Language of document : ECLI:EU:C:2024:1

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

9 de janeiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 267.o TFUE — Possibilidade de o órgão jurisdicional de reenvio tomar em consideração o acórdão prejudicial do Tribunal de Justiça — Necessidade da interpretação solicitada para que o órgão jurisdicional de reenvio possa proferir a sua decisão — Independência dos juízes — Condições de nomeação dos juízes de direito comum — Possibilidade de pôr em causa um despacho que decidiu definitivamente um pedido de medidas cautelares — Possibilidade de afastar um juiz de uma formação de julgamento — Inadmissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial»

Nos processos apensos C‑181/21 e C‑269/21,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice, Polónia) e pelo Sąd Okręgowy w Krakowie Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Cracóvia, Polónia), por Decisões de 18 de março de 2021 e de 31 de março de 2021, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 23 de março de 2021 e em 27 de abril de 2021, nos processos

G.

contra

M.S. (C‑181/21),

sendo intervenientes:

Rzecznik Praw Obywatelskich,

Prokuratura Okręgowa w Katowicach,

e

BC,

DC

contra

X (C‑269/21),

sendo intervenientes:

Rzecznik Praw Obywatelskich,

Prokuratura Okręgowa w Krakowie,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, A. Prechal, E. Regan, N. Piçarra, Z. Csehi e O. Spineanu‑Matei, presidentes de secção, M. Ilešič, L. S. Rossi, I. Jarukaitis (relator), A. Kumin, N. Jääskinen, I. Ziemele e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: M. Siekierzyńska, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 29 de junho de 2022,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Prokuratura Okręgowa w Katowicach e da Prokuratura Okręgowa w Krakowie, por R. Babiński, S. Bańko, A. Reczka, B. Szyprowski e E. Tkaczewska‑Kuk,

–        em representação do Rzecznik Praw Obywatelskich, por M. Taborowski, V. Vachev e M. Wróblewski,

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, K. Straś e S. Żyrek, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Dinamarquês, por J. F. Kronborg e V. Pasternak Jørgensen, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Neerlandês, por A. M. de Ree e C. S. Schillemans, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por K. Herrmann e P. J. O. Van Nuffel, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de dezembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 2.o, do artigo 6.o, n.os 1 e 3, e do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lidos em conjugação com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Estes pedidos foram apresentados, no processo C‑181/21, no âmbito de um litígio que opõe uma sociedade privada a um consumidor a respeito de um crédito resultante de um contrato de crédito, e, no processo C‑269/21, no âmbito de um litígio que opõe consumidores a um banco a respeito de um crédito e de um pedido de anulação de um contrato de crédito expresso em divisas estrangeiras.

 Quadro jurídico

 Constituição

3        Nos termos do artigo 179.o da Konstytucja Rzeczypospolitej Polskiej (Constituição da República da Polónia; a seguir «Constituição»):

«Os juízes são nomeados pelo presidente da República, sob proposta do Krajowa Rada Sądownictwa [(Conselho Nacional da Magistratura, Polónia; a seguir “KRS”)], por tempo indeterminado.»

4        Nos termos do artigo 186.o, n.o 1, da Constituição:

«O [KRS] garante a independência dos tribunais e dos juízes.»

5        O artigo 187.o da Constituição dispõe:

«1.      O [KRS] é composto:

1)      pelo primeiro presidente do [Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia)], pelo ministro da Justiça, pelo presidente do [Naczelny Sąd Administracyjny (Supremo Tribunal Administrativo, Polónia)] e por uma pessoa designada pelo presidente da República,

2)      por quinze membros eleitos entre os juízes do [Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal)], dos tribunais comuns, dos tribunais administrativos e dos tribunais militares,

3)      por quatro membros eleitos pelo [Sejm (Parlamento, Polónia)] entre os deputados e por dois membros eleitos pelo Senado entre os senadores.

[…]

3.      O mandato dos membros eleitos [do KRS] é de quatro anos.

4.      O regime, o domínio de atividade, o modo de trabalho [do KRS] e o modo de eleição dos seus membros são definidos pela lei.»

 Lei dos Tribunais Comuns

6        Nos termos do artigo 3.o da ustawa Prawo o ustroju sądów powszechnych (Lei Orgânica dos Tribunais Comuns), de 27 de julho de 2001 (Dz. U. n.o 98, posição 1070), conforme alterada pela ustawa o zmianie ustawy — Prawo o ustroju sądów powszechnych, ustawy o Sądzie Najwyższym oraz niektórych innych ustaw (Lei que altera a Lei dos Tribunais Comuns, a Lei do Supremo Tribunal e algumas outras leis), de 20 de dezembro de 2019 (Dz. U. de 2020, posição 190), que entrou em vigor em 14 de fevereiro de 2020 (a seguir «Lei dos Tribunais Comuns»):

«§ 1.      Os juízes instituem uma autorregulação judicial.

§ 2.      Os órgãos de autorregulação judicial são:

1)      a assembleia geral dos juízes de um sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso, Polónia);

2)      a assembleia geral dos juízes de um sąd okręgowy (Tribunal Regional, Polónia);

3)      a assembleia geral dos juízes de um sąd rejonowy (Tribunal de Primeira Instância, Polónia).»

7        Nos termos do artigo 24.o, § 1, da Lei dos Tribunais Comuns, o ministro da Justiça nomeia os presidentes dos sądy okręgowe (Tribunais Regionais) entre os juízes dos sądy apelacyjne (Tribunais de Recurso), dos sądy okręgowy (Tribunais Regionais) ou dos sądy rejonowe (Tribunais de Primeira Instância), por um período de seis anos, segundo o artigo 26.o desta lei. Após ter nomeado o presidente de um sąd okręgowy (Tribunal Regional), o ministro da Justiça apresenta‑o à assembleia geral competente dos juízes do sąd okręgowy (Tribunal Regional) em causa.

8        Em conformidade com o artigo 29.o, § 1, desta lei, a assembleia de um sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso) desempenha as tarefas previstas na referida lei e:

«[…]

1 a)      emite parecer sobre os candidatos aos cargos de juízes do sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso) em causa […]»

9        Em conformidade com o artigo 31.o da Lei dos Tribunais Comuns, a assembleia de um sąd okręgowy (Tribunal Regional) emite, nomeadamente, o seu parecer sobre os candidatos ao cargo de juiz do sąd okręgowy (Tribunal Regional) em causa e dos sądy rejonowe (Tribunais de Primeira Instância). Por força do artigo 30.o, § 1, desta lei, essa assembleia é uma formação composta, nos termos do ponto 1 desta disposição, pelo presidente do sąd okręgowy (Tribunal Regional) em causa e, nos termos do ponto 2 da referida disposição, pelos presidentes dos sądy rejonowe (Tribunais de Primeira Instância) da comarca desse sąd okręgowy (Tribunal Regional), tendo este ponto 2 entrado em vigor em 14 de fevereiro de 2020. Em conformidade com o artigo 30.o, § 3, da referida lei, que entrou também em vigor em 14 de fevereiro de 2020, os delegados da assembleia geral dos juízes de um sąd okręgowy (Tribunal Regional) podem assistir às reuniões em que a referida assembleia deve emitir o seu parecer sobre os candidatos ao cargo de juiz desse sąd okręgowy (Tribunal Regional), e só têm direito de voto para esse efeito.

10      Na sua versão que vigorou até 13 de fevereiro de 2020, o artigo 33.o da Lei dos Tribunais Comuns tinha a seguinte redação:

«§ 1.      A assembleia geral dos juízes da comarca de um sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso) é composta pelos juízes do sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso) em causa, pelos representantes dos juízes dos sądy okręgowy (Tribunais Regionais) que operam na comarca desse sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso) […], e pelos representantes dos juízes dos sądy rejonowe (Tribunais de Primeira Instância) que operam na comarca do referido do sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso) […]

[…]»

11      Em conformidade com o artigo 35.o, § 1, da Lei dos Tribunais Comuns, a assembleia geral dos juízes de um sąd okręgowy (Tribunal Regional) é composta por todos os juízes desse tribunal. Os juízes destacados para o cargo de juiz no referido tribunal podem participar nessa assembleia, mas não têm direito de voto.

12      Desde 14 de fevereiro de 2020, esta assembleia pode, em conformidade com o artigo 36.o, § 1, ponto 2, desta lei, eleger delegados que assistem às reuniões durante as quais a assembleia do sąd okręgowy (Tribunal Regional) em causa deve emitir o seu parecer sobre os candidatos a um cargo de juiz desse sąd okręgowy (Tribunal Regional) ou de juiz de um sąd rejonowy (Tribunal de Primeira Instância). Em conformidade com o artigo 36.o, § 2, da referida lei, esses delegados são eleitos por voto secreto e em número igual ao dos membros da assembleia do referido sąd okręgowy (Tribunal Regional).

13      O artigo 42a da Lei dos Tribunais Comuns dispõe:

«§ 1.      No âmbito das atividades dos tribunais ou dos respetivos órgãos, não é permitido pôr em causa a legitimidade dos [tribunais], dos órgãos constitucionais do Estado e dos órgãos de fiscalização e tutela do direito.

§ 2.      Um tribunal comum ou qualquer outro órgão do poder não tem competência para declarar ou apreciar a legalidade da nomeação de um juiz ou legitimidade para exercer as funções em matéria de administração da justiça que decorrem dessa nomeação.»

14      Na sua versão em vigor até 13 de fevereiro de 2020, o artigo 55.o, n.o 1, desta lei tinha a seguinte redação:

«Os juízes dos tribunais comuns são nomeados para o cargo de juiz pelo presidente da República da Polónia, sob proposta do [KRS], no prazo de um mês a contar da data de envio dessa proposta.»

15      Atualmente, o artigo 55.o, § 1, da referida lei dispõe:

«Um juiz de um tribunal comum é uma pessoa nomeada para esse cargo pelo presidente da República e que prestou juramento perante este último.»

16      Na sua versão em vigor até 13 de fevereiro de 2020, o artigo 58.o da Lei dos Tribunais Comuns tinha a seguinte redação:

«§ 1.      Havendo mais do que uma candidatura a uma vaga para o cargo de juiz, todas as candidaturas serão examinadas na mesma reunião da assembleia.

§ 2.      A assembleia geral dos juízes de recurso ou a assembleia geral dos juízes da região pronuncia‑se sobre os candidatos por votação e transmitem ao presidente do sąd apelacyjny (Tribunal de Recurso) ou do sąd okręgowy (Tribunal Regional) em causa, consoante o caso, todas as candidaturas apresentadas, indicando o número de votos obtidos.»

17      Em 14 de fevereiro de 2020, foi revogado o § 2 deste artigo 58.o Posteriormente, o § 1 do referido artigo 58.o passou a ter a seguinte redação:

«Havendo mais do que uma candidatura a uma vaga para o cargo de juiz, todas as candidaturas serão examinadas na mesma reunião do colégio.

[…]»

 Lei do Supremo Tribunal

18      A ustawa o Sądzie Najwyższym (Lei do Supremo Tribunal), de 8 de dezembro de 2017 (Dz. U. de 2018, posição 5), instituiu, nomeadamente, no âmbito do Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal), a Izba Kontroli Nadzwyczajnej i Spraw Publicznych (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público, Polónia).

19      Nos termos do artigo 26.o da Lei do Supremo Tribunal, conforme alterada pela Lei de 20 de dezembro de 2019, que altera a Lei dos Tribunais Comuns, a Lei do Supremo Tribunal e algumas outras leis:

«§ 1.      São da competência da [Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público] os recursos extraordinários, os litígios em matéria eleitoral e as impugnações da validade de um referendo nacional ou de um referendo constitucional, a declaração da validade das eleições e referendos, os outros processos de direito público, incluindo o contencioso da proteção da concorrência, da regulação da energia, das telecomunicações e do transporte ferroviário, bem como os recursos interpostos das decisões do Przewodniczy Krajowej Rady Radiofonii i Telewizji [(presidente do Conselho Nacional de Radiodifusão, Polónia)] ou em que se alega a duração excessiva dos processos nos tribunais comuns e militares e no Sąd Najwyższy [(Supremo Tribunal)].

§ 2.      A [Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público] tem competência para conhecer dos pedidos ou declarações relativos à recusa de um juiz ou à designação do tribunal competente para um determinado processo, incluindo as acusações relativas à falta de independência do tribunal ou do juiz. O tribunal ao qual o processo foi atribuído deve enviar imediatamente um pedido ao presidente da [Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público] para que se proceda à respetiva tramitação em conformidade com as regras previstas pelas diferentes disposições. A apresentação de um pedido ao presidente da [Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público] não dá lugar à suspensão da instância.

§ 3.      O pedido previsto no § 2 não deve ser analisado se tiver por objeto a declaração e a apreciação da legalidade da nomeação de um juiz ou da sua legitimidade para exercer funções judiciais.

[…]»

20      O artigo 29.o da Lei do Supremo Tribunal prevê que os juízes do Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) são nomeados pelo presidente da República, sob proposta do KRS.

 Lei do Conselho Nacional da Magistratura

21      Nos termos do artigo 9.o‑A da ustawa o Krajowej Radzie Sądownictwa (Lei do Conselho Nacional da Magistratura), de 12 de maio de 2011 (Dz. U., de 2011, n.o 126, posição 714), conforme alterada pela ustawa o zmianie ustawy o Krajowej Radzie Sądownictwa oraz niektórych innych ustaw (Lei que altera a Lei do Conselho Nacional da Magistratura e determinadas outras leis), de 8 de dezembro de 2017 (Dz. U. de 2018, posição 3):

«§ 1.      [O Parlamento] elege, entre os juízes do [Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal)], dos tribunais comuns, dos tribunais administrativos e dos tribunais militares, quinze membros [do KRS] para um mandato conjunto de quatro anos.

§ 2.      Ao proceder à eleição referida no § 1, [o Parlamento] tem em conta, tanto quanto possível, a necessidade de estarem representados no [KRS] juízes de tribunais de diferentes tipos e níveis.

§ 3.      O mandato conjunto dos novos membros [do KRS], eleitos entre os juízes, tem início no dia seguinte ao dia da sua eleição. Os membros cessantes [do KRS] desempenharão as suas funções até ao dia em que tem início o mandato conjunto dos novos membros [do KRS].»

22      A disposição transitória constante do artigo 6.o da Lei que altera a Lei do Conselho Nacional da Magistratura e determinadas outras leis, que entrou em vigor em 17 de janeiro de 2018, prevê:

«O mandato dos membros [do KRS] referidos no artigo 187.o, n.o 1, ponto 2, da [Constituição], eleitos com base nas atuais disposições, deve durar até ao dia anterior ao início do mandato dos novos membros [do KRS], mas não deverá exceder os 90 dias a contar da data de entrada em vigor desta lei, salvo se tiver terminado previamente em razão do seu termo.»

 Código de Processo Civil

23      Nos termos do artigo 48.o da ustawa — Kodeks postępowania cywilnego (Lei que aprova o Código de Processo Civil), de 17 de novembro de 1964, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código de Processo Civil»):

«§ 1.      A intervenção de um juiz deve ser recusada nos termos da lei:

1)      nos processos em que seja parte ou em que tenha com uma das partes um vínculo jurídico tal que o desfecho do processo possa afetar os seus direitos e as suas obrigações;

[…]

5)      nos processos em que participou, numa instância inferior, na adoção do ato impugnado, bem como nos processos relativos à validade de um ato por si examinado ou redigido com a sua participação, bem como nos processos em que agiu na qualidade de prokurator [(procurador, Polónia)];

[…]»

24      O artigo 49.o do Código de Processo Civil estabelece, no seu § 1:

«Independentemente dos fundamentos enunciados no artigo 48.o, o tribunal recusa um juiz, a pedido deste ou de uma parte, se existir uma circunstância suscetível de criar dúvidas legítimas quanto à imparcialidade desse juiz no processo em causa.»

25      O artigo 50.o deste código prevê:

«§ 1.      As partes solicitam a recusa de um juiz por escrito ou por declaração oral exarada ao tribunal no qual o processo em causa esteja pendente, indicando a verosimilhança dos motivos da recusa.

§ 2.      Além disso, a parte que participou na audiência deve tornar plausível que a circunstância que justifica a recusa só ocorreu ou foi levada ao seu conhecimento posteriormente.

§ 3.      Até ser proferida decisão sobre o pedido de recusa de um juiz:

1)      o juiz visado por esse pedido pode prosseguir o processo;

2)      não pode ser proferida nenhuma decisão ou medida que ponha termo à instância.»

26      O artigo 365.o, § 1, do Código de Processo Civil prevê:

«A sentença final vincula não só as partes e o tribunal que a proferiu mas também os outros tribunais, as outras autoridades públicas e organismos da administração pública, e outras pessoas nos casos previstos na lei.»

27      Nos termos do artigo 367.o, § 3, deste código:

«Um tribunal de segunda instância aprecia o processo numa formação de julgamento de três juízes. À porta fechada, o tribunal decide em formação de julgamento de juiz singular, salvo quando profira um acórdão.»

28      Em conformidade com o artigo 379.o, ponto 4, do referido código, o processo está ferido de nulidade «se a composição do tribunal que conhece do processo em causa for ilegal ou se um juiz cuja intervenção tiver sido recusada de pleno direito tiver participado no exame desse processo».

29      O artigo 401.o do mesmo código prevê:

«Pode ser requerida a reabertura de um processo por nulidade:

1)      se uma pessoa não autorizada tiver feito parte da composição do tribunal ou se a intervenção do juiz que se pronunciou tivesse sido recusada de pleno direito e a parte interessada não tiver tido a possibilidade de requerer a recusa desse juiz antes de a sentença ter transitado em julgado;

[…]»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

 Factos que deram origem ao processo C181/21

30      O litígio no processo principal opõe uma sociedade privada a um consumidor a propósito de um crédito resultante de um contrato de crédito.

31      Esta sociedade privada intentou uma ação contra esse consumidor com vista ao pagamento de um montante de 16 000 zlótis polacos (PLN) (cerca de 3 450 euros), acrescido de juros e despesas. O Sąd Rejonowy w Dąbrowie Górniczej (Tribunal de Primeira Instância de Dąbrowa Górnicza, Polónia) proferiu uma decisão quanto ao mérito, sob a forma de uma injunção de pagamento. O referido consumidor impugnou esta decisão. Essa impugnação foi indeferida por despacho desse tribunal de primeira instância.

32      O mesmo consumidor recorreu desse despacho para o Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice, Polónia). Foi designada uma formação de julgamento de três juízes, que incluía a juíza A.Z., para apreciar esse recurso.

33      No que respeita às circunstâncias em que ocorreu a nomeação da juíza A.Z. para o Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice), resulta da decisão de reenvio que esta juíza, então em funções no Sąd Rejonowy w Jaworznie (Tribunal de Primeira Instância de Jaworzno, Polónia) desde 1996, se candidatou a uma vaga de juiz no Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice).

34      Após um parecer prévio sobre a candidatura da juíza A.Z. emitido pelo colégio do Sąd Apelacyjny w Katowicach (Tribunal de Recurso de Katowice, Polónia), a assembleia dos representantes dos juízes da comarca deste tribunal absteve‑se de emitir um parecer sobre essa candidatura. Com efeito, esta assembleia adotou, em 14 de janeiro de 2019, uma resolução pela qual declarava abster‑se de participar no processo de nomeação de juízes para as vagas no referido tribunal e nos sądy okręgowy (Tribunais Regionais) da comarca deste último, tendo em conta as suas preocupações relativas ao estatuto e ao modo de funcionamento do KRS chamado a desempenhar um papel nesse processo de nomeação.

35      Além disso, por resolução adotada no mesmo dia, a assembleia dos representantes dos juízes da comarca do Sąd Apelacyjny w Katowicach (Tribunal de Recurso de Katowice) ordenou ao seu presidente, por um lado, que se abstivesse de transmitir as candidaturas às vagas de juiz nesse tribunal e no Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice) até à emissão de um parecer sobre as mesmas e, por outro, que adiasse para data posterior a ordem do dia com vista a preparar os procedimentos de nomeação, até que as dúvidas relativas ao KRS fossem dissipadas.

36      Não obstante as resoluções acima mencionadas, o presidente do Sąd Apelacyjny w Katowicach (Tribunal de Recurso de Katowice), que é simultaneamente o presidente da assembleia geral dos juízes deste tribunal e que foi nomeado presidente do referido tribunal pelo ministro da Justiça, deu seguimento à candidatura da juíza A.Z. Esta última foi nomeada juíza do Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice) pelo presidente da República da Polónia.

37      Numa sessão à porta fechada, realizada em 18 de março de 2021, o juiz‑relator da formação de julgamento mencionada no n.o 32 do presente acórdão manifestou dúvidas quanto à qualidade de «órgão jurisdicional» dessa formação de julgamento, tendo em conta as circunstâncias em que ocorreu a nomeação da juíza A.Z. para o Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice). Foi neste contexto que, sozinho, recorreu para o Tribunal de Justiça com fundamento no artigo 367.o, n.o 3, do Código de Processo Civil.

 Factos que deram origem ao processo C269/21

38      O litígio no processo principal opõe consumidores a um banco, a respeito de um crédito e de um pedido de anulação de um contrato de crédito expresso em divisas estrangeiras.

39      Estes consumidores intentaram uma ação no Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia), com vista a obter a condenação desse banco a pagar, designadamente, o montante de 104 537 PLN (cerca de 22 540 euros) e a anulação retroativa do contrato de crédito em causa baseando‑se no Acórdão de 3 de outubro de 2019, Dziubak (C‑260/18, EU:C:2019:819). Além disso, também pediram medidas cautelares, nomeadamente, para suspensão do pagamento das prestações mensais que deviam ser executadas em aplicação desse contrato de crédito até ser proferida uma decisão definitiva no litígio no processo principal.

40      O tratamento deste litígio e desse pedido de medidas cautelares foi confiado a uma formação de julgamento de juiz singular do Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia), que é o órgão jurisdicional de reenvio nesse processo.

41      Por Despacho de 9 de outubro de 2020, este deferiu o referido pedido.

42      O banco mencionado apresentou uma reclamação contra este despacho. Foi designada uma formação de julgamento de três juízes do Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia) para apreciar essa reclamação. Um dos membros desta formação de julgamento é a juíza A.T., que também foi nomeada juíza-relatora e que presidia à referida formação de julgamento. Esta última formação reformou o referido despacho e indeferiu o pedido de medidas cautelares na íntegra. Uma vez que essa decisão já não era suscetível de recurso, o processo foi então remetido ao órgão jurisdicional de reenvio para este se pronunciar no processo principal.

43      No que respeita às circunstâncias que rodearam a nomeação da juíza A.T. para o Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia), resulta da decisão de reenvio que esta juíza, então em funções no Sąd Rejonowy dla Krakowa‑Krowodrzy w Krakowie (Tribunal de Primeira Instância de Cracóvia-Krowodrza, Cracóvia, Polónia) desde 2009, se candidatou a uma vaga para juiz no Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia). A referida juíza era a única candidata a esse lugar. O órgão jurisdicional de reenvio especifica que muitos juízes dos sądy rejonowe (Tribunais de Primeira Instância) já não participam nesses concursos apesar da sua grande experiência, uma vez que o processo de nomeação dos juízes dos tribunais comuns deixou de estar em conformidade com a Constituição, nomeadamente, devido ao facto de as decisões do KRS, que se tornou altamente politizado, já não se basearem em critérios objetivos e favorecerem os candidatos apoiados pelos presidentes dos tribunais, que foram nomeados pelo ministro da Justiça.

44      O Kolegium Sądu Okręgowego w Krakowie (Colégio do Tribunal Regional de Cracóvia, Polónia) emitiu o seu parecer quanto à candidatura da juíza A.T. numa audiência realizada em 1 de junho de 2020.

45      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio indica que a maioria dos membros desse colégio são presidentes do Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia) e de sądy rejonowe (Tribunais de Primeira Instância), cuja nomeação é diretamente influenciada pelo ministro da Justiça. Acrescenta que a candidatura da juíza A.T. não foi submetida ao parecer da assembleia geral dos juízes do Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia), uma vez que o legislador polaco eliminou qualquer influência real de autorregulação judicial no processo de nomeação dos juízes na Polónia. Com efeito, a partir de 14 de fevereiro de 2020 e, em especial, na sequência da entrada em vigor, após alteração, do artigo 58.o da Lei dos Tribunais Comuns, deixou de ser exigido o parecer desta assembleia.

46      Em 7 de julho de 2020, o KRS adotou uma resolução a recomendar a nomeação da juíza A.T. para o cargo de juíza no Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia). Em 4 de fevereiro de 2021, o presidente da República da Polónia procedeu a essa nomeação.

47      As circunstâncias da referida nomeação levam o órgão jurisdicional de reenvio a ter dúvidas quanto à conformidade com o direito da União da composição da formação de julgamento de três juízes, mencionada no n.o 42 do presente acórdão, que se pronunciou sobre a reclamação do banco apresentada contra o seu Despacho de 9 de outubro de 2020 e, por conseguinte, quanto à validade da decisão adotada por essa formação de julgamento. Este órgão jurisdicional interroga‑se, neste contexto, sobre se está vinculado pelo despacho dessa formação de julgamento que anulou as medidas cautelares que tinha decretado ou se uma nova formação de julgamento, que não inclua a juíza A.T., deveria ser designada segundo o sistema de atribuição aleatória dos processos para reexaminar essa reclamação.

 Fundamentos dos reenvios prejudiciais e questões submetidas nos processos C181/21 e C269/21

48      Os órgãos jurisdicionais de reenvio observam, em substância, que, ao contrário de outros processos até agora submetidos ao Tribunal de Justiça, os processos C‑181/21 e C‑269/21 dizem respeito a nomeações para cargos de juiz nos tribunais comuns, e não no Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal).

49      A este respeito, referem um certo número de evoluções, ligadas às recentes reformas judiciárias na Polónia, relativas à composição do KRS e dos órgãos de autorregulação judicial e ao seu respetivo papel no processo de nomeação para esses cargos, bem como à fiscalização jurisdicional da legalidade dessas nomeações. Estes diferentes elementos levam‑nos a duvidar da qualidade de «órgão jurisdicional», na aceção, nomeadamente, do direito da União, das formações de julgamento que incluem juízes nomeados no termo desse processo.

50      Nestas circunstâncias, o Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice) e o Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia) decidiram suspender as instâncias e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, formuladas em termos quase idênticos nos processos C‑181/21 e C‑269/21:

«1)      Devem os artigos 2.o, 19.o, n.o 1, e 6.o, n.os 1 a 3, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da [Carta], ser interpretados no sentido de que:

a)      não é um tribunal estabelecido por lei, na aceção do direito da União, um órgão jurisdicional composto por uma pessoa nomeada para o cargo de juiz nesse órgão jurisdicional mediante um procedimento que omite a participação dos órgãos de [autorregulação] da magistratura judicial, cuja composição é maioritariamente independente dos poderes executivo e legislativo, numa situação em que, à luz do acervo constitucional do Estado‑Membro [em causa], é necessária a participação de um órgão de [autorregulação] da magistratura judicial que cumpra esses requisitos no [processo] de nomeação de um juiz, tendo em conta o contexto institucional e estrutural, dado que:

–        a obrigação de emitir parecer sobre a candidatura ao cargo de juiz que incumbe às assembleias de juízes foi deliberadamente ignorada, contrariamente à regulamentação nacional e à posição desse órgão de [autorregulação] da magistratura judicial [(processo C‑181/21) ou que];

a obrigação de emitir parecer sobre a candidatura ao cargo de juiz incumbia ao Colégio do tribunal, que foi constituído de tal forma que a maior parte dos seus membros foi nomeada por um representante do poder executivo, o Minister Sprawiedliwości – Prokurator Generalny (ministro da Justiça/Procurador‑Geral, Polónia) [(processo C‑269/21)];

–        [o] atual [KRS], eleit[o] de modo contrário às disposições constitucionais e legislativas polacas, não é um órgão independente e não integram a sua composição representantes do poder judicial nomeados de modo independente dos poderes executivo e legislativo, pelo que não apresentou validamente uma proposta de nomeação para o cargo de juiz conforme com o direito nacional;

–        os participantes no concurso de nomeação não dispunham do direito à ação jurisdicional na aceção dos artigos 2.o, 19.o n.o 1, e artigo 6.o, n.os 1 a 3, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da Carta[;]

b)      não cumpre os requisitos de tribunal independente estabelecido por lei um órgão jurisdicional de cuja composição faz parte uma pessoa nomeada para o cargo de juiz desse órgão jurisdicional mediante um procedimento sujeito a ingerências arbitrárias do poder executivo e que não prevê a participação dos órgãos de [autorregulação] da magistratura judicial, cuja composição é maioritariamente independente do poder executivo e legislativo, ou de outro órgão que garanta a avaliação objetiva do candidato, tendo em conta que a participação dos órgãos de [autorregulação] da magistratura judicial ou de outro órgão independente dos poderes executivo e legislativo e que garanta uma avaliação objetiva do candidato no processo de nomeação de juízes é necessária, no contexto da tradição jurídica europeia consagrada nas disposições acima referidas do TUE e da Carta e que constitui o fundamento da união de direito que é a União Europeia, para se considerar que determinado órgão jurisdicional nacional garante o nível exigido de tutela jurisdicional efetiva em matérias abrangidas pelo direito da União e, consequentemente, a observância do princípio da separação tripartida e de equilíbrio de poderes, bem como o princípio do Estado de direito?

2)      Devem o artigo 2.o e 19.o, n.o 1, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da Carta, ser interpretados no sentido de que, quando faz parte da composição de um órgão jurisdicional uma pessoa nomeada nas condições descritas [na primeira questão]:

a)      obstam à aplicação de disposições de direito nacional que atribuem competência exclusiva para apreciar a legalidade da nomeação dessa pessoa para a função de juiz [à Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público], composta exclusivamente por pessoas nomeadas para a função de juiz nas condições descritas [na primeira questão], e que impõem simultaneamente que não sejam apreciadas as alegações relativas à nomeação para a função de juiz, tendo em conta o contexto institucional e estrutural;

b)      a fim de assegurar o efeito útil do direito da União, exigem que as disposições de direito nacional sejam interpretadas de modo a permitir ao órgão jurisdicional afastar oficiosamente essa pessoa da apreciação do processo, com base nas disposições — aplicáveis por analogia — em matéria de destituição de um juiz que não seja idóneo para exercer a função judicial [iudex inhabilis]?»

 Tramitação processual no Tribunal de Justiça

 Quanto à apensação dos processos C181/21 e C269/21

51      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 5 de maio de 2021, os processos C‑181/21 e C‑269/21 foram apensados para efeitos da fase oral e escrita, bem como do acórdão.

 Quanto aos pedidos de aplicação da tramitação acelerada

52      Os órgãos jurisdicionais de reenvio pediram que os presentes reenvios prejudiciais fossem submetidos a tramitação acelerada ao abrigo do artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Em apoio dos seus pedidos, alegaram que a aplicação desse procedimento se justificava pelo facto de pelo menos várias centenas de pessoas exercerem funções nos tribunais comuns e aí proferirem um número crescente de decisões, embora tenham, em seu entender, sido nomeadas para as funções de juiz desses órgãos jurisdicionais «em flagrante violação das normas do direito polaco que regem a nomeação dos juízes». Nestas condições, é necessário responder o mais rapidamente possível às questões submetidas, a fim de dissipar, no interesse dos particulares, de uma boa administração da justiça e da segurança jurídica, as dúvidas que recaem sobre o funcionamento dos tribunais comuns nos quais exercem funções os dois juízes cuja nomeação está em causa nos presentes processos à luz das exigências relativas a um tribunal independente, imparcial e previamente estabelecido por lei.

53      O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos.

54      Importa recordar que tal tramitação acelerada constitui um instrumento processual destinado a responder a uma situação de urgência extraordinária (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 37 e jurisprudência referida).

55      No caso em apreço, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, em 5 de maio de 2021, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, que não havia que deferir o pedido referido no n.o 52 do presente acórdão. Com efeito, a circunstância de as questões submetidas serem relativas ao funcionamento dos tribunais de direito comum nos quais exercem funções um grande número de juízes como aqueles cuja nomeação está em causa nos presentes processos não constitui uma razão que demonstre uma urgência extraordinária, necessária para justificar uma tramitação acelerada. O mesmo se diga da circunstância de um número significativo de particulares ser potencialmente afetado pelas decisões diariamente tomadas pelos juízes cujas nomeações são postas em causa nestes processos. Por último, o caráter sensível das referidas questões não implica, em si mesmo, a necessidade do seu tratamento dentro de prazos curtos, na aceção do artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

56      O Governo Polaco, apoiado na audiência pela Prokuratura Okręgowa w Katowicach (Procuradoria Regional de Katowice, Polónia) e pela Prokuratura Okręgowa w Krakowie (Procuradoria Regional de Cracóvia, Polónia), alega, em substância, que as problemáticas relativas à organização judiciária dos Estados‑Membros, como as suscitadas pelas questões submetidas, são da competência exclusiva destes últimos e não do âmbito de aplicação material do direito da União.

57      A este respeito, resulta de jurisprudência constante que, embora a organização da justiça nos Estados‑Membros seja, na verdade, da competência destes últimos, não é menos verdade que, no exercício dessa competência, os Estados‑Membros são obrigados a respeitar as obrigações que para eles decorrem do direito da União e que o mesmo se pode dizer, nomeadamente, no que respeita às regras nacionais relativas à adoção das decisões de nomeação dos juízes e, sendo caso disso, das regras relativas à fiscalização jurisdicional aplicável no contexto desses processos de nomeação [Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 56 e jurisprudência referida].

58      Além disso, resulta claramente dos termos das questões submetidas que estas não têm por objeto a interpretação do direito polaco, mas das disposições do direito da União por elas visadas.

59      Daqui resulta que o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre os presentes pedidos de decisão prejudicial.

 Quanto à admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial

60      No processo C‑181/21, o Governo Polaco contesta a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, alegando nomeadamente, em substância, que só a formação de julgamento de três juízes que é responsável pelo processo principal, e não um juiz desta formação agindo sozinho, era competente para enviar ao Tribunal de Justiça as questões submetidas nesse processo.

61      No processo C‑269/21, esse Governo alega que, por força das regras processuais polacas, o órgão jurisdicional de reenvio neste processo não é competente para fiscalizar a legalidade da formação de julgamento de três juízes que proferiu o despacho que decidiu definitivamente o pedido de medidas cautelares formulado pelos recorrentes no processo principal e, em especial, a legalidade da nomeação da juíza A.T que integrava essa formação de julgamento. Apoiado pela Comissão na audiência no Tribunal de Justiça, considera que, nestas condições, não é necessária uma resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas por este órgão jurisdicional de reenvio para decidir o litígio no processo principal.

62      A este respeito, o Tribunal de Justiça tem sublinhado reiteradamente que o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE constitui um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução dos litígios que lhes cabe decidir e que a justificação do reenvio prejudicial não se baseia na formulação de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas na necessidade inerente à resolução efetiva de um litígio [Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 60 e jurisprudência referida].

63      Como decorre dos próprios termos do artigo 267.o TFUE, a decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária ao julgamento da causa» pelo órgão jurisdicional de reenvio [Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 61 e jurisprudência referida].

64      Assim, o Tribunal de Justiça recordou que resulta simultaneamente dos termos e da sistemática do artigo 267.o TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe, nomeadamente, que esteja efetivamente pendente um litígio nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual estes são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração o acórdão prejudicial [Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 62 e jurisprudência referida].

65      No âmbito de um processo dessa natureza, deve existir entre o referido litígio e as disposições do direito da União cuja interpretação é solicitada um nexo de ligação tal que essa interpretação responda a uma necessidade objetiva para a decisão que o órgão jurisdicional de reenvio tem de tomar (Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 48 e jurisprudência referida).

66      No caso em apreço, no que respeita ao processo C‑181/21, importa sublinhar desde já que, como resulta do pedido de decisão prejudicial apresentado nesse processo, este pedido foi submetido ao Tribunal de Justiça pelo juiz‑relator no processo principal numa formação de julgamento de três juízes. Esse juiz tem dúvidas quanto à conformidade, em especial, com o artigo 19.o, n.o 1, TUE e o artigo 47.o da Carta, da composição dessa formação de julgamento devido à presença na referida formação de julgamento da juíza A.Z., que foi nomeada segundo o processo em vigor na sequência das reformas do sistema judiciário polaco.

67      Com as suas questões prejudiciais, este órgão jurisdicional de reenvio pretende, assim, saber se um juiz que integra a mesma formação do que ele no processo principal e que foi nomeado em determinadas circunstâncias específicas cumpre as exigências inerentes a um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei, na aceção do direito da União.

68      A este respeito, é verdade que qualquer órgão jurisdicional tem a obrigação de verificar se, pela sua composição, constitui um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei, na aceção, nomeadamente, do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, quando surja uma dúvida séria sobre esse ponto, uma vez que essa verificação é necessária à confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar nos particulares [Acórdãos de 26 de março de 2020, Reapreciação Simpson/Conselho e HG/Comissão, C‑542/18 RX‑II e C‑543/18 RX‑II, EU:C:2020:232, n.o 57, e de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes), C‑204/21, EU:C:2023:442, n.o 129 e jurisprudência referida].

69      Não deixa de ser verdade que a necessidade, na aceção do artigo 267.o TFUE, da interpretação prejudicial solicitada ao Tribunal de Justiça implica que o juiz nacional que, à semelhança do juiz de reenvio no processo C‑181/21, decide submeter ao Tribunal de Justiça um reenvio prejudicial possa, por si só, retirar as consequências dessa interpretação apreciando, à luz desta, a legalidade da nomeação de outro juiz da mesma formação de julgamento e, sendo caso disso, recusando este último.

70      Ora, não resulta da decisão de reenvio nem dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça no processo C‑181/21 que, por força das regras de direito nacional, o juiz que procedeu ao reenvio prejudicial nesse processo possa, por si só, agir desse modo.

71      Assim, não se afigura que esse juiz possa, por si só, tomar em consideração as eventuais respostas do Tribunal de Justiça às suas questões prejudiciais.

72      A interpretação das disposições do direito da União solicitada no processo C‑181/21 não responde, portanto, a uma necessidade objetiva relacionada com uma decisão que o juiz de reenvio pode tomar, por si só, no processo principal.

73      Por conseguinte, deve considerar‑se que o pedido de decisão prejudicial no processo C‑181/21 visa a formulação de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, na aceção da jurisprudência referida no n.o 62 do presente acórdão, sendo, portanto, inadmissível.

74      No que respeita ao processo C‑269/21, importa salientar que, no pedido de decisão prejudicial apresentado neste processo, o próprio órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o despacho proferido pela formação de julgamento de três juízes do Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia), que reformou a sua própria decisão e indeferiu o pedido de medidas cautelares formulado pelos consumidores em causa, já não é suscetível de recurso. Invoca, contudo, a insegurança jurídica que rodeia este despacho em razão das dúvidas relativas à regularidade da composição da formação de julgamento que o proferiu devido ao facto de nela estar presente a juíza A.T. Não obstante, este órgão jurisdicional não indica nenhuma disposição do direito processual polaco que lhe confira a competência para proceder, para mais em formação de julgamento de juiz singular, a um exame da conformidade, nomeadamente com o direito da União, de um despacho definitivo proferido quanto a um pedido dessa natureza por uma formação de julgamento de três juízes.

75      Por outro lado, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que o pedido de medidas cautelares no processo principal foi definitivamente decidido por um despacho que, nos termos do artigo 365.o do Código de Processo Civil, vincula o juiz de reenvio e que este último não é competente para «recusar» um juiz que faça parte da formação de julgamento que proferiu esse despacho, nem para o pôr em causa.

76      Tendo em conta os elementos salientados nos n.os 74 e 75 do presente acórdão, não se afigura que o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑269/21 seja competente, por força das regras de direito nacional, para apreciar a legalidade, à luz, nomeadamente, do direito da União, da formação de julgamento de três juízes que proferiu o despacho que decidiu definitivamente o pedido de medidas cautelares e, em especial, das condições de nomeação da juíza A.T., e para pôr em causa, se for caso disso, esse despacho.

77      Com efeito, resulta destes elementos que a formação de julgamento de três juízes que incluía a juíza A.T., que reformou o despacho de primeira instância do órgão jurisdicional de reenvio, indeferiu na íntegra o pedido de medidas cautelares dos recorrentes no processo principal. O tratamento desse pedido, apresentado por estes últimos em paralelo com a sua ação quanto ao mérito, foi, portanto, definitivamente fechado.

78      Assim, as questões submetidas no processo C‑269/21 dizem intrinsecamente respeito a uma fase do processo principal que foi definitivamente fechada e que é distinta do litígio quanto ao mérito, que permanece o único pendente no órgão jurisdicional de reenvio. [v., por analogia, Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 71 e jurisprudência referida]. Por conseguinte, não correspondem a uma necessidade objetiva inerente à resolução desse litígio, mas visam obter do Tribunal de Justiça uma apreciação geral, desligada das necessidades do referido litígio, sobre o processo de nomeação dos juízes de direito comum na Polónia.

79      Daqui resulta que as referidas questões excedem o âmbito da missão jurisdicional que incumbe ao Tribunal de Justiça por força do artigo 267.o TFUE [v., por analogia, Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 82 e jurisprudência referida].

80      Nestas condições, há que declarar que o pedido de decisão prejudicial no processo C‑269/21 também é inadmissível.

81      Tendo em conta todas as considerações precedentes, os presentes pedidos de decisão prejudicial são inadmissíveis.

 Quanto às despesas

82      Revestindo os processos, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante os órgãos jurisdicionais de reenvio, compete a estes decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

Os pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Sąd Okręgowy w Katowicach (Tribunal Regional de Katowice, Polónia), por Decisão de 18 de março de 2021, e pelo Sąd Okręgowy w Krakowie (Tribunal Regional de Cracóvia, Polónia), por Decisão de 31 de março de 2021, são inadmissíveis.

Assinaturas


*      Língua do processo: polaco.