Language of document : ECLI:EU:C:2000:543

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

5 de Outubro de 2000 (1)

«Incumprimento - Empreitadas públicas no sector dos transportes - Directiva 93/38/CEE - Aplicação no tempo - Projecto de metro ligeiro do perímetro urbano da aglomeração de Rennes - Empreitada adjudicada por procedimento de ajuste directo sem concurso»

No processo C-337/98,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por M. Nolin, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de C. Gómez de la Cruz, membro do mesmo serviço, Centre Wagner, Kirchberg,

demandante,

contra

República Francesa, representada por K. Rispal-Bellanger, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e A. Viéville-Bréville, encarregada de missão na mesma direcção, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada de França, 8 B, boulevard Joseph II,

demandada,

que tem por objecto declarar que, por ocasião da decisão de 22 de Novembro de 1996 de adjudicar à sociedade Matra-Transport a empreitada global, tipo «chaves na mão», do projecto de metro ligeiro do perímetro urbano da aglomeração de Rennes, a República Francesa não cumpriu as obrigações decorrentes da Directiva 93/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 199, p. 84), em especial dos seus artigos 4.°, n.° 2, e 20.°, n.° 2, alínea c),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J. C. Moitinho de Almeida e L. Sevón, presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn, J. -P. Puissochet, P. Jann, H. Ragnemalm, M. Wathelet e V. Skouris (relator), juízes,

advogado-geral: F. G. Jacobs,


secretário: D. Louterman-Hubeau, administradora principal,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 2 de Fevereiro de 2000, na qual a Comissão foi representada por M. Nolin e a República Francesa por J.-F. Dobelle, director adjunto na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, e K. Rispal-Bellanger,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 23 de Março de 2000,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 14 de Setembro de 1998, a Comissão das Comunidades Europeias intentou, ao abrigo do artigo 169.° do Tratado CE (actual artigo 226.° CE), uma acção destinada a obter a declaração de que, por ocasião da decisão de 22 de Novembro de 1996 de adjudicar à sociedadeMatra-Transport a empreitada global, tipo «chaves na mão», do projecto de metro ligeiro do perímetro urbano da aglomeração de Rennes, a República Francesa não cumpriu as obrigações decorrentes da Directiva 93/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 199, p. 84), em especial dos seus artigos 4.°, n.° 2, e 20.°, n.° 2, alínea c).

Enquadramento jurídico

Regulamentação comunitária

2.
    O artigo 4.°, n.os 1 e 2, da Directiva 93/38 prevê:

«1.    Para celebrarem os seus contratos de fornecimento, de empreitada e de prestação de serviços ou organizarem os respectivos concursos de concepção, as entidades adjudicantes aplicarão procedimentos que se adaptem às disposições da presente directiva.

2.    As entidades adjudicantes providenciarão para que não haja qualquer discriminação entre fornecedores, empreiteiros ou prestadores de serviços.»

3.
    Nos termos do artigo 20.°, n.° 2, alínea c), da Directiva 93/38:

«As entidades adjudicantes podem recorrer a um processo sem concurso prévio nos seguintes casos:

(...)

c)    Quando, devido à sua especificidade técnica ou artística ou por razões atinentes à defesa de direitos exclusivos, o contrato só possa ser executado por um fornecedor, empreiteiro ou prestador de serviços determinado».

4.
    O artigo 45.°, n.os 1 e 3, da Directiva 93/38 dispõe:

«1.    Os Estados-Membros adoptarão as medidas necessárias para darem cumprimento às disposições da presente directiva e aplicá-las-ao o mais tardar em 1 de Julho de 1994. (...)

2.    (...)

3.    A Directiva 90/531/CEE deixará de produzir efeitos a partir da data de aplicação da presente directiva pelos Estados-Membros, sem prejuízo das obrigações dos Estados-Membros no que se refere aos prazos estabelecidos no artigo 37.° da referida directiva.»

A Directiva 90/531/CEE

5.
    Com excepção de algumas diferenças de redacção, as disposições da Directiva 90/531/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1990, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 297, p. 1), relativas ao princípio da não discriminação entre fornecedores ou empreiteiros (artigo 4.°) e os casos de recurso autorizado a um processo de adjudicação sem concurso (artigo 15.°) tinham o mesmo conteúdo que as disposições correspondentes da Directiva 93/38, reproduzidas nos n.os 2 e 3 do presente acórdão.

6.
    O artigo 37.°, n.os 1 e 2, da Directiva 90/531 prevê:

«1.    Os Estados-Membros adoptarão as medidas necessárias para darem cumprimento à presente directiva, o mais tardar até 1 de Julho de 1992. Desse facto informarão imediatamente a Comissão.

2.    Os Estados-Membros podem prever que as medidas referidas no n.° 1 apenas sejam aplicáveis a partir de 1 de Janeiro de 1993.

(...)»

A regulamentação nacional

7.
    O artigo 104.°, II, do code des marchés publics tem a seguinte redacção:

«Pode ser negociada a adjudicação de empreitadas sem concurso quando a execução apenas puder ser assegurada por determinado empreiteiro ou fornecedor.

Assim pode acontecer nos seguintes casos:

1°    Quando as necessidades apenas puderem ser satisfeitas através de uma prestação que implique a utilização de uma patente de invenção, de uma licença ou de direitos exclusivos detidos por um único empreiteiro ou fornecedor;

2°    Quando as necessidades apenas puderem ser satisfeitas através de uma prestação que, em razão de imposições técnicas, de investimentos prévios importantes, de instalações especiais ou de especiais competências técnicas, apenas puder ser confiada a determinado empreiteiro ou fornecedor;

3°    Para as prestações mencionadas na última frase do artigo 108.°

Estas empreitadas estão dispensadas do anúncio público à concorrência previsto no artigo 38.°»

Antecedentes do litígio

8.
    Por deliberação n.° 89-18, de 26 de Outubro de 1989, o comité de gestão do Syndicat intercommunal des transports collectifs da aglomeração de Rennes (a seguir «Sitcar»), decidiu:

«1°    confirmar as decisões anteriores de dotar a aglomeração de um transporte colectivo em infraestrutura própria ...

2°    adoptar, no que respeita à primeira linha, os princípios orientadores do traçado do estudo 'TAU‘, ou seja:

-    servir Villejean no sentido Oeste/Leste;

-    atravessar o centro histórico no sentido Norte/Sul;

-    passar pela estação do modo que melhor assegurar a interconexão das três redes de transporte urbano, interurbano e ferroviário;

-    servir os bairros Alma-Châtillon e Blosne na sua parte mais importante, o Sudeste...

3°    optar pela tecnologia de metro automático ligeiro VAL...

4°    solicitar ao Estado a contribuição financeira mais elevada possível...

5°    estabelecer todos os contactos úteis com a região e o departamento nas bases anteriormente indicadas...

6°    autorizar o Bureau a proceder às consultas necessárias para uma análise, por ocasião de uma próxima sessão do Comité de Gestão, do contrato a celebrar para os estudos de ante-projecto...

7°    decidir estudar o mais rapidamente possível uma alteração dos critérios de repartição actual da contribuição das comunas para o SITCAR...»

9.
    Por deliberação n.° 90-25, de 19 de Julho de 1990, o comité de gestão do Sitcar decidiu:

«1°    declarar ter tomado conhecimento de que os estudos e a realização da parte 'sistema e equipamentos ligados ao sistema‘ darão lugar à celebração de um contrato relativo a uma empreitada global, tipo 'chaves na mão‘, com a sociedade Matra-Transport, assim que esta esteja em condições de se comprometer em relação a um preço-objectivo garantido,

2°    aprovar o princípio de um contrato de empreitada de assistência e de estudos de acompanhamento dos estudos de ante-projecto sumário da parte 'engenharia civil e equipamentos não ligados ao sistema‘ a celebrar com a referida sociedade e autorizar o Senhor Presidente do Comité a assiná-lo.»

10.
    Por carta do seu presidente-director-geral, de 9 de Julho de 1991, dirigida ao presidente do comité de gestão do Sitcar, a Matra indicou que o preço garantido do projecto de referência de Março de 1991 se elevava a 987 milhões de FRF, valor de Janeiro de 1991. O presidente-director-geral da Matra indicou, no entanto, que, a partir desse preço, a Matra tinha procurado, a pedido da Sitcar, «realizar economias provenientes simultaneamente de contribuições adicionais da Matra Transport e de propostas de adaptação de programas que não diminuíssem a qualidade do serviço prestado». Nesta base, o presidente-director-geral da Matra propôs certas modificações de dados do programa ao Sitcar e anunciou que, se esses dados novos fossem confirmados, a parte «Sistema» do projecto VAL poderia ser reduzida para um preço garantido de 953,2 milhões de FRF, sem imposto, valores de Janeiro de 1991.

11.
    Por deliberação n.° 93-44, de 30 de Março de 1993, o conseil du perímetro urbano da aglomeração de Rennes (a seguir «conseil du district»), que substituiu o Sitcar em 1992, por um lado, aprovou a prestação global proposta pela Matra no quadro do procedimento por ajuste directo e, por outro lado, autorizou a sociedade de economia mista dos transports collectifs de l'agglomération rennaise (a seguir «Semtcar») a assinar o contrato com a Matra, em conformidade com as disposições da convenção de mandato aprovada pelo conseil du district por deliberação de 15 de Janeiro de 1993.

12.
    Por acórdão de 16 de Fevereiro de 1994, o tribunal administratif de Rennes (França) anulou a declaração de utilidade pública, de 15 de Fevereiro de 1993, relativa ao projecto de metro ligeiro do perímetro urbano da aglomeração de Rennes (a seguir «DUP»), o que teve como consequência, designadamente, que a subvenção que o Estado tinha previsto conceder para assegurar o financiamento dos trabalhos não pôde ser concedida.

13.
    Por deliberação n.° 95-233, de 22 de Setembro de 1995, o conseil du district decidiu «revogar a deliberação n.° 93-44, de 30 de Março de 1993, que aprovou a empreitada por ajuste directo com a Matra-Transport e que autorizava a sua assinatura pela SEMTCAR, uma vez que a execução desta deliberação ainda não se iniciou, tendo ficado sem objecto». Além disso, por deliberação n.° 95-234, do mesmo dia, o conseil du district decidiu «pedir à SEMTCAR que retomasse a negociação deste contrato com a Matra-Transport no quadro da dotação financeira prevista para a operação e que a submetesse de novo ao District para aprovação.»

14.
    Finalmente, por deliberação n.° 96/280, de 22 de Novembro de 1996, o conseil du district aprovou os «termos do projecto de empreitada por ajuste directo, a celebrar com a sociedade Matra-Transport International, relativa à realização da parte Sistema e dos equipamentos ligados ao Sistema», sendo o montante total da empreitada «de 1 054 360 000 Frs, sem imposto, expresso em valores de Novembro de 1996, decomposto numa parcela firme de 1 050 490 000 Frs, sem imposto, e numa parte condicional de 3 870 000 Frs, sem imposto.» Autorizou igualmente «a SEMTCAR a assinar o contrato, em aplicação do artigo 7.4 da convenção de mandato de 23 de Fevereiro de 1993.»

Procedimento administrativo

15.
    Tendo recebido uma queixa sobre as condições de adjudicação da empreitada relativa ao projecto de metro automático ligeiro do perímetro urbano da aglomeração de Rennes à Matra, a Comissão, por carta de 7 de Janeiro de 1997, pediu às autoridades francesas que lhe comunicassem diversas informações relativas à adjudicação desta empreitada, solicitando-lhes que justificassem o recurso a um procedimento por ajuste directo sem concurso, com base no artigo 104.°, II, do code des marchés publics, para a adjudicação desta empreitada.

16.
    As autoridades francesas responderam à Comissão por carta de 17 de Fevereiro de 1997 e posteriormente por duas notas complementares de 25 de Fevereiro e de 4 de Março de 1997. Alegaram, nomeadamente, que a empreitada em causa tinha sido adjudicada por deliberação do comité de gestão do Sitcar, de 26 de Outubro de 1989, data em que a entidade adjudicante tinha escolhido dotar-se de um sistema de metro automático do tipo VAL, fornecido pela Matra. Segundo as autoridades francesas, esta deliberação correspondeu à adjudicação da empreitada antes da entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 1993, da Directiva 90/531 e, a fortiori, antes da entrada em vigor, em 1 de Julho de 1994, da Directiva 93/38, especialmente dos seus artigos 4.°, n.° 2 e 20.°, n.° 2, alínea c). Além disso, as autoridades francesas indicaram, a título subsidiário, que a Matra era a única sociedade capaz de responder às necessidades da colectividade. Alegaram, a este respeito, que esta sociedade já tinha realizado investimentos prévios importantes na área de Rennes e concluíram que nenhuma regra comunitária tinha sido violada.

17.
    Considerando esta resposta insuficiente, a Comissão, por carta de 17 de Junho de 1997, em conformidade com o procedimento previsto no artigo 169.° do Tratado, notificou as autoridades francesas para apresentarem observações no prazo de seis semanas, nomeadamente sobre a compatibilidade do disposto no artigo 104.°, II, do code des marchés publics, que serviu de base legal à decisão da entidade adjudicante, com as exigências do artigo 20.°, n.° 2, alínea c), da Directiva 93/38.

18.
    Por carta de 20 de Agosto de 1977, as autoridades francesas responderam à notificação reafirmando que a decisão de adjudicar a empreitada global, tipo «chaves na mão», à Matra fora tomada por deliberação de 26 de Outubro de 1989 e, subsidiariamente, que o artigo 104.°, II, do code des marchés publics era compatível com o artigo 20.°, n.° 2, alínea c), da Directiva 93/38. duas respostas complementares foram apresentadas em 29 de Setembro e 7 de Novembro de 1997.

19.
    Considerando que estas respostas não apresentavam elementos susceptíveis de pôr em causa as acusações que figuravam na notificação de incumprimento, a Comissão, em 5 de Março de 1998, enviou à República Francesa um parecer fundamentado, ao qual esta respondeu em 12 de Junho de 1998.

20.
    Foi neste contexto jurídico e factual que a Comissão intentou a presente acção.

Quanto ao mérito

21.
    A Comissão considera que a adjudicação à Matra da empreitada global, tipo «chaves na mão», do projecto de metro ligeiro do perímetro urbano da aglomeração de Rennes por ajuste directo, sem concurso constitui uma violação da Directiva 93/38, especialmente dos seus artigos 4.°, n.° 2 e 20.°, n.° 2, alínea c).

22.
    Resulta dos n.os 8 a 11 do presente acórdão que certos factos relativos à empreitada em causa ocorreram antes de expirar o prazo de transposição da Directiva 93/38; assim, antes de se pronunciar sobre a alegada violação desta directiva, há que analisar se ela é aplicável ao procedimento em causa.

23.
    Da deliberação do comité de gestão do Sitcar de 19 de Julho de 1990, e sobretudo da afirmação de que «os estudos e a realização da parte 'sistema e equipamentos ligados ao sistema‘ darão lugar à celebração de um contrato relativo a uma empreitada global, tipo 'chaves na mão‘, com a sociedade Matra-Transport, assim que esta esteja em condições de se comprometer em relação a um preço-objectivo garantido», resulta nomeadamente que, nessa data, as negociações entre a entidade adjudicante e a Matra já estavam em curso.

24.
    Além disso, na sua carta de 9 de Julho de 1991, o presidente-director-geral da Matra confirmou que, sob reserva da aceitação de certas alterações ao projecto de referência que propunha, a parte «Sistema» do projecto VAL poderia ser reduzida para um preço garantido de 953,2 milhões de FRF, sem imposto, valores de Janeiro de 1991, o que constitui um indício sério de que, nessa data, as negociações entre a entidade adjudicante e a Matra já estavam numa fase avançada.

25.
    Daqui resulta que as negociações da entidade adjudicante com a Matra se iniciaram antes de 1 de Julho de 1994, data em que expirou o prazo de transposição da Directiva 93/38, e mesmo antes de 9 de Agosto de 1993, data da publicação desta directiva no Jornal Oficial das Comunidades Europeias.

26.
    Uma vez que as negociações constituem a característica essencial de um procedimento de adjudicação de uma empreitada por ajuste directo, há que reconhecer que, no caso vertente, o procedimento em causa foi lançado antes da adopção da Directiva 93/38 e, a fortiori, antes de expirar o prazo para a sua transposição. Ora, esta directiva não prevê regras transitórias relativas aos procedimentos já iniciados antes de 1 de Julho de 1994 e ainda em curso nessa data.

27.
    Por conseguinte, a fim de se pronunciar sobre a aplicação das disposições da Directiva 93/38 invocadas pela Comissão no presente processo e dado que o procedimento em causa se desenrolou ao longo de um período alargado, importa, em primeiro lugar, determinar o direito aplicável ratione temporis a este processo.

28.
    A Comissão considera que, para determinar o direito aplicável a um procedimento de adjudicação de uma empreitada, importa normalmente tomar em consideração a datade adjudicação da empreitada. A Comissão não exclui que a data de lançamento do procedimento de adjudicação possa igualmente ser tomada em consideração. No entanto, sublinha que, entre esse lançamento e a adjudicação de uma empreitada, deve decorrer um prazo razoável, o que não se verificou no caso vertente.

29.
    Segundo a Comissão, a empreitada em causa apenas foi adjudicada através da deliberação de 22 de Novembro de 1996, ou seja, muito depois da entrada em vigor da Directiva 93/38. Considera que a deliberação de 26 de Outubro de 1989 apenas se pronunciou sobre a escolha da tecnologia do metro automático ligeiro VAL, produto desenvolvido na época por pelo menos dois construtores. Mesmo em 19 de Julho de 1990, ainda não era possível falar de contrato com a Matra, na falta de um acordo sobre o preço ou sobre os elementos constitutivos de uma empreitada. Consequentemente, a decisão de adjudicar a empreitada à Matra apenas foi tomada na deliberação do conseil du district de 30 de Março de 1993, isto é, depois de a referida sociedade se ter formalmente comprometido em relação a um preço garantido.

30.
    A Comissão assegura que, se tudo tivesse ficado decidido naquela data, não teria intentado a presente acção, embora a Directiva 90/531 já tivesse entrado em vigor. No entanto, observa que, após a anulação da DUP pelo tribunal administratif de Rennes, a entidade adjudicante procedeu à revogação da deliberação de 30 de Março de 1993, sendo certo que, juridicamente, nada a isso a obrigava. Ora, em direito administrativo francês, a revogação equivale à anulação contenciosa. A Comissão conclui que, não tendo a revogação sido impugnada pela Matra, tornou-se definitiva, o que teve por consequência que a referida deliberação é considerada inexistente. Assim, segundo a Comissão, foi através da deliberação de 22 de Novembro de 1996 que a empreitada em causa foi adjudicada à Matra.

31.
    Em contrapartida, o Governo francês considera que, mesmo sendo as empreitadas públicas definidas, na acepção do direito comunitário, como contratos celebrados por escrito, isso não obsta a que só a data de lançamento do procedimento de adjudicação seja tomada em consideração para determinar o direito aplicável a tal procedimento. Além disso, a exigência de um prazo razoável entre o lançamento do procedimento e a adjudicação da empreitada para que o lançamento possa ser tomado em consideração para a determinação do direito aplicável não tem fundamento na legislação comunitária nem na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

32.
    O Governo francês considera que a designação da Matra como adjudicatária não data da deliberação de 22 de Novembro de 1996, mas, implicitamente, da deliberação de 26 de Outubro de 1989, uma vez que, sendo o VAL uma marca da Matra, nenhuma outra empresa além da Matra poderia ter sido escolhida pela entidade adjudicante como co-contratante. Por seu turno, a deliberação de 19 de Julho de 1990 constituiu uma decisão de adjudicação: segundo o Governo francês, a partir do momento em que a deliberação adquirisse força executória e que a Matra se comprometesse em relação a um preço, esta última tinha o direito de exigir o cumprimento da deliberação, na medida em que esta tivesse criado na sua esfera direitos subjectivos. Dado que a Matrase comprometeu em relação a um preço-objectivo garantido de 953,2 milhões de FRF, sem imposto, em 9 de Julho de 1991, passou a dispor de um direito à celebração de um contrato de empreiteiro responsável pela totalidade da obra com o perímetro urbano da aglomeração de Rennes.

33.
    Quanto à revogação da deliberação de 30 de Março de 1993, o Governo francês alega, por um lado, que se tratou de uma medida imposta à entidade adjudicante e, por outro lado, que não se baseava na vontade de renegociar os elementos substanciais da empreitada. Além disso, não teve por objecto ou por efeito pôr em causa a decisão tomada em 19 de Julho de 1990 de celebrar contrato com a Matra. Ao revogar o acto, o conseil du district adiou simplesmente a assinatura do contrato, tirando as consequências da anulação da DUP, acto do prefeito e cuja anulação não era imputável ao perímetro urbano da aglomeração de Rennes nem à Matra, beneficiária do contrato.

34.
    O Governo francês admite que a revogação deste acto provoca o desaparecimento do contrato da ordem jurídica para o futuro e para o passado. No entanto, as estipulações contratuais de fundo, abstraindo do formalismo processual, são, se não validadas, pelo menos isentas de qualquer apreciação desfavorável e, consequentemente, o procedimento de adjudicação da empreitada ficou, se não de direito, pelo menos de facto, simplesmente suspenso na expectativa de uma nova DUP. Em consequência, a revogação da deliberação de 30 de Março de 1993 foi puramente formal e não pode, desse modo, pôr em causa a continuidade substancial do procedimento.

35.
    Importa recordar, por um lado, que, na presente acção por incumprimento, a Comissão acusa a República Francesa de uma violação das disposições da Directiva 93/38 que terá tido origem numa decisão precisa da entidade adjudicante. Esta decisão confirmava a opção desta última em recorrer ao ajuste directo sem concurso para a adjudicação da empreitada em causa. É esta opção que, segundo a Comissão, não tem fundamento legal no artigo 20.°, n.° 2, da Directiva 93/38.

36.
    Importa sublinhar, por outro lado, que a decisão de uma entidade adjudicante relativa ao tipo de procedimento a seguir e à necessidade ou não de promover um concurso para a adjudicação de uma empreitada pública constitui uma fase distinta do procedimento, fase em que são definidas as características essenciais do desenrolar de tal procedimento e que, normalmente, apenas pode ter lugar na fase de lançamento deste.

37.
    Assim, para apreciar se a Directiva 93/38 é aplicável a tal decisão e, portanto, para determinar quais eram as obrigações da entidade adjudicante decorrentes do direito comunitário neste particular, importa, em princípio, tomar em consideração o momento em que a referida decisão foi adoptada.

38.
    É certo que, no caso vertente, a decisão de recorrer a um procedimento por ajuste directo sem concurso fez parte de um procedimento de adjudicação que apenas ficou concluído em Novembro de 1996, ou seja, mais de dois anos depois de expirar o prazo de transposição da Directiva 93/38. No entanto, segundo a jurisprudência no domíniodas empreitadas públicas, o direito comunitário não impõe a uma entidade adjudicante de um Estado-Membro que intervenha, a pedido de um particular, em relações jurídicas existentes, que foram constituídas por tempo indeterminado ou por vários anos, quando essas relações tenham sido constituídas antes de expirado o prazo para transposição da directiva (ver, neste sentido, acórdão de 24 de Setembro de 1998, Tögel, C-79/97, Colect., p. I-5357, n.° 54).

39.
    Embora seja verdade que o acórdão Tögel, já referido, dizia respeito a um contrato já celebrado antes de expirar o prazo de transposição da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L 209, p. 1), não é menos verdade que o princípio geral aí enunciado se pode aplicar a todas as fases de um procedimento de adjudicação de uma empreitada que tenham sido realizadas antes da data em que expirou o prazo de transposição de uma directiva mas façam parte de um procedimento que foi concluído após essa data.

40.
    Quanto à argumentação da Comissão segundo a qual a data a considerar para determinar a aplicabilidade da Directiva 93/38 no tempo é a data da adjudicação da empreitada, basta ter presente que seria contrário ao princípio da segurança jurídica determinar o direito aplicável por referência a uma data de adjudicação da empreitada, na medida em que esta data marca o termo do procedimento, ao passo que a decisão da entidade adjudicante de promover ou não um concurso é normalmente tomada na fase inicial deste.

41.
    No caso vertente, embora a existência de uma decisão formal da entidade adjudicante de proceder por ajuste directo sem concurso para a adjudicação da empreitada em causa não resulte claramente dos documentos que constam dos autos, importa recordar que, na sua deliberação de 19 de Julho de 1990, o comité de gestão do Sitcar decidiu «declarar ter tomado conhecimento de que os estudos e a realização da parte 'sistema e equipamentos ligados ao sistema‘ darão lugar à celebração de um contrato relativo a uma empreitada global, tipo 'chaves na mão‘, com a sociedade Matra-Transport». Efectivamente, ressalta desta frase que, o mais tardar na data em que esta deliberação foi tomada, portanto muito antes de expirar o prazo de transposição da Directiva 93/38, a decisão da entidade adjudicante de proceder por ajuste directo sem concurso já tinha sido adoptada.

42.
    Consequentemente, há que concluir que a Directiva 93/38 não é aplicável à opção efectuada pela entidade adjudicante de recorrer ao procedimento por ajuste directo sem concurso para a adjudicação da empreitada relativa ao projecto de metro ligeiro do perímetro urbano da aglomeração de Rennes.

43.
    Todavia, importa recordar que, por duas deliberações distintas de 22 de Setembro de 1995, a entidade adjudicante, por um lado, procedeu à revogação da deliberação de 30 de Março de 1993 que adjudicou a empreitada à Matra e, por outro lado, solicitou à Semtcar que prosseguisse as negociações com esta sociedade.

44.
    Assim, há que analisar se as negociações iniciadas depois de 22 de Setembro de 1995 apresentam características substancialmente diferentes das já conduzidas e se são, em consequência, susceptíveis de demonstrar a vontade das partes em renegociar os termos essenciais do contrato, de modo que a aplicação das disposições da Directiva 93/38 se poderia justificar.

45.
    A este propósito, importa recordar, a título preliminar, que, segundo jurisprudência constante, incumbe à Comissão, no quadro de um processo por incumprimento nos termos do artigo 169.° do Tratado, fazer prova da existência do alegado incumprimento e fornecer ao Tribunal de Justiça os elementos necessários à declaração da existência desse incumprimento (v., designadamente, acórdão de 25 de Novembro de 1999, Comissão/França, C-96/98, Colect., p. I-8531, n.° 36).

46.
    Daqui resulta que, no caso vertente, compete à Comissão apresentar todos os elementos necessários a fim de provar que foram lançadas novas negociações depois de 22 de Novembro de 1995 e que esse facto é susceptível de demonstrar a vontade das partes em renegociar os termos essenciais do contrato, de modo que a aplicação das disposições da Directiva 93/38 se poderia justificar.

47.
    A este propósito, a Comissão alega que a análise das deliberações de 30 de Março de 1993 e de 22 de Novembro de 1996 demonstra que se trata de propostas diferentes no que respeita ao objecto e ao preço. Segundo a Comissão, a proposta de 1993 refere-se ao sistema VAL 206 no montante de 966,4 milhões de FRF, sem imposto, ao passo que a proposta de 1996 propõe um sistema VAL 208 no montante de 1 054 milhões de FRF, sem imposto.

48.
    Por um lado, a alteração de número distingue, de facto, duas versões diferentes da tecnologia VAL. Por outro lado, no plano financeiro, as duas propostas diferem em cerca de 90 milhões de FRF, sem imposto, ou seja, um aumento de cerca de 10% do valor do contrato entre Janeiro de 1993 e Novembro de 1996, o que é superior à inflação cumulada ao longo do mesmo período.

49.
    A Comissão deduz destes elementos que existem diferenças substanciais em termos de tecnologia e de preço entre as duas propostas da Matra, o que prova que não se trata do mesmo contrato.

50.
    Há que concluir, em primeiro lugar, que o facto de a proposta de 1993 se referir ao sistema VAL 206 enquanto a proposta de 1996 apresentava o sistema VAL 208 não constitui um elemento susceptível de provar a existência de uma renegociação de um termo essencial do contrato que pudesse justificar a aplicação da Directiva 93/38.

51.
    Por um lado, como sublinhou o Governo francês, esta modificação das condições do contrato tem que ver com a evolução do material entre 1993 e 1996 e com a dimensão deste, e, ainda assim, de modo totalmente marginal (2 cm em largura). Por outro lado, não se pode excluir que, num procedimento por ajuste directo que, pela sua própria natureza, pode processar-se ao longo de um período de tempo alargado, as partestomam em consideração as novas evoluções tecnológicas surgidas enquanto se desenrolavam as negociações, sem que esse facto seja sistematicamente considerado uma renegociação dos termos essenciais do contrato susceptível de justificar a aplicação das novas regras jurídicas.

52.
    Em segundo lugar, no que respeita ao argumento da Comissão relativo à diferença de preço entre o contrato proposto em 1993 e o proposto em 1996, importa sublinhar que, mesmo admitindo que essa diferença de preço tenha sido superior à inflação cumulada ao longo do mesmo período, esta situação tão-pouco demonstra que as negociações iniciadas após a revogação da deliberação de 30 de Março de 1993 tenham tido por objecto a renegociação de um termo essencial do contrato.

53.
    Efectivamente, como sublinhou o Governo francês, sem ser contestado pela Comissão, a evolução do preço resulta da exacta aplicação da fórmula de revisão dos preços constante do projecto de contrato acordado entre as duas partes em 1993. Ora, este elemento, mais do que um dado susceptível de provar a renegociação de um termo essencial do contrato, constitui sobretudo uma indicação da continuidade do procedimento.

54.
    Em terceiro lugar, deve acrescentar-se que resulta de certos documentos constantes dos autos que as negociações foram na realidade retomadas pouco depois de 22 de Setembro de 1995 com base em tudo quanto tinha sido anteriormente acordado.

55.
    Por um lado, os termos «reinicia(r) a negociação» utilizados na segunda deliberação de 22 de Setembro de 1995 são especialmente esclarecedores quanto a uma continuação e a uma actualização das negociações. Por outro lado, o Governo francês apresentou uma carta dirigida pela Matra à Semtcar, datada de 30 de Novembro de 1995, em que se indica que a Matra tinha estudado o impacto de uma remodelação do plano de realização das operações e, tendo em conta as actualizações acordadas do caderno das cláusulas administrativas especiais, confirmava a manutenção da validade até 30 de Setembro de 1996 da sua proposta negociada no início de 1993.

56.
    Consequentemente, há que concluir que a Comissão não forneceu elementos susceptíveis de demonstrar que novas negociações demonstrando a vontade das partes em renegociar os termos essenciais do contrato se tenham iniciado depois da revogação da deliberação de 30 de Março de 1993 e, portanto, após expirar o prazo de transposição da Directiva 93/38.

57.
    Assim, tendo em conta o conjunto das considerações que precedem, a acção deve ser julgada improcedente.

Quanto às despesas

58.
    Por força do disposto no n.° 2 do artigo 69.° do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Francesa requerido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

decide:

1)        A acção é julgada improcedente.

2)        A Comissão das Comunidades Europeias é condenada nas despesas.

Rodríguez Iglesias
Moitinho de Almeida

Sevón

Kapteyn
Puissochet

Jann

Ragnemalm

Wathelet

Skouris

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 5 de Outubro de 2000.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: francês.