Language of document : ECLI:EU:T:2020:335

DESPACHO DO TRIBUNAL GERAL (Décima Secção)

14 de julho de 2020 (*)

«Recurso por omissão e de anulação — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Saída do Reino Unido da União — Pedidos para a adoção de uma decisão que mantenha a cidadania europeia de alguns nacionais do Reino Unido e de uma decisão que comporte várias medidas relativas aos direitos dos nacionais do Reino Unido — Tomada de posição da Comissão — Falta de convite para atuar — Recusa em adotar uma decisão que mantenha a cidadania europeia de alguns cidadãos do Reino Unido — Falta de interesse em agir — Recurso manifestamente inadmissível»

No processo T‑627/19,

Harry Shindler, residente em Porto d’Ascoli (Itália), e outros recorrentes cujos nomes constam em anexo (1), representados por J. Fouchet, advogado,

recorrentes,

contra

Comissão Europeia, representada por F. Erlbacher, C. Giolito e E. Montaguti, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por

Conselho da União Europeia, representado por M. Bauer e R. Meyer, na qualidade de agentes,

interveniente,

que tem por objeto, em primeiro lugar, um pedido apresentado ao abrigo do disposto no artigo 265.o TFUE para que se declare que a Comissão, ilegalmente, não tomou, por um lado, uma decisão que mantenha, a partir da saída do Reino Unido, a cidadania europeia de alguns nacionais do Reino Unido, que, neste momento, não têm a nacionalidade de um Estado‑Membro da União, independentemente da celebração ou não de um acordo que estabeleça as condições dessa saída, e, por outro, uma decisão que comporte diversas medidas relativas aos direitos desses nacionais, no caso de uma saída sem a celebração de tal acordo, e, em segundo lugar, um pedido apresentado ao abrigo do artigo 263.o TFUE para a anulação do ofício da Comissão, de 11 de setembro de 2019, que recusa a tomada de uma decisão que mantenha a cidadania europeia desses nacionais,

O TRIBUNAL GERAL (Décima Secção),

composto por: A. Kornezov, presidente, J. Passer e K. Kowalik‑Bańczyk (relator), juízes,

secretário: E. Coulon,

profere o presente

Despacho (2)

 Antecedentes do litígio

1        Os recorrentes, Harry Shindler e os demais recorrentes cujos nomes constam em anexo, são nacionais do Reino Unido e têm residência, o primeiro, em Itália e, os outros, em França.

2        Em 23 de junho de 2016, os cidadãos do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte pronunciaram‑se em referendo a favor da saída do seu país da União Europeia.

3        Em 29 de março de 2017, o Reino Unido notificou o Conselho Europeu da sua intenção de se retirar da União, nos termos do artigo 50.o, n.o 2, TUE.

4        Em 8 de junho de 2017, realizaram‑se eleições legislativas no Reino Unido.

5        Pela Decisão (UE) 2019/476, de 22 de março de 2019 (JO 2019, L 80 I, p. 1), o Conselho Europeu, com o acordo do Reino Unido, prorrogou o prazo previsto no artigo 50.o, n.o 3, TUE, nos termos do qual os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Reino Unido, na falta de acordo que estabeleça as condições da sua saída. Por força do previsto no artigo 1.o da referida decisão, o período mencionado deveria expirar em 12 de abril de 2019 ou em 22 de maio de 2019.

6        Pela Decisão (UE) 2019/584, de 11 de abril de 2019 (JO 2019, L 101, p. 1), o Conselho Europeu, com o acordo do Reino Unido, prorrogou novamente o prazo mencionado no n.o 5, supra. Por força do previsto no artigo 1.o da referida decisão, esse prazo deveria expirar, em princípio, em 31 de outubro de 2019.

7        Em 31 de julho de 2019, os recorrentes e um outro nacional do Reino Unido, residente em Itália, enviaram uma carta ao Conselho Europeu e ao Conselho da União Europeia. No dia seguinte, enviaram uma carta substancialmente idêntica à Comissão Europeia (a seguir «carta de 1 de agosto de 2019»).

8        Nas cartas referidas no n.o 7, supra, os recorrentes chamaram essencialmente a atenção do Conselho Europeu, do Conselho e da Comissão para a situação dos nacionais do Reino Unido que residem noutros Estados‑Membros que não esse e que aí construíram uma vida privada e familiar, em especial aqueles que, tal como estes, tinham deixado o Reino Unido há mais de 15 anos. Salientaram que, de acordo com a «regra dos 15 anos» (15 years rule), estes nacionais não foram autorizados a participar no referendo de 23 de junho de 2016 nem nas eleições legislativas de 8 de junho de 2017, apesar de se tratar de eleições decisivas para a saída do Reino Unido e para a manutenção do seu estatuto de cidadãos da União. Consequentemente, solicitaram ao Conselho Europeu, ao Conselho e à Comissão que «declarassem a ilegalidade» de «não manter a cidadania europeia dos [mencionados cidadãos]». Além disso, convidaram as três instituições a tomar uma decisão, antes da saída do Reino Unido da União, prevista para 31 de outubro de 2019, que mantivesse a cidadania europeia dos referidos cidadãos após a data dessa saída, independentemente de ter ou não sido celebrado um acordo que estabelecesse as condições dessa saída.

9        Por ofício assinado em 11 de setembro de 2019, a Comissão respondeu à carta de 1 de agosto de 2019 (a seguir «ofício de 11 de setembro de 2019»). Nesse ofício, declinou o convite para atuar contido na carta de 1 de agosto de 2019. Explicou que, a partir da saída do Reino Unido da União, os cidadãos do Reino Unido que não tenham a nacionalidade de um Estado‑Membro da União deixam de ser considerados cidadãos da União. Consequentemente, considerou que os Tratados não lhe permitem tomar uma decisão, a partir da referida saída, sobre a manutenção da cidadania europeia dos nacionais que, nesse momento, não terão a nacionalidade de um Estado‑Membro da União.

 Tramitação processual e pedidos

[omissis]

15      Como medida de organização do processo adotada ao abrigo do artigo 89.o, n.o 3, alínea a), do Regulamento de Processo, o Tribunal Geral colocou uma questão aos recorrentes. Os recorrentes responderam no prazo estabelecido.

[omissis]

17      Os recorrentes concluem pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        «anular o indeferimento expresso de [11] de setembro de 2019, por parte da Comissão, do pedido de reconhecimento de uma omissão»;

–        declarar que a Comissão ilegalmente não adotou, por um lado, uma «decisão que salvaguarde a cidadania europeia dos recorrentes […] com vida privada e familiar nos outros Estados‑Membros da União […] e que não beneficiaram do direito de voto para decidir sobre a saída do [Reino Unido] da União Europeia exclusivamente em razão do exercício da liberdade de circulação (15 year‑rule), haja ou não acordo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia» e, por outro, uma «decisão vinculativa, aplicável de modo uniforme nos demais 27 Estados‑Membros da União Europeia em que vivem [cidadãos] britânicos, que comporte diversas medidas em matéria de entrada, residência, direitos sociais e atividade profissional aplicáveis [a esses cidadãos] na falta de acordo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia»;

–        condenar a Comissão a pagar a cada um deles o montante de 1500 euros a título de despesas.

18      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        julgar o recurso inadmissível ou, não o sendo, como manifestamente improcedente;

–        condenar os recorrentes nas despesas.

 Questão de direito

19      Nos termos do artigo 126.o, do Regulamento de Processo, quando um recurso for manifestamente inadmissível, o Tribunal pode, sob proposta do juiz‑relator, decidir a todo o tempo, por despacho fundamentado, pondo assim termo à instância. No caso em apreço, o Tribunal Geral, considerando‑se suficientemente esclarecido pelas peças processuais, decide, nos termos do referido artigo, pronunciar‑se e pôr termo à instância.

 Quanto ao objeto do litígio

[omissis]

22      Em segundo lugar, tendo em conta a formulação do primeiro pedido dos recorrentes, no qual solicitam a anulação do «indeferimento expresso de [11] de setembro de 2019, por parte da Comissão, […] do pedido de reconhecimento de uma omissão », os mesmos foram convidados, através da medida de organização do processo mencionada no n.o 15, supra, a esclarecer se o recurso se baseou exclusivamente no artigo 265.o TFUE ou se deve ser interpretado como contendo não só pedidos por omissão baseados do artigo 265.o TFUE, mas também pedidos de anulação ao abrigo do artigo 263.o TFUE. Por carta apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 14 de fevereiro de 2020, os recorrentes responderam que o recurso continha tanto pedidos por omissão, baseados no artigo 265.o TFUE, como pedidos de anulação com base no artigo 263.o TFUE.

23      Nestas circunstâncias, deve considerar‑se que, com o seu primeiro pedido, os recorrentes pedem ao Tribunal que anule a decisão contida na carta de 11 de setembro de 2019, na qual a Comissão, em substância, se recusa a adotar uma decisão que salvaguarde, a partir da saída do Reino Unido da União e independentemente da celebração ou não de um acordo que estabeleça as condições dessa saída, a cidadania europeia de alguns nacionais do Reino Unido que não tenham, nesse momento, a nacionalidade de um Estado‑Membro da União.

[omissis]

 Quanto aos pedidos de anulação

40      Tal como referido no n.o 23, supra, os recorrentes pedem a anulação da decisão contida no ofício de 11 de setembro de 2019.

 Quanto à admissibilidade dos pedidos de anulação

[omissis]

43      No caso em apreço, deve notar‑se que, para efeitos da determinação da «omissão» resultante da não adoção, pela Comissão, de uma decisão de salvaguarda da cidadania europeia de alguns cidadãos do Reino Unido no momento da saída do Reino Unido da União, independentemente de ter ou não sido celebrado um acordo que estabeleça as condições dessa saída, os recorrentes apresentam, em substância, três fundamentos para contestar a perda da cidadania europeia por parte desses cidadãos. Estes fundamentos são relativos, em primeiro lugar, à violação dos Tratados, do princípio da segurança jurídica e dos direitos adquiridos; em segundo lugar, à violação do princípio da proporcionalidade e do direito ao respeito pela vida privada e familiar, e, em terceiro lugar, à privação ilegal do direito ao voto no referendo de 23 de junho de 2016 e nas eleições legislativas de 8 de junho de 2017, tendo esta privação do direito ao voto violado o «princípio do contraditório», o direito de circular e de residir livremente no território dos Estados‑Membros, o direito ao respeito pela vida privada familiar, bem como o «princípio da igualdade no direito de voto».

44      Ora, por ofício de 11 de setembro de 2019, objeto dos pedidos de anulação, a Comissão recusou‑se, precisamente, a adotar uma decisão de salvaguarda da cidadania europeia de alguns nacionais do Reino Unido. Por conseguinte, embora seja invocada uma «omissão» por parte da Comissão, os fundamentos e argumentos enumerados no n.o 43, supra devem ser considerados como sendo também apresentados como base dos pedidos de anulação.

[omissis]

 Quanto à admissibilidade dos fundamentos dos pedidos de anulação.

46      Há que verificar oficiosamente que os recorrentes têm interesse em invocar os fundamentos dos pedidos de anulação enumerados no n.o 43, supra.

47      Com efeito, deve recordar‑se que, segundo jurisprudência constante, por um lado, um recorrente não pode ter um interesse legítimo na anulação de uma decisão sobre a qual é desde já certo que não deixará de ser de novo confirmada no que lhe diz respeito e, por outro, um fundamento de anulação é inadmissível por falta de interesse em agir quando, mesmo admitindo que pudesse proceder, a anulação do ato com base nesse fundamento não seja suscetível de dar satisfação ao recorrente. (v. Acórdãos de 9 de junho de 2011, Evropaïki Dynamiki/BCE, C‑401/09 P, EU:C:2011:370, n.o 49 e jurisprudência referida, e de 27 de março de 2019, Canadian Solar Emea e o./Conselho, C‑236/17 P, EU:C:2019:258, n.o 93).

48      Assim, um recorrente não demonstra interesse em pedir a anulação de uma decisão com base num determinado fundamento quando a instituição em causa não dispõe de qualquer margem de discricionariedade e é obrigada a atuar como o fez. Num caso semelhante de competência associada, a anulação da referida decisão com base nesse fundamento só poderia dar lugar a uma nova decisão idêntica, na parte dispositiva, à decisão anulada (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de julho de 1983, Geist/Comissão, 117/81, EU:C:1983:191, n.o 7; de 20 de maio de 1987, Souna/Comissão, 432/85, EU:C:1987:236, n.o 20; e de 28 de novembro de 2019, Portigon/CRU, T‑365/16, EU:T:2019:824, n.o 192).

49      A fortiori, um recorrente não demonstra interesse em pedir a anulação de uma decisão de recusa para atuar numa determinada matéria com base num determinado fundamento quando, em todo o caso, a instituição em causa não dispõe de competência para atuar nessa matéria, pelo que a anulação de tal decisão com base nesse fundamento só poderia dar lugar a uma nova decisão de recusa para atuar nessa matéria.

50      No presente caso, se a decisão contida no ofício de 11 de setembro de 2019 fosse anulada com base nos fundamentos enumerados no n.o 43, supra, os recorrentes só poderiam obter a satisfação se, aceitando o convite para atuar contido na carta de 1 de agosto de 2019, a Comissão adotasse, ela própria, um ato vinculativo que mantivesse, a partir da saída do Reino Unido da União, a cidadania europeia de alguns nacionais do Reino Unido.

51      Ora, é importante recordar que, nos termos do artigo 13.o, n.o 2, TUE, cada instituição atua dentro dos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados, de acordo com os procedimentos, condições e finalidades que estes estabelecem. Daí resulta que, como a mesma defende, a Comissão só pode atuar com base nas competências que lhe são atribuídas pelos Tratados.

52      É, portanto, necessário analisar se a Comissão é competente para atuar no sentido pretendido pelos recorrentes.

53      A este respeito, independentemente da questão de saber se da saída do Reino Unido da União poderia ou não resultar uma perda da cidadania europeia por parte de todos os cidadãos do Reino Unido que, no momento dessa saída, não tivessem a nacionalidade de um Estado‑Membro, há que declarar que nenhuma disposição dos Tratados ou do direito derivado autoriza a Comissão a adotar atos vinculativos que tenham por objetivo conceder a cidadania europeia a certas categorias de pessoas.

54      O facto de a Comissão não ser competente a este respeito é corroborado pelo facto de esta instituição, em princípio, ter apenas poder para apresentar propostas, conforme decorre do artigo 17.o, n.o 2, TUE.

55      Além disso, embora aleguem que a Comissão é competente para preservar a cidadania europeia dos cidadãos do Reino Unido no momento da saída do Reino Unido da União, os recorrentes não fazem referência a qualquer disposição que habilite a própria Comissão a praticar atos vinculativos que tenham por objeto conceder ou manter a cidadania europeia em benefício de certas categorias de pessoas. Embora seja verdade que, na petição, os recorrentes fazem alusão ao artigo 25.o, segundo parágrafo, TFUE, basta salientar que esta disposição não confere poder decisório à Comissão, mas ao Conselho, ao Parlamento Europeu e aos Estados‑Membros.

56      Nestas condições, a Comissão não é, com toda a evidência, competente para adotar, ela própria, um ato vinculativo como a cidadania europeia de alguns nacionais do Reino Unido, a partir da saída do Reino Unido da União.

57      Consequentemente, independentemente da questão de saber se da saída do Reino Unido da União pode ou não resultar uma perda da cidadania europeia por parte de todos os cidadãos do Reino Unido que, no momento dessa saída, não têm a nacionalidade de um Estado‑Membro, a Comissão não possuía, no presente caso, qualquer competência para adotar um ato vinculativo que mantivesse, a partir dessa saída, a cidadania da União de certas categorias de pessoas e era obrigada a recusar a adoção do ato solicitado pelos recorrentes.

58      Daqui resulta que, em caso de anulação da decisão contida no ofício de 11 de setembro de 2019, com base nos fundamentos enumerados no n.o 43, supra, a Comissão encontrar‑se‑ia numa situação de manifesta incompetência e só poderia tomar uma nova decisão de recusar a adoção do ato solicitado pelos recorrentes. Assim, tal anulação não seria suscetível de satisfazer os recorrentes, uma vez que estes últimos não demonstram ter um interesse legítimo para suscitar os fundamentos enumerados no n.o 43, supra. Estes fundamentos devem, portanto, ser considerados inadmissíveis.

59      Nestas circunstâncias, na falta de qualquer fundamento admissível, os pedidos de anulação são, eles próprios, manifestamente inadmissíveis.

[omissis]

61      Resulta do que precede que deve ser negado provimento ao recurso na íntegra.

[omissis]

Por estes fundamentos,

O TRIBUNAL GERAL (Décima Secção)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      Harry Shindler e os outros recorrentes cujos nomes constam em anexo são condenados nas despesas, incluindo as relativas ao processo de medidas provisórias.

3)      O Conselho da União Europeia suportará as suas próprias despesas.

Feito no Luxemburgo, em 14 de julho de 2020.

O Secretário

 

O Presidente

E. Coulon

 

A. Kornezov


*      Língua do processo: francês.


1      A lista dos outros recorrentes é anexada apenas à versão notificada às partes.


2      São apenas reproduzidas as partes do presente despacho cuja publicação o Tribunal Geral considera útil.