Language of document : ECLI:EU:C:2024:55

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

18 de janeiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Restrições — Aquisições de terras agrícolas num Estado‑Membro — Obrigação de o adquirente ter a qualidade de residente há mais de cinco anos»

No processo C‑562/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Rayonen sad Burgas (Tribunal de Primeira Instância de Burgas, Bulgária), por Decisão de 15 de agosto de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de agosto de 2022, no processo

JD

contra

OB,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Piçarra, presidente de secção, M. Safjan (relator) e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Mataija, G. von Rintelen e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 18.o, 49.o, 63.o e 345.o TFUE, bem como do artigo 45.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe JD, nacional austríaco, a OB, nacional búlgaro, a respeito de um pedido destinado a obter a declaração de nulidade de contratos, tendo em conta o seu caráter pretensamente fictício, relativos à aquisição de terras agrícolas na Bulgária.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo [63.o TFUE] (JO 1988, L 178, p. 5), dispõe:

«Os Estados‑Membros suprimirão as restrições aos movimentos de capitais efetuados entre pessoas residentes nos Estados‑Membros, sem prejuízo das disposições seguintes. A fim de facilitar a aplicação da presente diretiva, os movimentos de capitais são classificados de acordo com a nomenclatura estabelecida no Anexo I.»

4        Como resulta do seu ponto II, A, a nomenclatura estabelecida no Anexo I da Diretiva 88/361 prevê que os movimentos de capitais a que esta última diz respeito incluem os «Investimentos imobiliários efetuados no território nacional por não residentes».

5        A parte desta nomenclatura sob a epígrafe «Notas explicativas» tem a seguinte redação:

«Na aceção da presente nomenclatura, e apenas para efeito da diretiva, entende‑se por:

[…]

Investimentos imobiliários

As aquisições de propriedades construídas e não construídas bem como a construção de edifícios por pessoas privadas com fins lucrativos ou pessoais. Esta categoria compreende igualmente os direitos de usufruto, as servidões prediais e os direitos de superfície.

[…]»

 Direito búlgaro

6        O artigo 3c da zakon za sobstvenostta i polzvaneto na zemedelskite zemi (Lei sobre a Propriedade e a Utilização de Terras Agrícolas), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «ZSPZZ»), prevê:

«(1)      Podem adquirir um direito de propriedade sobre terras agrícolas as pessoas singulares ou coletivas que residam ou estejam estabelecidas na Bulgária há mais de cinco anos.

(2)      As pessoas coletivas registadas nos termos do direito búlgaro há menos de cinco anos podem adquirir um direito de propriedade sobre terras agrícolas se os sócios da sociedade, os membros da associação ou os fundadores da sociedade anónima cumprirem as exigências do n.o 1.

[…]

(4)      O n.o 1 não se aplica à aquisição de um direito de propriedade sobre terras agrícolas por sucessão legal.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

7        Durante os anos de 2004 e 2005, EF, de nacionalidade búlgara, pai e de cujus do demandado no processo principal, OB, propôs a JD, nacional austríaco, adquirir, juntamente com outras pessoas, uma parte indivisa em três parcelas de terras agrícolas distintas situadas na Bulgária (a seguir «terras agrícolas em causa»).

8        JD deu seguimento a esta proposta pagando a quantia de 51 000 euros pela aquisição das partes indivisas nas terras agrícolas em causa e a quantia de 9 000 euros a título de despesas de transação. No âmbito desta operação, EF informou JD de que, devido à proibição, então aplicável em direito búlgaro aos estrangeiros, de adquirirem direitos de propriedade sobre terras agrícolas situadas na Bulgária, os atos notariais relativos à aquisição das terras agrícolas em causa deviam mencionar o nome de EF na qualidade de adquirente no que respeita às partes indivisas de JD, precisando‑se que este último seria o seu verdadeiro adquirente. EF também indicou que essas partes indivisas seriam oficialmente cedidas a JD por ato notarial posteriormente à revogação dessa proibição no direito búlgaro.

9        A venda das terras agrícolas em causa aos diferentes titulares do bem indiviso foi objeto de três contratos celebrados por atos notariais durante os anos de 2004 e 2005, que mencionavam o nome de EF como adquirente das partes indivisas que deviam caber a JD.

10      Durante o ano de 2006, EF apresentou, para cada uma das terras agrícolas em causa, três declarações sob juramento perante notário, nas quais indicava que JD era o proprietário verdadeiro dessas partes indivisas.

11      Em 3 de abril de 2021, EF faleceu, deixando como único herdeiro o seu filho, OB.

12      A ação intentada por JD no Rayonen sad Burgas (Tribunal Regional de Burgas, Bulgária), que é o órgão jurisdicional de reenvio, destina‑se a obter a declaração, por um lado, de que é o verdadeiro proprietário das referidas partes indivisas e, por outro, a nulidade dos três contratos de venda das terras agrícolas em causa. A este respeito, JD alega que esses contratos são fictícios, uma vez que ele deve ser considerado o verdadeiro proprietário, nos termos das declarações prestadas sob juramento por EF, que agiu apenas na qualidade de testa de ferro.

13      OB alega que as declarações invocadas por JD não eram de molde a demonstrar a qualidade de testa de ferro do seu pai, uma vez que não eram assinadas pelas duas partes, a saber, por JD e EF.

14      O órgão jurisdicional de reenvio indica que, em conformidade com a legislação búlgara atualmente em vigor, mais precisamente o artigo 3c da ZSPZZ, apenas as pessoas singulares e coletivas que residam ou estejam estabelecidas na Bulgária há mais de cinco anos podem adquirir um direito de propriedade sobre terras agrícolas situadas no território deste Estado‑Membro.

15      Precisa que se deve pronunciar no presente processo sobre a questão de saber se os três contratos de venda celebrados por EF são fictícios e, em caso afirmativo, se a convenção dissimulada por esses três contratos deve produzir os seus efeitos. Para tal, ser‑lhe‑ia necessário, em conformidade com a regulamentação nacional atualmente em vigor, verificar se as condições de validade da convenção dissimulada estão preenchidas, sendo uma dessas condições a de que o comprador tenha o direito de adquirir terras agrícolas na Bulgária. Ora, JD não cumpre esta condição, uma vez que não preenche a condição de residência imposta pelo artigo 3c da ZSPZZ.

16      Neste mesmo contexto, colocar‑se‑ia a questão de saber se o artigo 3c da ZSPZZ viola o direito da União uma vez que constitui uma restrição, designadamente, à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de capitais consagradas, respetivamente, nos artigos 49.o e 63.o TFUE. A resposta a esta questão é tanto mais pertinente quanto a Comissão Europeia instaurou um processo por infração em relação à República da Bulgária e que tem designadamente por objeto esta disposição de direito búlgaro.

17      Nessas condições, o Rayonen Sad Burgas (Tribunal de Primeira Instância de Burgas), decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Com fundamento no artigo 19.o, n.o 3, alínea b), TUE e no artigo 267.o, primeiro parágrafo, alínea b), e terceiro parágrafo, TFUE, a legislação da República da Bulgária, como Estado‑Membro [da União Europeia], em causa no processo principal, segundo a qual a aquisição da propriedade de terras agrícolas na Bulgária está sujeita a uma condição de residência durante cinco anos no território desse Estado‑Membro, constitui uma restrição contrária aos artigos 18.o, 49.o, 63.o e 345.o TFUE?

2.      Em concreto, a referida condição para a aquisição de propriedade constitui uma medida desproporcionada que, em substância, viola a proibição de discriminação consagrada no artigo 18.o TFUE e os princípios da livre circulação de capitais e da liberdade de estabelecimento na União consagrados nos artigos 49.o e 63.o TFUE e no artigo 45.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?»

 Quanto às questões prejudiciais

18      Com as suas questões, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 18.o, 49.o, 63.o e 345.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação de um Estado‑Membro por força da qual a aquisição de um direito de propriedade sobre terras agrícolas situadas no seu território está sujeita à condição de o adquirente ter a qualidade de residente há mais de cinco anos.

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

19      Como resulta de jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o direito da União no que se refere à sua aplicação num novo Estado‑Membro a partir da data da adesão deste último à União (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 39 e jurisprudência referida).

20      No caso em apreço, há que salientar que os contratos de compra e venda relativos às terras agrícolas em causa foram celebrados ao longo dos anos de 2004 e 2005, ou seja, antes da adesão da República da Bulgária à União, que teve lugar em 1 de janeiro de 2007. São igualmente anteriores a esta adesão as declarações sob juramento prestadas por EF durante o ano de 2006.

21      No entanto, resulta do pedido de decisão prejudicial que, devido às exigências da regulamentação búlgara, o órgão jurisdicional de reenvio poderia ser levado a apreciar a validade da convenção dissimulada à luz da legislação nacional em vigor à data em que é chamado a pronunciar‑se. No caso em apreço, o órgão jurisdicional deveria a aplicar o artigo 3c da ZSPZZ, adotado durante o ano de 2014. Em tal situação, os direitos de propriedade de JD poderiam, portanto, ser reconhecidos por uma norma jurídica introduzida posteriormente à adesão da República da Bulgária à União.

22      Por outro lado, decorre da decisão de reenvio que apenas a aplicação da regulamentação nacional atualmente em vigor é suscetível de conferir um direito de propriedade a JD, uma vez que a regulamentação búlgara anterior à adoção desse artigo 3c proibia qualquer pessoa singular ou coletiva estrangeira de adquirir um direito de propriedade sobre terras agrícolas búlgaras.

23      Decorre do exposto que a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio tem por objeto a compatibilidade com o direito da União de uma regulamentação nacional, adotada por um Estado‑Membro depois da data da sua adesão à União, suscetível de produzir efeitos jurídicos sobre contratos de compra e venda e declarações emitidas antes dessa data.

24      Nestas condições, o Tribunal de Justiça é competente para responder às questões submetidas no presente processo.

 Quanto ao mérito

 Quanto à aplicabilidade do artigo 49.o TFUE, relativo à liberdade de estabelecimento, e/ou do artigo 63.o TFUE, relativo à livre circulação de capitais, ao litígio no processo principal

25      A título preliminar, importa recordar que o artigo 18.o TFUE, evocado pelo órgão jurisdicional de reenvio nas suas questões prejudiciais, está vocacionado para ser aplicado de modo autónomo apenas em situações regidas pelo direito da União para as quais o Tratado FUE não prevê regras específicas de não discriminação. Ora, este Tratado prevê tal regra específica no artigo 49.o TFUE no domínio da liberdade de estabelecimento e no artigo 63.o TFUE no domínio abrangido pela livre circulação de capitais, pelo que não há que examinar a regulamentação nacional em causa no processo principal à luz do artigo 18.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de fevereiro de 2014, Hervis Sport és Divatkereskedelmi, C‑385/12, EU:C:2014:47, n.os 25 e 26, e de 30 de abril de 2020, Société Générale, C‑565/18, EU:C:2020:318, n.o 16).

26      Além disso, no que respeita ao artigo 345.o TFUE, ao qual também se refere o órgão jurisdicional de reenvio nas suas questões prejudiciais, este artigo exprime o princípio da neutralidade dos Tratados relativamente ao regime de propriedade nos Estados‑Membros. Todavia, este artigo não tem por efeito subtrair os regimes de propriedade existentes nos Estados‑Membros às regras fundamentais do Tratado FUE. Assim, embora o referido artigo não ponha em causa a faculdade de os Estados‑Membros instituírem um regime de aquisição da propriedade fundiária que preveja medidas específicas aplicáveis às transações relativas a terrenos agrícolas, esse regime não escapa, nomeadamente, à regra da não discriminação nem às regras relativas à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 51 e jurisprudência referida).

27      Feitas estas precisões, as questões prejudiciais referem‑se tanto à liberdade de estabelecimento, consagrada no artigo 49.o TFUE, como à livre circulação de capitais, garantida no artigo 63.o TFUE. Importa, por conseguinte, determinar a liberdade em causa no litígio no processo principal, tomando em consideração, para tal, o objeto da regulamentação nacional em causa nesse litígio (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.os 52 e 53 e jurisprudência referida).

28      No caso em apreço, a regulamentação nacional em causa no processo principal, a saber, o artigo 3c da ZSPZZ, tem por objeto regular, limitando‑o, o direito de as pessoas singulares e coletivas não residentes adquirirem terras agrícolas situadas no território búlgaro. Ora, importa recordar que, quando o direito de adquirir, de explorar e de alienar bens imóveis no território de outro Estado‑Membro, é exercido, enquanto complemento do direito de estabelecimento, gera movimentos de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 54 e jurisprudência referida).

29      Assim, embora, no caso em apreço, o artigo 3c da ZSPZZ seja, a priori, suscetível de ser abrangido pelas duas liberdades fundamentais evocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é menos verdade que, no contexto que caracteriza o processo principal, as eventuais restrições à liberdade de estabelecimento resultantes desta regulamentação nacional constituem uma consequência inevitável da restrição à livre circulação de capitais e não justificam, por conseguinte, um exame autónomo desta à luz do artigo 49.o TFUE (v., por analogia, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 55 e jurisprudência referida).

30      Com efeito, os movimentos de capitais incluem, nomeadamente, as operações através das quais os não residentes efetuam investimentos imobiliários no território de um Estado‑Membro, como resulta da nomenclatura dos movimentos de capitais que figura no anexo I da Diretiva 88/361, conservando essa nomenclatura o valor indicativo que já tinha para definir o conceito de movimentos de capitais (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 56 e jurisprudência referida).

31      Ora, estão abrangidos por este conceito, nomeadamente, os investimentos imobiliários que tenham por objeto a aquisição de direitos de propriedade sobre terras agrícolas, como comprova, especialmente, a precisão, contida nas notas explicativas da referida nomenclatura, segundo a qual a categoria dos investimentos imobiliários abrangidos por esta última inclui «as aquisições de propriedades construídas e não construídas».

32      No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que o litígio no processo principal tem por objeto a questão da aquisição por um não residente, a saber, um nacional austríaco, de direitos de propriedade sobre terras agrícolas situadas no território da República da Bulgária.

33      Uma vez que esta situação é abrangida pela livre circulação de capitais, na aceção do artigo 63.o TFUE, há que examinar a regulamentação nacional em causa no processo principal exclusivamente à luz desta liberdade.

 Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

34      Segundo jurisprudência constante, o artigo 63.o, n.o 1, TFUE proíbe, de um modo geral, os entraves aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros. As medidas proibidas por esta disposição, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes desse Estado‑Membro de investir noutros Estados [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos pagos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.o 26 e jurisprudência referida].

35      Ora, não se pode deixar de observar que, pelo seu próprio objeto, a condição de residência prevista no artigo 3c da ZSPZZ constitui um entrave à livre circulação de capitais (v., por analogia, Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 25). Esta regulamentação nacional é, por outro lado, suscetível de dissuadir os não residentes de fazerem investimentos na Bulgária [v., por analogia, Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), C‑235/17, EU:C:2019:432, n.o 58 e jurisprudência referida].

36      Assim, a referida regulamentação nacional estabelece uma restrição à livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.o TFUE.

 Quanto à justificação da restrição à livre circulação de capitais

37      Como decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma medida como a regulamentação nacional em causa no processo principal, que restringe a livre circulação de capitais, só pode ser admitida na condição de ser justificada por razões imperiosas de interesse geral e de respeitar o princípio da proporcionalidade, o que exige que seja adequada para garantir a realização do objetivo legítimo que essa medida prossegue e que não vá além do que é necessário para o alcançar [v., neste sentido, Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), C‑235/17, EU:C:2019:432, n.o 59 e jurisprudência referida].

38      Importa também recordar, a este respeito, que uma regulamentação nacional só está apta a garantir a realização do objetivo invocado se responder verdadeiramente ao propósito de o alcançar de uma maneira coerente e sistemática [v., neste sentido, Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), C‑235/17, EU:C:2019:432, n.o 61 e jurisprudência referida].

39      No caso em apreço, no que respeita aos objetivos prosseguidos pelo artigo 3c da ZSPZZ, o pedido de decisão prejudicial não contém indicações precisas a este respeito. Na sequência de um pedido de informações dirigido pelo Tribunal de Justiça ao órgão jurisdicional de reenvio, este último indicou que esta disposição nacional visa, ao introduzir restrições aos investimentos imobiliários nas terras agrícolas búlgaras, que essas terras agrícolas continuem a ser exploradas em conformidade com a sua afetação. O referido órgão jurisdicional precisou que as operações especulativas relativas a tais terras agrícolas e a venda destas a investidores estrangeiros com vista à sua exploração para outros fins teriam levado a uma redução significativa das terras aráveis, bem como a um desaparecimento correlativo dos grandes e dos pequenos produtores agrícolas búlgaros.

40      A este respeito, há que salientar que, embora esses objetivos apresentem, em si mesmos, um caráter de interesse geral e sejam suscetíveis de justificar restrições à livre circulação de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 28 e jurisprudência referida), não é menos verdade que essas restrições devem ser adequadas e necessárias à realização dos objetivos mencionados no número anterior do presente acórdão.

41      No que respeita, em primeiro lugar, ao caráter adequado da regulamentação nacional em causa no processo principal, há que observar que esta comporta apenas uma obrigação de residência e não é acompanhada de uma obrigação de explorar pessoalmente o bem imóvel. Por conseguinte, tal medida não se afigura, em si mesma, suscetível de garantir a realização do objetivo alegado de que as terras agrícolas situadas no território búlgaro continuem a ser exploradas em conformidade com a sua afetação (v., por analogia, Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 30).

42      Quanto ao objetivo destinado a prevenir a aquisição de terras agrícolas para fins puramente especulativos, é verdade que a regulamentação em causa no processo principal pode ter por efeito reduzir o número de potenciais adquirentes de terras agrícolas, pelo que pode fazer diminuir a pressão fundiária sobre estas. Porém, a condição de residência que esta regulamentação prevê não garante, por si só, que as terras agrícolas sejam adquiridas com vista a uma exploração para fins de agricultura ou, no mínimo, para fins não especulativos.

43      Em segundo lugar e de qualquer modo, importa ainda verificar se a obrigação de residência prevista pela regulamentação nacional constitui uma medida que não vai além do que é necessário para alcançar os objetivos prosseguidos por essa regulamentação.

44      Em vista de tal apreciação, há que ter em conta a circunstância de a referida obrigação restringir não só a livre circulação de capitais mas também o direito do adquirente de escolher livremente a sua residência, direito que lhe é, no entanto, garantido pelo artigo 2.o, n.o 1, do Protocolo n.o 4 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (v., por analogia, Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 35).

45      A obrigação de residência prevista pela regulamentação nacional em causa no processo principal, ao violar assim um direito fundamental garantido por esta convenção, afigura‑se, portanto, particularmente restritiva (Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 37). Coloca‑se consequentemente a questão de saber se outras medidas, menos atentatórias da livre circulação de capitais do que as previstas por essa regulamentação, poderiam ter sido adotadas para alcançar os objetivos prosseguidos pela referida regulamentação.

46      Ora, como salientou a Comissão nas suas observações escritas, os objetivos prosseguidos pela regulamentação em causa no processo principal, relativos, por um lado, ao facto de as terras agrícolas continuarem a ser exploradas em conformidade com a sua afetação e, por outro, à prevenção da aquisição dessas terras para fins especulativos são suscetíveis de ser alcançados através de medidas que instituam, nomeadamente, uma tributação mais elevada das operações de revenda de terras agrícolas que se verifiquem pouco tempo depois da aquisição, ou ainda a exigência de uma duração mínima significativa no que respeita aos contratos de arrendamento de terras agrícolas (v., por analogia, Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 39). É igualmente suscetível de constituir uma medida menos atentatória da livre circulação de capitais a instauração de um direito de preferência em proveito dos arrendatários rurais que permitiria, no caso de estes últimos não serem adquirentes, a pessoas singulares ou coletivas cuja atividade não pertence ao setor agrícola fazer a respetiva aquisição, com o encargo, porém, de estas manterem a afetação agrícola do bem em questão (v., neste sentido, Acórdão de 23 de setembro de 2003, Ospelt e Schlössle Weissenberg, C‑452/01, EU:C:2003:493, n.o 52).

47      Resulta de todas estas considerações, tendo em conta os elementos de que dispõe o Tribunal de Justiça, que a obrigação de residência estabelecida no artigo 3c da ZSPZZ vai além do que é necessário para alcançar os objetivos prosseguidos por esta regulamentação nacional.

48      Tendo em conta tudo o que precede, há que responder às questões submetidas que o artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual a aquisição de um direito de propriedade sobre terras agrícolas situadas no seu território está subordinada à condição de o adquirente ter a qualidade de residente há mais de cinco anos.

 Quanto às despesas

49      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

O artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um EstadoMembro por força da qual a aquisição de um direito de propriedade sobre terras agrícolas situadas no seu território está subordinada à condição de o adquirente ter a qualidade de residente há mais de cinco anos.

Assinaturas


*      Língua do processo: búlgaro.