Language of document : ECLI:EU:T:2005:365

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Terceira Secção)

19 de Outubro de 2005 (*)

«Pesca – Conservação dos recursos do mar – Estabilidade relativa das actividades da pesca de cada Estado‑Membro – Troca de quotas de pesca – Transferência para a República Francesa de uma parte da quota de pesca de biqueirão atribuída à República Portuguesa – Anulação das disposições que autorizam esta transferência – Diminuição das possibilidades de pesca efectivas do Reino de Espanha – Responsabilidade extracontratual da Comunidade – Regra de direito que confere direitos aos particulares – Realidade do prejuízo»

No processo T‑415/03,

Cofradía de pescadores de «San Pedro» de Bermeo, com sede em Bermeo (Espanha), e os outros demandantes cujos nomes figuram em anexo ao presente acórdão, representados por E. Garayar Gutiérrez, G. Martínez‑Villaseñor, A. García Castillo e M. Troncoso Ferrer, advogados,

demandantes,

contra

Conselho da União Europeia, representado por M. Balta e F. Florindo Gijón, na qualidade de agentes,

demandado,

apoiado por

Comissão das Comunidades Europeias, representada inicialmente por T. van Rijn e S. Pardo Quintillán e, posteriormente, por van Rijn e F. Jimeno Fernández, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

e

República Francesa, representada por G. de Bergues e A. Colomb, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

intervenientes,

que tem por objecto uma acção de indemnização para obter a reparação do prejuízo alegadamente sofrido pelos demandantes na sequência da autorização pelo Conselho da transferência para a República Francesa de uma parte da quota de biqueirão atribuída à República Portuguesa,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA
DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Terceira Secção),

composto por: M. Jaeger, presidente, V. Tiili e O. Czúcz, juízes,

secretário: J. Palacio González, administrador principal,

vistos os autos e após a audiência de 17 de Março de 2005,

profere o presente

Acórdão

 Quadro jurídico e antecedentes do litígio

1.     Totais admissíveis de capturas

1        O artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do Acto relativo às condições de adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às adaptações dos tratados (JO 1985, L 302, p. 23, a seguir «acto de adesão») atribuiu ao Reino de Espanha 90% do total admissível de capturas (a seguir «TAC») de anchova (biqueirão) da zona das águas abrangidas pelo Conselho Internacional de Exploração do Mar (a seguir «zona CIEM VIII»), a saber o golfo da Gasconha, sendo 10% atribuídos à República Francesa. Além disso, em conformidade com o princípio da estabilidade relativa das actividades de pesca de cada Estado‑Membro de cada uma das unidades populacionais consideradas (a seguir «princípio da estabilidade relativa»), enunciado pela primeira vez no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 170/83 do Conselho, de 25 de Janeiro de 1983, que institui um regime comunitário de conservação e de gestão dos recursos da pesca (JO L 24, p. 1), o TAC de biqueirão das divisões IX e X das águas abrangidas pelo Conselho Internacional para a Exploração do Mar (a seguir, respectivamente, «zona CIEM IX» e a «zona CIEM X») e da divisão 34.1.1 do plano elaborado pelo Comité das Pescas do Atlântico do Centro‑Este (a seguir «zona Copace 34.1.1»), situadas a oeste e a sudoeste da Península Ibérica, foi distribuído entre o Reino de Espanha e a República Portuguesa, na proporção de, aproximadamente, 48% para o Reino de Espanha e 52% para a República Portuguesa.

2        O Regulamento (CEE) n.° 3760/92 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1992, que institui um regime comunitário da pesca e da aquicultura (JO L 389, p. 1) adoptado com base no artigo 43.° do Tratado CE, previa no seu artigo 2.°, n.° 1:

«No que se refere às actividades de exploração, os objectivos gerais da política comum da pesca serão proteger e manter disponíveis e acessíveis os recursos aquáticos marinhos vivos e prever a sua exploração racional e responsável, numa base sustentável, em condições económica e socialmente apropriadas para o sector, tendo em conta as suas implicações para o ecossistema marinho e tendo especialmente em conta as necessidades dos produtores e dos consumidores.

Para esse efeito, é estabelecido um regime comunitário de gestão das actividades de exploração que permitirá alcançar, de forma duradoura, um equilíbrio entre os recursos e a exploração nas diferentes áreas da pesca.»

3        O artigo 4.° do Regulamento n.° 3760/92 previa:

«1.      Com o objectivo de garantir uma exploração racional e responsável dos recursos numa base sustentável, o Conselho, deliberando, salvo disposição em contrário, de acordo com o processo previsto no artigo 43.° do Tratado, estabelecerá as medidas comunitárias que estipulem as condições de acesso às águas e aos recursos e de exercício das actividades de exploração. Essas medidas serão elaboradas em função das análises biológicas, socioeconómicas e técnicas disponíveis, e, especialmente, dos relatórios elaborados pelo comité previsto no artigo 16.°

2.      Essas disposições podem incluir, nomeadamente, medidas relativas a cada pescaria ou grupo de pescarias destinadas a:

[...]

b)      limitar as taxas de exploração;

c)      Fixar limites de captura quantitativos;

[...]»

4        O artigo 8.°, n.° 1, do Regulamento n.° 3760/92 dispunha que, nos termos do artigo 4.°, a taxa de exploração podia ser regulada pela limitação do volume de capturas autorizadas e, se necessário, do esforço de pesca no período em causa.

5        Nos termos do artigo 8.°, n.° 4, alíneas i) e ii), do mesmo regulamento, o Conselho, deliberando por maioria qualificada sob proposta da Comissão, determinava, para cada pescaria ou grupo de pescarias, e caso a caso, o TAC e/ou o esforço de pesca total admissível, se necessário, numa base plurianual e repartia as oportunidades de pesca entre os Estados‑Membros, de modo a assegurar o princípio da estabilidade relativa das actividades de pesca para cada stock considerado. Contudo, na sequência de pedidos formulados pelos Estados‑Membros directamente interessados, podia ser tomado em consideração o estabelecimento de miniquotas e de trocas regulares de quotas feitas desde 1983, tendo na devida atenção o equilíbrio global dos contingentes.

6        Os décimo primeiro a décimo quarto considerandos do Regulamento n.° 3760/92 definem o princípio da estabilidade relativa do seguinte modo:

«considerando que, em relação aos tipos de recursos cujas taxas de exploração devem ser limitadas, as possibilidades de pesca da Comunidade devem ser fixadas em termos de possibilidades de pesca para os Estados‑Membros, repartidas em quotas e, sempre que necessário, em termos de esforço de pesca;

considerando que a conservação e a gestão dos recursos devem contribuir para uma maior estabilidade das actividades de pesca e ser avaliadas com base na repartição de referência que reflicta as orientações dadas pelo Conselho;

considerando […] que essa estabilidade, dada a situação biológica temporária das unidades populacionais, deve salvaguardar as necessidades especiais das regiões em que as populações locais estão especialmente dependentes da pesca e de actividades subsidiárias […]

considerando, portanto, que é nesse sentido que se deve compreender a noção de estabilidade relativa pretendida».

7        Com base no artigo 8.°, n.° 4, do Regulamento n.° 3760/92, o Conselho fixou os TAC de certos stocks haliêuticos para os anos de 1995 à 2001 adoptando os seguintes regulamentos:

–        Regulamento (CE) n.° 3362/94 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1994, que fixa os totais admissíveis de capturas para 1995 e certas condições em que podem ser pescadas determinadas unidades populacionais ou grupos de unidades populacionais de peixes (JO L 363, p. 1), alterado, nomeadamente pelo Regulamento n.° 746/95 do Conselho, de 31 de Março de 1995 (JO L 74, p. 1)

–        Regulamento (CE) n.° 3074/95 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1995, que fixa os totais admissíveis de capturas para 1996 e certas condições em que podem ser pescadas determinadas unidades populacionais ou grupos de unidades populacionais de peixes (JO L 330, p. 1)

–        Regulamento (CE) n.° 390/97 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1996, que fixa os totais admissíveis de capturas para 1997 e certas condições em que podem ser pescadas determinadas unidades populacionais ou grupos de unidades populacionais de peixes (JO L 66, p. 1)

–        Regulamento (CE) n.° 45/98 do Conselho, de 19 de Dezembro de 1997, que fixa os totais admissíveis de capturas para 1998 e certas condições em que podem ser pescadas determinadas unidades populacionais ou grupos de unidades populacionais de peixes (JO L 12, p. 1)

–        Regulamento (CE) n.° 48/1999 do Conselho, de 18 de Dezembro de 1998, que fixa os totais admissíveis de capturas para 1999 e certas condições em que podem ser pescadas determinadas unidades populacionais ou grupos de unidades populacionais de peixes (JO L 13, p. 1)

–        Regulamento (CE) n.° 2742/1999 do Conselho, de 17 de Dezembro de 1999, que fixa, para 2000, em relação a determinadas unidades populacionais de peixes ou grupos de unidades populacionais de peixes, as possibilidades de pesca e as respectivas condições aplicáveis nas águas comunitárias e, para os navios de pesca comunitários, nas águas em que são necessárias limitações das capturas, e que altera o Regulamento (CE) n.° 66/98 (JO L 341, p. 1)

–        Regulamento (CE) n.° 2848/2000 do Conselho, de 15 de Dezembro 2000, que fixa, para 2001, em relação a determinadas unidades populacionais de peixes ou grupos de unidades populacionais de peixes, as possibilidades de pesca e as respectivas condições aplicáveis nas águas comunitárias e, para os navios de pesca comunitários, nas águas em que são necessárias limitações das capturas (JO L 334, p.1).

8        Quanto à zona CIEM VIII, cada um destes regulamentos fixou um TAC de biqueirão de 33 000 toneladas, repartidas em 29 700 toneladas para o Reino de Espanha e 3 300 toneladas para a República Francesa, independentemente do local das capturas. Com efeito, embora na sua versão inicial, o Regulamento n.° 2742/1999 prevesse um TAC de 16 000 toneladas, repartidas em 14 400 toneladas para o Reino de Espanha e 1 600 toneladas para a República Francesa, este regulamento, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) n.° 1446/2000 do Conselho, de 16 de Junho de 2000 (JO L 163, p. 3), fixou igualmente um TAC de 33 000 toneladas.

9        Quanto à zona CIEM IX, à zona CIEM X e à zona Copace 34.1.1, para os anos de 1995 à 1998, a quinta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 746/95, a décima terceira rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 3074/95, a décima quarta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 390/97 e a décima quinta rubrica do Anexo I do Regulamento 45/98 fixaram, cada uma, um TAC de biqueirão de 12 000 toneladas, repartidas em 5 740 toneladas para o Reino de Espanha e 6 260 toneladas para a República Portuguesa. Para o ano de 1999, a décima quinta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 48/1999 fixou um TAC de biqueirão de 13 000 toneladas, repartidas em 6 220 toneladas para o Reino de Espanha e 6 780 toneladas para a República Portuguesa. Por fim, para os anos de 2000 e 2001, a nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2742/1999, a nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2848/2000 fixaram, cada uma, um TAC de biqueirão de 10 000 toneladas, repartidas em 4 780 toneladas para o Reino de Espanha e 5 220 toneladas para a República Portuguesa.

10      As modalidades de gestão dos TAC e das quotas foram definidos pelo Regulamento (CEE) n.° 2847/93 do Conselho, de 12 de Outubro de 1993, que institui um regime de controlo aplicável à política comum das pescas (JO L 261, p. 1), o qual prevê, no seu artigo 21.°

«1.      Todas as capturas de uma unidade populacional ou de um grupo de unidades populacionais sujeitas a quotas e efectuadas por navios de pesca comunitários serão deduzidas da quota aplicável ao Estado‑Membro da bandeira em relação à unidade populacional ou grupo de unidades populacionais em causa, independentemente do local de desembarque.

2.      Cada Estado‑Membro fixará a data a partir da qual se considera que as capturas de uma unidade populacional ou de um grupo de unidades populacionais, sujeitas a quotas e efectuadas por navios de pesca que arvorem o seu pavilhão ou nele estejam registados, esgotaram a quota que lhes é aplicável, em relação a essa unidade populacional ou a esse grupo de unidades populacionais. A partir dessa data, o Estado‑Membro proibirá provisoriamente a pesca de peixes dessa unidade populacional ou grupo de unidades populacionais pelos referidos navios […] Esta medida será imediatamente notificada à Comissão, que dela informará os outros Estados‑Membros.

3.      Na sequência de uma notificação nos termos do n.° 2, ou por sua própria iniciativa, a Comissão fixará, com base nas informações disponíveis, a data em que, em relação a uma unidade populacional ou grupo de unidades populacionais, se considera que as capturas sujeitas a TACs, a quotas ou a outra forma de limitação quantitativa, efectuadas por navios de pesca que arvorem pavilhão de um Estado‑Membro ou que estejam registados num Estado‑Membro, esgotaram a quota, a atribuição ou a parte disponível desse Estado‑Membro ou, se for caso disso, da Comunidade.

Aquando da apreciação da situação a que se refere o primeiro parágrafo, a Comissão avisará os Estados‑Membros em causa das perspectivas de suspensão de uma pescaria na sequência do esgotamento de um TAC.

Os navios de pesca comunitários suspenderão a pesca de uma unidade populacional ou de um grupo de unidades populacionais sujeitas a uma quota, ou a um TAC, na data em que se considere que foi esgotada a quota atribuída a esse Estado em relação à unidade populacional ou grupo de unidades populacionais em causa ou na data em que se considere que foi esgotado o TAC das espécies que constituem a unidade populacional ou o grupo de unidades populacionais. [...]»

2.     Intercâmbio de quotas

11      Nos termos do artigo 9.°, n.° 1, do Regulamento n.° 3760/92, os Estados‑Membros podem, após notificação da Comissão, trocar entre si a totalidade ou parte das disponibilidades de pesca que lhes tenham sido atribuídas.

12      O Regulamento (CE) n.° 685/95 do Conselho, de 27 de Março de 1975, relativo à gestão dos esforços de pesca no que respeita a determinadas zonas e recursos de pesca comunitários (JO L 71, p. 5), que foi adoptado com base no artigo 43.° do Tratado, dispunha, no seu artigo 11.°, n.° 1, que os Estados‑Membros em causa podiam proceder a uma troca das possibilidades de pesca que lhes tinham sido atribuídas, de acordo com as condições referidas no ponto 1 do Anexo IV.

13      Nos termos do ponto 1, 1.1, do referido anexo:

«O intercâmbio entre a França e Portugal é tacitamente renovável durante o período compreendido entre 1995 e 2002, sob reserva da possibilidade de cada Estado‑Membro alterar anualmente as suas condições aquando da fixação anual dos TAC e quotas.

Os seguintes TAC são abrangidos pelo referido intercâmbio:

i)      Logo que seja fixado um TAC comum de biqueirão para as zonas CIEM VIII e IX, 80% das possibilidades de pesca de Portugal serão anualmente cedidas à França, percentagem que deverá ser pescada exclusivamente nas águas sob soberania ou jurisdição da França;

[...]»

14      Nos termos do ponto 1, 1.2 do mesmo anexo:

«O intercâmbio entre a Espanha e a França, baseado no acordo bilateral de 1992 relativo ao biqueirão, efectuar‑se‑á a partir de 1995 numa perspectiva plurianual, tendo em consideração as preocupações dos dois Estados‑Membros, incluindo nomeadamente o nível do intercâmbio anual de quotas, as medidas de controlo e os problemas de mercado, sob reserva da possibilidade de cada Estado‑Membro alterar anualmente as suas condições aquando da fixação anual dos TAC e quotas.

Os seguintes TAC são abrangidos pelo referido intercâmbio:

[…]

ix)      No que respeita ao TAC de biqueirão na zona CIEM VIII, 9 000 toneladas das possibilidades de pesca da Espanha serão anualmente cedidas à França»

15      No que respeita ao TAC de biqueirão para a zona CIEM IX, para a zona CIEM X e para a zona Copace 34.1.1, a quinta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 746/95, a décima terceira rubrica do Regulamento n.° 3074/95, a décima quarta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 390/97 e a décima quinta rubrica do Anexo I dos Regulamentos n.os 45/98 e 48/1999 precisam, na sua nota 3, que, em derrogação da regra segundo a qual as quotas de biqueirão atribuídas nessa zona só podiam ser pescadas nas águas sob a soberania ou jurisdição do Estado‑Membro em causa ou nas águas internacionais da zona considerada, da quota da República Portuguesa, «5 008 toneladas, no máximo, pod[iam] ser pescadas nas águas da subárea CIEM VIII sob a soberania ou a jurisdição da França».

16      De igual modo, a nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2742/1999 precisava, na sua nota 2, que, da quota da República Portuguesa «3 000 toneladas pod[iam] ser pescadas nas águas da subárea CIEM VIII sob a soberania ou jurisdição da França».

17      Por fim, a nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2848/2000 precisava, na sua nota 2, que da quota da República Portuguesa «até 80% [das toneladas] pod[iam] ser pescadas nas águas da subzona CIEM VIII sob a soberania ou jurisdição da França», o que representava 4 176 toneladas.

18      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 9 de Junho de 1995, o Reino de Espanha pediu, nos termos do artigo 173.°, primeiro parágrafo, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 230.°, primeiro parágrafo, CE), a anulação do ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, alínea i), do Anexo IV do Regulamento (CE) n.° 685/95 e da quinta rubrica do Anexo I do Regulamento (CE) n.° 746/95. O Tribunal de Justiça julgou esse recurso improcedente (acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Outubro de 1999, Espanha/Conselho, C‑179/95, Colect., p. I‑6475, a seguir «acórdão de 5 de Outubro de 1999»).

19      Por petições apresentadas na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 11 de Março de 2000 e 27 de Março de 2000, 62 armadores das províncias das Astúrias, da Corunha, de Pontevedra e de Lugo e três federações de armadores das províncias de Guipúzcoa, de Cantábria e de Biscaia, por um lado, pediram a anulação, por força do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, da nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2742/1999 e, por outro, alegaram ilegalidade, por força do artigo 241.° CE, do ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, alínea i), do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95. Estes recursos foram julgados inadmissíveis (despacho do Tribunal de Primeira Instância de 19 de Setembro de 2001, Federación de Cofradías de Pescadores de Guipúzcoa e o./Conselho, T‑54/00 e T‑73/00, Colect., p. II‑2691, a seguir «despacho de 19 de Setembro de 2001»).

20      Por acórdão de 18 de Abril de 2002, Espanha/Conselho (C‑61/96, C‑132/97, C‑45/98, C‑27/99, C‑81/00 e C‑22/01, Colect., p. I‑3439, a seguir«acórdão de 18 de Abril de 2002»), o Tribunal de Justiça anulou, a pedido do Reino de Espanha, a nota 3 da décima terceira rubrica do anexo do Regulamento n.° 3074/95, a nota 3 da décima quarta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 390/97, a nota 3 da décima quinta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 45/98, a nota 3 da décima quinta rubrica do Anexo I do Regulamento n.° 48/1999, a nota 2 da nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2742/1999 e a nota 2 da nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2848/2000 (a seguir «disposições anuladas»).

 Tramitação processual

21      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 18 de Dezembro de 2003, 98 armadores das províncias espanholas de Guipúzcoa e de Biscaia e onze associações de pescadores («Cofradías de pescadores») das províncias de Guipúzcoa e de Biscaia, agindo simultaneamente em nome de 59 armadores seus associados e em seu próprio nome (a seguir «demandantes») intentaram, com base no artigo 235.° CE e no artigo 288.°, segundo parágrafo, CE, a presente acção.

22      Nos termos do artigo 44.°, n.° 6, do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, os demandantes procederam, a pedido do Secretário, à regularização de determinados anexos da sua petição por documentos apresentados na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 6 e 13 de Janeiro de 2004.

23      Por requerimentos apresentados na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 29 de Março e em 29 de Abril de 2004, respectivamente, a Comissão e a República Francesa, formularam pedidos de intervenção em apoio dos pedidos do Conselho.

24      Por despachos de 17 de Maio e de 15 de Junho de 2004, respectivamente, foi admitida a intervenção da Comissão e da República Francesa.

25      Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal de Primeira Instância (Terceira Secção) decidiu iniciar a fase oral e, no âmbito das medidas de organização do processo, convidou as partes a apresentarem determinados documentos e a responderem a perguntas escritas. As partes deram cumprimento a estes pedidos nos prazos previstos.

26      As partes foram ouvidas em alegações e em respostas às perguntas orais na audiência pública de 17 de Março de 2005.

27      Na audiência, os representantes dos demandantes retiraram da lista dos demandantes os dezasseis armadores titulares das seguintes embarcações: Gure Leporre, Lezoko Gurutze, Ortube Berria e Waksman.

28      Em 31 de Maio de 2005, os demandantes apresentaram diversos documentos e pediram que fosse efectuada uma peritagem para analisar a incidência da transferência ilegal e da alegada sobreexploração de biqueirão na actual situação da pesca. O Conselho e a Comissão apresentaram as suas observações em 5 de Setembro e em 4 de Julho de 2005, respectivamente.

 Pedidos das partes

29      Os demandantes concluem pedindo que o Tribunal se digne:

–        Declarar que, ao transferir, por aplicação dos Regulamentos n.° 3074/95, n.° 390/97, n.° 45/98, n.° 48/1999, n.° 2742/1999 e n.° 2848/2000, uma parte da quota de biqueirão atribuída à República Portuguesa na zona CIEM IX para a República Francesa, de modo a essa quota poder ser pescada na zona CIEM VIII, foi criada responsabilidade extracontratual da Comunidade, por acto do Conselho;

–        condenar o Conselho a reparar o prejuízo sofrido e, eventualmente, a pagar juros de mora;

–        condenar o Conselho nas despesas e a Comissão a República Francesa nas suas próprias despesas.

30      O Conselho, apoiado pela Comissão pela República Francesa, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        julgar a acção inadmissível quanto às associações de pescadores de Guipúzcoa e de Biscaia, que actuam, consoante o caso, em nome dos seus associados ou em seu próprio nome, quanto aos armadores das embarcações Dios te salve, Gure Leporre, Lezoko Gurutze, Ortube Berria, Tuku Tuku e Waksman, e quanto aos danos causados antes de 18 de Dezembro de 1998;

–        em todo o caso, julgar a acção improcedente;

–        condenar os demandantes nas despesas.

 Matéria de direito

31      O Conselho, apoiado pela Comissão e pela República Francesa, conclui pela inadmissibilidade parcial da acção na parte em que é intentada pelas associações de pescadores de Guipúzcoa e de Biscaia e por determinados armadores demandantes. Por outro lado, o Conselho alega inadmissibilidade parcial da acção, por prescrição.

32      Resulta do acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de Fevereiro de 2002, Conselho/Boehringer (C‑23/00 P, Colect., p. I‑1873, n.° 52), que cabe ao Tribunal de Primeira Instância apreciar em que consiste uma boa administração da justiça nas circunstâncias do caso. No caso em apreço, o Tribunal de Primeira Instância entende oportuno pronunciar‑se, em primeiro lugar, quanto ao mérito da acção.

33      Em apoio da presente acção, os demandantes alegam estarem cumpridas as condições a que está subordinado o direito ao ressarcimento por força do artigo 288.°, segundo parágrafo, CE.

34      Há que recordar que, de acordo com uma jurisprudência constante em matéria de responsabilidade extracontratual da Comunidade, se reconhece um direito a reparação desde que se encontrem reunidas três condições, ou seja, que a regra de direito violada tenha por objecto conferir direitos aos particulares e que a sua violação seja suficientemente caracterizada, que a existência do prejuízo seja demonstrada e, por último, que exista um nexo de causalidade directo entre a violação imputável à Comunidade e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas (acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 14 de Novembro de 2002, Rica Foods e Free Trade Foods/Comissão, T‑332/00 e T‑350/00, Colect., p. II‑4755, n.° 222 e de 10 de Abril de 2003, Travelex Global and Financial Services e Interpayment Services/Comissão, T‑195/00, Colect., p. II‑1677, n.° 54; v., também neste sentido, acórdãos do Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2000, Bergaderm e Goupil/Comissão, C‑352/98 P, Colect., p. I‑5291, n.° 42; de 10 de Dezembro de 2002, Comissão/Camar e Tico C‑312/00 P, Colect., p. I‑11355, n.° 53 e, de 10 de Julho de 2003, Comissão/Fresh Marine C‑472/00 P, Colect p. I‑7541, n.° 25).

35      Segundo a jurisprudência, quando uma das condições relativas à existência da responsabilidade extracontratual não estiver preenchida, a acção deve ser julgada improcedente na sua totalidade, sem ser necessário examinar as outras condições (acórdãos do Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 1999, Atlanta/Comissão e Conselho, C‑104/97 P, Colect., p. I‑6983, n.° 65, e do Tribunal de Primeira Instância de 28 de Novembro de 2002, Scan Office Design/Comissão, T‑40/01, Colect., p. II‑5043, n.° 18).

36      No caso vertente, há que verificar se estão preenchidas essas três condições.

1.     Quanto à violação suficientemente caracterizada de uma regra de direito que atribua direitos aos particulares

 Argumentos das partes

37      Os demandantes alegam que, ao autorizar a frota portuguesa a pescar na zona CIEM VIII, por força das disposições anuladas, o Conselho cometeu uma violação suficientemente caracterizada de regras de direito que atribuem direitos aos particulares.

38      No que concerne, em primeiro lugar, ao carácter suficientemente caracterizado da violação, os demandantes lembram que o critério decisivo a este propósito é o de violação manifesta e grave pela instituição comunitária em causa dos limites que se impõem ao seu poder de apreciação. Quando a instituição em causa apenas dispõe de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infracção ao direito comunitário pode bastar para demonstrar a existência de uma violação suficientemente caracterizada (acórdãos Bergaderm e Goupil/Comissão, referido no n.° 34 supra, n.os 41 e 42 e Comissão/Camar e Tico, referido no n.° 34 supra, n.° 53).

39      No caso em apreço, os demandantes observam que, ao adoptar as disposições anuladas, o Conselho violou, tal como resulta do acórdão de 18 de Abril de 2002, o princípio da estabilidade relativa previsto no artigo 8.°, n.° 4, alínea ii), do Regulamento n.° 3760/92, e o artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do acto de adesão. Por outro lado, os demandantes consideram que o Conselho violou, assim, por um lado, os princípios da confiança legítima e da segurança jurídica, uma vez que a situação da frota espanhola autorizada a pescar biqueirão na zona CIEM VIII foi alterada pela actuação de uma instituição comunitária que não tinha competência para proceder a tal alteração e que agiu por vias diferentes das previstas para a modificação de um tratado internacional como é o acto de adesão e, por outro, actuou com desvio do poder ao aumentar o TAC na zona CIEM VIII sem fixar um novo TAC com base em novos dados científicos e técnicos, como prevê o Regulamento n.° 3760/92, contornando os procedimentos previstos para o efeito, que exigem necessariamente a modificação do acto de adesão.

40      No entender dos demandantes, o prejuízo sofrido devido a estas violações resulta da inobservância dos limites impostos pela legislação em vigor aplicável à repartição das possibilidades de pesca. Estes limites são claros e precisos e não deixam ao Conselho qualquer margem de apreciação. O primeiro limite consiste na necessidade de adoptar medidas que não tenham por efeito alterar uma situação jurídica criada por um tratado internacional, no caso o acto de adesão, a saber, o facto de o Reino de Espanha ter direito a 90% do TAC de biqueirão na zona CIEM VIII. O segundo limite resulta do ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, alínea i), do Anexo IV, do Regulamento n.° 685/95, e do artigo 8.°, n.° 4, alínea ii), do Anexo IV do Regulamento n.° 3760/92, os quais não atribuem ao Conselho qualquer poder de decisão para autorizar um intercâmbio de quotas, estando a autorização sujeita à verificação de condições previstas nestas disposições, a saber, a fixação de um TAC comum e o pedido dos Estados em causa. Nestas condições, é difícil considerar que o Conselho dispunha de poder discricionário.

41      A este propósito, os demandantes esclarecem que não contestam nem o exercício pelo Conselho do seu poder de fixar os TAC por zona, nem o seu poder de uniformizar a gestão de zonas distintas e de fixar um TAC comum, nem mesmo o de autorizar in abstracto transferências de quotas. O que se discute no caso vertente é o modo como foi autorizada a transferência de quotas in concreto entre a República Francesa e a República Portuguesa, quando o princípio da estabilidade relativa excluía todo e qualquer poder discricionário.

42      No entendimento dos demandantes, não dispondo o Conselho de um amplo poder de apreciação para modificar a quota de biqueirão atribuída ao Reino de Espanha, não pode ser exigido, contrariamente ao por aquele sustentado, que a violação apresente, além disso, carácter grave e manifesto.

43      Em primeiro lugar, quanto ao grau de clareza e precisão da regra, os demandantes entendem não ser pertinente invocar uma alegada divergência entre o acórdão de 5 de Outubro de 1999 e o de 18 de Abril de 2002, devido à clareza absoluta das disposições anuladas.

44      Seguidamente, no que toca ao carácter alegadamente desculpável do erro de direito cometido pelo Conselho, os demandantes observam que as disposições em causa no acórdão de 5 de Outubro de 1999 não são as disposições anuladas. O Regulamento n.° 685/95, objecto do primeiro acórdão, não comporta, com efeito, uma regulamentação completa do regime de transferência das quotas que foi apreciado no segundo processo, uma vez que o intercâmbio da quota declarado ilegal pressupõe a existência de um direito de pesca a favor da República Portuguesa na zona CIEM VIII. Ora, este direito de pesca só foi instaurado pelas disposições anuladas. Assim, não há divergência de interpretação jurisprudencial de uma disposição semelhante. De acordo com os demandantes, o acórdão de 5 de Outubro de 1999 confirma, bem pelo contrário, nos n.os 51 e 52, que uma transferência que não respeite o equilíbrio total das partes, isto é, das quotas por zona, em obediência ao princípio da estabilidade relativa, não pode ser legal. No n.° 45 do acórdão de 18 de Abril de 2002, o Tribunal de Justiça confirmou, precisamente, o carácter imperativo do respeito das quotas nacionais, que é uma condição de transferência entre diferentes zonas. A autorização pelo Conselho de uma transferência de quotas de biqueirão na zona CIEM VIII entre a República Portuguesa e a República Francesa, sem ter previamente fixado um TAC comum para as zonas respectivas, constitui, além do mais, erro indesculpável, uma vez que foi cometido violando as recomendações adoptadas pelo Conselho.

45      Por fim, quanto à natureza intencional da violação, os demandantes entendem que o Conselho estava plenamente consciente do facto de se ter servido de um artifício jurídico para privar o Reino de Espanha dos seus direitos a uma quota de biqueirão equivalente a 90% das possibilidades de pesca na zona CIEM VIII, uma vez que, tal como resulta do n.° 36 do acórdão de 18 de Abril de 2002 e do n.° 25 do acórdão de 5 de Outubro de 1999, o próprio Conselho declara que não podia alterar globalmente a repartição de quotas sem ter previamente obtido a renúncia do Reino Espanha à sua quota de biqueirão, nem, na sua falta, justificar um aumento considerável do TAC numa proporção equivalente a dez vezes as possibilidades de pesca de biqueirão que se propunha atribuir à República Francesa na zona CIEM VIII.

46      Por conseguinte, ao adoptar as disposições ilegais em causa, o Conselho cometeu uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário.

47      No que se reporta ao argumento da Comissão de que o Tribunal de Justiça não se pronunciou, no acórdão de 18 de Abril de 2002, sobre o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima, os demandantes sustentam ter o direito de invocar todos os argumentos jurídicos que lhes pareçam idóneos em apoio dos seus pedidos, quer estes tenham sido ou não acolhidos pelo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso de anulação. Em seu entender, sendo o recurso de anulação autónomo relativamente à acção de indemnização, o único nexo existente entre o recurso de anulação interposto pelo Reino de Espanha e a presente acção é o facto de a decisão proferida no primeiro processo ter decidido a questão da existência de um comportamento ilegal do Conselho, devendo, assim, considerar‑se preenchido um dos critérios exigidos para a existência da responsabilidade da Comunidade.

48      No concernente ao argumento da Comissão segundo o qual os regulamentos adoptados pelo Conselho que fixam os TAC são anuais e podem legitimamente variar de um ano para outro, de modo que não houve violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima, os demandantes alegam que o objectivo deste processo é a repartição das quotas a atribuir aos Estados‑Membros uma vez fixado o TAC, o qual deve ser, para a zona CIEM VIII, em todos os casos e para cada ano em que a transferência ilegal foi autorizada, estabelecido numa relação de 90/10 entre a quota atribuída ao Reino de Espanha e a quota atribuída à República Francesa, o que não foi o caso.

49      No que diz respeito, em segundo lugar, à violação das regras de direito que conferem direitos aos particulares, os demandantes sustentam, antes de mais, que o princípio da estabilidade relativa violado pelo Conselho nas disposições anuladas pelo acórdão de 18 de Abril de 2002 constitui uma regra superior de direito.

50      No entender dos demandantes, o artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do acto de adesão contém um dos princípios fundamentais da política comum de pesca. Por outro lado, os regulamentos cujas disposições foram anuladas são instrumentos de aplicação anual dos Regulamentos n.° 3760/92 e n.° 685/95. Por conseguinte, muito embora se trate de regras do mesmo nível, os ditos regulamentos tem de respeitar, no seu objectivo e no seu conteúdo, os princípios estabelecidos nestes últimos regulamentos, que determinam os objectivos fixados pelo direito primário, em especial no artigo 33.° CE.

51      A este propósito, os demandantes esclarecem que a possibilidade alegada pelo Conselho de ceder os direitos de pesca decorre igualmente da aplicação do princípio da estabilidade relativa. De todo o modo, o que está em causa no caso em análise é a atribuição prévia das quotas. Ora, tal como resulta do n.° 47 do acórdão de 18 de Abril de 2002, uma troca das disponibilidades de pesca pressupõe que estas tenham sido previamente atribuídas em conformidade com o princípio da estabilidade relativa e exige um pedido dos Estados‑Membros em causa. Aliás, o Tribunal de Justiça reconheceu que o princípio da estabilidade relativa é uma regra superior de direito, ao anular as disposições nele impugnadas.

52      Em seguida, os demandantes alegam que o acto de adesão, na parte em que concede ao Reino de Espanha 90% das capturas de biqueirão na zona CIEM VIII, o princípio da estabilidade relativa, que dá garantias complementares relativas à manutenção desta parte, e os limites impostos ao Conselho pelo artigo 8.°, n.° 4, alínea ii), do Regulamento n.° 3760/92, a saber, a existência de um pedido do Estado respectivo e, pelo ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, alínea i), do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95, a saber, a fixação de um TAC único, criam direitos de que eles próprios são os destinatários, ou, no mínimo, legítimas expectativas de tais direitos. Com efeito, se ao Reino de Espanha é atribuída uma quota de 90% do TAC de biqueirão na zona controvertida, os destinatários dos direitos de pesca desta espécie nesta zona são os operadores económicos que efectuam as capturas, no caso os demandantes e as outras empresas titulares de barcos autorizados a pescar.

53      A este propósito, em primeiro lugar, os demandantes observam que, em conformidade com o décimo segundo e o décimo quarto considerandos do Regulamento n.° 3760/92, a repartição das quotas é realizada em função da importância das actividades de pesca tradicionais, das necessidades particulares das regiões cujas populações estão particularmente dependentes da pesca e das indústrias conexas, bem como da situação biológica temporária dos stocks, o que demonstra que a situação específica dos agentes económicos autorizados a operar na zona CIEM VIII e os seus direitos foram tomados em conta na fixação do TAC de biqueirão na dita zona.

54      Os demandantes consideram que o reconhecimento de um direito ou a expectativa legítima de um direito que decorre do princípio da estabilidade relativa a seu favor é a única interpretação compatível com a ratio legis da norma, a saber, a manutenção do nível de vida das populações em causa e não o «enriquecimento» do património jurídico dos Estados pelo reconhecimento a estes últimos de um direito cujo valor económico é incontestável, no caso o direito a possibilidades de pesca. Por conseguinte, o Estado é unicamente detentor a título fiduciário das possibilidades de pesca de biqueirão atribuídas por aplicação do princípio da estabilidade relativa, que figura no acto de adesão sob a forma de uma quota, sendo os navios de pesca de biqueirão da frota espanhola nas águas do golfo da Gasconha inscritos no recenseamento respectivo e autorizados a exercer as suas actividades os beneficiários económicos reais das possibilidades de pesca em causa.

55      No que concerne ao argumento da Comissão segundo o qual o Tribunal de Primeira Instância já declarou, no acórdão de 6 de Dezembro de 2001, Area Cova e o./Conselho e Comissão (T‑196/99, Colect., p. II‑3597), que o princípio da estabilidade relativa não pode conferir direitos subjectivos aos particulares cuja violação faça nascer um direito a indemnização, os demandantes alegam que a frase citada pela Comissão é um raciocínio obiter dictum, feito pelo Tribunal de Primeira Instância num contexto em que a aplicação do princípio da estabilidade relativa não estava em discussão. Tal declaração não constitui a ratio decidendi do acórdão e, por conseguinte, a afirmação que contém não pode, em caso algum, ser considerada como tendo valor jurisprudencial para os fins pretendidos pela Comissão.

56      Além disso, os demandantes recordam que o Tribunal de Primeira Instância declarou claramente que os interessados podem sempre, na medida em que se considerem vítimas de um dano directamente resultante da nona rubrica do Anexo I D do Regulamento n.° 2742/1999, contestar esta disposição no âmbito de uma acção por responsabilidade extracontratual nos termos dos artigos 235.° CE e 288.° CE (despacho de 19 de Setembro de 2001, n.° 85).

57      Os demandantes sustentam que, a seguir a tese da Comissão, o princípio do direito a uma protecção jurisdicional efectiva seria violado.Com efeito, o acto ilícito do Conselho nunca seria punível, pois os danos causados não podiam ser reparados, uma vez que o Estado não pode pedir uma indemnização. Os armadores demandantes ficariam privados de um direito de pesca – ou, pelo menos, da legítima expectativa de um tal direito – que o próprio direito comunitário lhes reconhece e, por conseguinte, das capturas a que o exercício deste direito leva e, que entretanto foram realizadas pela frota beneficiária da transferência. Por último, a atribuição efectiva das disponibilidades de pesca uma vez trocadas as quotas ocorreria, sem penalidade, em violação do disposto no artigo 161.°, n.° 1, alínea f) do acto de adesão.

58      Em segundo lugar, os demandantes recordam que, por força do artigo 33.° CE, um dos objectivos prosseguidos pela política agrícola comum é assegurar um nível de vida equitativo à população agrícola, designadamente pelo aumento do rendimento individual desta população. Com vista a atingir este objectivo, a finalidade das quotas consiste em assegurar a cada Estado‑Membro uma parte do TAC comunitário em função dos critérios já referidos. Ora, sublinham os demandantes, são os barcos de pesca que arvoram pavilhão de cada Estado‑Membro ou que nele estão registados os únicos que podem utilizar as quotas atribuídas ao referido Estado‑Membro (acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 1989, Jaderow, C‑216/87, Colect., p. 4509, n.° 16).

59      Em terceiro lugar, os demandantes observam que, por força da lei espanhola n.° 3/2001, por um lado, a repartição das possibilidades de pesca entre os navios pode concretizar‑se no volume de capturas e realizar‑se em função da actividade de pesca exercida historicamente e, por outro lado, o reajustamento ou redução das possibilidades de pesca impostas pela União Europeia ou pelos tratados internacionais deve afectar de modo proporcional cada navio, de acordo com um princípio de equidade, de modo a serem mantidas as posições relativas de cada operador. Daí que a redução da quota de biqueirão atribuída ao Reino de Espanha tivesse repercussões negativas nos direitos adquiridos dos demandantes.

60      O Conselho, apoiado pela Comissão, alega que a primeira condição para que um direito a indemnização seja reconhecido pelo direito comunitário não se verifica, uma vez que, por um lado, as regras de direito violadas pelo Conselho não tinham por objecto conferir direitos aos particulares e que, por outro, estas violações não são suficientemente caracterizadas.

 Apreciação do Tribunal de Primeira Instância

61      Como recordado no n.° 34 supra, a primeira condição para que o direito à indemnização seja reconhecido pelo direito comunitário é que haja violação de uma regra de direito pela instituição comunitária em causa, regra que deve ter por objecto conferir direitos aos particulares e cuja violação deve ser suficientemente caracterizada.

62      Nestas condições, importa, sucessivamente, examinar se o Conselho, ao adoptar o comportamento imputado, violou uma regra direito e, em caso afirmativo, se esta regra tem por objecto conferir direitos aos particulares e se a sua violação é suficientemente caracterizada.

 Quanto à ilegalidade do comportamento reprovado ao Conselho

63      A título preliminar, importa determinar com precisão o comportamento do Conselho cuja ilicitude é alegada pelos demandantes.

64      É pacífico que, com a presente acção, os demandantes pretendem obter a reparação do prejuízo que lhes teria sido causado pelas disposições anuladas, pelas quais o Conselho autorizou a República Portuguesa, no período compreendido entre 1996 e 2001, a pescar uma parte da sua quota de biqueirão nas águas da zona CIEM VIII sob soberania ou jurisdição da República Francesa. Foi esta autorização de pesca atribuída à República Portuguesa na zona CIEM VIII que foi declarada ilegal pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 18 de Abril de 2002.

65      Importa lembrar que as posições anuladas visavam aplicar o ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, alínea i), do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95, por força do qual, no âmbito de um acordo de intercâmbio das possibilidades de pesca, renovável por tácita recondução para o período compreendido entre 1995 e 2002, a República Portuguesa cedeu à República Francesa 80% das suas possibilidades de pesca na zona CIEM IX, de modo que esta quantidade fosse pescada exclusivamente nas águas sob soberania ou jurisdição da República Francesa na zona CIEM VIII. Contudo, não dispondo a República Portuguesa de direitos de pesca na zona CIEM VIII, as disposições anuladas tinham por objectivo criar esses direitos.

66      E de realçar que, embora, no acórdão de 18 de Abril de 2002, o Tribunal de Justiça tenha anulado a autorização dada pelo Conselho à República Portuguesa de pescar uma parte da sua quota de biqueirão na zona CIEM VIII, em contrapartida não decidiu quanto à legalidade da cessão pela República Portuguesa das suas possibilidades de pesca de biqueirão na zona CIEM VIII à República Francesa, tendo esta cessão sido avalizada no acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Outubro de 1999.

67      Com efeito, neste acórdão, o Tribunal julgou improcedentes os fundamentos de anulação apresentados pelo Reino de Espanha contra a disposição que prevê esta cedência, a saber, o ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95. A compatibilidade desta disposição com o direito comunitário foi, assim, definitivamente dirimida no acórdão de 5 de Outubro de 1999, que se reveste, neste caso, de força de caso julgado (v. neste sentido, conclusões do advogado‑geral S. Alber no processo que deu origem ao acórdão de 18 de Abril de 2002, Colect., p. I‑3441, n.os 47 e 79).

68      Em contrapartida importa apreciar se a autorização ilegal, dada à República Portuguesa, de pescar uma parte da sua quota de biqueirão na zona CIEM VIII constitui comportamento susceptível de dar lugar a indemnização. A este propósito, os demandantes alegam que o comportamento do Conselho que esteve na origem do prejuízo que sofreram violou o princípio da estabilidade relativa, o acto de adesão, os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima e que este comportamento constituiu desvio de poder.

 Quanto à violação do princípio da estabilidade relativa

69      Importa lembrar que, por acórdão de 18 de Abril de 2002, o Tribunal de Justiça decidiu que, ao autorizar, pelas disposições anuladas, a República Portuguesa a pescar uma parte da sua quota de biqueirão na zona CIEM VIII, entre 1996 e 2001, o Conselho violou o princípio da estabilidade relativa, uma vez que Espanha não recebeu 90% das possibilidades de pesca que lhe tinham sido atribuídas na zona CIEM VIII.

 Quanto às outras violações invocadas pelos demandantes

70      Os demandantes alegam que o comportamento criticado ao Conselho violou, além do princípio da estabilidade relativa, o acto de adesão, os princípios de segurança jurídica e de confiança legítima e que esse comportamento constituiu um desvio de poder.

71      É verdade que, no acórdão 18 de Abril de 2002, o Tribunal de Justiça não declarou que o Conselho tinha cometido as violações e os desvios referidos.

72      Contudo, deve lembrar‑se que, segundo jurisprudência assente, a acção de indemnização é autónoma em relação ao recurso de anulação (despacho do Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 1993, Van Parijs e o./Conselho e Comissão, C‑257/93, Colect., p. I‑3335, n.os 14 e 15, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 16 de Abril de 1997, Hartmann/Conselho e Comissão, T‑20/94, Colect., p. II‑595, n.° 115), de modo que a anulação do acto que está na origem dos danos ou a constatação da sua invalidade não é necessária para a propositura da acção de indemnização.

73      Ora, a existência de um direito à reparação por força do direito comunitário depende da natureza das violações alegadas, uma vez que a aplicação do artigo 288.°, segundo parágrafo, CE, exige que a violação alegada seja suficientemente caracterizada e que a norma jurídica violada confira direitos aos particulares.

74      Por conseguinte, cabe apreciar se o comportamento criticado ao Conselho violou, além da estabilidade relativa, o acto de adesão, os princípios de segurança jurídica e de confiança legítima e se esse comportamento constituiu um desvio de poder.

75      Em primeiro lugar, importa dizer que a violação do acto de adesão está demonstrada, uma vez que, ao autorizar a República Portuguesa a pescar uma parte da sua quota de biqueirão na zona CIEM VIII, o Conselho, como concluiu o Tribunal de Justiça no n.° 42 do acórdão de 18 de Abril de 2002, privou o Reino de Espanha de 90% das possibilidades de pesca de TAC de biqueirão na zona CIEM VIII que lhe tinham sido atribuídos. Com efeito, a atribuição ao Reino de Espanha de 90% das possibilidades de pesca do TAC de biqueirão na dita zona está prevista no artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do acto de adesão.

76      Em seguida, no que toca aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, o Tribunal de Justiça declara, ao invés, que a violação destes não está demonstrada. Com efeito, a tese dos demandantes assenta numa premissa de acordo com a qual, de qualquer modo, o Conselho não podia legalmente autorizar a República Portuguesa a pescar biqueirão na zona CIEM VIII. Ora, esta premissa está errada. A este propósito, importa lembrar que, no acórdão de 18 Abril de 2002, o Tribunal de Justiça declarou:

«44      As disposições impugnadas não podem ser justificadas pelo artigo 11.°, n.° 1, conjugado com o ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, i), do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95, prevendo esta última disposição que, logo que seja fixado ‘um TAC comum’ de biqueirão para as zonas CIEM VIII e IX, ‘80% das possibilidades de pesca de Portugal serão anualmente cedidas à França, percentagem que deverá ser pescada exclusivamente nas águas sob soberania ou jurisdição da França’.

45      A afirmação segundo a qual a cessão, à República Francesa, das possibilidades de pesca da República Portuguesa foi efectuada no quadro de um TAC comum cobrindo as zonas CIEM VIII e IX, constante dos n.os 51 e 52 do acórdão Espanha/Conselho, já referido, é inexacta. Para que fosse satisfeita a condição da fixação de um TAC comum de biqueirão para as zonas CIEM VIII e IX, à qual o ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, i), do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95 subordina o intercâmbio das possibilidades de pesca entre a República Portuguesa e a República Francesa, era necessário que o Conselho fixasse um TAC de biqueirão único para as zonas CIEM VIII e CIEM IX, X, Copace 34.1.1, o que não fez, conforme reconheceu nos seus articulados. A pretensa gestão comum de dois TAC distintos, alegada pelo Conselho, não satisfaz, com efeito, essa condição. Além disso, não é aqui contestado que os dois TAC respeitam a duas unidades populacionais biologicamente diferenciadas.

[…]

47      As disposições impugnadas também não podem ser justificadas pelos artigos 8.°, n.° 4, ii), e 9.°, n.° 1, do Regulamento n.° 3760/92, que prevêem a conclusão de acordos relativos a trocas de quotas. Com efeito, o artigo 8.°, n.° 4, ii), dispõe expressamente que é necessário um pedido dos Estados‑Membros directamente interessados, para que tal troca seja tida em consideração pelo Conselho. Ora, no caso vertente, tal pedido não foi feito pelo Reino de Espanha, que era, no entanto, directamente interessado, já que a troca de quotas implicou um aumento das possibilidades de pesca de biqueirão na zona CIEM VIII. Quanto ao artigo 9.° n.° 1, verifica‑se que uma troca das disponibilidades de pesca, conforme prevista nesse artigo, pressupõe que estas tenham sido previamente atribuídas em conformidade com o princípio da estabilidade relativa. Ora, não foi isso que aconteceu em relação aos anos de 1996 à 2001, como resulta do n.° 42 do presente acórdão.»

77      Daqui resulta que o Conselho mantém, em princípio, o direito, por força do ponto 1, 1.1, segundo parágrafo, alínea i), do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95, e do artigo 8.°, n.° 4, alínea ii), do Regulamento n.° 3760/92, de autorizar a República Portuguesa a pescar biqueirão na zona CIEM VIII, desde que, ou um TAC comum de biqueirão tenha sido fixado para a zona CIEM VIII e para a zona CIEM IX, ou que todos os Estados‑Membros directamente em causa façam o pedido.

78      Por conseguinte, os demandantes não podem alegar que o princípio da segurança jurídica foi violado pelas disposições anuladas, uma vez que o quadro regulamentar aplicável autorizava, em princípio, o Conselho a adoptá‑las. Pela mesma razão, os demandantes também não tinham justificação para ter confiança legítima na manutenção de uma situação existente, quando esta podia ser alterada pelo Conselho no âmbito do seu poder de apreciação, especialmente num domínio como o da política agrícola comum, no quadro da qual as instituições dispõem de um amplo poder de apreciação (v., neste sentido, acórdão Area Cova e o./Conselho e Comissão, referido no n.° 55 supra, n.° 122).

79      Por fim, no que toca ao alegado desvio de poder, é de recordar que, segundo a jurisprudência, um acto só enferma de desvio de poder caso se revele, com base em indícios objectivos, pertinentes e concordantes, ter sido adoptado com a finalidade exclusiva, ou pelo menos determinante, de atingir fins diversos dos invocados pela instituição recorrida ou de eludir um processo especialmente previsto pelo Tratado (acórdão Rica Foods e Free Trade Foods/Comissão, referido n.° 34 supra, n.° 200).

80      Ora, no caso em apreço, deve dizer‑se que os demandantes não adiantam qualquer indício do qual resulte que as disposições anuladas não foram adoptadas com o objectivo de «assegurar uma melhor utilização das possibilidades de pesca do biqueirão», como prevê o quarto considerando do Regulamento n.° 746/95.

81      Resulta do conjunto destas considerações que o comportamento criticado ao Conselho é ilegal na parte em que viola o princípio da estabilidade relativa e o acto de adesão.

82      Nestas condições, deve seguidamente examinar‑se se as regras de direito violadas pelo Conselho tinham por objectivo conferir direitos aos particulares e, se assim for, se estas violações são suficientemente caracterizadas.

 Quanto à existência de uma regra direito que atribui direitos aos particulares

83      Segundo a jurisprudência, para que se verifique responsabilidade extracontratual da Comunidade, a ilegalidade imputada deve referir‑se à violação de uma regra de direito que tenha por objectivo conferir direitos aos particulares (acórdãos Bergaderm e Goupil/Comissão, referido no n.° 33 supra, n.° 42, e Comissão/Camar e Tico, referido no n.° 34 supra, n.° 53).

84      Assim, importa examinar em que medida o princípio da estabilidade relativa e o artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do acto de adesão podem ser considerados como tendo por objectivo atribuir direitos aos particulares.

85      A este propósito, deve observar‑se, a título preliminar, que contrariamente ao que sustenta o Conselho, pouco importa que a regra violada constitua ou não uma regra superior de direito (v., neste sentido, acórdão Bergaderm e Goupil/Comissão, referido no n.° 34 supra n.os 41, 42 e 62). Os argumentos adiantados pelas partes neste ponto, são, por conseguinte, inoperantes.

86      Em seguida, importa indicar que a jurisprudência considerou que uma regra de direito tem por objectivo conferir direitos aos particulares quando a violação se refere a uma disposição que cria direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger, de modo que a mesma tem um efeito directo (acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, C‑46/93 e C‑48/93, Colect., p. I‑1029, n.° 54), que cria uma vantagem susceptível de ser qualificada como direito adquirido (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 29 de Janeiro de 1998, Dubois et Fils/Conselho e Comissão, T‑113/96, Colect., p. II‑125, n.os 63 a 65), que tem por função proteger os interesses dos particulares (acórdão do Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 1978, HNL e o./Conselho e Comissão, 83/76 e 94/76, 4/77, 15/77 e 40/77, Recueil, p. 1209, n.° 5; Colect., p. 421) ou que implica a atribuição de direitos a favor dos particulares cujo conteúdo possa ser suficientemente identificado (acórdão do Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 1996, Dillenkofer e o., C‑178/94, C‑179/94, C‑188/94 a C‑190/94, Colect., p. I‑4845, n.° 22).

87      Deve lembrar‑se que, por força do artigo 8.°, n.° 4, alíneas i) e ii), do Regulamento n.° 3760/92, o Conselho reparte as possibilidades de pesca entre os Estados‑Membros de modo a garantir a estabilidade relativa das actividades de pesca de cada Estado‑Membro para cada um dos stocks em causa. Por aplicação deste princípio, o artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do acto de adesão atribuiu ao Reino de Espanha uma parte de 90% do TAC de biqueirão na zona CIEM VIII, sendo o saldo de 10% atribuído à França. Foi esta repartição que o Conselho violou ao adoptar as disposições anuladas, na parte em que estas tiveram como resultado não ter o Reino de Espanha obtido 90% das possibilidades de pesca de biqueirão na referida zona.

88      A este propósito, deve salientar‑se que no acórdão Área Cova e o./Conselho e Comissão, referido no n.° 55 supra (n.° 152) o Tribunal de Primeira Instância decidiu já que, visto o princípio da estabilidade ter por objecto exclusivamente as relações entre Estados‑Membros, o mesmo não pode conferir direitos subjectivos aos particulares cuja violação daria origem a um direito a reparação, com base no artigo 288.°, segundo parágrafo, CE.

89      Com efeito, o princípio da estabilidade relativa reflecte um critério de repartição entre Estados‑Membros das possibilidades de pesca comunitárias, sob a forma de quotas atribuídas aos Estados‑Membros. Assim, como o Tribunal de Justiça já decidiu (acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1992, Portugal e Espanha/Conselho, C‑63/90 e C‑67/90, Colect., p. I‑5073, n.° 28), o princípio da estabilidade relativa não confere, por conseguinte, aos pescadores nenhuma garantia de captura de uma quantidade fixa de peixe, devendo a exigência de estabilidade relativa ser entendida no sentido de significar a manutenção, nessa repartição, de um direito a uma percentagem fixa para cada Estado‑Membro.

90      Além disso, importa realçar que, por força do artigo 9.°, n.° 1, do Regulamento n.° 3760/92, os Estados‑Membros podiam trocar entre si a totalidade ou parte das disponibilidades de pesca que lhes tinham sido atribuídas, como demonstram os factos do caso em apreço. O procedimento a respeitar para a realização dessa troca também não revela indícios que permitam concluir pela existência de direitos de que seriam titulares os pescadores do Estado‑Membro cedente.

91      Do mesmo modo, tal como o Tribunal de Primeira Instância observou no n.° 54 do despacho de 19 de Setembro de 2001, o artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do acto de adesão tem unicamente por objecto prever a repartição da quota de biqueirão na zona CIEM VIII e não contém qualquer referência à situação dos pescadores de biqueirão dos dois países que podem pescar nessa zona nem, a fortiori, a obrigação de o Conselho ter em conta a situação especial destes pescadores quando autoriza uma transferência de quotas de biqueirão de uma zona contígua para esta zona.

92      Daí que a atribuição ao Reino de Espanha, por força do princípio da estabilidade relativa, de uma parte de 90% do TAC de biqueirão na zona CIEM VIII não confira, por si só, aos pescadores espanhóis qualquer direito de pescar biqueirão nessa zona, uma vez que tais possibilidades eventuais de pesca resultam unicamente da legislação nacional que determina as condições de exercício da pesca de biqueirão na zona CIEM VIII.

93      Nestas condições, há que considerar que o princípio da estabilidade relativa e o artigo 161.°, n.° 1, alínea f), do acto de adesão identificam com suficiente precisão os Estados como titulares dos direitos de pesca e definem o conteúdo desses direitos de modo que as referidas regras de direito não têm por objecto conferir direitos aos particulares na acepção da jurisprudência já referida.

94      É certo que, como alegam os demandantes, segundo o décimo terceiro considerando do Regulamento n.° 3760/92, a estabilidade relativa prevista no referido regulamento deve ter em conta as necessidades especiais das regiões em que as populações locais estão especialmente dependentes da pesca e das actividades conexas. Tal como o Tribunal de Justiça decidiu, daí decorre que a finalidade das quotas é garantir a cada Estado‑Membro uma parte do TAC comunitário, determinada essencialmente com base nas capturas de que beneficiavam as actividades de pesca tradicionais, as populações locais dependentes da pesca e as indústrias conexas desse Estado‑Membro antes de ser instituído o regime de quotas (acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 1998, NIFPO e Northern Ireland Fishermen's, C‑4/96, Colect., p. I‑681, n.° 47; v., também, no que se refere ao Regulamento n.° 170/83, acórdãos do Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 1989, Agegate, C‑3/87, Colect., p. 4459, n.° 24, e Jaderow, referido no n.° 58 supra, n.° 23).

95      O Tribunal de Justiça considera, em consequência, que incumbe ao Conselho, quando da repartição entre os Estados‑Membros das possibilidades de pesca, conciliar, relativamente a cada stock em causa, os interesses de cada Estado‑Membro no que se refere designadamente às respectivas actividades tradicionais de pesca e, sendo caso disso, às suas populações e às indústrias locais dependentes da pesca (acórdão NIFPO e Northern Ireland Fishermen’s, referido no n.° 94, supra, n.° 48).

96      Contudo importa notar que no n.° 153 do acórdão Area Cova e o./Conselho e Comissão, referido no n.° 55 supra, o Tribunal de Primeira Instância decidiu também que os direitos tradicionais de pesca são adquiridos em proveito de Estados e não de armadores individuais, de modo que estes não podem invocar um direito subjectivo cuja violação lhes conferiria o direito à reparação com base no artigo 288.°, segundo parágrafo, CE.

97      Daí que o princípio da estabilidade relativa e o artigo 161.°; n.° 1, alínea f), do acto de adesão não tenha por objecto atribuir direitos aos particulares na acepção da jurisprudência citada. Por conseguinte, sem que seja necessário examinar o carácter suficientemente caracterizado da violação destas regras pelo Conselho, cabe concluir que a primeira condição para que um direito à reparação seja reconhecido pelo direito comunitário não se verifica no caso em apreço.

2.     Quanto ao alegado prejuízo

 Argumentos das partes

98      Os demandantes sustentam que a ilegalidade criticada ao Conselho lhes causou quatro tipos de prejuízos.

99      Em primeiro lugar, os demandantes salientam que as disposições anuladas tiveram como consequência imediata privar a frota espanhola do golfo da Gasconha do direito de pescar 90% das capturas do «novo TAC», calculado adicionando o TAC formalmente aprovado para cada campanha na zona CIEM VIII e as toneladas suplementares de biqueirão atribuídas à frota francesa na zona CIEM VIII na sequência da transferência da quota portuguesa da zona CIEM IX, que o Conselho autorizou.Com efeito, o biqueirão pescado na zona CIEM VIII constitui a única unidade de gestão diferenciada. Por conseguinte, toda a captura no mar por uma unidade pesca é retirada do TAC da zona CIEM VIII, a qual deixa de estar disponível para as outras unidades de pesca da frota aí autorizada a pescar.

100    No entender dos demandantes este prejuízo é real e certo. Com efeito, uma vez que 90% do TAC de biqueirão da zona CIEM VIII que é fixado anualmente pelo Conselho pertencia à frota espanhola e que a transferência de quotas entre zonas foi ilegal, um aumento do TAC sem ter em conta o princípio da estabilidade relativa conduz inevitavelmente à conclusão de que, durante o período em que esse aumento de facto do TAC esteve em vigor, a frota espanhola e, portanto, os demandantes foram privados de uma parte dos direitos de pesca que lhes tinham sido atribuídos no TAC realmente existente durante esse anos, o qual pode ser calculado adicionando ao TAC de biqueirão fixado nos regulamentos, a saber, 33 000 toneladas anuais, o que corresponde à transferência autorizada, a saber, 5 008 toneladas durante os anos de 1996, 1997, 1998 e 1999, 3 000 toneladas em 2000, e 4 176 toneladas em 2001. Este prejuízo foi directamente causado aos demandantes, uma ver uma vez que estes beneficiavam dos direitos de pesca dentro das quotas.

101    É certo que, admitem os demandantes, para que o prejuízo se verifique, os biqueirões deviam ser pescados e é provável que a frota espanhola não pescasse a totalidade da quota atribuída ao Reino de Espanha, mesmo não tendo havido transferência. Contudo, verifica‑se que houve transferência e que os biqueirões foram pescados não pela frota espanhola, mas pela frota francesa, e isto para além da quota atribuída a República Francesa.

102    Com base numa avaliação económica do prejuízo por eles sofrido elaborada pelo Instituto Tecnológico Pesquero y Alimentario (a seguir «relatório AZTI»), que foi junto à petição, os demandantes consideram que a transferência ilegal das quotas se traduziu num aumento médio de 4 500 toneladas/ano a pescar na zona CIEM VIII, aumento calculado subtraindo do total das capturas efectuadas pela frota francesa a quota do TAC que lhe pertencia antes da transferência declarada ilegal. Os demandantes avaliam o valor total do excedente das capturas da frota francesa relativamente à quota de que esta teria podido dispor na ausência de transferências entre 1996 e 2001 em 51 722 830 euros.

103    A este propósito, os demandantes esclarecem que a sua acção não versa, portanto, sobre o excedente das possibilidades de pesca da frota francesa, mas sobre o excedente das capturas realizadas relativamente às possibilidades de pesca que pertencem legalmente a esta frota. Assim, o prejuízo sofrido não pode depender, como sustenta o Conselho, de a frota espanhola pescar ou não uma quantidade de biqueirão próxima do limite das capturas fixada pelos regulamentos, mas de um facto incontestável, a saber, as capturas excedentárias realizadas pela frota francesa devido à transferência ilegal de quotas.

104    Em segundo lugar, os demandantes entendem que a ilegalidade cometida pelo Conselho lhes causou um prejuízo adicional uma vez que implicou uma alteração das condições do mercado na Comunidade Autónoma do País Basco no período em causa, com diminuição quer da procura quer dos preços. Com base no relatório AZTI, os demandantes avaliam o prejuízo total em questão no período entre 1996 e 2001, em 3 953 989 euros.

105    Em terceiro lugar, os demandantes consideram que a ilegalidade criticada ao Conselho enfraqueceu a posição concorrencial da frota espanhola face ao reforço da frota francesa, porquanto a França esteve em condições de apoiar a sua frota que opera na actividade piscatória em causa graças, em grande parte, à transferência das possibilidades de pesca anulada pelo Tribunal de Justiça. Os demandantes baseiam‑se, a este propósito, em três parâmetros pertinentes que permitem medir a actividade da frota francesa, a saber, evolução do número de barcos de pesca e as práticas utilizadas, o total das capturas e os limites indirectos do esforço de pesca que resultam do esgotamento prematuro da quota francesa do TAC de biqueirão na zona CIEM VIII. Em contrapartida, daí decorre que a viabilidade da frota espanhola do Golfo da Gasconha ficará gravemente comprometida a médio e a longo prazo, devido à sobreexploração dos recursos comuns na zona do Golfo de Biscaia e à diminuição do stock de biqueirão na zona CIEM VIII daí decorrente. Tal traduz‑se, simultaneamente, numa baixa das possibilidades de captura efectivas para a frota independentemente do TAC fixado e num risco significativo da redução do TAC de biqueirão para esta actividade piscatória.

106    Em quarto lugar, os demandantes sustentam que a transferência das possibilidades de pesca para a frota francesa na zona CIEM VIII é uma das causas principais da sobreexploração dos recursos, porque permite a esta frota pescar praticamente durante todo o ano. Como prova, os demandantes observam que a frota espanhola não pôde esgotar a sua quota do TAC de biqueirão nos últimos anos, devido às capturas excessivas realizadas deste stock pela frota francesa. O prejuízo real e certo causado à frota espanhola pela sobreexploração dos recursos pela frota francesa concretizou‑se até ao momento na impossibilidade de realizar capturas mais importantes Consistirá no futuro em possibilidades inferiores de capturas efectivas, uma vez que o stock de biqueirão se reduz, afectando a viabilidade da frota espanhola a médio e a longo prazo.

107    Segundo os demandantes, o enfraquecimento da posição concorrencial da frota espanhola e a sobreexploração dos recursos são danos reais e certos, independentemente do facto de a sua quantificação precisa dever ser feita posterior e separadamente.

108    Quanto às críticas formuladas pelo Conselho ao método acolhido no relatório AZTI, os demandantes alegam, por um lado, que qualquer avaliação de um lucrum cessans ou de um damnum emergens implica necessariamente uma avaliação prévia dos lucros que poderiam ter sido realizados se o facto gerador do dano não tivesse ocorrido e, por outro lado, que o relatório AZTI utilizou o método que os economistas consideram o mais válido cientificamente para atribuir a cada navio da frota espanhola pertencente a cada um dos demandantes a sua parte no prejuízo global. Se o Conselho pretende contestar a qualidade deste método ou o seu rigor científico deve referir as suas razões.

109    O Conselho entende que os demandantes não fizeram prova de que sofreram um qualquer prejuízo.

 Apreciação do Tribunal de Primeira Instância

110    Segundo a jurisprudência, para que a responsabilidade extracontratual da Comunidade exista nos termos do artigo 288.°, segundo parágrafo, CE, o lesado deve demonstrar a realidade do prejuízo alegado. Este prejuízo deve ser real e certo (acórdão do Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1982, Birra Wührer e o./Conselho e Comissão, 256/80, 257/80, 265/80, 267/80 e 5/81, Recueil, p. 85, n.° 9; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 2 de Julho de 2003, Hameico Stuttgart e o./Conselho e Comissão, T‑99/98, Colect., p. II‑2195, n.° 67), e quantificável (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 16 de Janeiro de 1996, Candiotte/Conselho, T‑108/94, Colect., p. II‑87, n.° 54). Ao invés, um prejuízo meramente hipotético e indeterminado não confere direito a reparação (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 11 de Julho de 1997, Oleifici Italiani/Comissão, T‑267/94, Colect., p. II‑1239, n.° 73).

111    Incumbe aos demandantes fornecer ao juiz comunitário os elementos susceptíveis de provar a existência e o montante do prejuízo (acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Janeiro de 1996, Koelman/Comissão, T‑575/93, Colect., p. II‑1, n.° 97, e de 28 de Abril de 1998, Dorsch Consult/Conselho e Comissão, T‑184/95, Colect., p. II‑667, n.° 60; v. também, neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 1976, Roquette Frères/Comissão, 26/74, Colect., p. 295, n.os 22 à 24).

112    Importa, por conseguinte, apreciar se os demandantes demonstraram ter sofrido um prejuízo real e certo.

113    Em primeiro lugar os demandantes alegam ter sofrido prejuízo uma vez que foram privados do direito de pescar 90% das capturas do «novo TAC» calculado adicionando ao TAC fixado para a zona CIEM VIII a quota transferida. Na sua petição, os demandantes estimam que, neste aspecto, o prejuízo equivale ao valor do excedente das capturas efectuadas pela frota francesa relativamente à sua quota legal.

114    Cabe lembrar que, no n.° 42 do acórdão de 18 de Abril de 2002, o Tribunal de Justiça decidiu que, devido à autorização dada à República Portuguesa de pescar uma parte da sua quota de biqueirão na zona CIEM VIII, o Reino de Espanha, muito embora lhe tivesse sido efectivamente atribuída uma quota de 90% do TAC de biqueirão fixado para a dita zona, não recebeu, em contrapartida, em violação do princípio de estabilidade relativa, 90% das possibilidades de pesca de biqueirão nesta zona. Com efeito, a autorização dada à República Portuguesa de pescar uma parte da sua quota de biqueirão na zona CIEM VIII aumentou as possibilidades de pesca de biqueirão nessa zona, sem que o Reino de Espanha estivesse em condições de dispor de 90% desta quota adicional de biqueirão.

115    Por outro lado, é também pacífico que o aumento das possibilidades de pesca de biqueirão na zona CIEM VIII, entre 1996 e 2001, permitiu à República Francesa, devido à transferência pela República Portuguesa da sua quota nessa zona por força do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95, efectuar mais capturas de biqueirão na referida zona.

116    No entanto, contrariamente ao que sustentam os demandantes, nenhuma das circunstâncias referidas demonstra que tenham sofrido um prejuízo real e certo.

117    Com efeito, importa lembrar que, como o Tribunal de Justiça já declarou, o princípio da estabilidade relativa significa unicamente a manutenção de uma percentagem fixa do volume de capturas disponíveis para cada um dos stocks em causa, volume que pode evoluir, e não a garantia de uma quantidade fixa de capturas (acórdão do Tribunal de 16 de Junho de 1987, Romkes, 46/86, Colect., p. 2671, n.° 17).

118    Daí que a quota de 90% do TAC fixada para a zona CIEM VIII atribuída ao Reino de Espanha constitua unicamente um limite teórico de captura máxima que não deve, em caso algum, ser ultrapassado pela frota espanhola Ao invés, a referida quota não significa, de modo algum, que a frota espanhola tenha a garantia de pescar efectivamente 90% do TAC de biqueirão na zona CIEM VIII. A este propósito, deve observar‑se que, se as partes estão em desacordo quanto a saber se as autoridades espanholas dispunham de um poder discricionário para atribuir direitos de pesca, em contrapartida, é pacífico que os pescadores activos na zona CIEM VIII não são titulares de qualquer quota individual atribuída pelas autoridades espanholas com base na legislação nacional.

119    Nestas condições, o simples facto de os demandantes não terem recebido 90% das possibilidades de pesca de biqueirão na zona CIEM VIII revela simplesmente um prejuízo teórico e hipotético, cuja realidade depende das capturas efectivas realizadas pela frota espanhola. Aliás, os demandantes reconhecem‑no, expressamente, quando indicam na réplica que «a frota espanhola não teria provavelmente pescado a totalidade da sua quota se não se verificasse a transferência».

120    Quanto à circunstância de a frota francesa ter realizado capturas excedentárias relativamente à sua quota inicial antes da transferência, isso por si não prova, minimamente, que a frota espanhola tenha sofrido um prejuízo devido a menores capturas. Com efeito, uma vez que a parte atribuída no TAC de biqueirão constitui um limite teórico máximo, o simples facto de a frota francesa pescar mais nada prova, contrariamente ao que alegam os demandantes, que a frota espanhola pescou menos ou de que foi impedida de pescar mais.

121    Daí resulta que as circunstâncias invocadas na petição não provam a existência de um prejuízo real e certo.

122    Em qualquer hipótese, o valor do excedente francês, avaliado em 51 722 830 euros, não pode demonstrar a amplitude do prejuízo sofrido pelos demandantes Com efeito, não existe qualquer correlação entre o volume de capturas efectivamente realizado pela totalidade da frota francesa e o volume de capturas que os demandantes poderiam ter realizado.

123    Uma vez que o prejuízo alegado pelos demandantes se baseia apenas no facto de a frota francesa ter efectuado capturas para além da sua quota legal, há que rejeitar os argumentos apresentados pelos demandantes.

124    Em seguida, cabe observar que o hipotético prejuízo alegado pelos demandantes teria um carácter real e certo se se verificasse que as capturas de biqueirão efectuadas pela frota francesa na zona CIEM VIII dentro da quota suplementar atribuída à República Portuguesa na dita zona tinham restringido as possibilidades efectivas de a frota espanhola activa nesta zona pescar biqueirão, impedindo‑a de efectuar as capturas adicionais dentro do limite dos 90% das possibilidades de pesca na zona CIEM VIII, tendo em conta a quota que a República Portuguesa foi autorizada a pescar nessa zona.

125    A este propósito, importa, contudo, dizer que, embora os demandantes tenham salientado as quantidades excedentárias pescadas pela frota francesa relativamente à quota de que dispunha legalmente na zona CIEM VIII, em contrapartida, não procuraram, em momento algum, quantificar o volume de capturas adicionais que teriam podido realizar se não tivessem sido adoptadas disposições anuladas.

126    Por outro lado, deve observar‑se que não é contestado que, no período compreendido entre 1996 e 2001, o Reino de Espanha nunca esgotou a sua quota de 90% do TAC fixada inicialmente para a zona CIEM VIII, quota que corresponde, para cada um dos anos em causa, a 29 700 toneladas de biqueirão.

127    Dado que a frota espanhola não esgotou, em nenhum dos anos em causa, a sua quota de biqueirão na zona CIEM VIII, o facto de a frota francesa ter, por seu turno, excedido a quota que lhe tinha sido legalmente atribuída não é pertinente para demonstrar que a frota espanhola sofreu prejuízos, uma vez que, em todo o caso, esta frota tinha a possibilidade de pescar mais biqueirão na zona CIEM VIII no quadro do TAC fixado para essa zona.

128    A este propósito, é de observar, que os demandantes não sustentaram ter a própria frota espanhola restringido as suas capturas com vista a reparti‑las durante todo o ano sem exceder a quota de 29 700 toneladas, de modo a ter pescado mais, se essa frota tivesse sido informada de que dispunha de uma quota suplementar de biqueirão.

129    Por outro lado, quando, no caso vertente, a parte não utilizada das possibilidades de pesca sempre excedeu 25% da quota, atingindo mesmo mais de 50% entre 1996 e 1998, não se pode sustentar que a frota espanhola tenha de algum modo limitado as suas actividades de pesca de biqueirão.

130    Em qualquer caso, mesmo admitindo que o excedente de capturas da frota francesa na zona CIEM VIII fosse susceptível de demonstrar que a frota espanhola restringiu as suas possibilidades de pesca, é de concluir que, no caso em análise, os demandantes não podem invocar, a este propósito, qualquer prejuízo real e certo. Com efeito, as possibilidades de pesca de biqueirão não utilizadas pela frota espanhola da quota atribuída ao Reino de Espanha no período compreendido entre 1996 e 2001 atingiram sempre um volume superior aos excedentes de capturas realizadas pela frota francesa nesta zona nesse mesmo período, conforme determinados pelos demandantes.

131    Assim, ainda que as capturas francesas, tivessem sido efectuadas em detrimento das capturas espanholas, verifica‑se que os demandantes dispunham ainda de possibilidades de pesca não esgotadas e atribuídas ao Reino de Espanha no respeito do limite de 90% do TAC fixado para a zona, antes da transferência autorizada pelas disposições anuladas, ou seja, 29 700 toneladas.

132    A impossibilidade de a frota espanhola esgotar a quota atribuída ao Reino de Espanha, ou mesmo de utilizar uma parte substancial desta, é ainda atestada pelo facto de, por força do ponto 1, 1.2, segundo parágrafo, alínea ix), do Anexo IV do Regulamento n.° 685/95, o Reino de Espanha ter aceitado ceder à República Francesa, numa base anual, 9 000 toneladas (12 000 toneladas em 2000) das suas possibilidades de pesca do TAC de biqueirão da zona CIEM VIII, a partir de 1996, de modo que a quota efectiva de que o Reino de Espanha podia dispor na referida zona desde 1996, atingia, na realidade, não 29 700 toneladas, mas 20 700 toneladas (17 700 toneladas em 2000). Assim, enquanto os demandantes alegam, na presente acção, que sofreram um prejuízo pelo facto de a República Francesa ter sido autorizada a pescar aproximadamente mais 5 000 toneladas na zona CIEM VIII do que a quota inicial de 3 300 toneladas atribuída por força do acto de adesão, verifica‑se que, ao mesmo tempo, o Reino de Espanha cedeu cerca de um terço da quota que tinha sido atribuída nesta zona pelo acto de adesão.

133    Por estas razões, os demandantes não podem sustentar terem sofrido uma restrição das suas possibilidades de pesca efectivas na zona CIEM VIII. Aliás, isso mesmo é confirmado pelo facto de que, segundo dados fornecidos pelo Conselho, não contestados pelos demandantes, se verificar que, quer em 1994, ou seja, antes de a República Portuguesa dispor de autorização para pescar biqueirão na zona CIEM VIII, quer em 2002, ou seja, após a anulação desta autorização, o Reino de Espanha esteve longe de esgotar a sua quota, atingindo as capturas de biqueirão na zona VIII nestes anos, respectivamente, 11 230 e 7 700 toneladas. Daí resulta que os demandantes não sofreram qualquer restrição real e certa das suas possibilidades de pesca no período referido.

134    Por conseguinte, quanto à totalidade dos fundamentos expostos acima, deve concluir‑se que nem o facto de os demandantes não terem beneficiado dos 90% das possibilidades de pesca atribuídas ao Reino de Espanha na zona CIEM VIII, nem o facto de a frota francesa ter excedido as capturas nesta zona provam que os demandantes sofreram um prejuízo real e certo susceptível de dar lugar a reparação no âmbito da presente acção.

135    Em segundo lugar, os demandantes invocam que a ilegalidade imputada ao Conselho provocou uma diminuição dos preços e da procura.

136    A este propósito, basta dizer que nenhum elemento dos autos nem, em particular, nenhum dado constante do relatório AZIZ demonstra a existência de tal diminuição. Em especial, deve notar‑se que este relatório se limita a apresentar, num quadro que consta igualmente da petição, a avaliação dos «prejuízos» financeiros alegadamente sofridos pela frota espanhola, apresentando fórmulas matemáticas cujos parâmetros não são explicados, sem propor elementos relativos aos preços do mercado no período em causa. Por outro lado, perante os elementos apresentados pelas partes na sequência de uma pergunta escrita feita pelo Tribunal de Primeira Instância, constatou‑se que o preço médio de biqueirão não diminuiu de 1996 à 2001. Portanto, não procedem os argumentos dos demandantes de que a ilegalidade criticada ao Conselho provocou uma diminuição dos preços e da procura.

137    Em terceiro lugar, os demandantes alegam ter sofrido um prejuízo pelo enfraquecimento da sua posição concorrencial relativamente à frota francesa.

138    A este propósito, como sustentou justamente o Conselho, os demandantes não carrearam para o processo nenhum elemento concreto susceptível de apoiar o alegado enfraquecimento da sua posição concorrencial, antes se limitaram a formular afirmações vagas e gerais. Por conseguinte, neste ponto é infundada a acção dos demandantes.

139    Em quarto lugar, os demandantes sustentam que sofreram prejuízos devido à sobreexploração e à erosão dos recursos.

140    É de concluir também que os demandantes não adiantam qualquer elemento concreto susceptível de apoiar a sua alegação relativa à erosão dos recursos, limitando‑se, a este propósito a afirmações vagas e gerais. Quando muito, afirmaram que a erosão pode demonstrar‑se pelo facto de o Reino de Espanha nunca ter esgotado a sua quota. Contudo, esta única alegação está desprovida de fundamento, uma vez que o TAC para o período em causa, que é fixado anualmente tendo em conta, em conformidade com as disposições dos artigos 4.° e 8.° do Regulamento n.° 3760/92, o estado dos recursos naturais, atendendo aos pareceres científicos disponíveis, não foi alterado no decurso desse período, mantendo‑se em 33 000 toneladas.

141    Por fim, na medida que os demandantes pedem a reparação de um prejuízo futuro, basta dizer que elas não provaram que o dano alegado seja iminente e previsível com uma razoável certeza (v., neste sentido acórdão Hameico Stuttgart e o./Conselho e Comissão, referido no n.° 110 supra, n.° 63).

142    Os demandantes alegam, a este propósito, que o TAC de biqueirão se reduziu para 11 000 toneladas em 2003. Ora, esta afirmação está errada. Com efeito, resulta do Anexo I D do Regulamento (CE) n.° 2341/2002 do Conselho, de 20 de Dezembro de 2002, que fixa, para 2003, em relação a determinadas unidades populacionais de peixes ou grupos de unidades populacionais de peixes, as possibilidades de pesca e as respectivas condições aplicáveis nas águas comunitárias e, para os navios de pesca comunitários, nas águas em que são necessárias limitações de capturas (JO L 356, p. 12) que o TAC de biqueirão para a zona CIEM VIII em 2003 foi fixado em 33 000 toneladas. Por outro lado, importa notar que esse TAC se manteve em 33 000 toneladas quer em 2002 [Anexo I D do Regulamento (CE) n.° 2555/2001 do Conselho, de 18 de Dezembro 2001, que fixa, para 2002, em relação a determinadas unidades populacionais de peixes ou grupos de unidades populacionais de peixes, as possibilidades de pesca e as respectivas condições aplicáveis nas águas comunitárias e, para os navios comunitários, nas águas em que são necessárias limitações das capturas (JO L 347, p. 1)], quer em 2004 [Anexo I B do Regulamento (CE) n.° 2287/2003 do Conselho, de 19 de Dezembro de 2003, que fixa, para 2004, em relação a determinadas unidades populacionais de peixes ou grupos de unidades populacionais de peixes, as possibilidades de pesca e as condições associadas aplicáveis nas águas comunitárias e, para os navios de pesca comunitários, nas águas em que são necessárias limitações das capturas (JO L 344, p. 1)].

143    Por fim, quanto ao pedido de medidas de instrução apresentado pelos demandantes em 31 de Maio de 2005, importa lembrar que um pedido de medidas de instrução apresentado após o encerramento da fase oral, só pode ser acolhido se se fundar em factos susceptíveis de exercer influência decisiva quanto à solução do litígio e que o interessado não tenha podido invocar antes do encerramento da fase oral (acórdão do Tribunal de Justiça de 8 de Junho 1999, Hoechst/Comissão, C‑272/92 P, Colect., p. I‑4443, n.° 104). No caso em apreço, é de observar, por um lado, que os demandantes não adiantaram a mais pequena justificação com vista a demonstrar que, aquando da apresentação da petição, não puderam sustentar a sua afirmação respeitante à sobreexploração e à erosão de recursos. Em especial, não explicam a razão da impossibilidade de pedirem uma peritagem na petição ou, pelo menos, na réplica Por conseguinte, o pedido é inadmissível.

144    Por outro lado, importa concluir que, de qualquer modo, o pedido de medidas de instrução carece de pertinência. Com efeito, importa observar que nenhuma das peças apresentadas pelos demandantes demonstra, nem mesmo no campo das hipóteses, que a diminuição das capturas ou que o mau estado biológico do stock em 2005 possa ser devido às disposições anuladas pelo acórdão de 18 de Abril de 2002 ou a uma sobreexploração anterior do biqueirão. Pelo contrário, resulta do relatório «Arrantza 2003» elaborado pelo Instituto Tecnológico Pesquero y Alimentario, anexo à tréplica, que o ciclo de vida do biqueirão é muito curto e a população do biqueirão muito variável, de modo que podem existir, de um ano para o outro, períodos de crise na sua população, ou mesmo períodos de penúria. Assim, de acordo com o referido relatório, em 2002, a biomassa de reprodutores situava‑se dentro de limites biológicos seguros, estimando‑se em 56 000 toneladas, isto é, para além da biomassa de precaução de 36 000 toneladas. Nestas condições, as peças processuais apresentadas pelos demandantes não podem ter influência decisiva para a resolução do litígio.

145    Por conseguinte, há que indeferir o pedido de medidas de instrução apresentado pelos demandantes.

146    Por todos estes motivos, há que concluir que os demandantes não produziram prova da existência dos prejuízos alegados.

147    Assim, uma vez que os demandantes não produziram prova da existência de uma violação suficientemente caracterizada de uma norma jurídica que atribua direitos aos particulares, nem da realidade do alegado prejuízo, deve concluir‑se que não existe responsabilidade da Comunidade, sem necessidade verificar se a condição relativa ao nexo de causalidade entre a ilegalidade alegada e o prejuízo invocado está demonstrada.

148    De todo o exposto resulta que não procede a acção intentada pelos demandantes, por infundada, sem necessidade de decidir quanto aos argumentos respeitantes à admissibilidade.

 Quanto às despesas

149    Por força do disposto no n.° 2 do artigo 87.° do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo os demandantes sido vencidos, há que condená‑los nas despesas, tal como pedido pelo demandado.

150    Nos termos do n.° 4 do artigo 87.° do mesmo Regulamento de Processo, os Estados‑Membros e as instituições que intervenham no processo suportam as respectivas despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Terceira Secção)

decide:

1)      A acção é julgada improcedente.

2)      Os demandantes suportarão as próprias despesas e as efectuadas pelo Conselho.

3)      A República Francesa e a Comissão suportarão as suas próprias despesas.

Jaeger

Tiili

Czúcz

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 19 de Outubro de 2005.

O secretário

 

      O presidente

E. Coulon

 

      M. Jaeger


* Língua do processo: espanhol.