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um caráter abusivo, e para aplicar os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização dessas cláusulas.

3. Respeitando a legislação nacional, os recursos previstos no n.° 2 podem ser interpostos, individualmente ou em conjunto, contra vários profissionais do mesmo setor económico ou respetivas associações que utilizem ou recomendem a utilização das mesmas cláusulas contratuais gerais ou de cláusulas semelhantes.»

 Direito espanhol

 Lei n.° 7/1998

6.        O artigo 12.° da Ley 7/1998 sobre condiciones generales de la contratación (Lei n.° 7/1998 sobre as Condições Contratuais Gerais), de 13 de abril de 1998 (BOE n.° 89 de 14 de abril de 1998), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «LCGC»), dispõe:

«1. Podem ser intentadas ações inibitórias e de restituição contra a utilização ou a recomendação de utilização de condições gerais que sejam contrárias às disposições da presente lei ou de outra lei imperativa ou proibitiva.

2. A ação inibitória destina‑se a obter uma sentença que condene o demandado a eliminar das suas condições gerais as cláusulas que tenham sido declaradas nulas e a abster‑se de as utilizar doravante, determinando e especificando, em função das circunstâncias, a parte do contrato que deve ser considerada válida e vinculativa.

À ação inibitória pode ser apensada, como acessória, uma ação de restituição de quantias que tenham sido cobradas ao abrigo dessas condições gerais, bem como uma ação de indemnização por danos causados pela aplicação de tais condições.»

7.        O artigo 17.° LCGC dispõe:

«1. A ação inibitória pode ser intentada contra qualquer profissional que utilize condições gerais declaradas nulas.

[…]

4. As ações previstas nos números anteriores podem ser intentadas conjuntamente contra vários profissionais que exerçam atividade no mesmo setor económico ou contra as suas associações que utilizem ou recomendem a utilização de condições gerais idênticas declaradas nulas.»

 Decreto Legislativo Real 1/2007

8.        Nos termos do artigo 53.° do Texto refundido de la Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios y otras leyes complementarias (Texto Reformulado da Lei Geral de Defesa dos Consumidores e Utentes e Outras Leis Complementares), aprovado pelo Real Decreto Legislativo 1/2007 (Decreto
Legislativo Real 1/2007), de 16 de novembro de 2007 (BOE n.° 287 de 30 de novembro de 2007), na versão aplicável ao litígio no processo principal, a ação inibitória destina‑se a obter uma sentença que condene o demandado a pôr termo a determinados comportamentos e a proibir a sua repetição no futuro. Além disso, a ação pode ser exercida para que seja declarada a proibição de comportamentos quando estes tenham cessado no momento da propositura da ação, desde que existam indícios suficientes da possibilidade de repetição imediata do comportamento. Sempre que requerido, a qualquer ação inibitória podem ser apensadas a de nulidade e anulabilidade, a de incumprimento de obrigações, a de resolução ou rescisão contratual e a de restituição de quantias que tenham sido cobradas em resultado das condutas, disposições ou condições gerais declaradas abusivas ou não transparentes.

 Lei 1/2000

9.        O artigo 72.° da Ley de Enjuiciamiento Civil (Lei 1/2000 que aprova o Código de Processo Civil) de 7 de janeiro de 2000 (BOE n.° 7 de 8 de janeiro de 2000, p. 575), na versão aplicável ao processo principal, dispõe que podem ser apensadas e prosseguidas conjuntamente as ações intentadas por um demandante contra vários demandados ou intentadas por vários demandantes contra um demandado, desde que entre elas exista uma conexão resultante do título ou da causa de pedir. Considera‑se que o título ou a causa de pedir é idêntico ou conexo quando as ações têm por base os mesmos factos.

 III. Apresentação sucinta dos factos e do processo principal

10.      A Asociación de Usuarios de Bancos, Cajas de Ahorros y Seguros de España (ADICAE) (Associação Espanhola de Utilizadores de Bancos, Caixas de Aforro e Seguros, a seguir «ADICAE») intentou uma ação coletiva inibitória contra 44 instituições financeiras que operam em Espanha. Na sua petição, a ADICAE pede que estas instituições sejam condenadas a cessar a utilização, nos seus contratos de mútuo hipotecário com taxa de juro variável, da cláusula contratual geral que consiste em limitar a descida das taxas de juro variáveis abaixo de um determinado limiar (a seguir «cláusula de taxa mínima»), e que a utilização desta cláusula seja proibida. Além disso, a ADICAE apensou à ação inibitória uma ação de restituição dos montantes pagos em aplicação desta cláusula. A ADICAE requereu, por duas vezes, a citação de outros demandados na ação, elevando o número total de demandados para 101.

11.      O tribunal de primeira instância admitiu a petição inicial. No seguimento da publicação de convocatórias em meios de comunicação social de cobertura nacional, compareceram individualmente 820 consumidores em apoio dos pedidos deduzidos na ação coletiva.

12.      A sentença de primeira instância julgou a ação parcialmente procedente, salvo no que se refere a três instituições financeiras, declarou a nulidade das cláusulas de taxa mínima («clausulas de suelo») constantes das condições gerais dos contratos de mútuo hipotecário, e condenou as instituições financeiras a eliminar estas cláusulas dos contratos e a cessar a utilização das mesmas de forma não transparente. As instituições foram também condenadas a restituir as quantias indevidamente cobradas em aplicação das referidas cláusulas a partir da data de publicação do Acórdão do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) de 9 de maio de 2013.

13.      Os bancos demandados recorreram da sentença da primeira instância para a Audiencia Provincial de Madrid (Audiência Provincial de Madrid, Espanha), que negou provimento à maioria dos recursos. No seu acórdão, este tribunal estabeleceu o método de fiscalização da transparência das cláusulas contratuais no âmbito de ações coletivas (fiscalização abstrata). Mais especificamente, considerou que era necessário determinar se a instituição financeira ocultava ou deturpava as consequências económicas da cláusula em questão. Considerou que a referida ocultação ou deturpação ocorre quando o banco não apresenta a cláusula de taxa mínima em termos equivalentes aos de outras cláusulas às quais o consumidor médio presta atenção, nomeadamente as que definem o preço do contrato.

14.      A Audiencia Provincial de Madrid (Audiência Provincial de Madrid) enumerou determinadas práticas que podem constituir prova da falta de transparência da cláusula impugnada. As práticas foram, em especial, as seguintes: primeiro, a apresentação da cláusula de taxa mínima juntamente com informações alheias ao preço do contrato ou juntamente com informações secundárias potencialmente redutoras do preço, dando a impressão de que a cláusula de taxa mínima está sujeita a determinadas condições ou critérios que farão com que dificilmente se aplique; segundo, a localização da cláusula a meio ou no final de parágrafos extensos, que começam por tratar outros assuntos, o que desvia a atenção do consumidor médio; e terceiro, a apresentação conjunta da cláusula de taxa mínima com a disposição de limiar superior (teto), de modo que a atenção do consumidor se centra na aparente segurança de gozar de um limite máximo face à hipotética subida do índice de referência, desviando a atenção da importância do limite mínimo.

15.      Os bancos interpuseram recurso do acórdão da Audiencia Provincial (Audiência Provincial de Madrid) para o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal).

16.      No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio suscita duas questões principais. A primeira prende‑se com a questão de saber se uma ação inibitória coletiva constitui um mecanismo processual adequado para levar a cabo a fiscalização da transparência das cláusulas contratuais. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que uma ação inibitória exige, por definição, uma fiscalização abstrata da cláusula em causa, ao passo que a fiscalização da transparência exige a análise concreta da relação contratual específica em que se integra a cláusula controvertida, dando‑se especial atenção à informação pré‑contratual fornecida aos consumidores. Pergunta, portanto, se a ação coletiva constitui o meio adequado para fiscalizar a transparência de uma cláusula. Além disso, tem dúvidas quanto à questão de saber se uma ação coletiva de fiscalização da transparência pode ser intentada contra todas as instituições financeiras que compõem o sistema bancário de um país (mais de uma centena) quando o único denominador comum entre estas instituições é a utilização de uma cláusula semelhante nos seus contratos de mútuo hipotecário.

17.      A segunda questão suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito à definição de consumidor médio nos casos em que existem diferenças entre as numerosas instituições financeiras envolvidas no litígio, os formulários contratuais utilizados, os clientes em causa e em que as cláusulas em causa foram utilizadas durante um longo período.

18.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a jurisprudência nacional demonstra as dificuldades ligadas à fiscalização abstrata da transparência. A este respeito, refere a jurisprudência do Tribunal Constitucional (Espanha), na qual este declarou que a aplicação dos efeitos de uma ação inibitória coletiva a todo um conjunto de contratos é suscetível de violar a liberdade contratual de um consumidor que não pretende obter a anulação do contrato. O órgão jurisdicional de reenvio remete ainda para a sua própria jurisprudência. Este órgão já decidiu, no passado, que é possível efetuar uma fiscalização abstrata das «cláusulas de taxa mínima», tendo em conta o conceito de consumidor médio e as características das regras de celebração de contratos de adesão. No entanto, naqueles casos, foi intentada uma ação coletiva contra uma única instituição financeira ou contra um número muito reduzido de instituições financeiras. Por conseguinte, era mais fácil agrupar as práticas e cláusulas controvertidas num número limitado de situações‑tipos e mais prático realizar uma apreciação da perspetiva do consumidor médio.

19.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a fiscalização abstrata da transparência reveste‑se de uma complexidade adicional quando uma ação de restituição é apensa a uma ação inibitória. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a determinação das consequências financeiras concretas que a declaração de nulidade pode ter para cada um dos consumidores em causa seria mais adequada no âmbito de ações intentadas por consumidores individuais.

20.      Tendo em conta estas considerações, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A apreciação abstrata, para efeitos da fiscalização da transparência no contexto de uma ação coletiva, de cláusulas utilizadas por mais de uma centena de instituições financeiras, em milhões de contratos bancários, sem ter em conta o nível de informação pré‑contratual prestado sobre as implicações jurídicas e económicas da cláusula nem as restantes circunstâncias que se verificam em cada caso, no momento da celebração do contrato, está abrangida pelo artigo 4.°, n.° 1, da [Diretiva 93/13], quando remete para as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato, e pelo artigo 7.°, n.° 3, da mesma diretiva, quando se refere a cláusulas semelhantes?

2)      A possibilidade de ser efetuada uma fiscalização abstrata da transparência na perspetiva do consumidor médio é compatível com os artigos 4.°, n.° 2, e 7.°, n.° 3, da [Diretiva 93/13], quando várias das propostas de contratos se destinam a diferentes grupos específicos de consumidores ou quando são múltiplas as instituições proponentes com âmbitos de negócio económica e geograficamente muito diferentes, durante um longo período em que o conhecimento público dessas cláusulas foi evoluindo?»

21.      Foram apresentadas observações escritas pelas seguintes instituições financeiras: a Caixabank, S. A., a Banco Santander, S. A., a Targobank, S. A., a Caja Rural de Teruel, S. C. C., a Caja Rural de Navarra, S. C. C., a Caja Rural de Jaén, Barcelona e Madrid, S. C. C., a Caja Rural de Asturias, S. C. C., a Arquia Bank, S. A., anteriormente Caja de Arquitectos, S. C. C., a Nueva Caja Rural de Aragón, S. C. C., a Caja Rural de Granada, S. C. C., a Caja Rural del Sur, S. C. C., a Caja Rural de Albacete, a Ciudad Real e Cuenca, S. C. C. (Globalcaja), a Caja Rural Central, S. C. C. e o., a Unicaja Banco, S. A., a Banco de Sabadell, S. A. e pela Ibercaja Banco, S. A. Também foram apresentadas observações escritas pela ADICAE, os Governos Espanhol, Polaco e Português e pela Comissão. O Tribunal de Justiça enviou questões escritas às partes para serem respondidas na audiência. Com exceção dos Governos Polaco e Português, as partes também foram representadas na audiência que ocorreu em 28 de setembro de 2023.

 IV. Análise

 Observações preliminares sobre a fiscalização judicial das «cláusulas de taxa mínima» («clausulas suelo») controvertidas

22.      Antes de examinar as questões prejudiciais, é importante fazer algumas observações preliminares sobre a fiscalização judicial das «cláusulas de taxa mínima» em Espanha e no Tribunal de Justiça.

23.      As «cláusulas de taxa mínima» eram cláusulas comuns incluídas nas condições gerais dos contratos de mútuo hipotecário com taxa variável celebrados com os consumidores por um número considerável de instituições financeiras em Espanha. Estabeleciam uma taxa mínima abaixo da qual a taxa de juro variável não podia descer, independentemente de a taxa de referência ser inferior a esse mínimo. A taxa de juro mínima fixada nesses contratos de mútuo variava geralmente entre dois e cinco pontos percentuais (4). Quando as taxas de referência utilizadas nos contratos de mútuo hipotecário (geralmente a Euribor) desceram significativamente abaixo do limiar fixado pelas «cláusulas de taxa mínima», os consumidores que tinham celebrado contratos de mútuo que incluíam estas cláusulas aperceberam‑se de que não poderiam beneficiar da descida e que teriam de continuar a pagar a taxa de juro mínima, apesar de terem celebrado mútuos hipotecários com taxa variável (5). Consumidores individuais e associações de consumidores intentaram vários milhares de ações judiciais em Espanha, nas quais pediram que fosse declarada a ilicitude das «cláusulas de taxa mínima» e a restituição dos juros pagos em excesso.

24.      Num Acórdão estruturante de 9 de maio de 2013 (confirmado pelo Acórdão de 25 de março de 2015), o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) examinou a licitude das «cláusulas de taxa mínima» no âmbito de uma ação coletiva intentada por uma associação de consumidores contra várias instituições bancárias. Considerou que estas cláusulas, que se prendiam com a definição do objeto do contrato, eram compreensíveis do ponto de vista gramatical para os consumidores e que, por isso, preenchiam o requisito previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13, segundo o qual devem ser redigidas «de maneira clara e compreensível». Embora tenha declarado que as «cláusulas de taxa mínima» eram, em si mesmas, lícitas, o referido tribunal considerou que não cumpriam o requisito de transparência material (6). Esta conclusão baseou‑se no facto de os consumidores não terem sido informados de forma adequada, quando da celebração do contrato, das consequências jurídicas e financeiras da cláusula em causa. Após ter apreciado as referidas cláusulas à luz dos critérios gerais da boa‑fé, do equilíbrio dos direitos e obrigações contratuais e da transparência, enunciados no artigo 3.°, n.° 1, no artigo 4.°, n.° 1, e no artigo 5.° da Diretiva 93/13, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) declarou‑as nulas.

25.      No seu Acórdão de 9 de maio de 2013, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu que a obrigação de restituição resultante da declaração de invalidade dos montantes pagos em excesso só iria produzir efeitos após a prolação do seu acórdão, atendendo às graves repercussões económicas que a aplicação retroativa da obrigação de restituição teria no setor bancário. No seu Acórdão Gutiérrez Naranjo e o. (7), o Tribunal de Justiça declarou que esta limitação temporal dos efeitos da obrigação de restituição é incompatível com o artigo 6.° da Diretiva 93/13.

26.      É neste contexto que examinarei as duas questões prejudiciais.

 Primeira questão

27.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.°, n.° 1, e o artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que permitem a um tribunal nacional proceder a uma apreciação abstrata da transparência das cláusulas contratuais no contexto de uma ação coletiva, quando a ação em causa é intentada contra um número considerável de instituições financeiras e envolve um número substancial de contratos.

28.      As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio quanto à adequação de uma ação coletiva para efeitos da apreciação abstrata de cláusulas contratuais decorrem, primeiro, da redação do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13. De acordo com esta disposição, o caráter abusivo de uma cláusula contratual deve ser avaliado mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que o contrato foi celebrado, rodearam a sua celebração. Segundo, o órgão jurisdicional de reenvio salienta a natureza diferente das ações individuais e das ações coletivas: nas primeiras, é feito um exame concreto da relação contratual em que se inscreve a cláusula em questão, ao passo que, nas segundas, é efetuada a fiscalização abstrata da cláusula em questão. Terceiro, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha a complexidade das circunstâncias do processo principal, devido ao número muito elevado de demandados e de contratos em causa e à multiplicidade de formulações diferentes da cláusula de taxa mínima.

29.      Para responder a estas dúvidas, é importante recordar, antes de mais, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à natureza da fiscalização judicial nas ações coletivas e individuais e à análise do requisito de transparência das cláusulas contratuais. Com base nesta jurisprudência, examinarei se e em que condições é possível efetuar uma fiscalização da transparência no âmbito de uma ação coletiva com uma dimensão igual à do processo principal.

 a) Natureza da fiscalização judicial nas ações coletivas e nas ações individuais

30.      O sistema de proteção estabelecido pela Diretiva 93/13 assenta em dois tipos de ações: ações individuais e ações coletivas. Estes dois tipos de ação encontram‑se numa relação de complementaridade (8). Paralelamente ao direito subjetivo do consumidor de recorrer aos tribunais para que estes apreciem o caráter abusivo de uma cláusula de um contrato de que é parte, o artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 93/13 permite aos Estados‑Membros instituir uma fiscalização das cláusulas abusivas incluídas em contratos de adesão através de ações de inibição intentadas no interesse público por associações de defesa dos consumidores (9).

31.      Este objetivo, que consiste em pôr termo às práticas ilícitas, também é prosseguido pela Diretiva 2009/22/CE (10), que completa, em matéria de disponibilização de meios processuais adequados relativos às ações inibitórias, a proteção dos consumidores prevista pela Diretiva 93/13 (11).

32.      O Tribunal de Justiça declarou que as ações individuais e as ações coletivas têm, no âmbito da Diretiva 93/13, finalidades e efeitos jurídicos diferentes, e que a sua natureza é diferente (12). Assim, no âmbito de uma ação que envolva um consumidor individual, o juiz tem de apreciar in concreto o caráter abusivo de uma cláusula contida num contrato já celebrado. O tribunal nacional está obrigado a ter em consideração, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato. No caso de uma ação inibitória, cabe ao juiz apreciar in abstracto o caráter abusivo das cláusulas incluídas pelos profissionais nos contratos celebrados com os consumidores. Além disso, a natureza preventiva e o objetivo dissuasor das ações inibitórias, bem como a sua independência em relação a qualquer conflito individual concreto, implicam que estas ações possam ser intentadas mesmo quando as cláusulas cuja proibição é pedida não tenham sido utilizadas em contratos determinados (13).

33.      Importa salientar que a fiscalização in abstracto das cláusulas abusivas é específica dos mecanismos de ação coletiva previstos no artigo 7.° da Diretiva 93/13 (14). A consideração de todas as circunstâncias individuais do contrato só é adequada no âmbito de uma ação individual (15). Isto resulta do artigo 4.°, n.° 1, da diretiva que refere que a avaliação de todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato é feita «sem prejuízo do artigo 7.°». Assim, a fiscalização judicial nas ações coletivas é sempre abstrata, independentemente de as cláusulas objeto de fiscalização terem ou não sido utilizadas em contratos concretos.

34.      No que respeita aos efeitos das ações individuais e das ações coletivas, a declaração do caráter abusivo numa ação individual vincula apenas o consumidor que é parte no processo. Nas ações coletivas, esta declaração pode ter um alcance mais amplo. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a legislação nacional pode prever um efeito ultra partes da declaração do caráter abusivo numa ação inibitória contra um profissional (16).

35.      Os mecanismos de verificação in abstracto numa ação coletiva complementam o direito subjetivo do consumidor de intentar uma ação individual e de que todas as circunstâncias do seu contrato sejam tomadas em consideração. Uma vez que as ações coletivas e individuais se encontram numa relação de complementaridade, a possibilidade de recurso aos dois tipos de ação deve ser salvaguardada no âmbito do sistema de proteção judicial estabelecido pela Diretiva 93/13. Assim, os requisitos aplicáveis numa ação individual, nomeadamente a necessidade de considerar todas as circunstâncias individuais do contrato, não impedem a propositura de uma ação coletiva independente de qualquer litígio específico e das circunstâncias individuais.

36.      As ações individuais e as ações coletivas formam o sistema global de proteção introduzido pela Diretiva 93/13.

 b) Fiscalização da transparência das cláusulas contratuais

37.      O requisito de transparência é exprimido pela regra segundo a qual as cláusulas contratuais devem ser redigidas de maneira clara e compreensível (artigo 4.°, n.° 2, e artigo 5.° da Diretiva 93/13) (17). Além disso, resulta do vigésimo considerando da Diretiva 93/13 e do ponto 1, alínea i), do seu anexo que o consumidor deve tomar conhecimento prévio de todas as cláusulas de um contrato para poder decidir, com conhecimento de causa, se pretende ficar vinculado a essas cláusulas (18).

38.      Mais especificamente, nos termos do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13, a avaliação do caráter abusivo não incide sobre a definição do «objeto principal do contrato», nem sobre a «adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível». Por conseguinte, a aplicação da exceção ao mecanismo de fiscalização do caráter abusivo das cláusulas contratuais relativamente às cláusulas essenciais (a seguir «isenção das cláusulas essenciais») está sujeita à transparência destas cláusulas.

39.      O artigo 5.° da Diretiva 93/13 estabelece uma regra mais geral em matéria de transparência ao exigir que as cláusulas contratuais «deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível». Pode considerar‑se que esta disposição, conforme sugere a doutrina, consagra um «princípio geral» de transparência (19).

40.      O Tribunal de Justiça declarou que o requisito de transparência que figura no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13 tem o mesmo alcance que o contemplado no artigo 5.° desta diretiva (20).

41.      Segundo o Tribunal de Justiça, o requisito de transparência deve ser entendido de maneira extensiva (21), envolvendo critérios formais e materiais (22). Em geral, a transparência formal refere‑se à redação e ao modo de apresentação das informações pertinentes ao consumidor. A título de exemplo, as Orientações da Comissão sobre as cláusulas abusivas enumeram os seguintes aspetos da apresentação das cláusulas contratuais como fatores pertinentes para avaliar a transparência: a clareza da apresentação visual, o facto de um contrato estar estruturado de modo lógico e de as disposições importantes estarem destacadas conforme adequado e não ocultas entre outras disposições, ou o facto de as cláusulas estarem incluídas num contrato ou num contexto em que podem ser razoavelmente expectáveis, incluindo em conjugação com outras cláusulas contratuais pertinentes (23).

42.      A fiscalização da transparência material das cláusulas contratuais (24) vai além da avaliação da natureza simples e inteligível da redação da cláusula e estende‑se à questão de saber se a cláusula permite que o consumidor compreenda as suas consequências efetivas.

43.      A este respeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a informação fornecida antes da celebração de um contrato, sobre as condições contratuais e as consequências da celebração, é de importância fundamental para um consumidor. É, nomeadamente, com base nestas informações que este último decide se deseja vincular‑se contratualmente a um profissional aderindo às condições redigidas previamente por este (25). Consequentemente, este requisito deve ser entendido no sentido de que impõe não só que a cláusula em causa seja inteligível para o consumidor nos planos formal e gramatical mas também que um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado esteja em condições de compreender o funcionamento concreto dessa cláusula e avaliar assim, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas, potencialmente significativas, dessa cláusula sobre as suas obrigações financeiras (26).

44.      Até à data, o requisito de transparência foi examinado pelo Tribunal de Justiça no âmbito de ações individuais, à luz do artigo 4.°, n.° 2, e do artigo 5.° da Diretiva 93/13, e sobretudo em relação a contratos de mútuo. Nesses casos, a questão de saber se o requisito de transparência foi respeitado deve ser examinada à luz de todos os elementos de facto pertinentes, de entre os quais constam a publicidade e a informação fornecidas, no âmbito da negociação do contrato de mútuo em causa, não apenas pelo próprio mutuante mas também por qualquer outra pessoa que tenha participado, em nome desse profissional, na comercialização dos mútuos em questão (27). Mais concretamente, incumbe ao juiz nacional, quando considera todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato de mútuo, verificar se, no processo em causa, foram comunicados ao consumidor todos os elementos suscetíveis de ter incidência no alcance do seu compromisso que lhe permitam avaliar, designadamente, o custo total do seu empréstimo (28). Consta também de entre os elementos pertinentes, para efeitos desta apreciação, a linguagem utilizada pela instituição financeira nos documentos pré‑contratuais e contratuais (29).

45.      Resulta do exposto que, no âmbito de uma ação individual para efeitos de fiscalização da transparência, o tribunal nacional deve considerar todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato de mútuo. Dito isto, note‑se que muitos dos elementos assentam numa apreciação objetiva. O tribunal nacional aprecia uma cláusula contratual geral incluída na documentação contratual e pré‑contratual geral previamente elaborada pelo mutuante para contratos de mútuo propostos a um número indefinido de consumidores. Além disso, o critério de referência utilizado para a fiscalização da transparência não é o do consumidor individual em concreto, sendo antes o de um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado (30).

46.      O conceito de consumidor médio é uma fictio juris que tende a reduzir uma realidade muito variada a um denominador comum (31). Trata‑se, portanto, de critério de referência objetivo. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que a observância do requisito de transparência deve ser aferida pelo padrão objetivo do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado (32), padrão esse a que não correspondem, nomeadamente, nem o consumidor menos avisado nem o consumidor mais avisado do que o consumidor médio (33).

47.      Tendo em conta todos os elementos que compõem a fiscalização da transparência estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, a doutrina referiu, pertinentemente, que a «fasquia para passar o crivo da transparência» foi consideravelmente elevada(34), o que colocou o padrão do consumidor médio «em sintonia com o comportamento real dos consumidores nos contratos de adesão» (35).

48.      Como exemplo adicional, num processo relativo a contratos celebrados em divisa estrangeira, apesar de o consumidor em causa ter recebido um volume considerável de informações, o Tribunal de Justiça declarou que a comunicação ao consumidor de informações, mesmo numerosas, não pode satisfazer o requisito de transparência. O consumidor também deve ser informado do contexto económico suscetível de ter repercussões nas variações das taxas cambiais e deve ser‑lhe dada a possibilidade de compreender concretamente as consequências potencialmente graves na sua situação financeira (36).

49.      Quanto mais elevado for o limiar para cumprir o requisito de transparência, mais baixas são as expectativas relativamente ao consumidor médio (37).  Além disso, incumbe ao profissional demonstrar em juízo o correto cumprimento dessas obrigações pré‑contratuais e contratuais ligadas, designadamente, ao requisito de transparência das cláusulas contratuais, como resulta, em particular, do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13 (38).

50.      Atendendo ao padrão objetivo do consumidor médio e à fixação de um limiar elevado para cumprimento do requisito da transparência, a fiscalização judicial da transparência das cláusulas contratuais tornou‑se mais objetiva, baseada na estandardização contratual.

51.      À luz destas considerações, examinarei em seguida a questão de saber se a ação coletiva constitui um mecanismo judicial adequado para fiscalizar a transparência.

 c) A adequação da ação coletiva para fiscalizar a transparência das cláusulas contratuais

52.      No sistema de proteção introduzido pela Diretiva 93/13, a fiscalização judicial do caráter abusivo das cláusulas contratuais e da sua transparência não depende do tipo de ação utilizada, seja ela individual ou coletiva. A própria parte inicial do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, que prevê a apreciação individual do caráter abusivo de uma cláusula, refere que esta apreciação é «sem prejuízo do artigo 7.°». Em conformidade com a abordagem da complementaridade acima referida, a apreciação individual do potencial caráter abusivo de uma cláusula incluída num contrato específico não exclui a apreciação in abstracto da cláusula no âmbito de uma ação coletiva.

53.      No que diz respeito ao requisito de transparência, não há nada na Diretiva 93/13 que sugira que a sua apreciação está excluída no âmbito das ações coletivas. Primeiro, a transparência é uma condição prévia para a aplicação da «isenção das cláusulas essenciais» ao abrigo do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13. Se o exame da transparência das cláusulas contratuais não fosse possível nas ações coletivas, isto levaria a que as «cláusulas essenciais» nunca fossem fiscalizadas no âmbito destas ações. De facto, não haveria outro modo de verificar se estas cláusulas estão redigidas de maneira clara e compreensível.

54.      Segundo, o artigo 5.° da Diretiva 93/13 (39)não estabelece nenhuma distinção entre ações individuais e coletivas, com exceção da regra de interpretação aplicável. Resulta desta disposição que a prevalência da regra de interpretação mais favorável ao consumidor não se aplica no âmbito das ações coletivas previstas pelos Estados‑Membros nos termos do artigo 7.°, n.° 2 (40).

55.      A exceção estrita estabelecida no artigo 5.° indica que o requisito de transparência se refere à cláusula geral e não ao tipo de ação judicial intentada para efeitos de fiscalização da cláusula. Como já referi (41), o artigo 5.° é uma disposição fulcral que consagra um «princípio geral» que não pode ser limitado apenas às ações individuais. Tendo em conta a sua importância no sistema de proteção instituído pela Diretiva 93/13, o requisito de transparência deve, portanto, ser igualmente aplicável ao mecanismo previsto no seu artigo 7.°, n.° 2 (42).

56.      Em vez de excluir a análise da transparência nas ações coletivas, a fiscalização judicial deve, pelo contrário, ser adaptada à finalidade e aos efeitos jurídicos das ações coletivas.

57.      Uma interpretação diferente, como a Comissão indicou, em substância, nas suas observações escritas, seria contrária ao objetivo das ações coletivas ao excluir o requisito de transparência da fiscalização judicial, apesar de a ação de reparação coletiva ser uma componente essencial do sistema de proteção previsto na Diretiva 93/13.

58.      Além disso, esta exclusão seria incompatível com a proteção jurisdicional conferida pela Diretiva 2009/22, que, como já foi referido, completa a proteção dos consumidores prevista na Diretiva 93/13. A Diretiva 2009/22 harmonizou as ações inibitórias que visam a proteção dos interesses coletivos dos consumidores abrangidos pelas diretivas enumeradas no anexo I da mesma, entre as quais figura a Diretiva 93/13. As ações inibitórias podem ser utilizadas para impugnar a violação de qualquer uma das disposições da Diretiva 93/13, incluindo as disposições em matéria de transparência.

59.      Impedir que a transparência das cláusulas contratuais seja apreciada no âmbito das ações coletivas seria igualmente inconsistente com os recentes desenvolvimentos legislativos relevantes para o reforço dos mecanismos processuais de proteção dos interesses coletivos dos consumidores, nomeadamente a adoção da Diretiva (UE) 2020/1828 relativa a ações coletivas (43). A Diretiva 2020/1828 é aplicável às ações coletivas (44) intentadas com fundamento em infrações às disposições do direito da União referidas no anexo I, desta diretiva, incluindo a Diretiva 93/13 (45). Se esta evolução não for tida em conta e se a Diretiva 93/13 for interpretada no sentido de que as ações coletivas não constituem uma via adequada para fiscalizar a transparência, a eficácia do sistema de proteção dos consumidores, que é agora completado pela Diretiva 2020/1828, ficaria gravemente fragmentada e comprometida. Com efeito, isto implicaria um grave retrocesso na proteção dos interesses coletivos dos consumidores.

60.      No que diz respeito aos elementos da fiscalização judicial do requisito de transparência nas ações coletivas, a jurisprudência apresentada na secção anterior pode ser aplicada com as adaptações necessárias em função do mecanismo processual utilizado. Os elementos específicos de uma ação individual, nomeadamente a consideração de todas as circunstâncias que rodearam a celebração de cada contrato, não são aplicáveis. Em contrapartida, os elementos objetivos da fiscalização da transparência são aplicáveis ao exame abstrato da transparência. Neste contexto, como a Comissão afirmou, em substância, na audiência, a apreciação da cláusula contratual deve ser possível independentemente das circunstâncias concretas e individuais de cada um dos contratos. Isto resulta da estandardização da contratação que se reflete na interpretação objetiva do padrão do consumidor médio, independentemente do mecanismo processual utilizado para fiscalizar a transparência.

61.      Mais concretamente, para apreciar a transparência formal e material de uma cláusula nos contratos de mútuo, a fiscalização judicial deve centrar‑se nos documentos padronizados e nas práticas contratuais e précontratuais normalizadas adotadas pelo profissional em causa em relação ao consumidor médio quando da promoção e da proposta contratual. A fiscalização abrange as práticas contratuais do profissional em causa e também as suas práticas pré‑contratuais, nomeadamente o material promocional dirigido a cada consumidor e as informações ou orientações pré‑contratuais normalizadas fornecidas por qualquer outra pessoa que, em nome desse profissional, participe na comercialização do mútuo em causa. Todos estes elementos constituem o que o tribunal de recurso nacional qualificou corretamente de «padrão» de contratação (46). Dependendo do tipo de cláusula contratual, os tribunais nacionais devem identificar os critérios pertinentes para que o requisito de transparência seja respeitado. À luz destes critérios, estes tribunais devem verificar se o consumidor médio está em condições de compreender o funcionamento específico da cláusula e, assim, avaliar, com base em critérios claros e inteligíveis, as consequências económicas potencialmente significativas da cláusula para as suas obrigações financeiras.

62.      No que respeita, mais especificamente, à fiscalização das «cláusulas de taxa mínima» no processo principal, importa verificar se a inclusão destas cláusulas constitui uma prática generalizada na documentação bancária normal. A fiscalização judicial incide, num segundo momento, nas práticas contratuais e pré‑contratuais normalizadas dos profissionais em causa para identificar os critérios com base nos quais a cláusula específica é ou não transparente.

63.      Conforme referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, o tribunal de recurso nacional identificou determinadas práticas relevantes para fiscalizar a transparência das «cláusulas de taxa mínima». Estas práticas incluem a ocultação ou a dissimulação dos efeitos da cláusula, a sua posição no contrato ou a sua apresentação juntamente com a cláusula que limita a subida da taxa (47). Quando os processos envolvem mais do que um demandado, é importante identificar, em relação a cada banco, se os critérios da transparência foram ou não cumpridos na sua prática contratual (48).

64.      Além disso, um critério relevante para a avaliação da transparência da «cláusula de taxa mínima» nos contratos de adesão pode consistir na questão de saber se a duração do contrato foi refletida na informação fornecida ao consumidor. Um contrato de mútuo hipotecário é um contrato a longo prazo, ou mesmo, conforme sugerido pela doutrina, um contrato «vitalício» (49). O consumidor deve ser capaz de compreender a relação entre a cláusula pertinente, a evolução futura da economia e as consequências económicas para a sua situação financeira através de simulações. Assim, não pode satisfazer o requisito de transparência a comunicação a esse consumidor de qualquer tipo de informações sobre a cláusula de taxa mínima, se estas se basearem no pressuposto de que o contexto económico se manterá inalterado ao longo de toda a vigência do contrato (50). O consumidor deve ser informado de que a alteração das circunstâncias económicas pode ter consequências potencialmente graves para a sua situação financeira devido ao acionamento da cláusula de taxa mínima.

65.      Em suma, a fiscalização judicial da transparência nas ações coletivas é adequada e possível. O método seguido pelo tribunal de recurso nacional, como descrito pelo órgão jurisdicional de reenvio, constitui um exemplo concreto a este respeito. A fiscalização judicial deve ser adaptada ao nível de abstração próprio das ações coletivas e concentrar‑se nas práticas contratuais normalizadas do profissional em relação ao consumidor médio, razoavelmente informado e razoavelmente atento e avisado.

 d) Fiscalização da transparência no âmbito de uma ação coletiva intentada contra um número elevado de profissionais

66.      A questão seguinte suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio é a de saber se as particularidades «quantitativas» do processo principal devem levar à conclusão de que a fiscalização abstrata da transparência não é adequada. O órgão jurisdicional de reenvio explica que, ao contrário de uma ação coletiva intentada contra uma única instituição financeira ou contra um número muito reduzido de instituições financeiras, o processo principal envolve um número elevado de instituições financeiras demandadas e um número elevado de contratos com múltiplas redações e formulações diferentes, utilizados durante um longo período.

67.      A este título, importa salientar, desde logo, que o artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 93/13 dispõe que, respeitando a legislação nacional, as ações (coletivas) podem ser intentadas, «individualmente ou em conjunto», contra «vários» profissionais do mesmo setor económico que utilizem as mesmas cláusulas contratuais gerais ou cláusulas «semelhantes». Resulta desta disposição que o critério relevante no que respeita aos demandados numa ação coletivas não é o seu número concreto, mas o facto de pertencerem ao mesmo setor económico. No que diz respeito ao objeto da ação, a fiscalização judicial abrange cláusulas semelhantes.

68.      As instituições financeiras demandadas que apresentaram observações escritas afirmaram, assim como o Governo Espanhol, que a «homogeneidade» das circunstâncias é um requisito necessário para intentar uma ação coletiva. Resulta das suas alegações, em substância, que este requisito se encontra preenchido quando as diferentes situações individuais podem ser decididas coletivamente, porque apresentam semelhanças factuais e jurídicas que permitem uma apreciação conjunta. Alegaram que a ação coletiva no processo principal não deveria ter sido admitida, porque o requisito de homogeneidade não foi respeitado.

69.      A este respeito, importa realçar que nem a Diretiva 93/13 nem a Diretiva 2009/22 preveem a «homogeneidade» de circunstâncias como condição para o recurso aos mecanismos de tutela coletiva. O artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 93/13 refere os requisitos materiais da identidade do setor económico e da semelhança das cláusulas contratuais. Não contém requisitos processuais quanto ao grau de semelhança exigido dos pedidos individuais para que possa ser intentada uma ação judicial coletiva, que é uma matéria do âmbito do direito processual nacional. Embora o Tribunal de Justiça já tenha enquadrado, em várias ocasiões e tendo em conta os requisitos dos artigo 6.°, n.° 1, e do artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, o modo como o juiz nacional deve garantir a proteção dos direitos conferidos aos consumidores por esta diretiva, não deixa de ser verdade que, em princípio, o direito da União não harmoniza os procedimentos aplicáveis à fiscalização do caráter pretensamente abusivo de uma cláusula contratual, e que, por conseguinte, estes procedimentos estão abrangidos pela ordem jurídica interna dos Estados‑Membros, ao abrigo do princípio da autonomia processual destes últimos, desde que, contudo, não sejam menos favoráveis do que os procedimentos que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível ou excessivamente difícil na prática o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (51).

70.      Assim, o direito processual nacional pode prever que a «homogeneidade» das ações em causa é uma condição necessária para a admissão de uma ação coletiva para efeitos de fiscalização das cláusulas abusivas. Contudo, uma vez que o artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 93/13 prevê a fiscalização judicial em ações coletivas de cláusulas semelhantes, o requisito de homogeneidade não pode ser interpretado no sentido de que impõe que todas as circunstâncias da ação em causa sejam idênticas. Quando uma ação coletiva envolve a mesma categoria de demandados, o mesmo tipo de cláusula com os mesmos efeitos e o mesmo tipo de relações jurídicas, todos estes elementos podem constituir um indício forte de que a causa de pedir é suficientemente semelhante para que a ação coletiva possa prosseguir. Sendo possível realizar uma apreciação judicial objetiva de cláusulas contratuais padronizadas, não deveria ser necessário ter em conta os elementos de facto e de direito específicos de cada um dos contratos e dos consumidores afetados por tais cláusulas.

71.      Em última análise, incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar se no processo principal existe um grau de semelhança suficiente que permita o prosseguimento da ação coletiva. A este respeito, pode ter em conta o facto de as demandadas serem todas instituições bancárias, de as cláusulas controvertidas serem todas «cláusulas de taxa mínima» correntes, de as relações jurídicas em que se inserem as «cláusulas de taxa mínima» serem contratos de mútuo hipotecário e de estas cláusulas terem por efeito impedir a variação da taxa de juro abaixo de um determinado valor.

72.      É importante notar que até a Diretiva 2020/1828 — que é o exemplo principal de harmonização no domínio das ações coletivas de reparação — não harmonizou todos os aspetos das ações coletivas que regula. De acordo com o considerando 12 da mesma, em consonância com o princípio da autonomia processual, deve caber aos Estados‑Membros decidir sobre o «grau de similitude exigido entre pedidos individuais [...] para que um processo seja admitido como ação coletiva». No entanto, este considerando recorda a limitação do princípio da eficácia, uma vez que «essas regras nacionais não deverão prejudicar o funcionamento eficaz do meio processual das ações coletivas tal como previsto na [Diretiva 2020/1828]».

73.      Mesmo que a Diretiva 2020/1828 não seja aplicável ao processo principal, durante a audiência, algumas instituições financeiras aludiram a transposições nacionais da diretiva e, mais especificamente, ao direito alemão e ao direito italiano que preveem o requisito de «homogeneidade» no âmbito das ações coletivas.

74.      No entanto, o facto de a legislação nacional que prevê o requisito da «homogeneidade» não permite concluir que, devido a este requisito, a tutela coletiva não é adequada num caso em que a ação coletiva é dirigida contra muitas instituições financeiras e diz respeito a uma multiplicidade de contratos. A questão relevante consiste em examinar se a aplicação do requisito de homogeneidade estabelece um equilíbrio adequado entre a semelhança das situações abrangidas pela ação coletiva, a economia processual e a eficácia da tutela coletiva (52).

75.      Algumas instituições financeiras sustentaram, nas suas alegações, que o processo é impossível de gerir. No entanto, não compete ao Tribunal de Justiça examinar os aspetos empíricos do processo. Se o órgão jurisdicional nacional considera que as situações de facto e de direito em causa permitem efetuar uma apreciação geral das cláusulas contratuais em questão, cabe a este órgão adotar as medidas de gestão judicial necessárias para permitir o prosseguimento da ação.

76.      Dito isto, importa sublinhar que a dimensão do processo não deve prejudicar o direito de cada instituição financeira a uma tutela jurisdicional efetiva. Na falta de uma disposição nas Diretivas 93/13 e 2009/22 que preveja expressamente um regime de proteção jurisdicional efetiva dos profissionais, há que interpretar estas diretivas à luz do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (53). Cada instituição financeira deve ter a possibilidade de demonstrar que a sua própria prática normalizada cumpre o requisito de transparência.

77.      O órgão jurisdicional de reenvio suscitou uma última questão que se prende com a complexidade adicional que resulta, no caso em apreço, da apensação à ação inibitória de uma ação de restituição dos pagamentos efetuados em virtude da declaração do caráter abusivo da cláusula controvertida. A este respeito, convém salientar que a determinação da modalidade de execução da decisão nas ações coletivas é da competência do direito processual nacional. As eventuais dificuldades na fase de execução não constituem um critério jurídico de exclusão da ação coletiva.

78.      Tendo em conta todas as considerações que precedem, considero que o artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, na parte em que se refere à consideração de todas as circunstâncias que rodeiam a celebração do contrato, e o artigo 7.°, n.° 3, da mesma diretiva, na parte em que se refere a cláusulas contratuais semelhantes, devem ser interpretados no sentido de que permitem a um tribunal nacional proceder a uma apreciação abstrata da transparência das cláusulas contratuais no contexto de uma ação coletiva, quando a ação em causa é intentada contra um número considerável de instituições financeiras e envolve um número substancial de contratos. Para proceder a esta apreciação, cabe ao tribunal nacional examinar as práticas contratuais e pré‑contratuais normalizadas de cada uma das instituições financeiras em causa à luz do padrão objetivo do consumidor médio, razoavelmente informado e razoavelmente atento e avisado.

 Segunda questão

79.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a fiscalização abstrata da transparência na perspetiva do consumidor médio é compatível com o artigo 4.°, n.° 2, e com o artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 93/13, no contexto de uma ação coletiva que envolve um número considerável de instituições financeiras, um número substancial de contratos e de consumidores diferentes e em que as cláusulas em causa foram incluídas nos contratos durante um longo período.

80.      Resulta da segunda questão submetida, bem como da decisão de reenvio, que o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à possibilidade de determinar o conceito de consumidor «médio» no âmbito de uma ação coletiva com as características «quantitativas» do processo principal. Mais especificamente, o órgão jurisdicional de reenvio declarou que a ação coletiva envolve: primeiro, uma multiplicidade de instituições financeiras de diferentes dimensões e com diferentes estruturas, e que operam em diferentes zonas geográficas (desde uma pequena caixa económica de caráter regional até alguns dos grandes bancos europeus com implantação multinacional); segundo, diversos formulários contratuais utilizados por cada instituição financeira; terceiro, um longo período de utilização das cláusulas relevantes; e quarto, diferentes grupos de consumidores dificilmente categorizáveis, como os consumidores que se sub‑rogam em empréstimos com garantia hipotecária contraídos por sociedades de construção, consumidores que aderem a programas de financiamento de habitação social ou de acesso a habitação social em função de determinada faixa etária ou consumidores que acedem ao empréstimo com um tratamento especial devido à sua profissão (por exemplo, funcionários públicos ou trabalhadores de determinadas empresas).

81.      No que se refere ao conceito de consumidor médio, já foi referido anteriormente, no âmbito da análise da primeira questão (54), que a observância do requisito de transparência deve ser aferida pelo padrão objetivo do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado (55), padrão esse a que não correspondem, nomeadamente, nem o consumidor menos avisado nem o consumidor mais avisado do que o consumidor médio (56).

82.      A premissa que subjaz ao critério objetivo de referência do consumidor médio no contexto da Diretiva 93/13 baseia‑se no conceito de «consumidor» previsto no artigo 2.°, alínea b), da Diretiva 93/13. Resulta deste conceito que a proteção concedida por esta diretiva depende dos fins para os quais a pessoa singular atua, a saber, fins que não pertençam ao âmbito da sua atividade profissional, e não dos conhecimentos específicos de que essa pessoa dispõe (57). Com base nesta premissa, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de uma pessoa singular que celebra um contrato com um banco ser um trabalhador do banco não obsta, enquanto tal, a que seja qualificada de «consumidor», na aceção do artigo 2.°, alínea b), da Diretiva 93/13 (58).

83.      Uma vez que o conhecimento específico que se pode considerar que um consumidor possui no âmbito de uma ação individual não é suscetível de justificar um desvio em relação ao padrão do consumidor médio, o mesmo é aplicável às características individuais dos diferentes consumidores no âmbito de uma ação coletiva. O conceito objetivo de consumidor médio diz respeito à celebração de contratos de adesão, independentemente das características ou do número de consumidores envolvidos.

84.      Conforme observado pela ADICAE, em substância, nas suas alegações orais, as diferenças de idade dos consumidores, o seu nível de educação ou a sua atividade profissional não podem ser considerados critérios decisivos para os diferenciar e para constituir grupos de consumidores diferentes. Esta observação é válida desde que as pessoas singulares em causa atuem fora da sua atividade comercial ou profissional (59).

85.      No que diz respeito às diferenças entre as instituições financeiras em causa e os diferentes formulários contratuais utilizados pelas mesmas, não considero que sejam suscetíveis de afetar o conceito de consumidor médio. Conforme referido acima na análise da primeira questão, no âmbito da apreciação abstrata da transparência, a fiscalização judicial não se concentra em cada contrato e em cada consumidor. A fiscalização incide sobre as práticas contratuais e pré‑contratuais normalizadas seguidas por cada vendedor ou fornecedor em relação ao consumidor médio na promoção e oferta do contrato (60). Cabe, a seguir, a cada vendedor ou fornecedor (no caso do processo principal, a cada instituição financeira) provar que as suas próprias práticas cumprem o requisito de transparência.

86.      O Governo Polaco sugeriu, nas suas alegações, que é possível ter por base diferentes tipos de consumidor médio para avaliar diferentes grupos de contratos. Este Governo propôs que, quando um contrato de mútuo é celebrado com base num formulário específico destinado a um determinado grupo de consumidores, o conceito de consumidor médio corresponde ao membro médio do grupo com o qual os contratos foram celebrados.

87.      Em última análise, cabe ao tribunal nacional gerir o litígio e determinar, em cada caso, os instrumentos adequados para o efeito. Se o tribunal considerar que as circunstâncias de facto e de direito da ação refletem uma prática corrente e que a categorização dos consumidores em diferentes grupos contribui para essa apreciação, deve ser autorizado a fazê‑lo. Todavia, importa recordar que o conceito de consumidor médio é independente dos conhecimentos ou das capacidades de cada consumidor. Assim, a categorização dos consumidores envolvidos na ação coletiva não pode ser efetuada com base em critérios contrários ao padrão objetivo do consumidor médio. Por conseguinte, não é possível estabelecer subgrupos com base no diferente grau de conhecimento dos consumidores, na sua idade ou na sua profissão (desde que atuem para fins alheios à sua atividade ou profissão). Além disso, os formulários contratuais utilizados só podem constituir um elemento distintivo se esse elemento tiver uma influência efetiva no conceito de consumidor médio que celebra um determinado tipo de contrato. Se a capacidade do consumidor para compreender as consequências concretas da utilização da «cláusula de taxa mínima» não for influenciada pelo tipo de contrato utilizado, o tipo de contrato não poderá ser um critério utilizado para distinguir alguns grupos de consumidores de todos os outros.

88.      A última questão suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito à pertinência do lapso de tempo para efeitos de aplicação do conceito de consumidor médio.

89.      É verdade que as perceções evoluem com o tempo. Durante a audiência, foi recordado o antigo aforismo grego, atribuído a Heráclito, sobre o facto de a mudança ser uma constante, segundo o qual «tudo muda e nada permanece igual» (61).

90.      Assim, o conceito de consumidor médio, como a Comissão salientou na audiência, exige certa estabilidade para garantir a segurança jurídica. A evolução geral das perceções ao longo do tempo não é, em si, suficiente para provar a alteração do entendimento que o consumidor médio tem sobre a cláusula contratual. É necessário determinar se houve um acontecimento específico que tenha alterado significativamente a perceção que o consumidor médio tem das «cláusulas de taxa mínima». A este respeito, pode ser particularmente relevante uma alteração do quadro legislativo ou um acórdão de referência relativo à cláusula em questão.

91.      No caso do processo principal, o lapso de tempo decorrido entre o momento da celebração dos contratos em causa e a descida das taxas de juro não se afigura relevante nem suficiente para afetar o conceito de consumidor médio. Conforme afirmou o Governo Espanhol na audiência, em 2010 (antes da queda das taxas de juro), o consumidor médio não tinha mais conhecimentos sobre «cláusulas de taxa mínima» do que o consumidor médio em 2000. Com efeito, antes da aplicação das «cláusulas de taxa mínima» ser desencadeada pela forte descida das taxas de juro, a simples existência destas cláusulas nos contratos não tinha efeitos práticos.

92.      Por conseguinte, a meu ver, mais do que abordar a questão da passagem do tempo, é necessário perceber se o consumidor médio que celebrou um contrato de mútuo após 2009 ou 2010 deve ser sujeito a um tratamento diferente relativamente ao consumidor médio que celebrou um contrato de mútuo antes destas datas. A este respeito, cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar se a descida das taxas de juro conduziu a uma maior sensibilização relativamente às «cláusulas de taxa mínima» e se fez com que as instituições financeiras alterassem as suas práticas e que cumprissem o requisito de transparência. Compete também ao órgão jurisdicional nacional examinar se, antes das referidas cláusulas serem objeto de um processo judicial, existia uma confusão na perceção dos consumidores quanto à licitude das mesmas. O órgão jurisdicional pode ainda analisar se o seu Acórdão de 9 de maio de 2013, no qual declarou que as «cláusulas de taxa mínima» eram, em princípio, lícitas, embora sendo não transparentes e abusivas, conduziu a uma mudança de perceção a partir dessa data. É ao órgão jurisdicional nacional que compete, em última análise, proceder a estas verificações.

93.      Tendo em conta as considerações que precedem, considero que a fiscalização abstrata da transparência na perspetiva do consumidor médio é compatível com o artigo 4.°, n.° 2, e com o artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 93/13. O consumidor médio é um padrão objetivo no âmbito da apreciação de cláusulas contratuais gerais, independentemente das características ou do número de consumidores envolvidos. O facto de a ação coletiva intentada no processo principal envolver um número considerável de instituições financeiras, um número substancial de contratos e consumidores diferentes e de as cláusulas em causa terem sido incluídas nos contratos durante um longo período não afeta, enquanto tal, o conceito de consumidor médio.

 V. Conclusão

94.      Tendo em conta as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) do seguinte modo:

1)      O artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, na parte em que se refere à consideração de todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato, e o artigo 7.°, n.° 3, da mesma diretiva, na parte em que se refere a cláusulas contratuais semelhantes,

devem ser interpretados no sentido de que permitem a um tribunal nacional proceder a uma apreciação abstrata da transparência das cláusulas contratuais no contexto de uma ação coletiva, quando a ação em causa é intentada contra um número considerável de instituições financeiras e envolve um número substancial de contratos. Para proceder a esta apreciação, cabe ao tribunal nacional examinar as práticas contratuais e pré‑contratuais normalizadas de cada uma das instituições financeiras em causa à luz do padrão objetivo do consumidor médio, razoavelmente informado e razoavelmente atento e avisado.

2)      O artigo 4.°, n.° 2, e o artigo 7.°, n.° 3, da Diretiva 93/13,

devem ser interpretados no sentido de que são compatíveis com a fiscalização abstrata da transparência na perspetiva do consumidor médio. O consumidor médio é um padrão objetivo no âmbito da apreciação de cláusulas contratuais gerais, independentemente das características ou do número de consumidores envolvidos. O facto de a ação coletiva intentada no processo principal envolver um número considerável de instituições financeiras, um número substancial de contratos e consumidores diferentes e de as cláusulas em causa terem sido utilizadas durante um longo período não afeta, enquanto tal, o conceito de consumidor médio.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).


3      Howells, G., Twigg‑Flesner, C., e Wilhelmsson, T., Rethinking EU Consumer Law, Londres, Routledge, 2017, p. 153.


4      V. de Elizalde, F., «The Rain does not Stay in the Plain — Or How the Spanish Supreme Court Ruling of 25 March 2015, on Minimum Interest Rate Clauses, affects European Consumers», Journal of European Consumer and Market Law (EuCML), vol. 4(5), 2015, p. 184.


5      V. de Elizalde, F., e Leskinen, C., «The control of terms that define the essential obligations of the parties under the Unfair Contract Terms Directive: Gutiérrez Naranjo», Common Market Law Review, vol. 55(5), 2018, pp. 1595 a 1617.


6      O Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Gutiérrez Naranjo e o. (C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, EU:C:2016:980, n.° 18 e seguintes) expõe sucintamente o raciocínio subjacente ao Acórdão do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) de 9 de maio de 2013.


7      Acórdão de 21 de dezembro de 2016 (C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, EU:C:2016:980).


8      V. Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar nos processos apensos Sales Sinués e Drame Ba (C‑381/14 e C‑385/14, EU:C:2016:15, n.° 53 e segs.) e as Conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak no processo Invitel (C‑472/10, EU:C:2011:806, n.° 37).


9      Acórdão de 14 de abril de 2016, Sales Sinués e Drame Ba (C‑381/14 e C‑385/14, EU:C:2016:252, n.° 21).


10      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa às ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores (JO 2009, L 110, p. 30).


11      Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Biuro podróży ‘Partner’ (C‑119/15, EU:C:2016:987, n.° 31). Note‑se que à data dos factos do processo principal não existia nenhum instrumento jurídico vinculativo da União em matéria de mecanismos processuais de indemnização. O direito espanhol previa a possibilidade de apensar a uma ação inibitória uma ação acessória de restituição de quantias cobradas ao abrigo das condições gerais declaradas abusivas. A associação de consumidores demandante no processo principal fez uso desta faculdade.


12      Acórdão de 14 de abril de 2016, Sales Sinués e Drame Ba (C‑381/14 e C‑385/14, EU:C:2016:252, n.° 30).


13      Acórdãos de 14 de abril de 2016, Sales Sinués e Drame Ba (C‑381/14 e C‑385/14, EU:C:2016:252, n.° 29), e de 26 de abril de 2012, Invitel (C‑472/10, EU:C:2012:242, n.° 37).


14      V. Conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak no processo Invitel (C‑472/10, EU:C:2011:806, n.° 37).


15      V., neste sentido, Acórdão de 14 de abril de 2016, Sales Sinués e Drame Ba (C‑381/14 e C‑385/14, EU:C:2016:252, n.os 37 e 40).


16      Acórdão de 26 de abril de 2012, Invitel (C‑472/10, EU:C:2012:242), no qual o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, conjugado com o seu artigo 7.°, n.os 1 e 2, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que a declaração de nulidade de uma cláusula abusiva que faz parte das cláusulas gerais dos contratos celebrados com os consumidores, no âmbito de uma ação inibitória, referida no artigo 7.° da dita diretiva, intentada contra um profissional, no interesse público e em nome dos consumidores, por um organismo designado pela legislação nacional, produza, em conformidade com a referida legislação, efeitos para todos os consumidores que tenham celebrado com o profissional em causa um contrato ao qual se aplicam as mesmas condições gerais, incluindo para os consumidores que não eram partes no processo relativo à ação inibitória.


17      V. Secção 3.1 da Comunicação da Comissão — Orientações sobre a interpretação e a aplicação da Diretiva 93/13/CEE do Conselho relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 2019, C 323, p. 4, a seguir «Orientações da Comissão sobre as cláusulas abusivas»).


18      V., neste sentido, Acórdão de 20 de abril de 2023, Ocidental — Companhia Portuguesa de Seguros de Vida (C‑263/22 P, EU:C:2023:311, n.° 31).


19      Grundmann, S., «A Modern Standard Contract Terms Law from Reasonable Assent to Enhanced Fairness Control», European Review of Contract Law, 2019, vol. 15(2), 2019, pp. 148 a 176, in p. 157.


20      Acórdão de 16 de março de 2023, Caixabank (Comissão de abertura do empréstimo) (C‑565/21, EU:C:2023:212).


21      Acórdão de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai (C‑26/13, EU:C:2014:282, n.° 72).


22      V., em termos gerais, Ebers, M., «Unfair Contract Terms Directive (93/13)» in Schulte‑Nölke, H., Twigg‑Flesner, C., e Ebers, M., EC Consumer Law Compendium: the Consumer Acquis and Its Transposition in the Member States, Sellier European Law Publishers, Munique, 2008. No contexto do crédito ao consumo, v. Luzak J., A., e Junuzović, M., «Blurred Lines: Between Formal and Substantive Transparency in Consumer Credit Contracts», Journal of European consumer and market law, EuCML, 2019, vol. 8(3), 2019, pp. 97 a 107.


23      Orientações da Comissão sobre as cláusulas abusivas, secção 3.3.1, p. 25.


24      Sobre a utilização do conceito de «transparência material» na jurisprudência do Tribunal de Justiça, v. Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Gutiérrez Naranjo e o. (C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, EU:C:2016:980, n.° 49).


25      Acórdãos de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance (C‑609/19, EU:C:2021:469, n.° 43), e de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance (C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.° 62 e jurisprudência referida).


26      Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance (C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.° 64 e jurisprudência referida).


27      V., neste sentido, Acórdãos de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance  (C‑609/19, EU:C:2021:469, n.° 45) e BNP Paribas Personal Finance  (C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.° 66); e de 16 de março de 2023, Caixabank (Comissão de abertura do empréstimo)  (C‑565/21, EU:C:2023:212, n.° 33).


28      Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance (C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.° 67).


29      Ibidem, n.° 75.


30      Ver n.° 42, supra, das presentes conclusões.


31      V. Conclusões do advogado‑geral G. Pitruzzella no processo Fundación Consejo Regulador de la Denominación de Origen Protegida Queso Manchego (C‑614/17, EU:C:2019:11, n.° 49).


32      Acórdão de 21 de setembro de 2023, mBank (Registo polaco das cláusulas ilícitas) (C‑139/22, EU:C:2023:692, n.os 61 e 66).


33      Ibidem, n.° 66.


34      Howells, G., Twigg‑Flesner, C., e Wilhelmsson, T., op. cit. nota 3, p. 152.


35      Gardiner, C., «Unfair Contract Terms in the Digital Age: The Challenge of Protecting European Consumers in the Online Marketplace», Edward Elgar Publishing, 2022, p. 96.


36      V., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance (C‑609/19, EU:C:2021:469, n.° 53).


37      V., a este respeito, Howells, G., Twigg‑Flesner, C., e Wilhelmsson, T., op.cit. nota 3, p. 151, que sugere que o Tribunal de Justiça «não parece ser muito exigente» quando tenta determinar com maior precisão o comportamento expectável do consumidor médio.


38      Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance (C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.° 86).


39      Conforme acima referido, o requisito de transparência que figura no artigo 4.° da Diretiva 93/13 tem o mesmo alcance que o contemplado no artigo 5.° desta diretiva (v. n.° 40 das presentes conclusões).


40      No seu Acórdão de 9 de setembro de 2004, Comissão/Espanha (C‑70/03, EU:C:2004:505, n.° 16), o Tribunal de Justiça declarou que uma interpretação objetiva (no âmbito de uma ação coletiva) permite proibir a utilização de uma cláusula não transparente ou ambígua num maior número de casos, o que tem como consequência uma proteção mais ampla dos consumidores.


41      N.° 39 das presentes conclusões.


42      No que respeita à aplicabilidade do artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 tanto nas ações individuais quanto nas ações coletivas, v. Conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak no processo Invitel  (C‑472/10, EU:C:2011:806, n.° 50).


43      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativa a ações coletivas para proteção dos interesses coletivos dos consumidores e que revoga a Diretiva 2009/22 (JO 2020, L 409, p. 1).


44      De acordo com a definição constante do artigo 3.°, n.° 5, da Diretiva 2020/1828, entende‑se por «ação coletiva» a «ação destinada a proteger os interesses coletivos dos consumidores intentada em nome dos consumidores por uma entidade como demandante com vista a obter uma medida inibitória, uma medida de reparação, ou ambas».


45      Artigo 2.° da Diretiva 2020/1828.


46      No n.° 83 do seu Acórdão n.° 603/2018, de 12 de novembro, que integra os autos do processo nacional, a Audiencia Provincial de Madrid (Audiência Provincial, Madrid) alude ao «padrão de contratação» («patrón estandar de contratación») relativamente ao consumidor médio.


47      V. acima o n.° 14 das presentes conclusões.


48      O tribunal de recurso nacional analisou o «diferente grau de esforço» desenvolvido por cada um dos bancos demandados para assegurar a transparência efetiva da inclusão da «cláusula de taxa mínima» [Acórdão da Audiencia Provincial de Madrid (Audiência Provincial de Madrid), n.° 28].


49      V. Nogler, L., e Reifner, U., «The Contractual Concept of Life‑Time Contracts under Scrutiny» in Ratti, L., Embedding the Principles of Life Time Contracts, Eleven International Publishing, Haia, 2018, p. 3, que salienta o aspeto «humano ou de subsistência» dos contratos a longo prazo que respondem a necessidades básicas.


50      V., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance (C‑609/19, EU:C:2021:469, n.° 53).


51      Acórdão de 17 de maio de 2022, SPV Project 1503 e o. (C‑693/19 e C‑831/19, EU:C:2022:395, n.° 55 e jurisprudência referida).


52      Mais concretamente, no que se refere ao direito alemão, o legislador alemão utilizou a faculdade prevista no considerando 12 da Diretiva 2020/1828 e estabeleceu um requisito específico de admissibilidade no que diz respeito à semelhança das situações abrangidas pela ação coletiva de reparação nos termos do § 15 da Gesetz zur gebundelten Durchsetzung von Verbraucherrechten (Lei relativa à Tutela Coletiva dos Direitos dos Consumidores, a seguir «VuDuG») de 8 de outubro de 2023 (BGB1.2023 I N 272). Este requisito exige que os direitos dos consumidores abrangidos pela ação sejam «essencialmente homogéneos» (os termos exatos em alemão são «im Wesentlichen gleichartig»). De acordo com os trabalhos preparatórios da VuDuG (Gesetzentwurf der Bundesregierung, BT — Drs. 20/6520, pp. 77 e 78), os pedidos dos consumidores em causa devem ser suficientemente semelhantes no plano factual e jurídico para que o tribunal possa decidir sobre uma multiplicidade de pedidos no mesmo processo. Isto pressupõe que o tribunal não tenha de proceder a extensos apuramentos de factos em processos factualmente diferentes ou de tratar várias questões jurídicas diferentes que suscitam situações individuais. É necessário que exista um grau de semelhança entre os pedidos em causa que permita aos tribunais proceder a um exame esquemático dos requisitos do direito a indemnização de um ponto de vista factual e jurídico, sem que seja necessário proceder a um exame individualizado caso a caso. De acordo com os referidos trabalhos preparatórios, a homogeneidade não exige que os contratos em causa sejam idênticos nem celebrados durante o mesmo período. É referido que os factos são semelhantes, por exemplo, «quando vários consumidores tenham celebrado contratos de abertura de conta de poupança individuais em datas diferentes, mas os diferentes contratos ou tipos de contrato contenham todos a mesma cláusula‑tipo». Neste contexto, é importante observar que o legislador alemão «flexibilizou» o requisito da «homogeneidade» no decurso do processo legislativo, acrescentando a expressão «essencialmente». Esta flexibilização foi introduzida para evitar eventuais objeções suscitadas pelos profissionais em relação às características individuais ou ao comportamento individual de alguns dos consumidores em causa, com o objetivo de impedir a proposição de uma ação coletiva de reparação [v. as recomendações feitas, no decurso do processo legislativo, pelo Bundesrat (Conselho Federal, Alemanha) BR‑Drs. 145/1/23, pp. 4 e 5]. Por conseguinte, o legislador alemão considerou que a expressão «essencialmente homogéneo» é suficientemente aberta para conduzir a resultados adequados em cada caso.


53      Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Biuro podróży ‘Partner’ (C‑119/15, EU:C:2016:987, n.° 26).


54      N.° 46 das presentes conclusões.


55      Acórdão de 21 de setembro de 2023, mBank (Registo polaco das cláusulas abusivas) (C‑139/22, EU:C:2023:692, n.os 61 e 66).


56      Ibidem, n.° 66.


57      Ibidem, n.° 67.


58      Ibidem, n.° 69.


59      Se assim não fosse, as pessoas singulares não estariam abrangidas pelo âmbito de proteção da Diretiva 93/13 (v. n.° 82 das presentes conclusões).


60      V. n.° 61, supra, das presentes conclusões.


61      Em grego antigo, «τα πάντα ῥεῖ, μηδέποτε κατά τ’αυτό μένειν», cujo significado literal é «tudo é fluido e nada permanece igual».