Language of document : ECLI:EU:C:2024:176

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

29 de fevereiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Agricultura — Política agrícola comum — Apoio ao desenvolvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) — Proteção dos interesses financeiros da União — Regulamento (CE, Euratom) n.o 2988/95 — Artigo 7.o — Medidas e sanções administrativas — Regulamento n.o 1306/2013 — Artigos 54.o e 56.o — Regulamento Delegado n.o 640/2014 — Artigo 35.o — Recuperação dos montantes indevidamente pagos às pessoas que tenham participado na execução da irregularidade — Conceito de “beneficiário”»

No processo C‑437/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia), por Decisão de 1 de julho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de julho de 2022, no processo

R.M.,

E.M.,

sendo interveniente:

Eesti Vabariik (Põllumajanduse Registrite ja Informatsiooni Amet),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb (relator), A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo Estónio, por M. Kriisa, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo Dinamarquês, por C. Maertens, na qualidade de agente, assistida por P. Biering, advokat,

–        em representação da Comissão Europeia, por F. Blanc, E. Randvere e A. Sauka, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de outubro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 7.o do Regulamento (CE, Euratom) n.o 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (JO 1995, L 312, p. 1), do artigo 54.o, n.o 1, e do artigo 56.o, primeiro parágrafo, do Regulamento (UE) n.o 1306/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, relativo ao financiamento, à gestão e ao acompanhamento da Política Agrícola Comum e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 352/78, (CE) n.o 165/94, (CE) n.o 2799/98, (CE) n.o 814/2000, (CE) n.o 1290/2005 e (CE) n.o 485/2008 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 549; retificação no JO 2016, L 130, p. 13), bem como do artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado (UE) n.o 640/2014 da Comissão, de 11 de março de 2014, que completa o Regulamento (UE) n.o 1306/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito ao sistema integrado de gestão e de controlo e às condições de recusa ou retirada de pagamentos, bem como às sanções administrativas aplicáveis aos pagamentos diretos, ao apoio ao desenvolvimento rural e à condicionalidade (JO 2014, L 181, p. 48, e retificação no JO 2015, L 209, p. 48).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado na Estónia contra R. M. e E. M., acusados, respetivamente, de serem autores de três fraudes nas subvenções em benefício da X OÜ (a seguir «sociedade X»), e coautora de duas dessas fraudes.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Regulamento n.o 2988/95

3        O quarto considerando do Regulamento n.o 2988/95 refere:

«Considerando que a eficácia da luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros das Comunidades exige a criação de um quadro jurídico comum a todos os domínios abrangidos pelas políticas comunitárias.»

4        O artigo 1.o desse regulamento dispõe:

«1.      Para efeitos da proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, é adotada uma regulamentação geral em matéria de controlos homogéneos e de medidas e sanções administrativas relativamente a irregularidades no domínio do direito comunitário.

2.      Constitui irregularidade qualquer violação de uma disposição de direito comunitário que resulte de um ato ou omissão de um agente económico que tenha ou possa ter por efeito lesar o orçamento geral das Comunidades ou orçamentos geridos pelas Comunidades, quer pela diminuição ou supressão de receitas provenientes de recursos próprios cobradas diretamente por conta das Comunidades, quer por uma despesa indevida.»

5        O artigo 2.o do referido regulamento dispõe:

«1.      Os controlos e as medidas e sanções administrativas são instituídos na medida em que sejam necessários para assegurar a aplicação correta do direito comunitário. Devem ser efetivos, proporcionados e dissuasores, a fim de assegurar uma proteção adequada dos interesses financeiros das Comunidades.

[…]

3.      As disposições do direito comunitário determinam a natureza e o âmbito das medidas e sanções administrativas necessárias à aplicação correta da regulamentação considerada em função da natureza e da gravidade da irregularidade, do benefício concedido ou da vantagem recebida e do grau de responsabilidade.

4.      Sob reserva do direito comunitário aplicável, os procedimentos relativos à aplicação dos controlos e das medidas e sanções comunitários são regidos pelo direito dos Estados‑Membros.»

6        O artigo 4.o do mesmo regulamento, que precisa o alcance do conceito de «medidas […] administrativas», referido no seu artigo 2.o, tem a seguinte redação:

«1)      Qualquer irregularidade tem como consequência, regra geral, a retirada da vantagem indevidamente obtida:

–        através da obrigação de pagar os montantes em dívida ou de reembolsar os montantes indevidamente recebidos,

–        através da perda total ou parcial da garantia constituída a favor do pedido de uma vantagem concedida ou aquando do recebimento de um adiantamento.

[…]

4.      As medidas previstas no presente artigo não são consideradas sanções.»

7        O artigo 5.o do Regulamento n.o 2988/95, que precisa o alcance do conceito de «sanções administrativas», referido no seu artigo 2.o, dispõe, no seu n.o 1, que as irregularidades intencionais ou causadas por negligência podem conduzir às sanções administrativas previstas nesta disposição, nomeadamente ao pagamento de uma coima.

8        O artigo 7.o desse regulamento dispõe:

«As medidas e sanções administrativas comunitárias podem ser aplicadas aos agentes económicos referidos no artigo 1.o, ou seja, às pessoas singulares ou coletivas, e às outras entidades a quem o direito nacional reconhece capacidade jurídica, que tenham cometido uma irregularidade. Podem ser igualmente aplicadas às pessoas que tenham participado na execução da irregularidade e às pessoas que tenham de responder pela irregularidade ou evitar que ela seja praticada.»

 Regulamento n.o 1306/2013

9        O considerando 39 do Regulamento n.o 1306/2013 enunciava:

«Com vista a proteger os interesses financeiros do orçamento da União [Europeia], é necessário que os Estados‑Membros tomem medidas para se assegurarem de que as operações financiadas [pelo Fundo Europeu Agrícola de Garantia (FEAGA) e pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER)] são efetivamente realizadas e corretamente executadas. É igualmente necessário que os Estados‑Membros previnam, detetem e tratem eficazmente qualquer irregularidade ou incumprimento das obrigações cometidos pelos beneficiários. Para o efeito, é aplicável o [Regulamento n.o 2988/95]. Em caso de infração à legislação agrícola setorial, se não existirem atos jurídicos da União que estabeleçam regras de execução em matéria de sanções administrativas, os Estados‑Membros deverão impor sanções nacionais que sejam efetivas, dissuasivas e proporcionadas.»

10      O artigo 2.o, n.o 1, alínea g), deste regulamento definia o conceito de «irregularidade», na aceção do mesmo, como uma irregularidade na aceção do artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2988/95.

11      O artigo 54.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Disposições comuns», previa:

«1.      Relativamente aos pagamentos indevidos efetuados na sequência de irregularidade ou negligência, os Estados‑Membros pedem o seu reembolso aos beneficiários no prazo de 18 meses após a aprovação de um relatório de controlo ou documento semelhante, indicando a ocorrência da irregularidade e, se for caso disso, a sua receção pelo organismo pagador ou organismo responsável pela recuperação. Os montantes correspondentes são inscritos no registo de devedores do organismo pagador no momento do pedido de reembolso.

[…]

3.      Em casos devidamente justificados, os Estados‑Membros podem decidir não proceder à recuperação. Essa decisão apenas pode ser tomada nos seguintes casos:

[…]

b)      Se a recuperação se revelar impossível devido à insolvência do devedor ou das pessoas juridicamente responsáveis pela irregularidade, verificada e aceite de acordo com o direito nacional do Estado‑Membro em causa.

[…]»

12      O artigo 56.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Disposições específicas para o FEADER», dispunha, no seu primeiro parágrafo:

«Caso sejam detetadas irregularidades e negligências nas operações ou nos programas de desenvolvimento rural, os Estados‑Membros efetuam as correções financeiras através da supressão total ou parcial do financiamento da União em causa. Os Estados‑Membros tomam em consideração a natureza e a gravidade das irregularidades constatadas, bem como o nível do prejuízo financeiro para o FEADER.»

13      O artigo 58.o do Regulamento n.o 1306/2013, sob a epígrafe «Proteção dos interesses financeiros da União», precisa, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros adotam, no âmbito da [Política Agrícola Comum (PAC)], todas as disposições legislativas, regulamentares e administrativas, bem como quaisquer outras medidas necessárias para assegurarem uma proteção eficaz dos interesses financeiros da União, em especial a fim de:

[…]

e)      Recuperar os montantes indevidamente pagos, acrescidos de juros, e, se necessário, intentar ações judiciais para esse efeito.»

14      O artigo 92.o deste regulamento, sob a epígrafe «Beneficiários abrangidos», enunciava, no seu primeiro parágrafo:

«O artigo 91.o é aplicável aos beneficiários que recebem pagamentos diretos ao abrigo do Regulamento (UE) n.o 1307/2013 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, que estabelece regras para os pagamentos diretos aos agricultores ao abrigo de regimes de apoio no âmbito da política agrícola comum e que revoga o Regulamento (CE) n.o 637/2008 do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 73/2009 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 608)], pagamentos ao abrigo dos artigos 46.o e 47.o do Regulamento (UE) n.o 1308/2013 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, que estabelece uma organização comum dos mercados dos produtos agrícolas e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 922/72 (CEE) n.o 234/79 (CE) n.o 1037/2001 e (CE) n.o 1234/2007 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 671)] e prémios anuais ao abrigo do artigo 21.o, n.o 1, alíneas a) e b), dos artigos 28.o a 31.o, e dos artigos 33.o e 34.o do Regulamento (UE) n.o 1305/2013 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, relativo ao apoio ao desenvolvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1698/2005 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 487)].»

 Regulamento Delegado n.o 640/2014

15      O artigo 2.o, n.o 1, segundo parágrafo, ponto 1, do Regulamento Delegado n.o 640/2014 definia o conceito de «beneficiário» como «o agricultor, conforme definido no artigo 4.o, n.o 1, alínea a), do [Regulamento n.o 1307/2013] e referido no artigo 9.o do mesmo regulamento, o beneficiário sujeito à condicionalidade, na aceção do artigo 92.o do [Regulamento n.o 1306/2013], e/ou o beneficiário que recebe apoio no âmbito do desenvolvimento rural, a que se refere o artigo 2.o, n.o 10, do [Regulamento n.o 1303/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, que estabelece disposições comuns relativas ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, ao Fundo Social Europeu, ao Fundo de Coesão, ao Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural e ao Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas, que estabelece disposições gerais relativas ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, ao Fundo Social Europeu, ao Fundo de Coesão e ao Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas, e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1083/2006 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 320)]».

16      O artigo 35.o desse regulamento delegado, sob a epígrafe «Incumprimento dos critérios de elegibilidade, exceto dimensão da superfície ou número de animais, dos compromissos ou de outras obrigações», previa no n.o 6:

«Sempre que se determine que o beneficiário apresentou elementos de prova falsos a fim de receber o apoio ou que não prestou as informações necessárias por negligência, o apoio deve ser recusado ou totalmente retirado. Além disso, o beneficiário deve ser excluído da mesma medida ou tipo de operação no ano em que foi constatado o incumprimento e no ano seguinte.»

 Regulamento n.o 1303/2013

17      Nos termos do artigo 2.o, sob a epígrafe «Definições», do Regulamento n.o 1303/13, conforme alterado pelo Regulamento (UE, Euratom) 2018/1046 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de julho de 2018 (JO 2018, L 193, p. 1):

«Para efeitos do presente regulamento, aplicam‑se as seguintes definições:

[…]

10)      “Beneficiário”, um organismo público ou privado ou uma pessoa singular responsável pelo arranque, ou pelo arranque e execução, das operações; e:

a)      no contexto dos auxílios estatais, o organismo que recebe o auxílio, salvo se o auxílio por empresa for inferior a 200 000 [euros], caso em que o Estado‑Membro em causa pode decidir que o beneficiário é o organismo que concede o auxílio, sem prejuízo dos Regulamentos (UE) n.o 1407/2013 [da Comissão, de 18 de dezembro de 2013, relativo à aplicação dos artigos 107.o e 108.o (TFUE) aos auxílios de minimis (JO 2013, L 352, p. 1)] (UE) n.o 1408/2013 [da Comissão, de 18 de dezembro de 2013, relativo à aplicação dos artigos 107.o e 108.o (TFUE) aos auxílios de minimis no setor agrícola (JO 2013, L 352, p. 9)] e (UE) n.o 717/2014 [da Comissão, de 27 de junho de 2014, relativo à aplicação dos artigos 107.o e 108.o (TFUE) aos auxílios de minimis no setor das pescas e da aquicultura (JO 2014, L 190, p. 45)]; e

b)      no contexto dos instrumentos financeiros no âmbito da parte II, título IV, do presente regulamento, o organismo que executa o instrumento financeiro ou o fundo de fundos, consoante o caso;

[…]»

 Regulamento n.o 1307/13

18      O artigo 4.o do Regulamento n.o 1307/13, sob a epígrafe «Definições e disposições conexas», dispõe, no seu n.o 1:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

a)      “Agricultor” a pessoa singular ou coletiva ou o grupo de pessoas singulares ou coletivas, qualquer que seja o estatuto jurídico que o direito nacional confira ao grupo e aos seus membros, cuja exploração se situa no âmbito de aplicação territorial dos Tratados na aceção do artigo 52.o do TUE em conjugação com os artigos 349.o e 355.o do TFUE, e que exerce uma atividade agrícola;

[…]»

 Direito estónio

19      Nos termos do § 381, n.o 2, do kriminaalmenetluse seadustik (Código de Processo Penal), uma autoridade pública pode, no âmbito de um processo penal, intentar uma ação de reconhecimento de um crédito de direito público se o facto que deu origem a esse crédito se basear, em grande medida, nos mesmos elementos materiais constitutivos da infração objeto do processo.

20      O § 111.o da Euroopa Liidu ühise põllumajanduspoliitika rakendamise seadus (Lei de execução da PAC, RT I 2014, 3), sob a epígrafe «Recuperação da subvenção», prevê, no seu n.o 1:

«Se, após o pagamento da subvenção, se verificar que o pagamento foi feito indevidamente, por causa de irregularidades ou negligências, nomeadamente por não ter sido utilizada para a finalidade prevista, deverá ser reclamado o reembolso parcial ou total da subvenção ao beneficiário nas condições e nos prazos previstos nos Regulamentos [n.os 1303/2013 e 1306/2013], e nos outros regulamentos relevantes da União, nomeadamente ao beneficiário escolhido através de um procedimento de seleção.

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

21      A sociedade X foi inscrita no Registo Comercial na Estónia em 7 de novembro de 2005, tendo o seu registo sido cancelado em 20 de junho de 2019, na sequência da sua fusão com a Y OÜ (a seguir «sociedade Y»). R.M. foi gerente da sociedade X até 18 de dezembro de 2015 e passou seguidamente a ser seu mandatário. A sua mulher, E.M., foi gerente dessa sociedade de 18 de dezembro de 2015 até ao seu cancelamento no Registo Comercial.

22      Por Decisão do Viru Maakohus (Tribunal de Primeira Instância de Viru, Estónia) de 15 de março de 2021, R. M. foi declarado culpado, entre outras, de três fraudes com subvenções. Segundo esse tribunal, R. M., na qualidade de representante da sociedade X, prestou deliberadamente falsas informações ao Põllumajanduse Registrite ja Informatsiooni Amet (Serviço de Informação e Registos Agrícolas, Estónia, a seguir «PRIA») a fim de obter ajudas a título dos programas de desenvolvimento rural da Estónia para os anos de 2007 a 2013 e para os anos de 2014 a 2020 (a seguir «ajudas em causa»). Por conseguinte, o PRIA pagou indevidamente à sociedade X um montante total de 143 737,38 euros a título das ajudas em causa. À condenação de R. M. acresceu igualmente a de E. M., enquanto coautora de duas dessas fraudes com subvenções.

23      Na ação de reconhecimento de um crédito de direito público intentada pela República da Estónia, representada pelo PRIA, esse tribunal condenou ainda R. M. e E. M., a pagar a esse Estado‑Membro o montante das ajudas em causa, indevidamente recebidas pela sociedade X. A esse respeito, R. M. foi condenado a pagar 87 340 euros e E. M., solidariamente com R. M., a pagar os 56 397,38 euros restantes.

24      R. M. e E. M. interpuseram recurso dessa decisão, tanto na parte que as declarou culpadas de fraudes com as subvenções como na parte em que julgou procedente a ação de reconhecimento de um crédito de direito público.

25      Por Decisão do Tartu Ringkonnakohus (Tribunal de Recurso de Tartu, Estónia) de 15 de setembro de 2021, foi confirmada a decisão do Viru Maakohus (Tribunal de Primeira Instância de Viru).

26      R. M. e E. M. interpuseram recursos de cassação dessa decisão no Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia), o órgão jurisdicional de reenvio. Em apoio desses recursos, alegam, nomeadamente, que a ação de reconhecimento de um crédito de direito público intentada pela República da Estónia devia ser julgada inadmissível, pelo facto de a recuperação de uma ajuda indevidamente recebida só poder ser feita a cargo do seu único beneficiário. Ora, se a sociedade X foi cancelada no Registo Comercial, a sociedade Y sucede‑lhe nos seus direitos o obrigações na sequência da fusão das duas sociedades. Todavia, a República da Estónia não prosseguiu o reembolso das ajudas em causa a cargo da sociedade Y.

27      Em 20 de maio de 2022, o órgão jurisdicional de reenvio proferiu um acórdão parcial, no qual confirmou definitivamente a decisão do Tartu Ringkonnakohus (Tribunal de Recurso de Tartu) e a do Viru Maakohus (Tribunal de Primeira Instância de Viru), nomeadamente na medida em que, com essas decisões, R. M. e E. M. tinham sido declarados culpados de fraudes com as subvenções.

28      Em contrapartida, quanto à questão de saber se é possível exigir a R. M. e E. M. o reembolso das ajudas em causa, indevidamente recebidas pela sociedade X, o órgão jurisdicional de reenvio considera que é necessário submeter a questão ao Tribunal de Justiça sob dois aspetos.

29      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se existe uma base jurídica que permita exigir o reembolso dessas ajudas a R. M. e a E. M., tendo em conta a difícil situação financeira da sociedade Y, que parece obstar a que esta reembolse as ajudas indevidamente recebidas pela sociedade X.

30      No caso, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o FEADER contribuiu para o financiamento dos programas de desenvolvimento rural da República da Estónia para os anos de 2007 a 2013 e para os anos de 2014 a 2020, no âmbito dos quais as ajudas em causa tinham sido concedidos. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o Regulamento n.o 1306/2013 constitui o fundamento em que assenta a recuperação dessas subvenções, mesmo que as ajudas tenham sido concedidas e pagas antes da entrada em vigor desse regulamento.

31      Mais precisamente, a recuperação das ajudas em causa, indevidamente recebidas pela sociedade X, tem a sua base jurídica no artigo 56.o, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1306/2013, conjugado com o artigo 54.o, n.o 1, deste regulamento e com o artigo 35.o, n.o 6, primeiro período, do Regulamento n.o 640/2014. Embora essas disposições não prevejam expressamente a possibilidade de exigir o reembolso das ajudas a pessoas diferentes do beneficiário, essa possibilidade está prevista no artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95.

32      Assim, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a resposta à questão relativa à possibilidade ou não de exigir a R. M. e E. M. o reembolso das ajudas em causa depende da questão de saber se o artigo 56.o, primeiro parágrafo, e o artigo 54.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1306/2013, bem como o artigo 35.o, n.o 6, primeiro período, do Regulamento n.o 640/2014, podem ser lidos em conjugação com o artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, no sentido de que a obrigação de reembolsar essas ajudas pode, nas circunstâncias do caso, aplicar‑se igualmente às pessoas que, embora não sendo os beneficiários das referidas ajudas, participaram na irregularidade que levou ao seu pagamento indevido. A resposta a esta questão depende, por sua vez, de saber se o artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95 é, nessa medida, dotado de efeito direto.

33      Ora, nem a redação do Regulamento n.o 2988/95 nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 7.o deste regulamento permitem tirar conclusões claras a este respeito.

34      É certo que, no seu Acórdão de 28 de outubro de 2010, SGS Belgium e o. (C‑367/09, EU:C:2010:648), o Tribunal de Justiça negou qualquer efeito direto ao Regulamento n.o 2988/95 no respeitante às sanções administrativas previstas no seu artigo 5.o, tendo em conta a redação desta disposição e do artigo 7.o desse regulamento. Além disso, resulta dos n.os 44 a 62 desse acórdão que as sanções por lesão dos interesses financeiros da União só podem ser aplicadas às pessoas referidas no artigo 7.o do referido regulamento se assentarem numa base legal clara e inequívoca adotada ao nível da União ou dos Estados‑Membros. Todavia, a obrigação de reembolsar o montante indevidamente recebido de uma ajuda não constitui uma «sanção administrativa», na aceção do artigo 5.o do Regulamento n.o 2988/95, mas sim uma «medida administrativa», na aceção do artigo 4.o deste regulamento. Com efeito, essa obrigação é a simples consequência da constatação de que as condições exigidas para a obtenção da vantagem resultante da regulamentação da União não foram respeitadas, o que torna a ajuda indevida. No entanto, o Tribunal de Justiça declarou, no seu Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Somvao (C‑599/13, EU:C:2014:2462), que, uma vez que o Regulamento n.o 2988/95 se limita a estabelecer regras gerais de controlos e de sanções com a finalidade de proteger os interesses financeiros da União, é com base noutras disposições, a saber e sendo caso disso, disposições setoriais, que deve ocorrer a recuperação de uma ajuda indevidamente recebida.

35      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, existem vários elementos a favor da interpretação no sentido de que o artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, conjugado com a regulamentação setorial relevante que rege a recuperação de uma ajuda indevidamente paga, fornece, nas circunstâncias do caso, um fundamento jurídico relevante para exigir o reembolso das ajudas em causa a cargo de R. M. e de E M. Por um lado, o presente processo diz respeito a uma situação em que a irregularidade que levou à atribuição da ajuda resulta do facto de as pessoas às quais é exigida a recuperação terem deliberadamente fornecido informações incorretas às autoridades nacionais. Por outro lado, não é possível recuperar a ajuda junto do beneficiário devido ao seu desaparecimento, uma vez que a sociedade X foi dissolvida, ao passo que a perspetiva de uma recuperação da ajuda junto do sucessor do referido beneficiário é, à primeira vista, incerta. O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que, nas circunstâncias do caso, R. M. e E. M. podem ser considerados pessoas que participaram na realização da irregularidade cometida pela sociedade X, na aceção do artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95.

36      O próprio legislador da União parece considerar que é possível, em certos casos, exigir o reembolso da ajuda paga na sequência de irregularidades nos programas cofinanciados pelo FEADER também a pessoas que não são por si próprias os beneficiários declarados, como resulta, nomeadamente, do artigo 54.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1306/2013.

37      O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que aceitar uma situação em que a dissolução ou a insolvência de uma pessoa coletiva beneficiária impossibilitasse, em substância, a recuperação de uma ajuda indevidamente paga na sequência de uma irregularidade cometida deliberadamente prejudicaria gravemente os interesses financeiros da União.

38      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio refere que R.M. e E.M. eram não só os representantes da sociedade X, como também agiam rotativamente como sócios únicos dessa sociedade no momento em que as fraudes foram cometidas, tendo R.M. sido o único sócio e o único gerente entre 10 de novembro de 2005 e 18 de dezembro de 2015 e tendo E.M. assumido essas duas funções a partir dessa data até ao cancelamento da sociedade X do registo comercial. Contudo, R.M. continuou a agir em nome da sociedade com base num mandato confiado por E.M., mesmo após ter cedido as suas quotas e ter‑se demitido da gerência dessa sociedade. Há que ter ainda em conta o facto de R. M. e E. M. formarem um casal durante o período em que a sociedade X obteve as ajudas em causa, pelo que se deve considerar que R. M. e E. M. eram os beneficiários efetivos dessa sociedade, cuja atividade dirigiam e controlavam.

39      Coloca‑se, portanto, a questão de saber se estes elementos podem ser considerados suficientes para qualificar não só a sociedade X mas também R. M. e E. M. de beneficiários das ajudas em causa. Nesse caso, não seria necessário recorrer, a título complementar, ao artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95 para as recuperar.

40      Nestas circunstâncias, o Riigikohus (Supremo Tribunal) suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Em circunstâncias como as do processo principal, decorre do artigo 7.o do Regulamento [n.o 2988/95], conjugado com o artigo 56.o, n.o 1, e com o artigo 54.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 1306/2013], bem como com o artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado [n.o 640/2014], uma base jurídica com efeito direto para exigir a restituição de uma ajuda obtida mediante fraude, financiada pelo [FEADER], aos representantes de uma pessoa coletiva beneficiária que intencionalmente prestaram falsas declarações para obter fraudulentamente a ajuda?

2.      Em circunstâncias como as do processo principal, nas quais, na sequência de uma fraude, foi fixada e paga a uma sociedade [por quotas] (Osaühing) uma ajuda a financiar pelo FEADER, podem igualmente ser considerados beneficiários, na aceção do artigo 54.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 1306/2013] e do artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado [n.o 640/2014], os representantes da sociedade beneficiária que praticaram a fraude e que, ao tempo da obtenção fraudulenta da ajuda, eram simultaneamente os beneficiários efetivos desta sociedade?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

41      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao julgador nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. O facto de um órgão jurisdicional nacional ter, no plano formal, formulado uma questão prejudicial com base em certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a esse órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, tenha esse órgão jurisdicional feito ou não referência no enunciado das suas questões. A este respeito, compete ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos de direito da União que exigem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (Acórdão de 21 de setembro de 2023, Juan, C‑164/22, EU:C:2023:684, n.o 24 e jurisprudência referida).

42      A este respeito, há que lembrar que, por força do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2988/95, qualquer irregularidade implica, regra geral, e no caso de uma ajuda ter sido indevidamente recebida, a obrigação de a reembolsar. O artigo 7.o desse regulamento prevê que essa medida administrativa pode igualmente aplicar‑se às pessoas que tenham participado na execução da irregularidade em causa, bem como às pessoas que tenham de responder pela irregularidade ou evitar que ela seja cometida.

43      Ora, o resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o Regulamento n.o 2988/95 se limita a aprovar as regras gerais de controlos e sanções com a finalidade de proteção dos interesses financeiros da União. A recuperação de fundos mal utilizados deve ser efetuada com fundamento noutras disposições, a saber, se for caso disso, com fundamento em disposições setoriais (Acórdão de 26 de maio de 2016, Județul Neamla e Județul Bacău, C‑260/14 e C‑261/14, EU:C:2016:360, n.o 32 e jurisprudência referida).

44      Resulta ainda dessa jurisprudência que, quando a recuperação das quantias indevidamente pagas no âmbito de um programa de apoio, aprovado e cofinanciado pelo FEADER a título do período de programação 2007‑2013, ocorre após o fim do período de programação, a saber, após 1 de janeiro de 2014, essa recuperação deve basear‑se nas disposições do Regulamento n.o 1306/2013 (Acórdão de 18 de janeiro de 2024, Askos Properties, C‑656/22, EU:C:2024:56, n.o 40 e jurisprudência referida).

45      No caso, uma vez que as ajudas em causa beneficiaram de um financiamento pelo FEADER, a recuperação dessas ajudas deve basear‑se no artigo 56.o desse regulamento, uma vez que esse artigo contém, como resulta da sua epígrafe, disposições específicas do FEADER

46      A referida disposição, que prevê que, no caso do FEADER, os Estados‑Membros efetuam as correções financeiras resultantes de irregularidades ou negligências detetadas nas operações ou nos programas de desenvolvimento rural através da supressão total ou parcial do financiamento da União em causa, deve ser lida em conjugação, por um lado, com o artigo 54.o, n.o 1, desse regulamento, que dispõe, em geral, que, em relação a qualquer pagamento indevido resultante de irregularidades ou negligências, os Estados‑Membros devem exigir a recuperação da ajuda ao beneficiário, e, por outro, com o artigo 35.o, n.o 6, primeiro período, do Regulamento Delegado n.o 640/2014, que precisa que a ajuda é retirada na totalidade quando se verifique que o beneficiário forneceu elementos de prova falsos para receber essa ajuda.

47      Nestas condições, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 28 das suas conclusões, há que considerar que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 56.o, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1306/2013, lido, por um lado, em conjugação com o artigo 54.o deste regulamento e com o artigo 35.o, n.o 6, primeiro período, do Regulamento Delegado n.o 640/2014, e, por outro, à luz do artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, deve ser interpretado no sentido de que a recuperação de uma ajuda financiada pelo FEADER e que foi indevidamente recebida na sequência de manobras fraudulentas pode ser exercida não só contra o beneficiário dessa ajuda mas também contra as pessoas que, não podendo ser consideradas beneficiárias da referida ajuda, prestaram deliberadamente falsas informações com vista à sua obtenção.

48      Para responder a esta questão, há que lembrar que, segundo jurisprudência constante, para efeitos da interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o contexto em que se insere e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 13 de julho de 2023, G GmbH, C‑134/22, EU:C:2023:567, n.o 25 e jurisprudência referida).

49      No que respeita, em primeiro lugar, à redação das disposições relevantes do Regulamento n.o 1306/2013 e do Regulamento Delegado n.o 640/2014, refira‑se que esta não permite, por si só, determinar se o reembolso de uma ajuda indevida previsto nessas disposições pode ser exigido a pessoas diferentes dos operadores económicos que cometeram a irregularidade em causa.

50      Com efeito, embora o artigo 54.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1306/2013 disponha que a recuperação de qualquer pagamento indevido deve ser exigida «aos beneficiários», o artigo 56.o desse regulamento limita‑se a indicar o destino dos montantes recuperados pelos Estados‑Membros, sem, todavia, precisar as pessoas a cargo das quais essa recuperação deve ser efetuada. Quanto ao artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado n.o 640/2014, ao mesmo tempo que faz referência ao «beneficiário» da ajuda, também não contém tal indicação.

51      Em segundo lugar, quanto ao contexto em que se inscrevem as disposições relevantes, há que lembrar, por um lado, que o considerando 39 do Regulamento n.o 1306/2013 sublinha a necessidade de os Estados‑Membros prevenirem, detetarem e tratarem eficazmente qualquer irregularidade e que, para o efeito, devem aplicar o Regulamento n.o 2988/95. Daí resulta, como refere o Governo Dinamarquês nas suas observações escritas, que as disposições do Regulamento n.o 1306/2013 devem ser interpretadas em conformidade com as regras gerais do Regulamento n.o 2988/95.

52      Por outro lado, uma vez que o artigo 54.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 1306/2013 permite que os Estados‑Membros não procedam à recuperação de uma ajuda indevidamente recebida devido a uma irregularidade quando se revele impossível por insolvência do devedor «ou das pessoas juridicamente responsáveis pela irregularidade», refira‑se que esta disposição ficaria privada de efeito útil, no que respeita a estas últimas pessoas, se não fosse possível proceder à recuperação da ajuda em causa igualmente a cargo dessas pessoas.

53      Em terceiro lugar, no que respeita aos objetivos da regulamentação em causa, refira‑se que, ao prever uma obrigação de os Estados‑Membros procederem à recuperação de uma ajuda indevidamente recebida devido a uma irregularidade, salvo se existirem motivos legítimos para não proceder a essa recuperação, os artigos 54.o e 56.o do Regulamento n.o 1306/2013 e o artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado n.o 640/2014 prosseguem o objetivo de proteger os interesses financeiros da União, como confirma o artigo 58.o, n.o 1, alínea e), do Regulamento n.o 1306/2013. Ora, a possibilidade de proceder à recuperação de uma ajuda indevidamente recebida a cargo não só do seu beneficiário mas também, de acordo com o artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, das «pessoas que tenham participado na execução da irregularidade e [das] pessoas que tenham de responder pela irregularidade ou evitar que ela seja praticada», é, evidentemente, suscetível de contribuir para a realização desse objetivo, nomeadamente quando o beneficiário é uma pessoa coletiva que já não existe ou não dispõe de recursos suficientes para reembolsar essa ajuda. Esta interpretação justifica‑se, mais especificamente, à luz do objetivo de eficácia da luta contra a fraude, referido no quarto considerando do Regulamento n.o 2988/95.

54      Daí resulta que a interpretação do artigo 56.o, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1306/2013, conjugado com o artigo 54.o, n.o 1, deste regulamento, com o artigo 35.o, n.o 6, primeiro período, do Regulamento Delegado n.o 640/2014, e à luz do artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, bem como, tendo em conta o objetivo da regulamentação de que faz parte, leva a considerar que o referido artigo permite que a recuperação de uma ajuda financiada pelo FEADER e que foi indevidamente recebida na sequência de manobras fraudulentas pode ser exercida não só contra o beneficiário dessa ajuda mas também contra as pessoas que, não podendo ser consideradas beneficiárias da referida ajuda, prestaram deliberadamente falsas informações com vista à sua obtenção.

55      No entanto, há que verificar se tal interpretação respeita o princípio da segurança jurídica, tendo o Tribunal de Justiça declarado que a retirada dos montantes indevidamente pagos só pode ser efetuada em conformidade com este princípio, que exige que uma regulamentação da União permita aos interessados conhecerem com exatidão a extensão das obrigações que lhes impõe (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Somvao, C‑599/13, EU:C:2014:2462, n.os 50, 51 e jurisprudência referida).

56      A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no âmbito da PAC, quando o legislador da União fixa as condições de elegibilidade para a concessão de uma ajuda, a exclusão a que conduz a inobservância de uma dessas condições não constitui uma sanção, mas sim a mera consequência do não preenchimento das referidas condições previstas na lei (Acórdão de 13 de dezembro de 2012, FranceAgriMer, C‑670/11, EU:C:2012:807, n.o 64 e jurisprudência referida).

57      Assim, a obrigação de restituir um benefício indevidamente recebido através de uma prática irregular não viola o princípio da legalidade. Com efeito, a constatação de que as condições exigidas para a obtenção do benefício resultante do direito da União foram criadas artificialmente torna, em todo o caso, indevido o benefício recebido e justifica, portanto, a obrigação de o restituir (v., neste sentido, Acórdão de 13 de dezembro de 2012, FranceAgriMer, C‑670/11, EU:C:2012:807, n.os 63 a 65 e 67 e jurisprudência referida).

58      A este respeito, o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 2988/95 dispõe expressamente que as medidas previstas no artigo 4.o, n.o 1, desse regulamento, incluindo, nomeadamente, a obrigação de reembolsar a ajuda indevidamente recebida, não são consideradas sanções.

59      Ora, no que respeita às pessoas diferentes do beneficiário visadas pelo artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, a obrigação de reembolsar a ajuda em causa constitui uma obrigação à parte, que acresce à obrigação de reembolso que incumbe ao beneficiário.

60      Neste contexto, há que observar que a regulamentação relevante no caso presente é suficientemente clara no que respeita à existência de uma obrigação de reembolso da ajuda para as pessoas que, sem serem beneficiárias de uma ajuda financiada pelo FEADER, prestaram deliberadamente falsas informações com vista à sua obtenção, nomeadamente no caso de o beneficiário da ajuda em causa ou o seu eventual sucessor legal não poderem reembolsar o montante em causa.

61      Com efeito, embora o artigo 56.o do Regulamento n.o 1306/2013 não preveja expressamente essa obrigação, este deve ser lido à luz do seu considerando 39, que indica claramente que os Estados‑Membros devem prevenir, detetar e tratar eficazmente qualquer irregularidade por parte dos beneficiários e que, para esse efeito, se aplica o Regulamento n.o 2988/95. Além disso, o artigo 2.o, n.o 1, alínea g), desse regulamento faz expressamente referência ao Regulamento n.o 2988/95 no que respeita à definição do termo «irregularidade». Ora, por força do artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, como resulta do n.o 42 do presente acórdão, o reembolso da ajuda pode igualmente ser imputado às pessoas que participaram na execução da irregularidade em causa.

62      Daí resulta que as pessoas como as que estão em causa no processo principal, que, sem prejuízo das verificações que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar a esse respeito, prestaram deliberadamente falsas informações para a obtenção de uma ajuda financiada pelo FEADER, devem, portanto, esperar que lhes possa ser pedido o seu reembolso. Por conseguinte, pedir a essas pessoas que reembolsem essa ajuda indevidamente recebida não viola o princípio da segurança jurídica.

63      Em face do exposto há que responder à primeira questão que o artigo 56.o, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1306/2013, lido, por um lado, em conjugação com o artigo 54.o, n.o 1, deste regulamento e com o artigo 35.o, n.o 6, primeiro período, do Regulamento Delegado n.o 640/2014, e, por outro, à luz do artigo 7.o do Regulamento n.o 2988/95, deve ser interpretado no sentido de que a recuperação de uma ajuda financiada pelo FEADER e que foi indevidamente recebida na sequência de manobras fraudulentas pode ser exercida não só contra o beneficiário dessa ajuda mas também contra as pessoas que, não podendo ser consideradas beneficiárias da referida ajuda, prestaram deliberadamente falsas informações com vista à sua obtenção.

 Quanto à segunda questão

64      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 54.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1306/2013 e o artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado n.o 640/2014 devem ser interpretados no sentido de que, quando uma pessoa coletiva obteve uma ajuda agrícola na sequência de manobras fraudulentas imputáveis aos seus representantes, esses representantes, uma vez que, de facto, são eles quem recebe os lucros gerados por essa pessoa coletiva, podem ser considerados «beneficiários» dessa ajuda, na aceção destas disposições.

65      O conceito de «beneficiário» é definido no artigo 2.o, n.o 1, segundo parágrafo, ponto 1, do Regulamento Delegado n.o 640/2014, que completa o Regulamento n.o 1306/2013 no sentido de que se refere ao agricultor conforme definido no artigo 4.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1307/2013 como o beneficiário sujeito à condicionalidade na aceção do artigo 92.o do Regulamento n.o 1306/2013 e/ou o beneficiário do apoio ao desenvolvimento rural a que se refere o artigo 2.o, n.o 10, do Regulamento n.o 1303/2013.

66      Não se pode deixar de observar, sem prejuízo das verificações que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, que R. M. e E. M., na qualidade de representantes da sociedade X, que obteve a ajuda em causa, não estão abrangidos por nenhuma destas três categorias de pessoas.

67      Embora seja certo que, como resulta da resposta à primeira questão, a recuperação de uma ajuda financiada pelo FEADER e que foi indevidamente recebida por uma pessoa coletiva na sequência de manobras fraudulentas imputáveis aos seus representantes também pode ser exercida contra esses representantes, não é menos verdade que não se pode inferir dessa resposta que os referidos representantes podem ser qualificados de «beneficiários», na aceção do artigo 2.o, n.o 1, segundo parágrafo, ponto 1, do Regulamento Delegado n.o 640/2014, quando não estejam preenchidas as condições previstas nessa disposição para o efeito. Pelo contrário, como resulta nomeadamente do n.o 62 do presente acórdão, esses mesmos representantes podem ser obrigados a reembolsar essa ajuda, mesmo quando agiram em nome dessa pessoa coletiva sem terem essa qualidade de «beneficiário».

68      Em face do exposto, há que responder à segunda questão que o artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado n.o 640/2014 deve ser interpretado no sentido de que, no caso de uma pessoa coletiva ter obtido uma ajuda agrícola na sequência de manobras fraudulentas imputáveis aos seus representantes, não é por isso que estes podem ser considerados «beneficiários» dessa ajuda, na aceção dessa disposição, conjugada com o artigo 2.o, n.o 1, segundo parágrafo, ponto 1, desse regulamento delegado, se não estiverem abrangidos por nenhuma das três categorias de pessoas referidas nesta última disposição, mesmo que, de facto, sejam esses representantes quem recebe os lucros gerados por essa pessoa coletiva.

 Quanto às despesas

69      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 56.o, primeiro parágrafo, do Regulamento (UE) n.o 1306/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, relativo ao financiamento, à gestão e ao acompanhamento da Política Agrícola Comum e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 352/78, (CE) n.o 165/94, (CE) n.o 2799/98, (CE) n.o 814/2000, (CE) n.o 1290/2005 e (CE) n.o 485/2008 do Conselho, lido, por um lado, em conjugação com o artigo 54.o, n.o 1, deste regulamento e com o artigo 35.o, n.o 6, primeiro período, do Regulamento Delegado (UE) n.o 640/2014 da Comissão, de 11 de março de 2014, que completa o Regulamento (UE) n.o 1306/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito ao sistema integrado de gestão e de controlo e às condições de recusa ou retirada de pagamentos, bem como às sanções administrativas aplicáveis aos pagamentos diretos, ao apoio ao desenvolvimento rural e à condicionalidade, e, por outro, à luz do artigo 7.o do Regulamento (CE, Euratom) n.o 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias,

deve ser interpretado no sentido de que:

a recuperação de uma ajuda financiada pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural e que foi indevidamente recebida na sequência de manobras fraudulentas pode ser exercida não só contra o beneficiário dessa ajuda mas também contra as pessoas que, não podendo ser consideradas beneficiárias da referida ajuda, prestaram deliberadamente falsas informações com vista à sua obtenção.

2)      O artigo 35.o, n.o 6, do Regulamento Delegado n.o 640/2014

deve ser interpretado no sentido de que:

no caso de uma pessoa coletiva ter obtido uma ajuda agrícola na sequência de manobras fraudulentas imputáveis aos seus representantes, não é por isso que estes podem ser considerados «beneficiários» dessa ajuda, na aceção dessa disposição, conjugada com o artigo 2.o, n.o 1, segundo parágrafo, ponto 1, desse regulamento delegado, se não estiverem abrangidos por nenhuma das três categorias de pessoas referidas nesta última disposição, mesmo que, de facto, sejam esses representantes quem recebe os lucros gerados por essa pessoa coletiva.

Assinaturas


*      Língua do processo: estónio.