Language of document : ECLI:EU:C:2024:165

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

22 de fevereiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Artigo 7.o, ponto 2 — Competências especiais em matéria extracontratual — Lugar da materialização do dano — Utilização num veículo de um dispositivo manipulador que reduz a eficácia dos sistemas de controlo das emissões — Contrato de compra e venda desse veículo celebrado num Estado‑Membro diferente do Estado de residência do comprador e da sede do fabricante — Entrega do referido veículo e utilização normal do mesmo no Estado‑Membro de residência do comprador»

No processo C‑81/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), por Decisão de 15 de dezembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de fevereiro de 2023, no processo

MA

contra

FCA Italy SpA,

FPT Industrial SpA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: O. Spineanu‑Matei (relatora), presidente de secção, J.‑C. Bonichot e L.S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de MA, por M. Poduschka, Rechtsanwalt,

–        em representação da FPT Industrial SpA, por A. Wittwer, Rechtsanwalt,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Noë e L. Wildpanner, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe MA, residente austríaco, à FCA Italy SpA e à FPT Industrial SpA, duas sociedades italianas, a respeito da responsabilidade destas últimas pelo dano resultante da incorporação de um dispositivo manipulador que reduz a eficácia dos sistemas de controlo das emissões num veículo comprado por MA.

 Quadro jurídico

 Regulamento n.o 1215/2012

3        Os considerandos 15 e 16 do Regulamento n.o 1215/2012 têm a seguinte redação:

«(15)      As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. […]

(16)      O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado‑Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação.»

4        O capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012, sob a epígrafe «Competência», contém nomeadamente uma secção 1, intitulada «Disposições gerais», e uma secção 2, intitulada «Competências especiais». O artigo 4.o, n.o 1, do mesmo regulamento, incluído nessa secção 1, dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

5        O artigo 7.o do Regulamento n.o 1215/2012, que consta da secção 2 do seu capítulo II, tem a seguinte redação:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

[…]

2.      Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;

[…]»

 Regulamento (CE) n.o 715/2007

6        Nos termos do artigo 5.o, n.o 2 do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões de veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1):

«A utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. […]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

7        Por contrato de compra e venda de 14 de março de 2019, MA, residente em Krems an der Donau (Áustria), comprou, juntamente com a sua mulher, uma autocaravana a um concessionário automóvel estabelecido na Alemanha. A entrega do veículo aos adquirentes teve lugar no armazém de distribuição do vendedor, em Salzburgo (Áustria).

8        A FCA Italy e a FPT Industrial, duas sociedades com sede em Itália, são, respetivamente, o fabricante do veículo e o fabricante do seu motor.

9        Por considerar que o motor do referido veículo estava ilegalmente equipado com um dispositivo manipulador que reduzia a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, MA intentou no Landesgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo, Áustria) uma ação de responsabilidade civil extracontratual contra a FCA Italy e a FPT Industrial. Segundo MA, esse órgão jurisdicional era internacionalmente competente, com fundamento no artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, para conhecer desta ação, uma vez que o lugar onde ocorreu o dano é Salzburgo, o lugar onde a venda se tornou perfeita com a entrega da coisa.

10      A FPT Industrial deduziu uma exceção de incompetência desse órgão jurisdicional com o fundamento de que resulta do Acórdão de 9 de julho de 2020, Verein für Konsumenteninformation (C‑343/19, a seguir «Acórdão VKI», EU:C:2020:534), que, nessa situação, o lugar onde se considera que o facto danoso ocorreu, na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, se situa no Estado‑Membro em que o veículo foi adquirido ao vendedor. Ora, segundo a FPT Industrial, a compra da autocaravana por MA teve lugar na Alemanha, onde o contrato de compra e venda foi assinado entre as partes. Daqui resulta que o lugar onde ocorreu o facto danoso se situa na Alemanha, de modo que são os órgãos jurisdicionais alemães que são competentes para conhecer do processo.

11      Por Despacho de 31 de maio de 2022, o Landesgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo) julgou improcedente esta exceção, considerando que, como defendia MA, o dano deste último só se tinha materializado no momento da entrega do veículo na Áustria.

12      Por Despacho de 3 de outubro de 2022, o Oberlandesgericht Linz (Tribunal Regional Superior de Linz, Áustria) deu provimento ao recurso interposto pela FPT Industrial com o fundamento de que o órgão jurisdicional de primeira instância não era internacionalmente competente para conhecer do processo, uma vez que o lugar de aquisição do veículo correspondia ao lugar da celebração do contrato de compra e venda que era o ato decisivo para as obrigações recíprocas das partes.

13      O Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), que é o órgão jurisdicional de reenvio, foi chamado a pronunciar‑se sobre um recurso de «Revision» desse despacho.

14      O órgão jurisdicional de reenvio expõe que, diferentemente das situações em causa no processo que deu origem ao Acórdão VKI, no caso em apreço, o lugar da celebração do contrato de compra e venda e o lugar da entrega do veículo ao comprador não coincidem.

15      O referido órgão jurisdicional indica que, no direito austríaco, a aquisição de um direito de propriedade sobre um bem móvel é constituída pelo compromisso negocial (titulus) e pelo ato de disposição (modus), que só ocorre no momento e no lugar da entrega desse bem. Todavia, a aplicação do direito nacional para efeitos da interpretação do conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, conduziria a soluções divergentes e iria, assim, contra o caráter autónomo deste conceito no direito da União.

16      Por um lado, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, se o lugar da celebração do contrato de compra e venda devesse ser considerado determinante para efeitos da aplicação das regras de competência internacional, isso colidiria com a exigência de um vínculo estreito entre o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se e o litígio em que se baseia a aplicação do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, uma vez que o litígio no processo principal não apresenta uma relação pertinente com o lugar da celebração do contrato que se situa na Alemanha.

17      Por outro lado, segundo esse órgão jurisdicional, embora, no Acórdão VKI, o Tribunal de Justiça tenha adotado o critério da «aquisição» do veículo para determinar o lugar onde ocorreu o facto danoso, os n.os 30 a 35 desse acórdão revelam outro critério de conexão importante, tendo o Tribunal de Justiça considerado que um dano que consiste numa perda de valor resultante da aquisição de um veículo afetado por um vício representa um dano inicial que não é puramente patrimonial e que só se materializa no momento da aquisição da coisa afetada desse vício junto do vendedor.

18      Assim, pode deduzir‑se do referido acórdão que o lugar onde ocorreu o facto danoso é, numa situação como a que está em causa no processo principal, o lugar onde o vício se repercute. Ora, segundo o referido órgão jurisdicional, na medida em que é no Estado‑Membro de residência do recorrente que um veículo afetado por um vício é objeto de uma utilização normal, a competência internacional para conhecer de uma ação de responsabilidade extracontratual cabe aos órgãos jurisdicionais desse Estado. Tal conclusão seria igualmente compatível com os princípios enunciados na jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012.

19      Com efeito, se, para determinar o lugar onde ocorreu o facto danoso, para efeitos da aplicação desta disposição, se devesse tomar como base o lugar da materialização do dano, resulta desta jurisprudência que critérios especiais podem desde logo militar a favor do lugar onde ocorreu o dano no Estado‑Membro de residência do recorrente, o que conduz a um forum actoris É o que acontece, nomeadamente, em matéria de ações baseadas na violação da obrigação de prospeto, na violação de deveres legais de informação no Estado‑Membro de residência do recorrente ou num prejuízo relacionado com a gestão de contas típicas de investimento. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, portanto, sobre se, do mesmo modo, o lugar onde um vício que afeta o normal funcionamento de um bem se repercute pode também ser considerado o lugar onde ocorreu o facto danoso.

20      Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 7.o, ponto 2, do [Regulamento n.o 1215/2012], ser interpretado no sentido de que, numa ação de responsabilidade civil extracontratual intentada contra o fabricante de um motor diesel equipado com um dispositivo manipulador proibido na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do [Regulamento n.o 715/2007], estabelecido no Estado‑Membro A (Itália), quando o veículo do recorrente residente no Estado‑Membro B (Áustria) tiver sido comprado por um terceiro residente no Estado‑Membro C (Alemanha), o lugar da materialização do dano se situa

a)      no lugar da celebração do contrato,

b)      no lugar da entrega do veículo

ou

c)      no lugar da materialização do defeito material que deu origem ao dano e, por conseguinte, no lugar de utilização prevista do veículo?»

 Quanto à questão prejudicial

21      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, deve ser interpretado no sentido de que, quando um veículo alegadamente equipado pelo seu construtor, num primeiro Estado‑Membro, com um dispositivo ilegal que reduz a eficácia dos sistemas de controlo das emissões foi objeto de um contrato de compra e venda celebrado num segundo Estado‑Membro, tendo sido entregue ao adquirente num terceiro Estado‑Membro, onde foi utilizado normalmente, o lugar da materialização do dano, na aceção desta disposição, se situa no lugar onde esse contrato foi celebrado, no lugar onde esse veículo foi entregue ou ainda no lugar da sua utilização.

22      A título preliminar, importa lembrar que, na medida em que o Regulamento n.o 1215/2012 revoga e substitui o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), que, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 Relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (JO 1972, L 299, p. 32), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão dos novos Estados‑Membros a essa Convenção, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições destes instrumentos jurídicos vale também para a interpretação do Regulamento n.o 1215/2012 quando essas disposições possam ser qualificadas de «equivalentes». Ora, é o que acontece, por um lado, com o artigo 5.o, n.o 3, dessa convenção e do Regulamento n.o 44/2001 e, por outro, com o artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012 (Acórdão VKI, n.o 22 e jurisprudência referida).

23      Para responder à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, importa, por um lado, recordar que, segundo jurisprudência constante, a regra de competência especial prevista no artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, que permite ao demandante, por derrogação à regra geral da competência dos tribunais do domicílio do demandado prevista no artigo 4.o deste regulamento, intentar a sua ação em matéria extracontratual no tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, deve ser interpretada de forma autónoma e estrita (v., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2022, BMA Nederland, C‑498/20, EU:C:2022:173, n.o 28 e jurisprudência referida).

24      Essa regra de competência especial baseia‑se na existência de um elemento de conexão particularmente estreito entre o litígio e os tribunais do lugar onde ocorreu o facto danoso, que justifica uma atribuição de competência a esses tribunais por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo (v., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2022, BMA Nederland, C‑498/20, EU:C:2022:173, n.o 29 e jurisprudência referida).

25      Com efeito, em matéria extracontratual, o juiz do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso é normalmente o mais apto para decidir, nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade na produção das provas (Acórdão de 10 de março de 2022, BMA Nederland, C‑498/20, EU:C:2022:173, n.o 30 e jurisprudência referida).

26      Por outro lado, importa recordar que o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» se refere simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem deste dano, de modo que a ação contra o demandado pode ser intentada, à escolha do demandante, perante o tribunal de um ou outro destes dois lugares (Acórdão VKI, n.o 23 e jurisprudência referida).

27      No caso em apreço, as partes no processo principal estão em desacordo no que respeita à determinação do lugar onde o dano ocorreu.

28      A este respeito, em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça já declarou que há que fazer uma distinção entre, por um lado, o dano inicial, diretamente decorrente do evento causal, cujo lugar de ocorrência pode justificar a competência do tribunal desse lugar por força do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, e, por outro, as consequências adversas subsequentes que não podem fundamentar uma atribuição de competência com base nesta disposição (v., neste sentido, Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor‑Trans, C‑451/18, EU:C:2019:635, n.o 27 e jurisprudência referida).

29      O Tribunal de Justiça declarou assim que um dano que constitui apenas a consequência indireta do prejuízo inicialmente sofrido por outras pessoas que foram diretamente atingidas pelo dano concretizado num lugar diferente daquele onde o lesado indireto veio depois a sofrer o prejuízo não pode fundamentar a competência jurisdicional ao abrigo da referida disposição (Acórdão de 29 de julho de 2019, TiborTrans, C‑451/18, EU:C:2019:635, n.o 29 e jurisprudência referida).

30      Foi à luz desta jurisprudência que, nos n.os 29 a 31 do Acórdão VKI, o Tribunal de Justiça qualificou um prejuízo que consiste numa menos‑valia de um veículo resultante da diferença entre o preço que o adquirente pagou por esse veículo e o seu valor real, em razão da instalação de um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, como «dano inicial», na medida em que este último não existia antes da compra do veículo pelo adquirente final, e não surgiu como consequência indireta do prejuízo inicialmente sofrido por outras pessoas.

31      Nos n.os 32 a 34 desse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que esse prejuízo não se reveste de um caráter puramente patrimonial, uma vez que não se trata de um dano que lesa diretamente os ativos financeiros da parte lesada, mas de um prejuízo material correspondente à diminuição do valor intrínseco do veículo adquirido por esta e relativamente ao qual foi constatado um vício.

32      No caso em apreço, como resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, não é alegado que a natureza e a qualificação do dano reclamado pelo recorrente no processo principal sejam diferentes das que estão em causa no Acórdão VKI.

33      Em segu ida, no que respeita ao lugar da ocorrência de um dano material como o que está em causa no processo principal, o Tribunal de Justiça declarou, nos n.os 30, 31 e 35 do Acórdão VKI, que este só se materializa no momento da aquisição do veículo afetado por um vício, com a sua aquisição por um preço superior ao valor intrínseco desse veículo. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça respondeu à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio no processo que deu origem a esse acórdão, que o artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, devia ser interpretado no sentido de que, quando um veículo foi ilegalmente equipado num Estado‑Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de ser adquirido a um terceiro noutro Estado‑Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado‑Membro, uma vez que foi aí que o bem foi adquirido.

34      Todavia, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto ao lugar da materialização do dano sofrido pelo adquirente desse veículo na hipótese de, diferentemente do processo que deu origem ao Acórdão VKI, dois Estados‑Membros distintos poderem ser aquele em que o veículo foi adquirido. Com efeito, no processo principal, a celebração do contrato de compra e venda, por um lado, e a entrega desse veículo, bem como a sua utilização normal, por outro, ocorreram em Estados‑Membros diferentes.

35      É neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga, em substância, sobre se o lugar da aquisição de um veículo afetado por um vício e, logo, o «lugar onde ocorreu o facto danoso», na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, conforme interpretado no Acórdão VKI, correspondem ao lugar da celebração do contrato de compra e venda do veículo, ao lugar onde este foi entregue ao adquirente final, ou antes ao lugar onde o mesmo foi normalmente utilizado.

36      No que respeita, em primeiro lugar, ao lugar da celebração do contrato de compra e venda, este não pode, por si só, ser decisivo para determinar o lugar da aquisição nesse contexto.

37      Com efeito, a responsabilidade extracontratual dos construtores de um veículo assenta, em princípio, na existência de um facto ilícito que consiste no equipamento desse veículo com um dispositivo ilegal, num dano constituído pela diferença entre o preço pago pelo adquirente e o preço real do veículo e na determinação da relação causal entre tal facto ilícito e esse dano, sendo as modalidades de aquisição do referido veículo irrelevantes a este respeito. Por conseguinte, não se afigura indispensável, para efeitos da análise do comportamento censurado e da extensão do dano pedido, analisar o conteúdo do contrato de compra e venda pelo qual a vítima adquiriu o mesmo veículo. Assim, a exigência de uma boa administração da justiça e de organização útil do processo não impõe, no contexto de uma ação de responsabilidade extracontratual como a que está em causa no processo principal, a atribuição de competência internacional a favor do tribunal do lugar da celebração do contrato de compra e venda.

38      Em segundo lugar, na medida em que o dano reclamado no caso em apreço não constitui um prejuízo puramente financeiro, como resulta do n.o 32 do presente acórdão, o «lugar onde ocorreu o facto danoso», na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, também não deve corresponder àquele em que surgiu a obrigação de pagar a diferença entre o preço que o adquirente lesado pagou pelo veículo defeituoso e o valor real deste último. Com efeito, uma atribuição de competência ao juiz do lugar onde a perda financeira onerou definitivamente o património do demandante só se revela pertinente no caso de um prejuízo puramente financeiro (v., neste sentido, Acórdão de 16 de junho de 2016, Universal Music International Holding, C‑12/15, EU:C:2016:449,n.os 30 a 32), o que não é o caso numa situação como a que está em causa no processo principal.

39      Em terceiro e último lugar, no que respeita à questão de saber se o lugar da aquisição do veículo afetado por um vício e, consequentemente, o lugar da materialização do dano, na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, conforme interpretado no Acórdão VKI, corresponde ao lugar onde o veículo foi entregue ao adquirente final, importa recordar que, no n.o 27 do Acórdão de 16 de julho de 2009, ZuidChemie (C‑189/08, EU:C:2009:475), o Tribunal de Justiça declarou que o lugar da materialização do dano é aquele onde o facto gerador produz os seus efeitos danosos, isto é, o lugar onde o dano provocado pelo produto defeituoso se manifesta concretamente.

40      Tendo em conta esta jurisprudência e os motivos que figuram nos n.os 36 a 39 do presente acórdão, há que considerar que, quando, como no caso em apreço, a assinatura do contrato de compra e venda, por um lado, e a entrega do veículo e a sua utilização, por outro, ocorreram em Estados‑Membros distintos, o lugar da aquisição desse veículo e, portanto, o lugar da materialização do dano, na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, conforme interpretado no acórdão VKI, é aquele onde o vício que afeta o referido veículo, a saber, a incorporação do dispositivo ilegal, que constitui o facto gerador do dano, se manifesta e produz os seus efeitos danosos em relação ao comprador final, a saber, o local onde o veículo lhe foi entregue.

41      Tal interpretação responde ao objetivo de previsibilidade das regras de competência, referido no considerando 15 deste regulamento, na medida em que, na sequência do que o Tribunal de Justiça já declarou no n.o 36 do acórdão VKI, a saber, que um construtor automóvel estabelecido num Estado‑Membro que se dedica a manipulações ilícitas sobre veículos comercializados noutros Estados‑Membros pode razoavelmente esperar ser demandado nos órgãos jurisdicionais desses Estados, há que considerar que esse construtor deve esperar da mesma forma ser demandado nos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros onde os veículos comercializados foram entregues aos adquirentes finais.

42      De resto, o lugar da utilização do veículo afetado por um vício não pode ser pertinente para determinar o lugar da materialização do dano. Por um lado, diferentemente do lugar da entrega, tal critério não satisfaz o objetivo de previsibilidade e, por outro, como resulta das considerações precedentes, há que considerar que o dano se manifesta desde a aquisição do veículo, a saber, no caso em apreço, quando da sua entrega.

43      Resulta de quanto precede que o artigo 7 .o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando um veículo alegadamente equipado pelo seu construtor, num primeiro Estado‑Membro, com um dispositivo ilegal que reduz a eficácia dos sistemas de controlo das emissões foi objeto de um contrato de compra e venda celebrado num segundo Estado‑Membro, tendo sido entregue ao adquirente num terceiro Estado‑Membro, o lugar da materialização do dano, na aceção desta disposição, se situa nesse último Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

44      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

O artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial

deve ser interpretado no sentido de que:

quando um veículo alegadamente equipado pelo seu construtor, num primeiro Estado‑Membro, com um dispositivo ilegal que reduz a eficácia dos sistemas de controlo das emissões foi objeto de um contrato de compra e venda celebrado num segundo EstadoMembro, tendo sido entregue ao adquirente num terceiro EstadoMembro, o lugar da materialização do dano, na aceção desta disposição, se situa nesse último EstadoMembro.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.