Language of document : ECLI:EU:C:2018:541

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 5 de julho de 2018 (1)

Processo C595/17

Apple Sales International,

Apple Inc.,

Apple retail France EURL

contra

MJA, na qualidade de administrador da insolvência da eBizcuss.com (eBizcuss)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação) (França)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Competência judiciária em matéria civil e comercial — Artigo 23.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Cláusula atributiva de jurisdição constante de um contrato de distribuição — Ação de indemnização intentada pelo fornecedor contra o distribuidor com base na violação do artigo 102.o TFUE»






 Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 23.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 (2), disposição que permite derrogar as regras gerais de competência judiciária internacional estabelecidas no mesmo regulamento no caso de as partes, das quais pelo menos uma se encontra domiciliada num Estado‑Membro, terem convencionado que seriam competentes um ou os tribunais de um Estado‑Membro para decidir os litígios emergentes de uma relação jurídica determinada.

2.        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe as sociedades Apple Sales International, Apple Inc. e Apple retail France EURL a MJA, na qualidade de administrador da insolvência da sociedade eBizcuss.com (a seguir «eBizcuss»), a respeito de uma ação de indemnização intentada por esta sociedade por violação do artigo 102.o TFUE.

3.        Assim, o Tribunal de Justiça é chamado a precisar se e com que limites uma cláusula atributiva de jurisdição pode ser afastada para assegurar a efetividade de ações de indemnização dos prejuízos decorrentes de comportamentos de empresas que alegadamente constituem um abuso de posição dominante.

4.        O presente processo constitui assim uma ocasião renovada, tendo em conta a solução adotada pelo Tribunal de Justiça no processo que deu origem ao Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335), para fornecer indicações precisas aos operadores em causa na sua qualidade de, por um lado, redatores das cláusulas atributivas de jurisdição e, por outro lado, de pessoas que pretendem intentar ações para reparação de prejuízos alegadamente com origem numa violação do direito da concorrência, concretamente do artigo 102.o TFUE, no que é comummente designado por «private enforcement».

 Quadro jurídico

 Direito da União

5.        Os considerandos 2, 11 e 14 do Regulamento n.o 44/2001 enunciam:

«2)      Certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judicial e de reconhecimento de decisões judiciais dificultam o bom funcionamento do mercado interno. São indispensáveis disposições que permitam unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, bem como simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e à execução rápidos e simples das decisões proferidas nos Estados‑Membros abrangidos pelo presente regulamento.

[…]

11)      As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular‑se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, exceto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.

[…]

14)      A autonomia das partes num contrato que não seja de seguro, de consumo ou de trabalho quanto à escolha do tribunal competente, no caso de apenas ser permitida uma autonomia mais limitada, deve ser respeitada sob reserva das competências exclusivas definidas pelo presente regulamento.»

6.        O artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001, que figura na secção 7 do capítulo II deste último, intitulada «Extensão de competência», dispõe, no seu n.o 1:

«Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado‑Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a)      Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou

b)      Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou

c)      No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.»

 Direito francês

7.        À data dos factos em causa no processo principal, o artigo 1382 do code civil [Código Civil] dispunha que «[t]odo o ato ilícito e culposo que cause um prejuízo a outrem obriga o seu autor a repará‑lo».

8.        O artigo L 420‑1 do code de commerce [Código Comercial] prevê:

«São proibidas as práticas concertadas, as convenções, os acordos expressos ou tácitos ou as coligações, ainda que levadas a cabo, direta ou indiretamente, através de uma sociedade do grupo sediada fora de França, que tenham por objeto ou possam ter por efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado, designadamente quando visem:

1.      Limitar o acesso ao mercado ou o livre exercício da concorrência por outras empresas;

2.      Criar obstáculos à fixação de preços de acordo com o livre jogo do mercado, favorecendo artificialmente o seu aumento ou a sua diminuição;

3.      Limitar ou controlar a produção, o escoamento dos produtos, os investimentos ou o progresso técnico;

4.      Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento.»

9.        O artigo L 420‑2 do Código Comercial tem a seguinte redação:

«É proibida, nos termos do artigo L 420‑1, a exploração abusiva, por uma empresa ou grupo de empresas, de uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. Tais abusos podem consistir, designadamente, na recusa de venda, vendas subordinadas ou condições de venda discriminatórias, bem como na rutura das relações comerciais estabelecidas, com o único fundamento de o parceiro se recusar submeter‑se a condições comerciais injustificadas.

É, além disso, proibida, desde que seja suscetível de afetar o funcionamento ou a estrutura da concorrência, a exploração abusiva, por uma empresa ou grupo de empresas, do estado de dependência económica em que se encontre, relativamente a elas, uma empresa cliente ou fornecedora. Tais abusos podem consistir, designadamente, na recusa de venda, em vendas subordinadas, nas práticas discriminatórias referidas no n.o I do artigo L 442‑6 ou em acordos de gama.»

 Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

10.      Em 10 de outubro de 2002, a eBizcuss, de ora em diante representada pela sociedade MJA, celebrou com a sociedade de direito irlandês Apple Sales International um contrato, intitulado «Apple Authorized Reseller Agreement», em que lhe reconhece a qualidade de revendedor autorizado de produtos da marca Apple. Este contrato, pelo qual a eBizcuss se comprometeu a distribuir, em quase exclusividade, os produtos da outra parte contratante e que foi subsequentemente alterado por diversas vezes, continha uma cláusula atributiva de jurisdição a favor dos tribunais irlandeses.

11.      Esta cláusula, redigida em língua inglesa, tinha, na última versão do contrato de distribuição datado de 20 de dezembro de 2005, o seguinte teor:

«This Agreement and the corresponding relationship between the parties shall be governed by and construed in accordance with the laws of the Republic of Ireland and the parties shall submit to the jurisdiction of the courts of the Republic of Ireland. Apple reserves the right to institute proceedings against Reseller in the courts having jurisdiction in the place where Reseller has its seat or in any jurisdiction where a harm to Apple is occurring [(3)]

12.      Durante o mês de abril de 2012, a eBizcuss intentou no tribunal de commerce de Paris (Tribunal de Comércio de Paris, França) uma ação destinada a obter a condenação da sociedade Apple Sales International, da sociedade americana Apple e da sociedade francesa Apple Retail France no pagamento de uma indemnização no montante de 62 500 000 euros. Como fundamento da ação, a eBizcuss alegava, em substância, que as sociedades demandadas eram responsáveis por práticas anticoncorrenciais e atos de concorrência desleal, favorecendo, a partir de 2009 (4), a sua própria rede em seu detrimento. A eBizcuss invocava igualmente, neste contexto, a violação do artigo 1382.o do Código Civil (atual artigo 1240.o do Código Civil), do artigo L 420‑2 do Código Comercial e do artigo 102.o TFUE.

13.      Por sentença de 26 de setembro de 2013, o tribunal de commerce de Paris (Tribunal de Comércio de Paris) julgou procedente a exceção de incompetência invocada pelas empresas demandadas com o fundamento de que constava do contrato que vinculava a Apple Sales International à eBizcuss uma cláusula atributiva de jurisdição a favor dos tribunais irlandeses.

14.      Por acórdão de 8 de abril de 2014, a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França) negou provimento ao recurso interposto pela eBizcuss da referida decisão, confirmando assim a incompetência dos tribunais franceses para decidir sobre o pedido de indemnização.

15.      Por acórdão de 7 de outubro de 2015, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) anulou este acórdão com fundamento no facto de a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França) ter violado o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335), ao ter em conta a cláusula atributiva de jurisdição contida no contrato que vinculava a eBizcuss à Apple Sales International, quando esta cláusula não fazia referência aos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência.

16.      Por acórdão de 25 de outubro de 2016, a cour d’appel de Versailles (Tribunal de Recurso de Versalhes, França) concedeu provimento ao recurso interposto pela eBizcuss e remeteu o processo ao tribunal de commerce de Paris (Tribunal de Comércio de Paris, França).

17.      A Apple Sales International, a Apple e Apple Retail France interpuseram recurso desse acórdão no órgão jurisdicional de reenvio, alegando, em substância, que, quando uma ação autónoma, na aceção do direito da concorrência, tem origem na relação contratual, há que ter em conta uma cláusula de eleição do foro, mesmo que esta cláusula não vise expressamente uma ação deste tipo e não tenha sido previamente declarada nenhuma infração ao direito da concorrência por uma autoridade nacional ou europeia.

18.      O órgão jurisdicional de reenvio expõe que, entretanto, teve conhecimento de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) de 16 de fevereiro de 2016, Interlog e Taboada c. Apple. Este acórdão diz igualmente respeito à Apple Sales International e a uma cláusula semelhante, redigida em termos gerais. O Supremo Tribunal de Justiça declarou que este artigo se aplicava às partes num litígio sobre a mesma alegação de abuso de posição dominante à luz do direito da União, para concluir pela incompetência dos órgãos jurisdicionais portugueses.

19.      Foi nestas circunstâncias que a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 ser interpretado no sentido de que permite ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia aplicar uma cláusula atributiva de jurisdição prevista no contrato que vincula as partes?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 ser interpretado no sentido de que permite ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia aplicar uma cláusula atributiva de jurisdição constante do contrato que vincula as partes, incluindo no caso de a referida cláusula não se referir expressamente aos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência?

3)      Deve o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 ser interpretado no sentido de que permite ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia afastar uma cláusula atributiva de jurisdição prevista no contrato que vincula as partes no caso de uma autoridade nacional ou europeia não ter constatado uma violação ao direito da concorrência?»

20.      Foram apresentadas observações escritas pela Apple Sales International, pela eBizcuss, pelo Governo francês e pela Comissão Europeia.

 Análise

21.      O presente pedido de decisão prejudicial tem essencialmente por objeto a interpretação do artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 no contexto específico de ações de indemnização intentadas por um distribuidor contra o seu fornecedor com base no artigo 102.o TFUE, ou seja, quando seja alegado um abuso de posição dominante contra este último.

22.      Como demonstram as posições divergentes adotadas pelos órgãos jurisdicionais franceses que tiveram de se pronunciar sobre o processo principal, afigura‑se que é o alcance exato da interpretação adotada pelo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335) que está aqui em discussão.

23.      Coloca‑se mais concretamente a questão de saber se, na falta de previsão específica, uma cláusula de eleição do foro em qualquer litígio relativo a um contrato e às relações dele decorrentes — como aquela que, no processo principal, atribui competência aos órgãos jurisdicionais irlandeses — deve ser afastada no caso de serem intentadas ações autónomas de indemnização que tenham como pano de fundo uma alegada violação do artigo 102.o TFUE. O Tribunal de Justiça é chamado a precisar se e com que limite uma cláusula atributiva de jurisdição convencionada entre as partes num acordo (neste caso, um acordo de distribuição) pode produzir os seus efeitos no âmbito de litígios em que é invocada uma violação do direito europeu da concorrência.

24.      Segundo uma primeira interpretação, que é a que parece ter sido adotada, nomeadamente, pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação) no seu acórdão de 7 de outubro de 2015, tal cláusula atributiva de jurisdição só pode ser tida em conta se se referir expressamente aos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência.

25.      Uma segunda interpretação, que foi a seguida, nomeadamente, pelos primeiros juízes que intervieram no processo principal, mas também, na opinião da recorrente no processo principal, pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 16 de fevereiro de 2016, Interlog e Taboada c. Apple (5), considera que uma cláusula atributiva de jurisdição redigida em termos gerais é aplicável às partes num litígio relativo a uma alegação de abuso de posição dominante à luz do direito da União.

26.      Antes de analisar as questões prejudiciais, parece‑me oportuno expor, a título introdutório, uma série de considerações gerais quanto ao alcance do artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001.

 Considerações gerais sobre o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001

27.      O Tribunal de Justiça já foi chamado a pronunciar‑se, em várias ocasiões, sobre a interpretação do artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001, e da disposição equivalente que o precedeu, a saber, o artigo 17.o da Convenção de Bruxelas (6).

28.      Como o Tribunal de Justiça reiteradamente recordou, estas disposições devem ser interpretadas à luz dos objetivos mais vastos prosseguidos pela Convenção de Bruxelas e pelo Regulamento n.o 44/2001, a saber, reforçar a segurança jurídica das pessoas domiciliadas na União, permitindo simultaneamente ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele perante o qual pode ser demandado (7).

29.      Na economia geral do Regulamento n.o 44/2001, o artigo 23.o constitui uma disposição fundamental: é simultaneamente a expressão do princípio do primado da autonomia da vontade das partes livremente expressa (v. considerando 14 deste regulamento) e a exigência de um elevado grau de certeza jurídica (visado no considerando 11 do mesmo regulamento). Tem por objetivo designar, de forma clara e precisa, um tribunal de um Estado contratante que seja exclusivamente competente em conformidade com o acordo de vontade das partes, expresso segundo as condições de forma rigorosas aí mencionadas. A segurança jurídica pretendida por essa disposição podia facilmente ficar comprometida se se reconhecesse a uma parte contratante a possibilidade de se subtrair a essa regra através da alegação da nulidade de todo o contrato com base em razões que decorrem do direito material aplicável (8).

30.      Como o Tribunal de Justiça teve oportunidade de salientar, na medida em que permite derrogar as regras de competência enunciadas no Regulamento n.o 44/2001, os requisitos, tanto formais como substanciais, aos quais o artigo 23.o deste regulamento subordina a validade das cláusulas atributivas de jurisdição, devem ser interpretados de modo estrito (9). Em contrapartida, quando os requisitos de forma e de fundo previstos se encontram preenchidas, o pacto atributivo de jurisdição deve poder ser aplicado. Com efeito, a escolha do tribunal designado só pode ser apreciada à luz de considerações relacionadas com os requisitos estabelecidos pelo artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 (10).

31.      No que se refere ao requisito de fundo segundo o qual a atribuição de competência deve visar os «litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica», o mesmo tem por objetivo evitar que uma parte seja surpreendida pela atribuição, a um foro determinado, de todos os litígios que surjam nas relações havidas com a outra parte contratante e que encontram a sua origem em relações diferentes daquela por ocasião da qual a atribuição de jurisdição foi acordada (11).

32.      Na circunstância de a aplicação de uma cláusula de eleição do foro ser posta em causa à luz deste requisito de fundo, compete exclusivamente ao juiz perante o qual é invocada uma cláusula atributiva de jurisdição decidir se esta visa, ou não, a contestação objeto do litígio (12).

33.      Ainda que esse exame, que exige nomeadamente que o juiz do processo deva determinar se o litígio em questão era ou não razoavelmente previsível para as partes no momento em que consentiram na referida cláusula, tenha de ser efetuado caso a caso, em minha opinião devem ser tidas em conta várias linhas interpretativas.

34.      Em primeiro lugar, a primazia concedida à autonomia das partes, conforme foi expressa na cláusula atributiva de competência validamente convencionada, implica que o que é importante é a possibilidade de relacionar o litígio em causa — no caso vertente, uma ação de indemnização dos danos alegadamente sofridos em razão, em substância, de comportamentos anticoncorrenciais — com a relação jurídica determinada nessa cláusula, e isto independentemente da natureza extracontratual ou contratual desta, na aceção do Regulamento n.o 44/2001 e, a fortiori, na aceção das disposições nacionais aplicáveis.

35.      Desta forma, um litígio de natureza extracontratual mas nascido por ocasião da relação contratual é suscetível de estar abrangido pelo âmbito de aplicação da cláusula atributiva de jurisdição, uma vez que esse litígio tem origem nas relações contratuais por ocasião das quais esta cláusula foi acordada.

36.      A força vinculativa da cláusula implica, em seguida, que não é necessário que o órgão jurisdicional designado pela cláusula tenha qualquer conexão de «proximidade» com o litígio. Por outras palavras, o facto de a cláusula atributiva de jurisdição que designa um foro designado não apresentar qualquer conexão com as partes ou com a relação controvertida não pode obstar à sua aplicação (13).

37.      Além disso, o facto de a cláusula atributiva de jurisdição, como é o caso no processo principal, ter um caráter assimétrico ou unilateral, dado que apenas uma parte se compromete a recorrer a uma jurisdição específica enquanto a outra se reserva o direito de recorrer a outras jurisdições, não poderia, por si só, ser um elemento pertinente na apreciação da validade da referida cláusula à luz dos requisitos enunciados no artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 (14), na medida em que uma cláusula como essa responde, ainda assim, ao objetivo da certeza jurídica.

38.      Implica, por último, que o direito material aplicável ao fundo do litígio não tenha, em princípio, influência sobre a determinação da competência jurisdicional. Importa recordar que é precisamente essa indiferença das regras de direito material à luz do pacto atributivo de jurisdição que garante a solidez da segurança e certeza jurídicas (15).

39.      Voltarei a este assunto mais em pormenor quando abordar especificamente a questão de saber como deve ser entendida uma cláusula atributiva de jurisdição no âmbito de ações que tenham por objetivo assegurar a efetividade da proteção conferida aos particulares a respeito das violações do direito da concorrência.

 Quanto à primeira questão: aplicabilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor com base no artigo 102.o TFUE

40.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar se, de uma maneira geral, o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 permite aplicar uma cláusula de atribuição de competência quando a ação de indemnização é baseada numa alegada violação do artigo 102.o TFUE. Por outras palavras, coloca‑se a questão de saber se o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que existe um entrave de princípio à aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição a um litígio que se baseie na violação do artigo 102.o TFUE.

41.      No caso em apreço, todas as partes que intervieram parecem estar de acordo em que o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que permite — ou, pelo menos, não se opõe — a que um órgão jurisdicional nacional aplique uma cláusula atributiva de jurisdição numa tal situação.

42.      Não se pode deixar de concordar com esta conclusão.

43.      Na sequência das considerações precedentes, e salvo matérias especificamente previstas no Regulamento n.o 44/2001 (16), a eficácia de uma cláusula atributiva de jurisdição não pode depender do preenchimento de um requisito de fundo que não seja o requisito relativo ao objeto da cláusula, a qual deve incidir sobre uma «determinada relação jurídica».

44.      A indiferença das regras de direito material relativamente à validade de uma cláusula atributiva de jurisdição, que, recordo, constitui uma garantia importante de respeito pela autonomia da parte e pela certeza jurídica, vale nomeadamente para os casos em que é invocada uma violação do direito da concorrência no âmbito do litígio.

45.      Na ausência de uma disposição específica no Regulamento n.o 44/2001 que permitisse uma derrogação nesse caso à força vinculativa de uma cláusula atributiva de jurisdição, não pode ser invocado o princípio da execução eficaz do direito da concorrência para pôr em causa essa cláusula.

46.      Na verdade, o efeito útil dos artigos 101.o e 102.o TFUE pressupõe que qualquer pessoa possa pedir a reparação do prejuízo que lhe tenha sido causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou falsear o jogo da concorrência (17).

47.      Porém, e como o Tribunal de Justiça declarou no processo que deu origem ao Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/16, EU:C:2015:335) o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se não pode, sob pena de pôr em causa a finalidade do Regulamento n.o 44/2001, recusar tomar em consideração uma cláusula atributiva de jurisdição conforme com as exigências do artigo 23.o desse regulamento, apenas por considerar que o órgão jurisdicional designado por esta cláusula não assegura a plena eficácia do princípio da execução eficaz das regras da concorrência ao não permitir à vítima de comportamentos anticoncorrenciais de empresas, presumidos ou demonstrados, obter a reparação integral do prejuízo que sofreu. Pelo contrário, há que considerar que o sistema de meios processuais existente em cada Estado‑Membro, completado pelo mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, fornece aos sujeitos de direito uma garantia suficiente a este respeito (18).

48.      Em suma, a exigência de execução eficaz da proibição de abuso de posição dominante não se opõe, por si só, à liberdade das partes de derrogar, através de uma cláusula atributiva de jurisdição, os critérios de competência previstos no Regulamento n.o 44/2001.

49.      Tendo em conta todas estas considerações, propõe‑se que seja respondido à primeira questão que o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que não existe qualquer obstáculo de princípio à aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição no quadro de uma ação de indemnização autónoma, como a que está em causa no processo principal, intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor em razão de uma alegada infração ao artigo 102.o TFUE.

 Quanto à segunda questão: exigência de uma referência expressa aos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência

50.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 se opõe a uma cláusula atributiva de jurisdição que não se refere expressamente aos «diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência».

51.      Esta questão visa, em definitivo, determinar os pormenores que as cláusulas atributivas de jurisdição devem conter para serem aplicáveis no quadro de ações baseadas no direito da concorrência, neste caso de uma ação de reparação do prejuízo alegadamente causado por uma violação do artigo 102.o TFUE.

52.      A este respeito, recordo que, na medida em que o artigo 23.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 permite às partes derrogar as regras de competência estabelecidas por este tendo unicamente em vista a resolução dos «litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica», cabe a estas partes redigir a cláusula que melhor exprime a sua vontade.

53.      Com efeito, a questão de saber se essa cláusula abrange uma ou outra ação dependerá sempre da redação de tal cláusula e da eventual interpretação que será feita pelo juiz que for chamado a pronunciar‑se.

54.      Da mesma forma, não é possível responder em absoluto, isto é, sem uma referência à própria redação da cláusula atributiva de jurisdição precisamente em causa, se esta continua a ser aplicável por ocasião dos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência no caso de esta cláusula não referir expressamente tais diferendos. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional, ao qual compete exclusivamente a tarefa de determinar o exato alcance desta cláusula, apreciar se o diferendo relativo à responsabilidade do cocontratante decorrente de uma infração ao direito da concorrência surge de uma relação jurídica por ocasião da qual esta cláusula foi acordada.

55.      No que diz respeito à aplicabilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição no contexto de uma ação de indemnização do prejuízo sofrido devido a um comportamento anticoncorrencial, com efeito, não se pode excluir que esta se insere num contexto contratual e que, consequentemente, o juiz está obrigado a conhecê‑la, independentemente da referência expressa aos «diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência».

56.      Na minha opinião, seria desproporcionado exigir em todos os casos às partes no litígio que tivessem especificado claramente a natureza das ações que devam ser consideradas abrangidas pela cláusula atributiva de jurisdição, uma vez que essa cláusula está redigida em termos muito gerais de modo a incluir qualquer ação com uma ligação mais ou menos forte à relação contratual por ocasião da qual esta cláusula foi acordada.

57.      Através da adesão a um pacto atributivo de jurisdição, as partes procuram, no essencial, atribuir competência jurisdicional a um determinado foro para resolver todas as questões relativas à relação que estabeleceram, sem que estejam sempre em condições de antecipar e listar a natureza dos litígios suscetíveis de surgir entre elas. Se assim não fosse, a função e o alcance de tal cláusula ficariam significativamente comprometidos.

58.      Em minha opinião, esta conclusão surge no seguimento da solução adotada no processo que deu origem ao Acórdão CDC Hydrogen Peroxide (19), especialmente no seu n.o 69.

59.      Há que observar que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça, ao mesmo tempo que recordava que cabe apenas ao juiz nacional perante o qual é invocada uma cláusula atributiva de jurisdição determinar se os diferendos em causa são ou não abrangidos pelo seu âmbito de aplicação (n.o 67 do acórdão), desenvolveu, uma vez que se trata de cláusulas atributivas de jurisdição que visavam, de maneira geral, «todos os litígios resultantes ou em conexão com o contrato», algumas linhas interpretativas destinadas a guiar o juiz nacional (n.os 68 a 71).

60.      O Tribunal de Justiça indicou designadamente que uma cláusula que se refere, de modo abstrato, aos diferendos surgidos nas relações contratuais não abrange um diferendo relativo à responsabilidade extracontratual em que um cocontratante alegadamente incorreu em resultado de um comportamento conforme com um cartel ilícito. Em contrapartida, uma cláusula que faz referência «aos [diferendos] relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência» obriga o tribunal chamado a pronunciar‑se a declarar‑se incompetente (20).

61.      Todavia, se se atender às circunstâncias específicas do processo que deu origem a esse acórdão, parece‑me que esta última consideração deve ser contextualizada.

62.      Em primeiro lugar, verifica‑se que o diferendo em causa nesse processo dizia respeito a uma ação coletiva intentada pela empresa CDC tendo por objeto a cobrança, judicial ou extrajudicial, de créditos indemnizatórios. Esta ação tinha por fundamento a alegação de um cartel ilícito implementado por várias empresas estabelecidas em diferentes Estados‑Membros e que invocavam cláusulas atributivas de jurisdição constantes de alguns desses contratos de fornecimento que as vinculavam às empresas alegadamente vítimas do cartel constatado numa decisão da Comissão (21).

63.      A solução adotada pelo Tribunal de Justiça tinha naquele contexto a vantagem de evitar a fragmentação do contencioso indemnizatório entre vários foros/jurisdições que teria resultado de uma interpretação extensiva do âmbito de aplicação das cláusulas atributivas de jurisdição contidas em contratos alheios, em meu entender, ao cartel ilícito acordado entre uma das partes nesses contratos e terceiros. Com efeito, a ação de indemnização intentada pela CDC contra as demandadas no processo principal visava empresas que estavam estabelecidas em cinco Estados‑Membros diferentes da República Federal da Alemanha.

64.      Em segundo lugar e principalmente, o cartel em causa era por natureza secreto e, portanto, alheio aos contratos de fornecimento por ocasião dos quais as cláusulas atributivas de jurisdição controvertidas tinham sido acordadas. Neste contexto, o objetivo de certeza jurídica que justifica a oponibilidade das cláusulas atributivas de jurisdição — e o seu corolário, que será aquele em que uma parte não deve ser «surpreendida» pela atribuição a um foro que tem a sua origem em relações jurídicas diferentes daquelas por ocasião das quais a cláusula foi acordada (v. n.o 68 do Acórdão CDC) — militava a favor de um afastamento da cláusula atributiva controvertida.

65.      Em minha opinião, a exigência de uma referência expressa aos «diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência» só é relevante para os litígios que, obviamente, não têm a sua origem na relação jurídica por ocasião da qual o pacto atributivo de jurisdição foi celebrado.

66.      As indicações dadas pelo Tribunal de Justiça devem assim ser vistas como destinadas a recordar que os diferendos em causa devem efetivamente ter a sua origem nas relações contratuais entre as partes no contrato em causa (v. designadamente, n.o 70 do mesmo acórdão). Em contrapartida, a solução adotada pelo Tribunal de Justiça não pode, na minha opinião, ser interpretada no sentido de exigir que uma cláusula atributiva de jurisdição enuncie pormenorizadamente todos os diferendos de natureza extracontratual suscetíveis de ocorrer entre as partes.

67.      A este respeito, não se pode, por exemplo, excluir que certos comportamentos alegadamente constitutivos de um cartel ou de um abuso de posição dominante, como os que se podem desenvolver no âmbito de um sistema de distribuição seletiva, possam apresentar uma relação com o contrato de distribuição e, por conseguinte, estar abrangidos pela cláusula atributiva de jurisdição inserida nesse contrato, a qual foi redigida em termos gerais sem especificação expressa das ações possíveis por violação das disposições aplicáveis em matéria de concorrência.

68.      Uma vez que, como parece ser o caso no processo principal, o comportamento alegado está relacionado com as condições tarifárias ou com as condições de abastecimento impostas de forma discriminatória, não se pode excluir que o litígio tenha origem na relação jurídica entre o fornecedor e o seu distribuidor. Por conseguinte, o juiz nacional, numa ação baseada na violação das regras de concorrência, deve poder considerar que os factos invocados são relativos à relação contratual por ocasião da qual uma cláusula atributiva de jurisdição, ainda que redigida em termos gerais, foi acordada.

69.      Impõe‑se um esclarecimento importante. Não está aqui em causa aplicar de forma diferente o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 — e mais precisamente de apreender, de forma diferente, a aplicabilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição nos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência — consoante seja posta em causa uma violação da proibição dos acordos, decisões e práticas concertadas (artigo 101.o TFUE) ou um abuso de posição dominante (artigo 102.o TFUE).

70.      Do ponto de vista processual e da competência jurisdicional, não há nenhuma razão de princípio para tratar estas infrações de forma diferenciada. A este respeito, não subscrevo a ideia segundo a qual os acordos, decisões e práticas concertadas proibidos pelo artigo 101.o TFUE produzem sempre efeitos prejudiciais fora de qualquer relação contratual, enquanto os comportamentos que constituem abuso de posição dominante, proibidos pelo artigo 102.o TFUE, têm necessariamente a sua origem no contrato convencionado entre a vítima do alegado comportamento e o autor de tal abuso.

71.      Há que determinar em cada caso, e portanto independentemente do fundamento jurídico da ação, se o comportamento na origem do diferendo está relacionado com a relação contratual por ocasião da qual a cláusula atributiva de jurisdição foi acordada.

72.      Na medida em que o litígio tenha origem nessa relação, é suscetível de estar abrangido pelo âmbito de aplicação da cláusula atributiva de jurisdição redigida em termos gerais sem menção expressa dos eventuais fundamentos das ações a intentar.

73.      Assim, uma ação de indemnização que tenha por base uma alegada violação do artigo 102.o TFUE poderá beneficiar de uma prorrogação convencional de competência, desde que tenha a sua origem no contrato, sem que seja necessário que essa ação seja expressamente mencionada na cláusula controvertida.

74.      É esta a posição que parece ter sido precisamente adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 16 de fevereiro de 2016, Interlog e Taboada c. Apple. Com efeito, esse órgão jurisdicional considerou que o pedido que lhe foi submetido, apesar de visar uma conduta anticoncorrencial, dizia respeito a «uma discrasia comportamental referente ao equilíbrio (ou programa) contratual que fora estabelecido no contrato [controvertido]». O referido órgão jurisdicional concluiu daí que o litígio que lhe foi submetido tinha efetivamente a sua origem na relação jurídica em cujo âmbito a cláusula tinha sido acordada. Daí resultava que essa cláusula era plenamente aplicável aos factos do caso vertente.

75.      De igual modo, pode considerar‑se que um pedido de indemnização que, desta vez, tem por fundamento o artigo 101.o TFUE pode, em determinadas circunstâncias, ter a sua origem na relação jurídica por ocasião da qual esta cláusula foi acordada. Pode ser esse o caso de uma ação destinada a pôr em causa, com fundamento nessa mesma disposição, os comportamentos de um fornecedor, chefe de uma rede de distribuição seletiva ou exclusiva, em relação aos seus distribuidores.

76.      Em conclusão, a questão de saber se uma cláusula atributiva de jurisdição é ou não aplicável no caso de não se referir expressamente aos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência dependerá da apreciação que vier a ser feita, à luz da redação daquela cláusula e da vontade das partes, pelo juiz nacional perante quem a cláusula é invocada.

77.      Se se demonstrar que as partes, que não puderam prever a possibilidade de um determinado diferendo, não tiveram a intenção de o incluir no âmbito de uma cláusula atributiva de jurisdição formulada de modo abstrato, esta não lhes pode ser oponível nesse litígio. É esse, designadamente, o caso no que se refere a um litígio relativo à responsabilização de uma dessas partes devido à sua participação num acordo, decisão ou prática concertada com empresas terceiras externas à relação contratual.

78.      Em contrapartida, quando o litígio, embora baseado numa violação do direito da concorrência, se refere ao quadro contratual, pois visa nomeadamente as condições em que as partes convencionaram contratar, é suscetível de integrar o âmbito de aplicação da cláusula atributiva de jurisdição. Tal pode ser o caso, por exemplo, das ações baseadas no artigo 102.o TFUE que põem em causa as condições tarifárias e de abastecimento convencionadas num contrato de distribuição que contenha uma cláusula atributiva de jurisdição.

79.      Atendendo a todas estas considerações, entendo que há que responder à segunda questão que o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz nacional chamado a conhecer de uma ação de indemnização baseada no artigo 102.o TFUE a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição, uma vez que o litígio tem origem na relação jurídica por ocasião da qual esta cláusula foi acordada. Cabe, portanto, ao juiz nacional determinar em cada caso se o diferendo em causa é suscetível de estar abrangido por essa cláusula, mesmo que redigida em termos gerais, no âmbito de diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência.

 Quanto à terceira questão: exigência de uma declaração prévia por uma autoridade da concorrência de uma infração ao direito da concorrência para efeitos da aplicabilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição

80.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o facto de uma violação do direito da concorrência não ter sido previamente declarada por uma autoridade da concorrência nacional ou europeia permite afastar a cláusula atributiva de jurisdição.

81.      Por outras palavras, coloca‑se a questão de saber, mesmo não havendo nenhuma indicação nesse sentido no Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335), se a circunstância de a ação de responsabilidade civil em causa por violação do direito da concorrência ser autónoma (ação dita «stand‑alone», que se distingue de uma ação «follow‑on» como a que estava em causa no processo que deu origem a este acórdão), é ou não suscetível de justificar a exclusão da cláusula atributiva de jurisdição.

82.      Proponho, na sequência das considerações acima expostas, uma resposta negativa a esta questão.

83.      Em minha opinião, a natureza da ação de indemnização («follow‑on» ou «stand‑alone») que o juiz é chamado a decidir não é um parâmetro relevante na avaliação da aplicabilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição. Com efeito, a ausência ou a presença de uma declaração prévia por uma autoridade da concorrência de uma infração às regras da concorrência é uma consideração totalmente alheia às que devem prevalecer para concluir pela aplicação — ou, pelo contrário, pela exclusão — de uma cláusula atributiva de jurisdição a um determinado diferendo e, em especial, a uma ação destinada à reparação de danos alegadamente sofridos em consequência de uma violação das regras da concorrência.

84.      Importa relembrar que, como recordam os considerandos 3, 12 e 13 da Diretiva 2014/104/UE (22), os artigos 101.o e 102.o TFUE produzem efeitos diretos nas relações entre particulares e criam, para as pessoas em causa, direitos e obrigações que os tribunais nacionais devem tutelar. Desta forma, qualquer pessoa que se considere lesada por uma infração às regras da concorrência pode pedir reparação pelos danos sofridos, independentemente de tal infração ser previamente declarada por uma autoridade da concorrência (23).

85.      Além disso, é pacífico que, diferentemente dos litígios que têm por objeto as sanções impostas por uma autoridade administrativa no exercício dos poderes regulamentares, que estão abrangidas pela «matéria administrativa», uma ação que tem por objeto a reparação do prejuízo resultante de alegadas violações do direito da concorrência é de natureza civil e comercial na aceção do Regulamento n.o 44/2001 e integra‑se, portanto, no seu âmbito de aplicação (24).

86.      Ora, o artigo 23.o, n.o 1, deste regulamento permite às partes derrogar não só a competência geral, mas também as competências especiais nele previstas mediante a celebração de um acordo de eleição do foro. O órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se pode, portanto, em princípio, estar vinculado por uma cláusula atributiva de jurisdição que derroga as competências geral e especial previstas por este regulamento (25).

87.      Da mesma forma que essa possibilidade não pode ser posta em causa pelo direito material aplicável ao fundo do litígio (26), não pode depender da circunstância de a ação em discussão se destinar a punir as infrações ao direito da concorrência da União que tenham sido previamente declaradas pelas autoridades competentes. Com efeito, importa recordar que é a autonomia da vontade das partes que justifica o primado concedido à escolha de uma jurisdição diferente daquela que teria sido eventualmente competente por força do Regulamento n.o 44/2001 (27).

88.      Por último, parece‑me que uma distinção, no âmbito da determinação da aplicabilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição a um litígio, entre as ações «stand‑alone» e «follow‑on» feriria frontalmente o objetivo de certeza jurídica prosseguido pelo artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001, no sentido de que tal aplicação se tornaria função da declaração posterior de uma infração por uma autoridade da concorrência. Da mesma forma que esta declaração não deve constituir uma condição para poder afastar uma cláusula atributiva de jurisdição, não se pode limitar a salientar que o litígio em causa diz respeito a uma ação autónoma («stand‑alone») para evitar pôr em causa essa cláusula, independentemente de um exame concreto da mesma e da relação jurídica por ocasião da qual esta cláusula foi acordada.

89.      Por conseguinte, proponho que se responda à terceira questão que o artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a falta de declaração prévia de uma infração ao direito da concorrência com base no artigo 102.o TFUE não permite, por si só, aplicar ou, pelo contrário, afastar uma cláusula atributiva de jurisdição numa ação de indemnização com base nas regras da concorrência.

 Conclusão

90.      Tendo em consideração os desenvolvimentos que precedem, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) nos termos seguintes:

1)      O artigo 23.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que não existe qualquer obstáculo de princípio à aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição no quadro de uma ação de indemnização autónoma, como a que está em causa no processo principal, intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor em razão de uma alegada infração ao artigo 102.o TFUE.

2)      O artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz nacional chamado a conhecer de uma ação de indemnização baseada no artigo 102.o TFUE a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição, uma vez que o litígio tem origem na relação jurídica por ocasião da qual esta cláusula foi acordada. Cabe, portanto, ao juiz nacional determinar em cada caso se o diferendo em causa é suscetível de estar abrangido por essa cláusula, mesmo que redigida em termos gerais, no âmbito de diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência.

3)      O artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a falta de declaração prévia de uma infração ao direito da concorrência com base no artigo 102.o TFUE não permite, por si só, aplicar ou, pelo contrário, afastar uma cláusula atributiva de jurisdição numa ação de indemnização com base nas regras da concorrência.


1      Língua original: francês.


2      Regulamento do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1)


3      As partes no processo principal não estão de acordo quanto à tradução francesa da passagem em sublinhado, traduzindo quer por «et la rélation correspondante» («e a relação correspondente») (tradução da recorrente) quer por «et les rélations en découlant» («e as relações dele decorrentes») (tradução da recorrida). Apesar desta diferença, a cláusula pode ser traduzida em língua francesa do seguinte modo: «Le présent contrat et la relation correspondante (traduction de la requérante)/et les relations en découlant (traduction de la défenderesse) entre les parties seront régis par et interprétés conformément au droit de l’Irlande et les parties se soumettent à la compétence des tribunaux de l’Irlande. Apple se réserve le droit d’engager des poursuites à l’encontre du revendeur devant les tribunaux dans le ressort duquel est situé le siège du revendeur ou dans tout pays dans lequel Apple subit un préjudice.» [«O presente contrato e a relação correspondente (tradução da recorrente)/e as relações dele decorrentes (tradução da recorrida) entre as partes regular‑se‑ão pelo e interpretados em conformidade com o direito da República da Irlanda e as partes devem aceitar a competência dos tribunais da República da Irlanda. A Apple reserva‑se o direito de dar início a um processo contra o Revendedor nos tribunais em cuja área de jurisdição se situa a sede do Revendedor ou em qualquer país em que a Apple tenha sofrido um prejuízo.»]


4      Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que a recorrente — que, ao aderir ao programa «Apple premium Reseller» se tornou um distribuidor quase exclusivo de produtos Apple — invocava, nomeadamente, práticas discriminatórias em comparação com as práticas seguidas nas Apple Stores, tanto no que respeita ao abastecimento de produtos da Apple como às tarifas aplicadas.


5      Verifica‑se, com efeito, que as partes no processo principal não estão de acordo quanto à interpretação e ao alcance exato desse acórdão. Nas suas observações escritas, a eBizcuss indicou, assim, que, embora as soluções do caso em apreço nos acórdãos proferidos pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação) e pelo Supremo Tribunal de Justiça sejam diferentes, não existe, em contrapartida, divergência na interpretação do artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001. Esta sociedade salienta nomeadamente que os tribunais portugueses declararam aplicável ao caso concreto a cláusula atributiva de jurisdição controvertida após terem apreciado soberanamente que os factos do litígio diziam respeito a «violações de um programa contratual e/ou indemnizações que venham a ser requestadas por resolução do mencionado contrato», e não «à responsabilidade decorrente de uma violação do direito da concorrência».


6      Há que recordar que, na medida em que o Regulamento n.o 44/2001 substitui, nas relações entre os Estados‑Membros, a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa Convenção (JO 1972, L 299, p. 32, a seguir «Convenção de Bruxelas»), a interpretação das disposições desta Convenção feita pelo Tribunal de Justiça é igualmente válida para as desse regulamento, quando as disposições destes instrumentos possam ser qualificadas de equivalentes, o que é o caso no que diz respeito ao artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001, que sucedeu ao artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas (v., designadamente, Acórdão de 28 de junho de 2017, Leventis e Vafeias, C‑436/16, EU:C:2017:497, n.o 31).


7      V. Acórdão de 3 de julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337, n.o 26 e jurisprudência referida).


8      Acórdão de 3 de julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337, n.o 29).


9      V. designadamente, por analogia, Acórdãos de 14 de dezembro de 1976, Estasis Saloti di Colzani (24/76, EU:C:1976:177, n.os 6 e 7), e de 28 de junho de 2017, Leventis e Vafeias (C‑436/16, EU:C:2017:497, n.o 39).


10      V., por analogia, no que respeita à interpretação do artigo 17.o da Convenção de Bruxelas, Acórdão de 16 de março de 1999, Castelletti (C‑159/97, EU:C:1999:142, n.o 49).


11      V., designadamente, Acórdãos de 10 de março de 1992, Powell Duffryn (C‑214/89, EU:C:1992:115, n.o 31), e de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335, n.o 68).


12      V., neste sentido, Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335, n.o 67 e jurisprudência referida).


13      V. Acórdão de 16 de março de 1999, Castelletti (C‑159/97, EU:C:1999:142, n.os 46 e segs. e jurisprudência aí referida), em que se recorda que o artigo 17.o da Convenção de Bruxelas, equivalente ao artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001, abstrai de qualquer elemento objetivo de conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado. V., por analogia, sempre a respeito da interpretação do artigo 17.o da Convenção de Bruxelas, Acórdão de 24 de junho de 1981, Elefanten Schuh (150/80, EU:C:1981:148, n.o 27), nos termos do qual a legislação de um Estado contratante não pode obstar à validade de uma cláusula atributiva de jurisdição pela única razão de a língua utilizada pelas partes não ser a imposta por essa legislação.


14      A este respeito, a redação do artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001 contrasta com a do artigo 17.o da Convenção de Bruxelas, que previa expressamente que «[s]e um pacto atributivo de jurisdição tiver sido concluído a favor apenas de uma das partes, esta mantém o direito de recorrer a qualquer outro tribunal que seja competente por força da presente Convenção». Distingue‑se igualmente do artigo 25.o do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1), aplicável às ações judiciais intentadas a partir de 10 de janeiro de 2015. Nos termos desta última disposição, a competência dos órgãos jurisdicionais designados por uma cláusula atributiva de jurisdição é exclusiva «a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado‑Membro, substantivamente nulo».


15      V. Acórdão de 3 de julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337, n.os 27 e 29).


16      Trata‑se dos casos de competência exclusiva que no Regulamento n.o 44/2001 se referem, por um lado, aos litígios relativos aos contratos de seguros (secção 3), aos contratos celebrados com os consumidores (secção 4) e aos contratos individuais de trabalho e, por outro lado, às matérias enunciadas no artigo 22.o deste regulamento.


17      V. Acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 60 e jurisprudência referida).


18      V., neste sentido, Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335, n.o 63).


19      Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335).


20      Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335, n.os 69 e 71).


21      No caso em apreço, a Decisão 2006/903/CE da Comissão, de 3 de maio de 2006, relativa a um processo de aplicação do artigo [81.o CE] e do artigo 53.o do Acordo EEE contra a Akzo Nobel NV, a Akzo Nobel Chemicals Holding AB, a EKA Chemicals AB, a Degussa AG, a Edison SpA, a FMC Corporation, a FMC Foret SA, a Kemira OYJ, a L’Air Liquide SA, a Chemoxal SA, a Snia SpA, a Caffaro Srl, a Solvay SA/NV, a Solvay Solexis SpA, a Total SA, a Elf Aquitaine SA e a Arkema SA (Processo COMP/F/C.38.620 — Peróxido de hidrogénio e perborato) (JO 2006, L 353, p. 54).


22      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014, L 349, p. 1).


23      V., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2011, Pfleiderer (C‑360/09, EU:C:2011:389, n.os 28 e 29 e jurisprudência referida).


24      V. Acórdão de 28 de julho de 2016, Siemens Aktiengesellschaft Österreich (C‑102/15, EU:C:2016:607, n.o 34 e jurisprudência referida).


25      V. Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335, n.os 59 e 61, e jurisprudência referida).


26      V. Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide (C‑352/13, EU:C:2015:335, n.os 62 e 63, e jurisprudência referida).


27      V. Acórdãos de 7 de julho de 2016, Hőszig, C‑222/15, EU:C:2016:525, n.o 44 e jurisprudência referida), e de 28 de junho de 2017, Leventis e Vafeias (C‑436/16, EU:C:2017:497, n.o 33 e jurisprudência referida).