Language of document : ECLI:EU:C:2021:398

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

20 de maio de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Transporte terrestre de mercadorias perigosas — Diretiva 2008/68/CE — Artigo 5.o, n.o 1 — Conceito de “requisito de construção” — Proibição de prever requisitos de construção mais severos — Autoridade de um Estado‑Membro que impõe a uma estação de serviço a obrigação de se abastecer em gás de petróleo liquefeito (GPL) apenas por veículos‑cisterna que disponham de um revestimento térmico específico não previsto pelo Acordo Europeu relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada (ADR) — Ilicitude — Decisão inimpugnável por uma categoria de particulares — Possibilidade estritamente enquadrada de obter a anulação dessa decisão em caso de contradição manifesta com o direito da União — Princípio da segurança jurídica — Princípio da efetividade»

No processo C‑120/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos), por Decisão de 30 de janeiro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de fevereiro de 2019, no processo

X

contra

College van burgemeester en wethouders van de gemeente Purmerend,

sendo interveniente:

Tamoil Nederland BV,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, N. Wahl (relator), F. Biltgen, L. S. Rossi e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do College van burgemeester en wethouders van de gemeente Purmerend, por J. R. van Angeren, advocaat,

–        em representação do Governo neerlandês, por C. S. Schillemans, K. Bulterman e H. S. Gijzen, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por D. Klebs e J. Möller, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Nijenhuis e N. Yerrell, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 28 de janeiro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de setembro de 2008, relativa ao transporte terrestre de mercadorias perigosas (JO 2008, L 260, p. 13), conforme alterada pela Diretiva 2014/103/UE da Comissão, de 21 de novembro de 2014 (JO 2014, L 335, p. 15) (a seguir «Diretiva 2008/68»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe X ao College van burgemeester en wethouders van de gemeente Purmerend (Câmara Municipal de Purmerend, Países Baixos) (a seguir «College») a propósito de uma decisão pela qual este último fixou requisitos relativos ao abastecimento, em gás de petróleo liquefeito (GPL), de uma estação de serviço estabelecida no seu território.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 1, 5, 11 e 22 da Diretiva 2008/68 enunciam:

«(1)      O transporte de mercadorias perigosas por estrada, caminho‑de‑ferro ou via navegável interior apresenta riscos de acidente consideráveis. Deverão, por conseguinte, ser aprovadas medidas para assegurar que tais transportes sejam realizados nas melhores condições de segurança possíveis.

[…]

(5)      [O Acordo Europeu relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada, concluído em Genebra em 30 de setembro de 1957 (ADR)] […] [estabelece] regras uniformes para que o transporte internacional de mercadorias perigosas se efetue em segurança. Para harmonizar as condições de transporte de mercadorias perigosas na Comunidade e garantir o funcionamento do mercado comum de transportes, essas regras deverão ser aplicáveis ao transporte nacional.

[…]

(11)      Cada Estado‑Membro deverá ter o direito de regulamentar ou proibir o transporte de mercadorias perigosas no seu território, por razões distintas da segurança, como sejam as razões de segurança nacional ou de proteção do ambiente.

[…]

(22)      Atendendo a que os objetivos da presente diretiva, designadamente garantir a aplicação uniforme de normas de segurança harmonizadas na Comunidade e um nível elevado de segurança nas operações de transporte nacional e internacional, não podem ser suficientemente realizados pelos Estados‑Membros e podem, pois, devido à sua dimensão e efeitos, ser melhor alcançados a nível comunitário, a Comunidade pode tomar medidas, em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado. […]»

4        O artigo 1.o, n.os 1 e 5, desta diretiva dispõe:

«1.      A presente diretiva é aplicável ao transporte rodoviário, ferroviário e por via navegável interior de mercadorias perigosas num Estado‑Membro ou entre Estados‑Membros, incluindo as operações de carga e descarga, as transferências de um modo de transporte para outro e as paragens exigidas pelas condições do transporte.

[…]

5.      Os Estados‑Membros podem regulamentar ou proibir, exclusivamente por motivos que não se prendam com a segurança durante o transporte, o transporte de mercadorias perigosas no seu território.»

5        O artigo 3.o da referida diretiva prevê:

«1.      Sem prejuízo do disposto no artigo 6.o, não é permitido transportar mercadorias perigosas cujo transporte seja proibido pela secção I.1 do anexo I, pela secção II.1 do anexo II e pela secção III.1 do anexo III.

2.      Sem prejuízo das regras gerais de acesso ao mercado ou das disposições geralmente aplicáveis ao transporte de mercadorias, é autorizado o transporte de mercadorias perigosas nas condições estabelecidas na secção I.1 do anexo I, na secção II.1 do anexo II e na secção III.1 do anexo III.»

6        Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, da mesma diretiva:

«Os Estados‑Membros podem, por razões de segurança do transporte, aplicar disposições mais severas, à exceção de requisitos de construção, ao transporte nacional de mercadorias perigosas em veículos, vagões e embarcações de navegação interior, matriculados ou colocados em circulação no seu território.»

7        O artigo 6.o da Diretiva 2008/68 prevê que os Estados‑Membros podem derrogar, nomeadamente, certas regras previstas nos anexos desta diretiva.

8        O anexo I desta diretiva torna aplicáveis os anexos A e B do ADR, na sua versão em vigor em 1 de janeiro de 2015 (a seguir «ADR 2015»).

9        O único considerando do ADR 2015 precisa que as partes contratantes «desejam aumentar a segurança dos transportes rodoviários internacionais», enquanto o artigo 3.o do ADR 2015 dispõe que os anexos deste acordo fazem parte integrante do mesmo.

10      O anexo A, parte 1, capítulo 1.2, ponto 1.2.1, do ADR 2015 define o reservatório das cisternas como «a parte da cisterna que contém a matéria destinada ao transporte, incluindo as aberturas e os seus fechos, mas não inclui o equipamento de serviço e o equipamento de estrutura exterior».

11      O quadro A que figura no capítulo 3.2 da parte 3 do ADR 2015 contém a lista das mercadorias perigosas e indica nomeadamente:

N.o ONU

Nome e descrição

Classe

[…]

Cisternas ADR

[…]





Código cisterna

4,3

Disposições especiais

4.3.5, 6.8.4


(1)

(2)

(3a)

[…]

(12)

(13)

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]

1075

GASES DE PETRÓLEO LIQUEFEITOS

2

[…]

PxBN (M)

TA4

TT9

TT11

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]

[…]


12      O capítulo 4.3 do anexo A, parte 4, do ADR 2015 tem por epígrafe «Utilização de cisternas fixas (veículos‑[cisterna]), cisternas desmontáveis, contentores‑[cisterna] e caixas móveis cisternas, cujos reservatórios são construídos em materiais metálicos, bem como de veículos‑bateria e contentores de gás de elementos múltiplos (CGEM)». O n.o 4.3.2.1.2 deste capítulo estipula:

«O tipo de cisterna, de veículo‑bateria e de CGEM requerido é dado sob a forma codificada na coluna (12) do quadro A do capítulo 3.2. […] As explicações para ler as quatro partes do código são dadas no [n.o] 4.3.3.1.1 (quando a matéria a transportar pertença à classe 2) […]»

13      O anexo A, parte 4, capítulo 4.3, n.o 4.3.3.1.1, do ADR 2015 contém o quadro seguinte:

Parte

Descrição

Código‑cisterna

1

Tipos de cisterna, veículo‑bateria ou CGEM

[…]

P = cisterna, veículo‑bateria ou CGEM para gases liquefeitos ou dissolvidos;

[…]

[…]

[…]

[…]


14      O capítulo 6.8 do anexo A, parte 6, do ADR 2015 tem a epígrafe «Prescrições relativas à construção, aos equipamentos, à aprovação de tipo, às inspeções e ensaios e à marcação das cisternas fixas (veículos‑[cisterna]), cisternas desmontáveis, contentores‑[cisterna] e caixas móveis cisternas, cujos reservatórios são construídos de materiais metálicos, bem como de veículos‑[bateria] e contentores para gás de elementos múltiplos (CGEM)». O n.o 6.8.2.1.9 deste capítulo inscreve‑se nas prescrições de «construção» previstas no n.o 6.8.2.1 e tem a seguinte redação:

«Os materiais dos reservatórios ou os seus revestimentos protetores que estejam em contacto com o conteúdo[…] não devem conter matérias suscetíveis de reagir perigosamente […] com o conteúdo, de formar produtos perigosos ou de enfraquecer o material de modo apreciável sob o seu efeito.

[…]»

15      Os n.os 6.8.2.1.24 a 6.8.2.1.26 deste capítulo 6.8, precedidos da epígrafe «Outras prescrições de construção», preveem:

«6.8.2.1.24       O revestimento interior de proteção deve ser concebido de maneira que a sua estanquidade fique garantida, quaisquer que sejam as deformações que se possam produzir nas condições normais de transporte […]

6.8.2.1.25 O isolamento térmico deve ser concebido de maneira a não dificultar nem o acesso, nem o respetivo funcionamento dos dispositivos de enchimento e de descarga e das válvulas de segurança, nem o respetivo funcionamento.

6.8.2.1.26 Se os reservatórios destinados ao transporte de matérias líquidas inflamáveis, com um ponto de inflamação que não ultrapasse 60 °C, forem revestidos interiormente por materiais não metálicos, os reservatórios e os revestimentos de proteção devem ser concebidos de modo a que não possa haver perigo de inflamação devido às cargas eletrostáticas.»

16      O n.o 6.8.3 do referido capítulo 6.8 é composto apenas pelo título «Prescrições particulares aplicáveis à classe 2», enquanto o n.o 6.8.3.1 desta disposição abrange mais especificamente a «[c]onstrução dos reservatórios». O n.o 6.8.3.1.1 do mesmo capítulo precisa:

«Os reservatórios destinados ao transporte de gases comprimidos, liquefeitos ou dissolvidos devem ser construídos em aço. […]»

17      O n.o 6.8.4 do capítulo 6.8 do anexo A, parte 6, do ADR 2015 contém, entre outras, as «[d]isposições especiais» TA4, TT9 e TT11 tornadas aplicáveis às cisternas que transportam GPL por força do quadro A reproduzido no n.o 11 do presente acórdão.

18      O n.o 6.8.5.1.1 deste capítulo 6.8 estipula que, quando as cisternas fixas sejam soldadas, os reservatórios destinados ao transporte de gases comprimidos, liquefeitos ou dissolvidos da classe 2 devem ser construídos em aço, entendendo‑se que também podem ser construídos em alumínio, em liga de alumínio, em cobre ou em liga de cobre no que respeita ao transporte de gases liquefeitos refrigerados da classe 2.

 Direito neerlandês

19      O artigo 8:69a do Algemene wet bestuursrecht (Código Administrativo, a seguir «Awb») dispõe:

«Os tribunais administrativos não devem anular uma decisão com o fundamento de que é contrária a regras jurídicas escritas ou não escritas ou a princípios jurídicos gerais, sempre que estes não tenham manifestamente por objetivo a proteção dos interesses de quem os invoca.»

20      A circulaire effectafstanden externe veiligheid LPG‑tankstations voor besluiten met gevolgen voor de effecten van een ongeval (Circular relativa às Distâncias a Respeitar em Matéria de Segurança Externa das Estações de Serviço GPL no Âmbito das Decisões com Incidência nos Efeitos de um Acidente) do Staatssecretaris van Infrastructuur en Milieu (secretário de Estado das Infraestruturas e do Ambiente), de 14 de junho de 2016 (Stcrt. 2016, n.o 31453, a seguir «Circular de 14 de junho de 2016») insta as autoridades competentes a terem em conta, ao adotar decisões em matéria de ordenamento do território, certas distâncias de segurança que permitam prevenir os efeitos dos acidentes suscetíveis de afetar uma estação de serviço quando do seu abastecimento com GPL baseando‑se, com referência ao «Safety Deal hittewerende bekleding op LPG‑autogastankwagens» (Acordo de Segurança sobre o Revestimento Térmico dos Veículos‑Cisterna de GPL) (Stcrt. 2016, n.o 31448, a seguir «Safety Deal»), no pressuposto de que, por um lado, todos os veículos‑cisterna neerlandeses que abastecem essas estações de serviço estão, na prática, equipados com um revestimento térmico específico suscetível de atrasar o cenário de «explosão de vapores em expansão produzidos por um líquido em ebulição» (boiling liquid expanding vapour explosion ou «cenário BLEVE») em, pelo menos, 75 minutos após o início de um incêndio (a seguir «revestimento térmico específico em causa») e, por outro, as estações de serviço em causa são normalmente abastecidas por camiões equipados com esse revestimento.

21      O Safety Deal, subscrito pelo secretário de Estado das Infraestruturas e do Ambiente e pela Vereniging Vloeibaar Gas (Associação do Gás Líquido, Países Baixos), bem como por outras organizações ou associações ativas no setor do GPL, confirma, em substância, o compromisso dos membros da referida associação de só utilizarem, no fornecimento de GPL às estações de serviço, veículos‑cisterna equipados com o revestimento térmico específico em causa, ao passo que as outras organizações e associações se comprometem a subscrever este objetivo esforçando‑se por promovê‑lo junto dos seus membros e assegurar a sua aplicação. Todas as partes no Safety Deal aprovaram, além disso, o conteúdo da Circular de 14 de junho de 2016.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

22      X reside a uma distância de cerca de 125 metros de uma estação de serviço que, nomeadamente, vende GPL desde 1977. Desejando que fosse posto termo à venda de GPL por essa estação de serviço devido aos riscos que essa venda comportava para a segurança das habitações situadas na proximidade desta, X pediu ao College que retirasse a licença ambiental emitida para esse efeito à referida estação de serviço.

23      Embora tenha indeferido este pedido por Decisão de 30 de junho de 2015, o College impôs, por Decisão de 18 de janeiro de 2016 (a seguir «Decisão de 18 de janeiro de 2016»), à referida estação de serviço dois requisitos adicionais quanto ao seu abastecimento com GPL. Previa‑se aí que esta última devia passar a ser abastecida com GPL através de veículos‑cisterna equipados, por um lado, com o revestimento térmico específico em causa e, por outro, com um tubo de enchimento melhorado. Segundo o College, estes dois requisitos permitiam reduzir a um nível aceitável os riscos de acidente no abastecimento da estação de serviço em causa com GPL.

24      Quanto ao requisito relativo ao revestimento térmico, as autoridades neerlandesas tinham, alguns meses antes, por um lado, instituído o Safety Deal e, por outro, adotado a Circular de 14 de junho de 2016 que estabelecia uma política complementar de gestão dos riscos das estações de serviço que vendem GPL, baseada na ideia de que essas estações de serviço só eram abastecidas por veículos‑cisterna equipados com o revestimento térmico específico em causa. O órgão jurisdicional de reenvio precisa que esta circular não indica expressamente que as autoridades competentes devem impor esse requisito de revestimento nas licenças ambientais que emitem às estações de serviço que vendem GPL. Acrescenta que as autoridades neerlandesas preferiram não impor este requisito através de uma disposição geral vinculativa por terem considerado que tal disposição era suscetível de violar o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68.

25      Considerando que os dois requisitos impostos pela Decisão de 18 de janeiro de 2016 deviam ser anulados por não poderem ser executados em razão da sua incompatibilidade, nomeadamente, com a Diretiva 2008/68, X interpôs recurso dessa decisão no rechtbank Noord‑Holland (Tribunal de Primeira Instância da Província da Holanda do Norte, Países Baixos). Por Decisão de 8 de junho de 2017, esse órgão jurisdicional negou provimento ao recurso.

26      Chamado a pronunciar‑se sobre um recurso interposto por X dessa decisão, o órgão jurisdicional de reenvio considera que o requisito relativo à utilização de um tubo de enchimento melhorado não viola as disposições da Diretiva 2008/68, pelo que pode ser mantido. Em contrapartida, tem dúvidas quanto à compatibilidade com esta diretiva do requisito relativo ao revestimento térmico específico em causa.

27      Após ter considerado que o revestimento térmico de um veículo‑cisterna é um elemento de «construção», na aceção do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o requisito relativo ao revestimento térmico específico em causa pode ser considerado um «requisito de construção», proibido por esta disposição, uma vez que, por um lado, este requisito não visa diretamente o proprietário ou o operador do veículo‑cisterna, mas o operador da estação de serviço, e que, por outro, este requisito não consta de uma disposição vinculativa do direito nacional de caráter geral, mas de uma licença ambiental emitida a uma determinada estação de serviço. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se há que ter em conta o facto de que, apesar de as autoridades neerlandesas se terem abstido de impor o referido requisito através de uma disposição vinculativa de caráter geral em razão de uma eventual incompatibilidade desta com o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, instituíram o Safety Deal e adotaram a Circular de 14 de junho de 2016 para assegurar que, em todo o território nacional, as estações de serviço só seriam abastecidas com GPL por veículos‑cisterna equipados com o revestimento térmico específico em causa.

28      No caso de o Tribunal de Justiça considerar que o requisito relativo ao revestimento térmico específico em causa constitui um «requisito de construção», proibido pelo artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, o órgão jurisdicional de reenvio observa que essa declaração, por si só, não lhe permite anular a Decisão de 18 de janeiro de 2016 que impõe esse requisito. Com efeito, por força do artigo 8:69a do Awb, os tribunais administrativos não podem anular uma decisão contrária a uma regra jurídica que não tenha manifestamente por objetivo proteger os interesses do recorrente em causa. Ora, o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 não tem manifestamente por objetivo proteger o interesse de X em obter uma proteção material do bairro de habitação situado na proximidade da estação de serviço em causa.

29      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, por força do direito neerlandês, o College não pode fazer constar de uma licença um requisito cujo respeito por parte do destinatário não pode assegurar e que não pode, assim, ser executado no âmbito de uma decisão posterior. Tendo em conta este argumento, o órgão jurisdicional de reenvio explica que, com fundamento no direito neerlandês aplicável, pode anular o requisito relativo ao revestimento térmico específico em causa pelo facto de este não poder ser executado posteriormente por ser contrário a uma regra jurídica como o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, salvo se for evidente, com base num exame sumário que não suscite dúvidas, que o requisito em causa não podia ser imposto (a seguir «critério da evidência»). O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, no entanto, sobre a questão de saber se o critério da evidência é conforme com o direito da União e, em especial, com o princípio da efetividade, por força do qual as regras do direito nacional pertinentes não devem tornar o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União na prática impossível ou extremamente difícil.

30      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio observa, por um lado, que a efetividade do direito da União pode ser entravada pela aplicação do critério da evidência, na medida em que esse critério só estaria preenchido em casos excecionais e imporia assim um patamar elevado ao particular e em que o Tribunal de Justiça declarou, nos seus Acórdãos de 29 de abril de 1999, Ciola (C‑224/97, EU:C:1999:212), e de 6 de abril de 2006, ED & F Man Sugar (C‑274/04, EU:C:2006:233), que uma obrigação decorrente de uma decisão inimpugnável pode ser afastada, no âmbito do exame de uma decisão posterior, baseada na primeira destas decisões, em razão da incompatibilidade desta primeira decisão com o direito da União.

31      Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio recorda a importância do princípio da segurança jurídica, que pode justificar que um requisito inimpugnável, como o que está em causa no processo principal, só possa ser posto em causa, tratando‑se de um particular como X, na fase da decisão destinada a executá‑lo, no caso, previsto pelo direito neerlandês, de ser evidente que este não podia ser imposto por ser contrário ao direito da União. O elevado patamar imposto a este respeito pelo critério da evidência justificar‑se‑ia, assim, pelo peso importante atribuído ao interesse da segurança jurídica. Além disso, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se a jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no número anterior é aplicável ao litígio no processo principal, na medida em que os processos que deram origem a esses acórdãos se baseavam numa decisão posterior que aplicava uma sanção ao particular, o que não se verifica no caso em apreço.

32      Nestas circunstâncias, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      a) Deve o artigo 5.o, n.o 1, da [Diretiva 2008/68] ser interpretado no sentido de que se opõe a um requisito de segurança, incluído na licença da estação de serviço de GPL, que determina que a estação de serviço de GPL individual em causa só pode ser abastecida por veículos‑cisterna de GPL com um revestimento [térmico], quando esta obrigação não é diretamente imposta a um ou mais operadores de veículos‑cisterna de GPL?

b)      É relevante para a resposta à primeira questão o facto de o Estado‑Membro ter celebrado um acordo como o denominado [Safety Deal] com empresas de operadores do mercado do setor do GPL (incluindo operadores de estações de serviço de GPL, produtores, vendedores e transportadores de GPL), no âmbito do qual as partes se comprometeram a aplicar o revestimento [térmico] e, na sequência desse acordo, ter emitido uma circular como a [Circular de 14 de junho de 2016], que estabelece uma política de riscos complementar que parte do pressuposto de que as estações de serviço de GPL são abastecidas por veículos‑cisterna equipados com revestimento [térmico]?

2)      a) Se um órgão jurisdicional nacional for chamado a apreciar a legalidade de uma decisão de execução que visa impor o cumprimento de um requisito de segurança que se tornou definitivo e que é incompatível com o direito da União:

–        permite o direito da União, e mais especificamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a autonomia processual nacional, que o órgão jurisdicional nacional presuma a legalidade de um tal requisito de segurança, salvo se este violar de forma evidente normas jurídicas de grau superior, como o direito da União? Em caso de resposta afirmativa, o direito da União sujeita esta exceção a condições (adicionais)?

–        ou resulta do direito da União, também tendo em conta os Acórdãos [de 29 de abril de 1999, Ciola (C‑224/97, EU:C:1999:212), e de 6 de abril de 2006, ED & F Man Sugar (C‑274/04, EU:C:2006:233)], que o órgão jurisdicional nacional deve deixar de aplicar tal requisito de segurança por violar o direito da União?

b)      É relevante para a resposta à [segunda questão, alínea a),] a questão de saber se a decisão de execução constitui uma medida corretiva (remedy) ou uma sanção punitiva (criminal charge)?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

33      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um requisito, imposto pelas autoridades de um Estado‑Membro a uma estação de serviço ao abrigo de uma decisão administrativa sob a forma de uma licença ambiental, de só se abastecer com GPL por veículos‑cisterna equipados com um revestimento térmico específico como o que está em causa no processo principal.

34      A este respeito, importa, em primeiro lugar, recordar que, nos termos do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, os Estados‑Membros podem, por razões de segurança do transporte, aplicar disposições mais severas, à exceção de requisitos de construção, ao transporte nacional de mercadorias perigosas em veículos, vagões e embarcações de navegação interior, matriculados ou colocados em circulação no seu território.

35      Resulta desta redação que, tratando‑se desse transporte nacional, este artigo 5.o, n.o 1, proíbe que os Estados‑Membros apliquem, por razões de segurança do transporte, requisitos mais severos em matéria de construção.

36      Nem o referido artigo 5.o, n.o 1, nem nenhuma outra disposição da Diretiva 2008/68 definem, no entanto, o conceito de «requisitos construção» nem mencionam o padrão de requisitos relativamente ao qual os Estados‑Membros devem abster‑se de adotar disposições mais severas.

37      No entanto, importa sublinhar que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2008/68 só autoriza o transporte de mercadorias perigosas sob reserva do cumprimento das condições estabelecidas, nomeadamente, no anexo I, secção I.1, desta diretiva, que remete para os anexos A e B do ADR na sua versão aplicável à época dos factos no processo principal, a saber o ADR 2015.

38      Ora, tanto a parte 6 do anexo A como a parte 9 do anexo B do ADR 2015 contêm «prescrições relativas à construção». Por conseguinte, o conceito de «requisitos de construção», referido no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, deve ser entendido com referência às prescrições correspondentes que figuram nas referidas partes desses anexos, não tendo os Estados‑Membros, assim, o direito de adotar requisitos mais severos.

39      No que respeita mais especificamente aos veículos‑cisterna destinados ao transporte de GPL em causa no processo principal, há que salientar que, por força das disposições conjugadas do anexo A, parte 4, capítulo 4.3, n.os 4.3.2.1.2 e 4.3.3.1.1, e capítulo 6.8, n.os 6.8.3.1.1 e 6.8.5.1.1, do ADR 2015, lidas em conjugação com o quadro A do capítulo 3.2 da parte 3 desse anexo, o transporte de GPL, enquanto mercadoria perigosa da classe 2, deve ser efetuado através de veículos‑cisterna cujos reservatórios sejam construídos em materiais metálicos. Importa igualmente salientar que o anexo A, parte 6, capítulo 6.8, do ADR 2015 contém, designadamente, «prescrições relativas à construção», aplicáveis, nomeadamente, aos veículos‑cisterna cujos reservatórios são construídos em materiais metálicos.

40      Daqui resulta que, tratando‑se de veículos‑cisterna destinados ao transporte de GPL, o conceito de «requisitos de construção», constante do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, deve ser entendido como correspondendo às «prescrições relativas à construção», definidas no anexo A, parte 6, capítulo 6.8, do ADR 2015, e, em especial, às regras subordinadas que constam dos n.os 6.8.2.1, 6.8.3.1 e 6.8.5.1 desse capítulo, bem como às disposições especiais TA4, TT9 e T11 contidas no n.o 6.8.4 do referido capítulo e aplicáveis a tais veículos‑cisterna por força do quadro A constante do anexo A, parte 3, capítulo 3.2, do ADR 2015.

41      Nestas condições, há que considerar que decorre do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 que, tratando‑se do transporte nacional de GPL efetuado, nomeadamente, por veículos‑cisterna matriculados ou colocados em circulação no seu território, os Estados‑Membros não podem, por razões de segurança, aplicar requisitos de construção mais severos do que os expressamente previstos no anexo A, parte 6, capítulo 6.8, do ADR 2015.

42      Ora, no caso em apreço, embora seja verdade que o anexo A, parte 6, capítulo 6.8, do ADR 2015 contém várias prescrições relativas à construção do revestimento interior de proteção ou do isolamento térmico do reservatório ou da cisterna, como as enunciadas nos n.os 6.8.2.1.9 e 6.8.2.1.24 a 6.8.2.1.26 desse capítulo, não se pode deixar de observar que o mesmo não contém nenhuma prescrição que imponha um revestimento térmico como o exigido no processo principal, a saber, um revestimento térmico em condições de atrasar o cenário BLEVE em, pelo menos, 75 minutos após o início de um incêndio.

43      Daqui resulta que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 se opõe a que, tratando‑se do transporte nacional de mercadorias perigosas efetuado, nomeadamente, por veículos matriculados ou colocados em circulação no seu território, os Estados‑Membros imponham, por razões de segurança do transporte, que esses veículos estejam equipados com um revestimento térmico que não está previsto nas prescrições do ADR em matéria de construção, na medida em que esse revestimento constitui um requisito de construção mais severo, proibido por esta disposição da diretiva.

44      Esta interpretação não é posta em causa pelo facto de um requisito como o que está em causa no processo principal, quando instituído em violação do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, ter sido, por um lado, imposto a uma estação de serviço e não diretamente aos proprietários ou operadores de veículos‑cisterna e, por outro, adotado num caso individual e não no âmbito de uma disposição vinculativa de caráter geral.

45      Com efeito, o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 impõe uma proibição clara, geral e absoluta aos Estados‑Membros que devem assegurar o seu respeito em quaisquer circunstâncias e por todos os meios, precisando‑se que, por força do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, o conceito de «transporte» engloba igualmente as operações de descarga de mercadorias perigosas, como a efetuada quando do abastecimento com GPL de uma estação de serviço.

46      Assim, o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 opõe‑se a qualquer medida tomada por um Estado‑Membro, incluindo uma medida adotada por uma autoridade municipal sob a forma de uma decisão administrativa individual, como a licença ambiental em causa no processo principal, que seja contrária à proibição prevista nesta disposição, mesmo que essa medida imponha apenas de forma indireta um requisito de construção aos operadores de veículos‑cisterna interessados ou encarregados de assegurar o abastecimento com GPL do destinatário dessa medida.

47      Por outro lado, o facto de as autoridades neerlandesas terem instituído o Safety Deal  e adotado a Circular de 14 de junho de 2016 para assegurar a nível nacional que os veículos‑cisterna utilizados para o abastecimento com GPL das estações de serviço situadas no território neerlandês estivessem equipados com o revestimento térmico específico em causa não pode ter influência na resposta a dar à primeira questão, atendendo a que o recurso a tais instrumentos não pode justificar de maneira alguma uma decisão administrativa, como a licença ambiental em causa no processo principal, que impõe um requisito de construção proibido pelo artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68.

48      Em segundo lugar, importa considerar que, contrariamente ao que a Comissão sustentou, em substância, nas suas observações escritas, não se pode inferir do artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2008/68 que os Estados‑Membros têm a faculdade de estabelecer, por motivos que não se prendam com a segurança durante o transporte, requisitos mais severos do que os previstos no ADR em matéria de construção.

49      O artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2008/68 dispõe que os Estados‑Membros podem regulamentar ou proibir, exclusivamente por motivos que não se prendam com a segurança durante o transporte, o transporte de mercadorias perigosas no seu território.

50      Como salientou o advogado‑geral, em substância, nos n.os 45 e 46 das suas conclusões, o artigo 1.o, n.o 5, e o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, que devem ambos ser interpretados de forma de restritiva uma vez que constituem exceções à regra geral prevista no artigo 3.o, n.os 1 e 2, desta diretiva, por força da qual o transporte das mercadorias perigosas está sujeito às proibições e autorizações previstas nos anexos pertinentes da referida diretiva, encontram‑se numa correlação lógica na medida em que permitem aos Estados‑Membros derrogar esta regra geral por motivos distintos.

51      No que respeita ao artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2008/68, há que salientar, como sublinhou o advogado‑geral no n.o 46 das suas conclusões, que a utilização do advérbio «exclusivamente» nesta disposição implica que os Estados‑Membros só podem regulamentar ou proibir o transporte de mercadorias no seu território por motivos que não se prendam com a segurança durante o transporte, ou seja, por motivos que não devem ter nenhuma ligação com a segurança do transporte.

52      Esta interpretação da redação do artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2008/68 é corroborada pelo objetivo prosseguido por esta diretiva. Com efeito, resulta dos considerandos 1, 5 e 22 da referida diretiva que esta tem por objetivo que o transporte transfronteiriço e nacional de mercadorias perigosas por estrada, por caminho de ferro ou via navegável na União se efetue nas melhores condições de segurança possíveis, uma vez que o legislador da União decidiu aplicar, entre outras, as regras de segurança contidas nos anexos A e B do ADR de modo a assegurar a aplicação uniforme de regras de segurança harmonizadas em toda a União e a garantir o bom funcionamento do mercado comum de transportes.

53      Nestas condições e tendo em conta o facto de que, por força do único considerando do ADR, as regras que figuram nesse acordo, de que fazem parte as prescrições relativas à construção, visam aumentar a segurança do transporte rodoviário, os Estados‑Membros não podem, com exceção das derrogações expressamente previstas no artigo 6.o da Diretiva 2008/68, estabelecer, ao abrigo do artigo 1.o, n.o 5, desta diretiva, regras de segurança do transporte diferentes das prescritas pela referida diretiva e pelos anexos A e B do ADR, sob pena de porem em perigo o duplo objetivo de harmonização das regras de segurança e de garantia do bom funcionamento do mercado comum de transportes, pondo, de resto, simultaneamente em causa a apreciação do legislador da União de que as regras de segurança do transporte prescritas pela mesma diretiva e os anexos do ADR devem assegurar as melhores condições de segurança possíveis.

54      Por conseguinte, quando um Estado‑Membro pretenda regulamentar ou proibir o transporte de mercadorias perigosas no seu território ao abrigo do artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2008/68, só o poderá fazer por razões distintas da segurança do transporte, sob pena de prejudicar os objetivos prosseguidos por esta diretiva. Embora essas razões possam estar relacionadas, como resulta do considerando 11 da referida diretiva, com a segurança nacional ou a proteção do ambiente, importa, para efeitos da preservação desses objetivos, que tais razões, quando invocadas, não estejam relacionadas, de facto, com a segurança do transporte. Em especial, um Estado‑Membro não pode, a pretexto da proteção do ambiente, estabelecer prescrições relativas à construção, quando tais prescrições, que constam dos anexos A e B do ADR, visam, como foi recordado no número anterior, aumentar a segurança do transporte. Tal motivo pode, em contrapartida, ser invocado, como salientou, em substância, o Governo alemão nas suas observações escritas, para, por exemplo, regulamentar ou proibir o transporte de mercadorias perigosas através de zonas ecologicamente sensíveis do território do Estado‑Membro em causa, uma vez que uma regulamentação neste sentido em nada afeta a segurança do transporte enquanto tal.

55      Nestas condições, há que considerar que os Estados‑Membros não podem, quer ao abrigo do artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2008/68 quer do artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva, estabelecer requisitos de construção, como o revestimento térmico específico em causa.

56      Além disso, há que precisar, independentemente do facto de, segundo as indicações fornecidas pelo College nas suas observações escritas, a estação de serviço em causa no processo principal ser exclusivamente abastecida com GPL pelos veículos de um fornecedor neerlandês equipados com um revestimento térmico, que, quando um requisito de construção como o que está em causa no processo principal é imposto de forma indireta aos operadores de veículos‑cisterna GPL através de uma licença emitida a uma estação de serviço, esse requisito é suscetível não só de violar o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 no que respeita às entregas de GPL efetuadas no âmbito de um transporte nacional por veículos‑cisterna matriculados no território do Estado‑Membro em causa mas também, como resulta do n.o 55 do presente acórdão, o artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2008/68 no que respeita a qualquer entrega de GPL que possa, nomeadamente, ser efetuada no âmbito de um transporte transfronteiriço por veículos‑cisterna matriculados noutro Estado‑Membro.

57      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68 deve ser interpretado no sentido de que se opõe ao estabelecimento de requisitos de construção mais severos do que os constantes dos anexos A e B do ADR, como um requisito, imposto pelas autoridades de um Estado‑Membro a uma estação de serviço por força de uma decisão administrativa sob a forma de uma licença ambiental, de só se abastecer com GPL por veículos‑cisterna equipados com um revestimento térmico específico como o que está em causa no processo principal.

 Quanto à segunda questão

58      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito da União, em especial o princípio da efetividade, se opõe a uma regra processual nacional que prevê que, para que um requisito contrário ao direito da União, imposto por uma decisão administrativa em princípio inimpugnável por uma categoria de particulares, possa ser anulado em razão do seu caráter inexecutável se fosse aplicado por uma decisão posterior, o particular deve demonstrar que era evidente que o requisito em causa não podia, com base num exame sumário que não suscite dúvidas, ser adotado à luz do direito da União.

 Quanto à admissibilidade

59      Nas suas observações escritas, o College considera que a segunda questão não tem relação com o litígio e é de natureza teórica, uma vez que a decisão administrativa em causa no processo principal não é inimpugnável e não foi adotada uma decisão subsequente de execução. Sem concluir pela inadmissibilidade da segunda questão, o Governo neerlandês também refere, nas suas observações escritas, considerações semelhantes.

60      A este respeito, há que recordar que o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 24, e de 7 de fevereiro de 2018, American Express, C‑304/16, EU:C:2018:66, n.o 31).

61      Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 25, e de 7 de fevereiro de 2018, American Express, C‑304/16, EU:C:2018:66, n.o 32).

62      Por outro lado, há que salientar que, em conformidade com jurisprudência constante, a justificação do reenvio prejudicial não é emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas a necessidade inerente à efetiva solução de um litígio (Acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 194 e jurisprudência referida).

63      No caso em apreço, é certo que o órgão jurisdicional de reenvio conclui que, admitindo que seja declarado, à luz da resposta do Tribunal de Justiça à primeira questão, que é procedente o argumento do recorrente segundo o qual o requisito em causa no processo principal viola o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, tal declaração, por si só, não permitiria a esse órgão jurisdicional, em razão do artigo 8:69a do Awb, anular esse requisito.

64      Além disso, é verdade que, na formulação da segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio faz efetivamente referência a «uma decisão de execução que visa impor o cumprimento de um requisito de segurança que se tornou definitivo e que é incompatível com o direito da União» e não indica, em parte alguma, na decisão de reenvio, a existência de uma decisão que o College tenha adotado com vista a executar o requisito imposto na sua Decisão de 18 de janeiro de 2016.

65      Dito isto, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que X invocou, no âmbito do seu recurso, o princípio do direito administrativo neerlandês por força do qual uma licença não pode impor nenhum requisito cujo respeito por parte do destinatário a autoridade competente não possa assegurar. Reconhecendo que X pode invocar esse princípio, o órgão jurisdicional de reenvio conclui que o requisito em causa no processo principal poderia ser anulado se se viesse a considerar que não podia ser executado em razão da sua incompatibilidade com o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68. Salienta, ademais, que lhe cabe apreciar esta questão de fundo desde já e não no âmbito de um eventual processo posterior destinado a verificar a legalidade de uma decisão subsequente destinada a executar o requisito em causa no processo principal.

66      Nestas condições, há que constatar que o órgão jurisdicional de reenvio expõe claramente que lhe incumbe, por força do direito nacional, decidir a referida questão na fase do processo nele pendente, mesmo que não pareça ter sido ainda adotada pelo College uma decisão de execução do requisito em causa no processo principal. Por conseguinte, a segunda questão não reveste caráter hipotético e responde a uma necessidade inerente à efetiva solução do litígio no processo principal.

67      Daqui resulta que a segunda questão é admissível.

 Quanto ao mérito

68      A título preliminar, há que recordar, como foi exposto nos n.os 28 e 63 do presente acórdão, que, apesar da resposta dada à primeira questão no n.o 57 deste acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio também não poderá, em razão do artigo 8:69a do Awb, anular, a pedido de um particular como X, o requisito que consta da licença ambiental em causa no processo principal pelo simples facto de ser contrário ao artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68, uma vez que, segundo as suas próprias constatações, esta última disposição não visa proteger o interesse de X em obter uma proteção material do bairro de habitação situado na proximidade da estação de serviço em causa, devendo, portanto, este requisito ser considerado, nesta fase, como sendo, em princípio, inimpugnável por um particular como X. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que, em aplicação do princípio do direito administrativo neerlandês por força do qual uma licença, mesmo que, em princípio, inimpugnável por um particular como X, não pode impor nenhum requisito cujo respeito por parte do destinatário a autoridade competente não possa assegurar através de uma decisão posterior que execute esse requisito, X pode, in fine, obter a anulação do requisito em causa no âmbito do seu recurso contra a licença que impõe esse requisito que também está pendente no órgão jurisdicional de reenvio, desde que cumpra, contudo, o critério da evidência, ou seja, como referido no n.o 29 do presente acórdão, a regra do direito neerlandês segundo a qual deve ser evidente, com base num exame sumário que não suscite dúvidas, que o requisito em causa não podia ser imposto em razão da violação de normas de direito superiores.

69      A este respeito, há que salientar que, na falta de regulamentação da União na matéria, as modalidades processuais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos cidadãos pelo direito da União fazem parte da ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro, por força do princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros, desde que não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) e não tornem impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (Acórdão de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance, C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.o 23 e jurisprudência referida).

70      No caso em apreço, resulta das constatações do órgão jurisdicional de reenvio que o critério da evidência cumpre o princípio da equivalência, na medida em que, no âmbito da aplicação deste critério, não é feita nenhuma distinção entre contradição com normas do direito nacional superiores e a contradição com normas do direito da União.

71      Em contrapartida, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta dúvidas quanto à conformidade do referido critério com o princípio da efetividade.

72      Neste contexto, importa recordar que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, a tramitação deste e as suas particularidades perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, sendo caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a boa marcha do processo (Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578, n.o 85 e jurisprudência referida).

73      O órgão jurisdicional de reenvio expõe, nomeadamente, que o critério da evidência, conforme previsto pelo direito administrativo neerlandês, visa preservar o princípio da segurança jurídica de maneira a que o caráter executável e, portanto, a legalidade de decisões definitivas só possam ser postos em causa no caso de a contradição dessas decisões com normas de direito superior, como as normas do direito da União, ser manifesta.

74      A este respeito, há que recordar que a segurança jurídica figura entre os princípios gerais reconhecidos no direito da União. Assim, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que o caráter definitivo de uma decisão administrativa, adquirido no termo de prazos de recurso razoáveis ou por terem sido esgotadas as vias de recurso, contribui para a segurança jurídica e que o direito da União não exige que um órgão seja, em princípio, obrigado a revogar uma decisão administrativa que já adquiriu este caráter definitivo (Acórdão de 16 de outubro de 2019, Glencore Agriculture Hungary, C‑189/18, EU:C:2019:861, n.o 45 e jurisprudência referida). No entanto, o Tribunal de Justiça precisou que, em determinadas circunstâncias, podem ser tidas em conta as particularidades das situações e dos interesses em causa, por forma a encontrar um equilíbrio entre a exigência da segurança jurídica, por um lado, e a exigência da legalidade à luz do direito da União, por outro (Acórdão de 4 de outubro de 2012, Byankov, C‑249/11, EU:C:2012:608, n.o 77 e jurisprudência referida).

75      Neste contexto, resulta das explicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a regra processual nacional que constitui o critério da evidência, ao não permitir a um particular como X obter a declaração de que um requisito constante de uma decisão definitiva não pode ser executado e obter, consequentemente, a anulação desse requisito desde que esteja demonstrada uma contradição manifesta entre a referida prescrição e o direito da União, destina‑se a encontrar um justo equilíbrio entre os princípios da segurança jurídica e da legalidade à luz do direito da União, atribuindo, regra geral, um peso preponderante ao caráter definitivo do requisito em causa, a fim de preservar a segurança jurídica, ainda que admitindo, em condições estritas, que a mesma conheça exceções.

76      Tendo em conta esta finalidade, há que considerar que o princípio da efetividade não se opõe, em princípio, a uma regra processual nacional como o critério da evidência.

77      No entanto, para assegurar que esta finalidade seja efetivamente alcançada, este critério não deve ser aplicado de uma forma estrita ao ponto de a condição ligada à contradição manifesta com o direito da União tornar ilusória, de facto, a possibilidade de um particular como X obter a anulação efetiva do requisito em causa.

78      Com efeito, se assim fosse, o princípio da efetividade, que exige, como foi recordado no n.o 69 do presente acórdão, que uma disposição processual nacional não torne impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União, não seria claramente respeitado.

79      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio poderia ter em conta o facto, recordado no n.o 24 do presente acórdão, de as autoridades neerlandesas terem preferido não impor o requisito em causa no processo principal através de uma disposição geral vinculativa, por terem considerado que tal disposição era suscetível de violar o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68.

80      Esta conclusão não é infirmada pelos Acórdãos de 29 de abril de 1999, Ciola (C‑224/97, EU:C:1999:212), e de 6 de abril de 2006, ED & F Man Sugar (C‑274/04, EU:C:2006:233), mencionados pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, estes dois acórdãos foram proferidos num contexto diferente do que está subjacente ao processo principal, de modo que o ensinamento deles decorrente é desprovido de pertinência para o presente processo.

81      No que respeita, em primeiro lugar, ao Acórdão de 29 de abril de 1999, Ciola (C‑224/97, EU:C:1999:212), o Tribunal de Justiça declarou, em substância, que o princípio do primado do direito da União impõe que se afaste uma decisão administrativa definitiva contrária a esse direito quando da apreciação do mérito de uma decisão posterior baseada na primeira dessas decisões, tendo o Tribunal de Justiça precisado, além disso, que o litígio em causa no processo que deu origem a esse acórdão não dizia respeito à legalidade enquanto tal dessa primeira decisão. Em contrapartida, o litígio no processo principal diz respeito, em substância, à questão de saber se uma regra do direito processual nacional, cuja aplicação permite precisamente afastar uma decisão administrativa em princípio definitiva em relação a uma categoria de particulares em caso de contradição manifesta dessa decisão com, nomeadamente, o direito da União, é conforme com o princípio da efetividade.

82      No que respeita, em segundo lugar, ao Acórdão de 6 de abril de 2006, ED & F Man Sugar (C‑274/04, EU:C:2006:233), o Tribunal de Justiça declarou, em substância, que uma decisão de aplicação de uma sanção não podia ser motivada pelo simples facto de uma decisão definitiva de recuperação da restituição já ter sido adotada com base num mesmo regulamento. Ora, tal situação não corresponde à que está subjacente ao litígio no processo principal, a qual, como foi recordado no número anterior do presente acórdão, diz essencialmente respeito à compatibilidade com o princípio da efetividade de uma regra processual nacional que permite, em certas condições, afastar uma decisão administrativa definitiva.

83      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o direito da União, em especial o princípio da efetividade, não se opõe a uma regra processual do direito administrativo nacional que prevê que, para que um requisito contrário ao direito da União imposto por uma decisão administrativa em princípio inimpugnável por uma categoria de particulares possa ser anulado em razão do seu caráter inexecutável se fosse aplicado por uma decisão posterior, o particular deve demonstrar que era evidente que o requisito em causa não podia, com base num exame sumário que não suscite dúvidas, ser adotado à luz do direito da União, sob reserva contudo, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, de essa regra não ser aplicada de uma forma estrita ao ponto de ser ilusória, de facto, a possibilidade de um particular obter a anulação efetiva do requisito em causa.

 Quanto às despesas

84      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/68/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de setembro de 2008, relativa ao transporte terrestre de mercadorias perigosas, conforme alterada pela Diretiva 2014/103/UE da Comissão, de 21 de novembro de 2014, deve ser interpretado no sentido de que se opõe ao estabelecimento de requisitos de construção mais severos do que os constantes dos anexos A e B do Acordo Europeu relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada, concluído em Genebra em 30 de setembro de 1957, na sua versão em vigor em 1 de janeiro de 2015, como um requisito, imposto pelas autoridades de um EstadoMembro a uma estação de serviço por força de uma decisão administrativa sob a forma de uma licença ambiental, de só se abastecer em gás de petróleo liquefeito por veículoscisterna equipados com um revestimento térmico específico como o que está em causa no processo principal.

2)      O direito da União, em especial o princípio da efetividade, não se opõe a uma regra processual do direito administrativo nacional que prevê que, para que um requisito contrário ao direito da União imposto por uma decisão administrativa em princípio inimpugnável por uma categoria de particulares possa ser anulado em razão do seu caráter inexecutável se fosse aplicado por uma decisão posterior, o particular deve demonstrar que era evidente que o requisito em causa não podia, com base num exame sumário que não suscite dúvidas, ser adotado à luz do direito da União, sob reserva contudo, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, de essa regra não ser aplicada de forma estrita ao ponto de ser ilusória, de facto, a possibilidade de um particular obter a anulação efetiva do requisito em causa.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.