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Processo C545/19

AllianzGIFonds AEVN

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 17 de março de 2022

«Reenvio prejudicial — Artigo 63.° TFUE — Livre circulação de capitais — Tributação dos dividendos pagos a organismos de investimento coletivo (OIC) — OIC residentes e não residentes — Diferença de tratamento — Retenção na fonte apenas dos dividendos pagos a OIC não residentes — Comparabilidade das situações — Apreciação — Tomada em consideração do regime fiscal dos detentores de participações em OIC e da sujeição dos organismos residentes a outros impostos — Inexistência»

1.        Livre prestação de serviços – Livre circulação de capitais – Disposições do Tratado – Exame de uma medida nacional que diz respeito a essas duas liberdades fundamentais – Critérios de determinação das regras aplicáveis

(Artigos 56.° e 63.° TFUE)

(cf. n.os 31, 33 e 34)

2.        Livre circulação de capitais e liberdade de pagamentos – Restrições – Legislação fiscal – Tributação dos dividendos – Dividendos pagos aos organismos de investimento coletivo sob a forma de valores mobiliários – Isenção, sob determinadas condições, da retenção na fonte sobre dividendos de origem nacional pagos aos organismos residentes – Tributação, através de retenção na fonte, dos dividendos de origem nacional pagos aos organismos residentes de outro EstadoMembro – Análise da comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna – Tomada em conta do objetivo prosseguido pelas disposições nacionais – Prevenção ou atenuação da tributação em cadeia ou da dupla tributação económica – EstadoMembro fonte dos dividendos que exerce a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos organismos não residentes – Situações objetivamente comparáveis

(Artigo 63.° TFUE)

(cf. n.os 49, 59, 60, 63‑66, 68, 69, 72 e 74)

3.        Livre circulação de capitais e liberdade de pagamentos – Restrições – Legislação fiscal – Tributação dos dividendos – Dividendos pagos aos organismos de investimento coletivo sob a forma de valores mobiliários – Isenção, em determinadas condições, da retenção na fonte sobre os dividendos de origem nacional pagos aos organismos residentes – Tributação, através de retenção na fonte, dos dividendos de origem nacional pagos aos organismos residentes de outro EstadoMembro – Inadmissibilidade – Justificação – Inexistência

(Artigo 63.° TFUE)

(cf. n.os 78‑85 e disp.)

Resumo

A AllianzGI‑Fonds, um organismo de investimento coletivo (OIC) de tipo aberto, constituído ao abrigo da legislação alemã e que tem a sua residência fiscal na Alemanha, está isento do imposto sobre o rendimento das sociedades neste Estado‑Membro por força do direito nacional. Este estatuto fiscal impede‑a de recuperar os impostos pagos no estrangeiro sob a forma de crédito fiscal por dupla tributação internacional, ou de formular um pedido de reembolso desses impostos.

Nos anos de 2015 e de 2016, a AllianzGI‑Fonds era detentora de participações sociais em diversas sociedades residentes em Portugal. Os dividendos recebidos a este título durante esse período foram sujeitos, em Portugal, a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25 %. A AllianzGI‑Fonds interpôs recurso no órgão jurisdicional de reenvio a fim de obter a anulação dos atos pelos quais a Autoridade Tributária portuguesa tinha procedido a essa retenção na fonte. Com efeito, considera estar sujeita a um tratamento fiscal menos favorável do que os OIC que residem em Portugal e recebem dividendos por parte de sociedades residentes, estando estes isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas no que respeita aos dividendos que lhes são pagos por sociedades residentes. A este título, a AllianzGI‑Fonds invoca, nomeadamente, uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.° TFUE.

O órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça, a título prejudicial, sobre a compatibilidade com o direito da União de uma legislação por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. No seu acórdão, o Tribunal de Justiça declara que essa legislação não é compatível com o artigo 63.° TFUE.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Depois de, em primeiro lugar, ter determinado a liberdade de circulação aplicável como sendo a livre circulação de capitais, o Tribunal de Justiça debruça‑se sobre a análise de uma eventual restrição a esta liberdade. A este respeito, observa que o facto de a legislação portuguesa reservar apenas aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção da retenção na fonte constitui um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes, que é suscetível de dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais nessas OIC.

Esta diferença de tratamento só é compatível com o direito da União se disser respeito a situações que não são objetivamente comparáveis ou se for justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.

No que se refere à comparabilidade das situações em causa, há que salientar que o Governo português alega, em substância, que as respetivas situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes não são objetivamente comparáveis uma vez que, por um lado, a tributação dos dividendos recebidos por estas duas categorias de organismos de investimento de sociedades residentes em Portugal é regulada por técnicas de tributação diferentes – a saber, esses dividendos são objeto de retenção na fonte quando são pagos a um OIC não residente apesar de estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas quando são pagos a um OIC residente. Por outro lado, este governo indica que os dividendos distribuídos por OIC residentes a detentores de participações sociais residentes em território português são tributados a uma taxa que varia entre 25 % e 28 %, ao passo que os dividendos pagos a detentores de participações sociais que não residem no território português estão, em princípio, isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.

Segundo a jurisprudência, o tratamento diferenciado da tributação dos dividendos segundo a qualidade de residente ou de não residente dos contribuintes, resultante da aplicação de dois métodos de tributação diferentes, pode ser justificado. No entanto, sob reserva de verificações pelo órgão jurisdicional de reenvio, a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes.

O Tribunal de Justiça examina, por um lado, o argumento do Governo português relativo, em substância, à não comparabilidade das situações em causa, devido à existência, no sistema fiscal português, de impostos a que apenas estão sujeitos os OIC residentes. Em especial, embora os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente possam ser sujeitos a uma tributação específica ao abrigo da legislação nacional em causa, esta só está prevista em casos limitados, pelo que não pode ser equiparada ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes. Por conseguinte, os OIC não residentes não se encontram numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

Por outro lado, na medida em que a argumentação do Governo português se refere à pretensa necessidade de ter em conta a situação dos detentores de participações sociais, o Tribunal de Justiça recorda que, segundo a jurisprudência, a comparabilidade das situações em causa deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais em causa, bem como o objeto e o conteúdo destas últimas. Além disso, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva.

No caso em apreço, o regime português em matéria de tributação dos dividendos foi concebido segundo a lógica de «tributação à saída» (1). Esse regime visava alcançar objetivos como, nomeadamente, evitar a dupla tributação económica internacional e transferir a tributação dos OIC para os detentores de participações sociais, procurando assim que a tributação incidente sobre estes rendimentos seja aproximadamente equivalente à que ocorreria caso esses rendimentos tivessem sido obtidos diretamente pelos participantes nesses mesmos OIC.

No que respeita aos critérios de distinção pertinentes, o Tribunal de Justiça observa que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal, uma vez que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

Quanto à eventual existência de uma razão imperiosa de interesse geral que possa justificar a restrição constatada, o Tribunal de Justiça considera, em primeiro lugar, que, na falta de uma relação direta entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo, a justificação baseada na necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional deve ser afastada. No que diz respeito, em segundo lugar, à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, o Tribunal de Justiça recorda que, quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos.


1      No sentido de que os OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo deste último transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando os detentores de participações sociais não residentes dele isentos.