Language of document : ECLI:EU:C:2023:1029

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

21 de dezembro de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Artigo 4.o‑A, n.o 1 — Procedimentos de entrega entre os Estados‑Membros — Requisitos de execução — Motivos de não execução facultativa — Exceções — Execução obrigatória — Pena proferida à revelia — Conceito de “julgamento que conduziu à decisão” — Processo judicial que altera penas anteriormente proferidas — Decisão que profere uma pena global — Decisão proferida sem que o interessado tenha comparecido — Regulamentação nacional que prevê uma proibição absoluta de entrega do interessado quando uma decisão seja proferida à revelia — Obrigação de interpretação conforme»

No processo C‑396/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha), por Decisão de 14 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de junho de 2022, no processo relativo à execução do mandado de detenção europeu

Generalstaatsanwaltschaft Berlin,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: F. Biltgen (relator), presidente de secção, N. Wahl e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo Alemão, por J. Möller, P. Busche, M. Hellmann e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e H. Leupold, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo à execução, na Alemanha, de um mandado de detenção europeu emitido contra um nacional polaco com vista à execução, na Polónia, de uma pena privativa de liberdade.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», dispõe:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro [de uma] pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [UE].»

4        O artigo 4.o‑A, n.o 1, desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Decisões proferidas na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente», tem a seguinte redação:

«A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado‑Membro de emissão:

a)      Foi atempadamente

i)      notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto,

e

ii)      informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

[…]»

 Direito alemão

5        O § 83, n.o 1, ponto 3, da Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen (Lei relativa à Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), de 23 de dezembro de 1982 (BGBl.1982 I, p. 2071), na sua versão publicada em 27 de junho de 1994 (BGBl. 1994 I, p. 1537) (a seguir «IRG»), prevê:

«A extradição é excluída quando:

[…]

3.      no caso de pedido para efeitos de execução de uma pena, o condenado não tiver estado presente na audiência de julgamento que conduziu à condenação […]»

6        O § 460 do Strafprozessordnung (Código de Processo Penal) prevê a adoção posterior de uma sentença de condenação numa pena global, por força do § 55 do Strafgesetzbuch (Código Penal), e o § 462, n.o 1, do Código de Processo Penal especifica que o órgão jurisdicional competente toma a sua decisão sem realizar audiência, por via de despacho.

 Direito polaco

7        O artigo 139.o, n.o 1, do Kodeks postępowania karnego (Código de Processo Penal, a seguir «KPK») prevê, em substância, a possibilidade de efetuar uma notificação para o endereço conhecido da pessoa que não comunicou o seu novo endereço.

8        Por força do artigo 75.o, n.o 1, do KPK, a pessoa em causa é obrigada a comunicar o seu novo endereço em caso de alteração do domicílio no decurso de um processo penal.

9        O artigo 86.o do Kodeks karny (Código Penal), na sua versão aplicável no momento dos factos no processo principal, dispõe, em substância, que, no âmbito da adoção de uma sentença de condenação numa pena global, a pena individual máxima constitui o mínimo da pena global e a soma das penas constitui o máximo desta pena global, fixando ao mesmo tempo um limiar máximo concreto para tal pena global.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10      Foi submetido ao Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha), órgão jurisdicional de reenvio, pelas autoridades polacas, um pedido destinado à execução de um mandado de detenção europeu emitido em 5 de fevereiro de 2021 contra um nacional polaco pelo Sąd Okręgowy w Piotrkowie Trybunalskim (Tribunal Regional de Piotrków Trybunalski, Polónia). Esse mandado de detenção europeu é relativo à detenção e entrega do interessado às referidas autoridades para efeitos de execução de uma pena privativa de liberdade proferida pelo Sąd Rejonowy w Piotrkowie Trybunalskim (Tribunal de Primeira Instância de Piotrków Trybunalski, Polónia), por Sentença de 30 de outubro de 2019, que condenou o interessado a uma pena global (a seguir «Sentença de 30 de outubro de 2019 de condenação numa pena global»), dos quais dois anos, 11 meses e 27 dias restam por executar.

11      A Sentença de 30 de outubro de 2019 de condenação numa pena global engloba várias sentenças de condenação proferidas pelo Sąd Rejonowy w Piotrkowie Trybunalskim (Tribunal de Primeira Instância de Piotrków Trybunalski), a saber, uma sentença de 25 de abril de 2019, que procedeu à cumulação de várias penas proferidas anteriormente contra o interessado, e uma sentença de 10 de junho de 2019.

12      O interessado compareceu pessoalmente ou foi representado por um advogado oficioso no âmbito dos processos que levaram às penas cuja cumulação foi decretada por essa Sentença de 25 de abril de 2019. Em contrapartida, essa Sentença de 10 de junho de 2019 e a Sentença de 30 de outubro de 2019 de condenação numa pena global foram proferidas à revelia. No entanto, considera‑se que as citações para comparecer nas audiências anteriores à prolação dessas sentenças, enviadas pelas autoridades polacas competentes ao interessado por via de um aviso dos correios polacos para o endereço que este último tinha indicado como sua residência permanente, lhe foram notificadas por força do artigo 139.o, n.o 1, da KPK.

13      A Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Procuradoria‑Geral de Berlim) requereu, num primeiro momento, que o interessado fosse detido com vista à sua entrega às autoridades polacas. Num segundo momento, considerou que o § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG, que transpõe o artigo 4.o‑A, n.o 1 da Decisão‑Quadro 2002/584 para o direito alemão, constitui um obstáculo a tal entrega. Segundo a Procuradoria‑Geral de Berlim, uma citação para comparecer que se considera ter sido notificada ao abrigo do artigo 139.o, n.o 1, da KPK não pode garantir que o interessado tenha sido efetivamente informado da data e do local da audiência conforme exige a jurisprudência do Tribunal de Justiça, decorrente, nomeadamente do Acórdão de 24 de maio de 2016, Dworzecki (C‑108/16 PPU, EU:C:2016:346). Por conseguinte, pede agora que a entrega do interessado seja declarada ilícita.

14      O órgão jurisdicional de reenvio considera que o requisito da dupla incriminação do ato, ao qual está subordinada tal entrega e que consiste em verificar se os factos imputados constituem uma infração em ambos os Estados‑Membros que cooperam, está preenchido no caso em apreço.

15      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», que figura no artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve ser interpretado no sentido de que visa o processo que resultou numa sentença de condenação numa pena global, pela cumulação a posteriori de penas proferidas anteriormente, quando a autoridade que tenha proferido esse sentença não pode reapreciar a declaração de culpabilidade nem alterar as penas proferidas anteriormente.

16      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, no Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek (C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629), o Tribunal de Justiça declarou que este conceito visa também um processo subsequente, como o que resulta numa sentença de condenação numa pena global, na sequência do qual é proferida a decisão que alterou de forma definitiva o nível da pena inicialmente proferida, desde que a autoridade que tenha adotado esta última decisão tenha beneficiado, relativamente a este aspeto, de uma certa margem de apreciação.

17      No presente processo, resulta das informações fornecidas pelos órgãos jurisdicionais polacos que, no âmbito de um processo de cumulação a posteriori de penas proferidas anteriormente, o juiz dispõe, nos termos da legislação nacional relevante, de uma certa margem de apreciação uma vez que pode decretar, ao seu critério, uma pena global cujo limiar seja constituído pela pena inicial mais elevada e o limite máximo pela soma de todos as penas inicialmente proferidas. Contudo, uma vez que a Sentença de 30 de outubro de 2019 de condenação numa pena global não resultou numa reapreciação da declaração de culpabilidade do interessado nem alterou as penas proferida anteriormente, o órgão jurisdicional de reenvio duvida que tal sentença possa efetivamente ser abrangida pelo conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

18      As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio são confirmadas pelo facto de que, segundo o próprio, o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 só se aplica quando um processo de cumulação de penas proferidas anteriormente dá lugar à prolação de uma sentença com base numa audiência. Ora, não é o que se verifica, designadamente, no caso do direito alemão. Deste modo, considera que, atendendo às divergências na organização processual penal nos diferentes Estados‑Membros, existe um risco de que, segundo o direito nacional aplicável, esse processo seja ou não abrangido pelo âmbito de aplicação desta disposição.

19      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se o princípio do primado do direito da União se opõe a uma regulamentação nacional, como a do § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG, que estabelece a condenação à revelia como «obstáculo absoluto» à entrega de pessoa objeto de um mandado de detenção europeu quando o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, que esta regulamentação transpõe para o direito alemão, só prevê, a este respeito, um motivo facultativo de recusa.

20      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta última disposição não foi plenamente transposta para o direito alemão uma vez que o § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG não prevê a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução exercer um poder de apreciação em caso de condenação à revelia.

21      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, no Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.os 69, 72, 73 e 76), o Tribunal de Justiça declarou que, embora a aplicação direta da Decisão‑Quadro 2002/584 esteja excluída, sendo esta última desprovida de efeito direto, não é menos verdade que uma autoridade judiciária de execução é obrigada a interpretar o direito nacional em conformidade com a referida decisão‑quadro a fim de alcançar o resultado prosseguido pela mesma, não sendo, no entanto, possível uma interpretação contra legem deste direito.

22      O órgão jurisdicional de reenvio considera que não está em condições de interpretar o § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG no sentido de que lhe confere, no âmbito do exame do obstáculo à entrega do interessado, uma margem de apreciação que lhe permite declarar lícita esta entrega apesar das exceções previstas nos n.os 2 e 4 deste artigo. Entende que, em aplicação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e da margem de apreciação que supostamente dispõe a este respeito, deve poder considerar que, atendendo às circunstâncias do presente processo, o direito de ser ouvido do interessado foi devidamente cumprido e que a entrega deste último é, por conseguinte, lícita.

23      Com efeito, à primeira vista, poder‑se‑ia, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, considerar as circunstâncias em que a citação para comparecer foi notificada ao interessado no sentido de não garantirem de forma suficiente que este foi informado de forma certa sobre a data da audiência que deu lugar à Sentença de 30 de outubro de 2019 de condenação numa pena global, conforme exigido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, decorrente do Acórdão de 24 de maio de 2016, Dworzecki (C‑108/16 PPU, EU:C:2016:346), e não cumprem, deste modo, os requisitos previstos no artigo 4.o‑A, n.o 1, alínea a), i), da Decisão‑Quadro 2002/584. Contudo, resulta dos n.os 50 e 51 desse acórdão que a respetiva autoridade judiciária de execução pode ainda tomar em consideração outras circunstâncias, nomeadamente o comportamento demonstrado pelo interessado, que lhe permitam garantir que a entrega deste último não implica uma violação dos seus direitos de defesa, devendo ser prestada especial atenção a uma eventual «falta manifesta de diligência» por parte do interessado, designadamente quando se verifica que procurou escapar à notificação. Ora, no caso em apreço, é facto assente que, não tendo as autoridades polacas competentes sido informadas do seu endereço verdadeiro, o interessado impediu a sua convocação para a audiência que deu lugar à Sentença de 30 de outubro de 2019 de condenação numa pena global.

24      Nestas circunstâncias, o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve considerar‑se que um processo de fixação de uma pena única também é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da [Decisão‑Quadro 2002/584], se a decisão for tomada por sentença proferida na sequência da realização de uma audiência, sentença na qual, porém, o juiz não pode reapreciar a declaração de culpabilidade nem alterar as penas aplicadas em relação a cada infração?

2)      É compatível com o primado do direito da União que o legislador alemão, no § 83, n.o 1, ponto 3, da [IRG], tenha previsto que a condenação [à revelia] constitui um obstáculo absoluto à entrega, apesar de o artigo 4.o‑A, n.o 1, da [Decisão‑Quadro 2002/584], prever que nesse caso apenas se verifica um motivo facultativo de recusa?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

25      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», que figura nesta disposição, visa um processo que deu lugar a uma sentença de condenação numa pena global, pelo cúmulo a posteriori de penas proferidas anteriormente, quando a autoridade que proferiu essa sentença não pode reapreciar a declaração de culpabilidade do interessado nem alterar estas últimas penas.

26      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve ser entendido como um conceito autónomo do direito da União e interpretado de maneira uniforme no seu território, independentemente das qualificações nos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 67, e de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 63).

27      Este conceito de julgamento que conduziu à decisão judicial deve ser entendido no sentido de que designa o processo que condenou definitivamente a pessoa cuja entrega é solicitada no quadro da execução de um mandado de detenção europeu [Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 74, e de 23 de março de 2023, Minister for Justice and Equality (Revogação da suspensão), C‑514/21 e C‑515/21, EU:C:2023:235, n.o 52].

28      O Tribunal de Justiça especificou que, na hipótese de o processo ter cumulado várias instâncias que resultaram em decisões sucessivas, uma das quais, pelo menos, foi proferida sem que a pessoa em causa tenha estado presente no julgamento, o referido conceito visa a instância em que foi proferida a última dessas decisões, desde que o órgão jurisdicional em causa se tenha pronunciado definitivamente sobre a culpabilidade do interessado e o tenha condenado numa pena, como uma medida privativa de liberdade, na sequência de um exame, de facto e de direito, dos elementos incriminadores e desculpantes, o que inclui, sendo caso disso, a tomada em consideração da situação individual desse interessado (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 81).

29      Além disso, o Tribunal de Justiça considerou que, embora seja proferida depois de uma ou várias decisões terem condenado o interessado numa ou em várias penas, uma decisão, proferida numa fase posterior do processo e, deste modo, que altera uma ou várias penas privativas de liberdade proferidas anteriormente, como uma sentença de condenação numa pena global, não afeta todavia a declaração de culpabilidade efetuada por essas decisões anteriores, sendo esta, consequentemente, adotada definitivamente (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 84).

30      Por um lado, essa sentença altera o quantum da ou das penas aplicadas e deve, por conseguinte, ser distinguida das medidas relativas às modalidades de execução de uma pena privativa de liberdade. Por outro lado, um processo que conduz a uma decisão como a decisão que aplicou uma pena global em causa no processo principal, que consiste designadamente em converter uma ou várias penas proferidas anteriormente contra o interessado numa pena única, conduz necessariamente a um resultado mais favorável para este último. Assim, por exemplo, na sequência de várias condenações que tenham levado, cada uma delas, à aplicação de uma pena, as penas aplicadas podem ser cumuladas para obter uma pena global cujo quantum é inferior à soma das diferentes penas resultantes de decisões distintas anteriores (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.os 85 e 86).

31      O respeito pelo caráter equitativo do processo implica que o interessado tenha o direito de assistir aos debates devido às consequências importantes que estes podem ter sobre o quantum da pena que virá a ser‑lhe aplicada. Assim, um processo específico de fixação de uma pena global não pode constituir um exercício puramente formal e aritmético, mas deve incluir uma margem de apreciação para a determinação do nível da pena através, nomeadamente, da tomada em consideração da situação pessoal ou da personalidade do interessado, ou de circunstâncias atenuantes ou agravantes. A este respeito, a questão de saber se o órgão jurisdicional em causa dispõe ou não do poder de agravar a pena anteriormente proferida é desprovida de pertinência (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.os 87 a 89).

32      Deste modo, um processo que tenha resultado numa sentença que decreta uma pena global, que conduz a uma nova determinação do nível das penas privativas de liberdade proferidas anteriormente, deve ser considerado abrangido pelo artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, quando confere, para o efeito, à autoridade competente uma margem de apreciação e dá lugar a uma decisão que conhece definitivamente da pena (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 90).

33      Daqui decorre que o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», que figura no artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, visa uma sentença que decreta uma pena global como a Sentença de 30 de outubro de 2019 de condenação numa pena global, uma vez que resulta das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que o processo que deu lugar a essa sentença inclui uma margem de apreciação para a determinação do nível desta pena global.

34      Por conseguinte, há que responder à primeira questão, que o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», que figura nesta disposição, visa um processo que deu lugar a uma sentença de condenação numa pena global, pelo cúmulo a posteriori de penas proferidas anteriormente, quando, no âmbito do referido processo, a autoridade que proferiu essa decisão não pode reapreciar a declaração de culpabilidade do interessado nem alterar estas últimas penas, mas dispõe de uma margem de apreciação para a determinação do nível desta pena global.

 Quanto à segunda questão

35      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber se o princípio do primado do direito da União se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que transpôs o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, que, no geral, exclui a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução executar um mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena quando o interessado não tenha comparecido pessoalmente no âmbito do processo que levou à decisão em causa.

36      A este respeito, importa recordar que a Decisão‑Quadro 2002/584 consagra, no seu artigo 1.o, n.o 2, a regra segundo a qual os Estados‑Membros são obrigados a executar todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro. Salvo em circunstâncias excecionais, as autoridades judiciárias de execução só podem, deste modo, recusar a execução de tal mandado nas situações, taxativamente indicadas, previstas na referida decisão‑quadro. A execução de um mandado de detenção europeu apenas pode estar subordinada a uma das condições taxativamente aí previstas. Consequentemente, enquanto a execução do mandado de detenção europeu constitui o princípio, a recusa da sua execução é concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 50).

37      Assim, a Decisão‑Quadro 2002/584 enuncia explicitamente, por um lado, os motivos obrigatórios (artigo 3.o desta decisão‑quadro) e, por outro, os motivos facultativos (artigos 4.o e 4.o‑A da referida decisão‑quadro) de não execução do mandado de detenção europeu. Em particular, o 4.o‑A da mesma decisão‑quadro limita a possibilidade de recusar executar um mandado de detenção europeu enumerando, de maneira precisa e uniforme, as condições em que o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida na sequência de um julgamento em que a pessoa em causa não tenha estado presente não podem ser recusados (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 53).

38      Resulta da redação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 que esta disposição prevê um motivo facultativo de não execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que resultou na sua condenação. Não obstante, esta faculdade tem quatro exceções, enunciadas, respetivamente, nas alíneas a) a d) desta disposição, que privam a autoridade judiciária de execução em causa da possibilidade de recusar a execução do mandado de detenção europeu que lhe foi dirigido (v., neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Melloni, C‑399/11, EU:C:2013:107, n.o 40).

39      Por conseguinte, a autoridade judiciária de execução dispõe da faculdade de recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão em causa, salvo se o mandado de detenção europeu indicar que as condições enunciadas, respetivamente, nas alíneas a) a d) do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 estão preenchidas (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 54).

40      Daqui resulta que a autoridade judiciária de execução tem de proceder à execução de um mandado de detenção europeu, não obstante a ausência do interessado no processo que conduziu à decisão em causa, quando a existência de uma das circunstâncias referidas, respetivamente, nas alíneas a) a d) do artigo 4.o‑A, n.o 1, desta decisão‑quadro tiver sido demonstrada (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 55).

41      O Tribunal de Justiça teve ocasião de especificar que, dado que este artigo 4.o‑A prevê um caso de não execução facultativa de um mandado de detenção europeu, uma autoridade judiciária de execução pode, em todo o caso, mesmo depois de ter constatado que as circunstâncias referidas no número anterior do presente acórdão não abrangem a situação da pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu, ter em conta outras circunstâncias que lhe permitam garantir que a entrega do interessado não implica uma violação dos direitos de defesa deste último (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 107, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.o 51 e jurisprudência referida).

42      No âmbito dessa apreciação, a autoridade judiciária de execução poderá, assim, tomar em consideração o comportamento demonstrado pelo interessado. Com efeito, é nessa fase do procedimento de entrega que pode ser prestada especial atenção, nomeadamente, ao facto de o interessado ter procurado escapar à notificação da informação que lhe foi dirigida (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.o 52 e jurisprudência referida).

43      Daqui decorre que, quando verifica que uma das condições previstas no artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 está preenchida, uma autoridade judiciária de execução não pode ser impedida de se certificar de que os direitos de defesa da pessoa em causa foram respeitados, tomando devidamente em consideração, a este respeito, todas as circunstâncias que caracterizam o processo que lhe cabe apreciar, incluindo as informações de que ela própria eventualmente disponha.

44      No caso em apreço, decorre das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a regulamentação alemã em causa no processo principal obriga, de forma geral, a autoridade judiciária de execução em causa a recusar executar o mandado de detenção europeu em caso de condenação à revelia. Esta regulamentação não deixa à referida autoridade judiciária de execução nenhuma margem de apreciação para efeitos da verificação da existência de uma das situações indicadas, respetivamente, nas alíneas a) a d) do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, com base nas circunstâncias do presente processo, se se puder considerar que os direitos de defesa do interessado foram respeitados e, por conseguinte, para decidir executar o mandado de detenção europeu em causa.

45      Nestas condições, há que observar que tal regulamentação nacional é contrária ao artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

46      Há que recordar que o Tribunal de Justiça declarou que o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que não impõe a um órgão jurisdicional nacional que não aplique uma disposição do direito nacional incompatível com as disposições da Decisão‑Quadro 2002/584, sendo esta desprovida de efeito direto. No entanto, as autoridades dos Estados‑Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais, estão obrigadas a proceder, tanto quanto possível, a uma interpretação conforme do seu direito nacional que lhes permita assegurar um resultado compatível com a finalidade prosseguida por esta decisão‑quadro (Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 109).

47      Efetivamente, embora as decisões‑quadro não possam produzir efeito direto, o seu caráter vinculativo cria, não obstante, para as autoridades nacionais uma obrigação de interpretação conforme do seu direito interno a partir do termo do prazo de transposição destas decisões‑quadro. Quando aplicam o direito nacional, essas autoridades estão, deste modo, obrigadas a interpretá‑lo, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da decisão‑quadro em causa, a fim de alcançar o resultado por ela prosseguido, excluindo‑se, contudo, uma interpretação contra legem do direito nacional. Assim, o princípio da interpretação conforme exige que se tome em consideração o direito interno no seu todo e se apliquem métodos de interpretação por este reconhecidos, a fim de garantir a plena eficácia da decisão‑quadro em causa e alcançar uma solução conforme com o objetivo por ela prosseguido (Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.os 72 a 77).

48      Daqui decorre que incumbirá ao órgão jurisdicional de reenvio, tomando em consideração todo o seu direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, interpretar a regulamentação nacional em causa no processo principal, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da Decisão‑Quadro 2002/584.

49      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que uma regulamentação nacional que transpôs esta disposição que, de forma geral, exclui a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução executar um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena quando a pessoa não tiver comparecido pessoalmente no julgamento que conduziu à decisão em causa é contrária à referida disposição. Um órgão jurisdicional nacional está obrigado, tomando em consideração todo o seu direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, a interpretar esta regulamentação nacional, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da referida decisão‑quadro.

 Quanto às despesas

50      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

1)      O artigo 4.oA, n.o 1, da DecisãoQuadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», que figura nesta disposição, visa um processo que deu lugar a uma sentença de condenação numa pena global, pelo cúmulo a posteriori de penas proferidas anteriormente, quando, no âmbito do referido processo, a autoridade que proferiu essa decisão não pode reapreciar a declaração de culpabilidade do interessado nem alterar estas últimas penas, mas dispõe de uma margem de apreciação para a determinação do nível desta pena global.

2)      O artigo 4.oA, n.o 1, da DecisãoQuadro 2002/584, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299, deve ser interpretado no sentido de que uma regulamentação nacional que transpôs esta disposição que, de forma geral, exclui a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução executar um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena quando a pessoa não tiver comparecido pessoalmente no julgamento que conduziu à decisão em causa é contrária à referida disposição. Um órgão jurisdicional nacional está obrigado, tomando em consideração todo o seu direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, a interpretar esta regulamentação nacional, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da referida decisãoquadro.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.