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Processos apensos T‑213/01 e T‑214/01

Österreichische Postsparkasse AG e Bank für Arbeit und Wirtschaft AG

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Recurso de anulação – Concorrência – Regulamento n.° 17 – Regulamento (CE) n.° 2842/98 – Decisão 2001/462/CE/CECA – Auditor – Acto que produz efeitos jurídicos – Admissibilidade – Interesse legítimo – Qualidade de requerente ou de denunciante – Cliente final adquirente dos bens ou dos serviços – Acesso às comunicações de acusações – Informações confidenciais – Interesse suficiente»

Sumário do acórdão

1.      Recurso de anulação – Interesse em agir

(Artigos 230.°, quarto parágrafo, CE e 233.° CE)

2.      Recurso de anulação – Actos susceptíveis de recurso – Actos que produzem efeitos jurídicos obrigatórios

(Artigo 230.°, quarto parágrafo, CE)

3.      Recurso de anulação – Actos susceptíveis de recurso

(Artigo 230.°, quarto parágrafo, CE; Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 3.°, n.° 2, e n.° 2842/98, artigo 7.°; Decisão 2001/462 da Comissão, artigo 9.°, segundo parágrafo)

4.      Concorrência – Procedimento administrativo – Reconhecimento da qualidade de denunciante

(Regulamentos do Conselho n.os 17 e 2842/98)

5.      Concorrência – Procedimento administrativo – Exame das denúncias

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 3.°, n.° 2)

6.      Concorrência – Procedimento administrativo – Direitos dos denunciantes

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamentos do Conselho n.° 17, artigo 10.°, n.os 3 e 6, e n.° 2842/98, artigos 7.° e 8.°; Decisão 2001/462 da Comissão, artigo 12.°, n.° 4)

7.      Concorrência – Procedimento administrativo – Direitos dos denunciantes

(Regulamento n.° 2842/98 do Conselho, artigo 7.°)

8.      Concorrência – Procedimento administrativo – Acesso ao processo

(Comunicação 97/C 23/03 da Comissão)

1.      Um recurso de anulação interposto por uma pessoa singular ou colectiva só é admissível na medida em que o recorrente tenha interesse em que o acto impugnado seja anulado. Esse interesse só existe se a anulação do acto for susceptível, por si própria, de ter consequências jurídicas.

A este respeito, segundo o artigo 233.° do Tratado CE, a instituição de que emane o acto anulado deve tomar as medidas necessárias à execução do acórdão. Essas medidas não têm que ver com o desaparecimento do acto da ordem jurídica comunitária, uma vez que isso resulta da anulação decretada pelo juiz. Dizem antes respeito à eliminação dos efeitos produzidos pelo acto em questão e que são afectados pelas ilegalidades declaradas. A anulação de um acto que já foi executado é sempre susceptível de ter consequências jurídicas. Efectivamente, o acto pôde produzir efeitos jurídicos enquanto esteve em vigor, e esses efeitos não desapareceram necessariamente com a anulação do acto. Do mesmo modo, a anulação de um acto pode permitir evitar que a ilegalidade de que este padece se reproduza no futuro. Por estas razões, um acórdão de anulação é a base a partir da qual a instituição em questão pode ser levada a efectuar uma reposição adequada da situação do recorrente ou a evitar que seja adoptado um acto idêntico.

Daqui resulta que, no âmbito de um processo por infracção às regras de concorrência, o facto de uma comunicação de acusações ter sido transmitida a um terceiro denunciante depois da interposição de um recurso de anulação cujo objecto é contestar a legalidade da decisão com base na qual essa transmissão foi feita, não tem o efeito de deixar o referido recurso sem objecto. Com efeito, a eventual anulação da decisão controvertida é susceptível, por si só, de ter consequências jurídicas para a situação das empresas às quais o processo diga respeito, nomeadamente evitando a reiteração de tal prática por parte da Comissão e tornando ilegal a utilização da comunicação de acusações que tenha sido irregularmente transmitida ao referido terceiro.

(cf. n.os 53‑55)

2.      As medidas que produzem efeitos jurídicos vinculativos susceptíveis de afectar os interesses do recorrente, alterando de forma caracterizada a sua situação jurídica, constituem actos susceptíveis de recurso de anulação, na acepção do artigo 230.° CE.

Em princípio, as medidas intermédias cujo objectivo é o de preparar a decisão final não constituem, por conseguinte, actos recorríveis. Todavia, os actos adoptados no decurso do procedimento preparatório que constituam, por si próprios, o termo último de um procedimento especial distinto daquele que virá a permitir à Comissão decidir quanto ao mérito e que produzam efeitos jurídicos vinculativos susceptíveis de afectar os interesses do recorrente, alterando de forma caracterizada a sua situação jurídica, constituem igualmente actos recorríveis.

Assim, a decisão da Comissão que informe uma empresa posta em causa num processo de infracção de que as informações por ela transmitidas não estão abrangidas pelo tratamento confidencial garantido pelo direito comunitário, podendo, assim, ser comunicadas a um terceiro denunciante, produz efeitos jurídicos para a empresa em causa alterando de forma caracterizada a sua situação jurídica, na medida em que recusa o benefício de uma protecção prevista pelo direito comunitário e se reveste de carácter definitivo e independente da decisão final que declara a existência de uma infracção às regras de concorrência.

Além disso, a possibilidade de que dispõe a empresa de interpor recurso da decisão final que declara a existência de uma infracção às regras de concorrência não é susceptível de lhe proporcionar uma protecção adequada dos seus direitos nesta matéria. Por um lado, o procedimento administrativo pode não levar a uma decisão que conclua pela existência de uma infracção. Por outro, o recurso interposto dessa decisão, se ela tiver lugar, não faculta à empresa, de qualquer modo, um meio de evitar os efeitos irreversíveis que teria uma comunicação irregular de alguns dos seus documentos.

Tal decisão pode, portanto, ser objecto de recurso de anulação.

(cf. n.os 64‑66)

3.      Uma decisão de um auditor, tomada ao abrigo do artigo 9.°, segundo parágrafo, da Decisão 2001/462, relativa às funções do auditor em determinados processos de concorrência, que autorize a comunicação a um terceiro denunciante, da versão não confidencial da comunicação de acusações relativa a uma empresa à qual diz respeito um processo de infracção às regras da concorrência, constitui a última fase de um processo especial distinto do processo geral de aplicação do artigo 81.° CE, que fixa definitivamente a posição da Comissão sobre a questão da comunicação da versão não confidencial da comunicação de acusações ao referido denunciante. Essa decisão implica necessariamente o reconhecimento prévio da qualidade de requerente titular de um interesse legítimo ao terceiro denunciante, na acepção do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17, uma vez que é dessa qualidade que decorre o direito deste terceiro à transmissão das comunicações de acusações, nos termos do artigo 7.° do Regulamento n.° 2842/98, relativo às audições dos interessados directos em certos processos, nos termos dos artigos [81.° CE] e [82.° CE].

Daí resulta que a empresa à qual o processo diga respeito pode impugnar nos seus recursos tanto a decisão do auditor de transmitir ao terceiro denunciante a versão não confidencial da comunicação de acusações como o elemento indispensável que está na base dessa decisão, ou seja, o reconhecimento pela Comissão do interesse legítimo do referido terceiro, nos termos do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17. Se assim não fosse, a referida empresa não poderia impedir que as acusações que lhe foram feitas pela Comissão fossem levadas ao conhecimento de um terceiro que tivesse apresentado um requerimento ou feito uma denúncia e que não fosse titular do interesse legítimo exigido pela regulamentação comunitária, ou – no caso de essa transmissão já ter ocorrido – de pedir que fosse declarada ilegal a utilização pelo referido terceiro das informações em causa.

(cf. n.os 71‑72, 78)

4.      Os Regulamentos n.° 17 e n.° 2842/98, relativo às audições dos interessados directos em certos processos, nos termos dos artigos [81.° CE] e [82.° CE], não impõem, para efeitos do reconhecimento da qualidade de requerente ou de denunciante, que o requerimento ou a denúncia em causa tenham estado na origem da abertura do processo de infracção pela Comissão, nomeadamente da fase do inquérito preliminar levado a cabo por esta última. As pessoas singulares ou colectivas que invoquem um interesse legítimo em que a Comissão declare a existência de uma infracção às normas da concorrência podem, assim, apresentar um requerimento ou uma denúncia para esse efeito mesmo depois de aberta, oficiosamente ou a requerimento de outrem, a fase do inquérito preliminar do processo de infracção. Se assim não fosse, pessoas detentoras desse interesse legítimo ver‑se‑iam impedidas de exercer no decurso do processo os direitos processuais inerentes à qualidade de demandante ou de denunciante.

Os referidos regulamentos estabeleceram uma graduação, consoante a intensidade da lesão dos seus interesses, na participação num processo de infracção de pessoas singulares ou colectivas diferentes das empresas contra as quais a Comissão formulou acusações. Esses regulamentos distinguem, nesta matéria, entre, em primeiro lugar, o «requerente ou denunciante que demonstre um interesse legítimo», a quem a Comissão envia uma cópia da versão não confidencial das acusações quando formula acusações relativas a uma questão cuja apreciação lhe foi submetida pelo requerimento ou pela denúncia em causa (artigo 3.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 17 e artigos 6.° a 8.° do Regulamento n.° 2842/98); em segundo lugar, os «terceiros que invoquem um interesse relevante», que, se pedirem para ser ouvidos, têm direito a que a Comissão os informe por escrito da natureza e do objecto do processo, bem como a expressar o seu ponto de vista por escrito (artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 e artigo 9.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 2842/98); em terceiro lugar, os «outros terceiros», a quem a Comissão pode dar a oportunidade de expressar oralmente o seu ponto de vista (artigo 9.°, n.° 3, do Regulamento n.° 2842/98).

Qualquer demandante ou denunciante que tenha invocado um interesse legítimo tem, portanto, o direito de receber uma versão não confidencial da comunicação de acusações. Relativamente aos terceiros que justifiquem um interesse suficiente, não se pode excluir que a Comissão, se as circunstâncias do caso concreto o justificarem, possa, sem que no entanto seja obrigada a fazê‑lo, transmitir‑lhes uma versão não confidencial da comunicação de acusações, para que esses terceiros possam fazer‑lhe chegar utilmente as suas observações sobre as alegadas infracções que constituem o objecto do processo em causa. Para além destes dois casos, não está previsto, no âmbito dos Regulamentos n.° 17 e n.° 2842/98, que a Comissão transmita a comunicação de acusações a pessoas singulares ou colectivas diferentes das empresas contra as quais as acusações foram formuladas.

(cf. n.os 91, 106‑108)

5.      Um cliente final adquirente de bens ou de serviços pode preencher a condição relativa ao interesse legítimo na acepção do artigo 3.° do Regulamento n.° 17. Com efeito, um cliente final que demonstre que os seus interesses económicos foram ou podem vir a ser lesados devido à restrição da concorrência em causa tem um interesse legítimo na acepção do artigo 3.° do Regulamento n.° 17 para apresentar um requerimento ou uma denúncia destinados a que a Comissão declare a existência de uma infracção aos artigos 81.° CE e 82.° CE.

O reconhecimento da qualidade de requerente ou de denunciante de um cliente final depende, portanto, da possibilidade de este sofrer um prejuízo económico devido às práticas em causa, e não da sua participação em cada um dos mercados de produtos objecto do inquérito da Comissão.

A este respeito, as normas que se destinam a garantir que a concorrência não seja falseada no mercado interno têm por finalidade última aumentar o bem‑estar do consumidor. Em particular, essa finalidade resulta dos termos do artigo 81.° CE. Com efeito, embora a proibição estabelecida no n.° 1 dessa disposição possa ser declarada inaplicável a acordos que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos em causa ou a promover o progresso técnico ou económico, essa possibilidade, prevista no artigo 81.°, n.° 3, CE, depende, nomeadamente, da condição de que uma parte equitativa do lucro daí resultante seja reservada aos utilizadores dos referidos produtos. O direito e a política da concorrência têm, assim, um impacto inegável nos interesses económicos concretos de clientes finais adquirentes de bens ou de serviços. Ora, o reconhecimento a esses clientes – que aleguem que sofreram um prejuízo económico devido a um contrato ou a uma actuação susceptível de restringir ou falsear a concorrência – de um interesse legítimo em que a Comissão declare a existência de uma infracção aos artigos 81.° CE e 82.° CE contribui para a concretização dos objectivos do direito da concorrência.

Esta apreciação não equivale a esvaziar o conceito de interesse legítimo da sua substância, dando‑lhe um sentido excessivamente amplo, nem abre o caminho para uma suposta «acção popular». Com efeito, admitir que um consumidor em condições de demonstrar uma lesão aos seus interesses económicos resultante de um acordo que denuncia possa, a esse título, ter um interesse legítimo na acepção do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17, não equivale a considerar que todas as pessoas singulares ou colectivas são titulares de tal interesse.

Do mesmo modo, as objecções relativas à multiplicação das denúncias e das dificuldades dos procedimentos administrativos que decorreriam do reconhecimento da qualidade de requerente ou de denunciante a clientes finais não podem ser validamente invocadas para limitar o reconhecimento de um interesse legítimo a um cliente final que demonstre ter sido economicamente lesado pela prática anticoncorrencial que denunciou.

Uma vez que o terceiro requerente ou denunciante deve invocar a existência de um interesse legítimo da sua parte em que seja declarada a existência de uma infracção às disposições do artigo 81.° CE ou do artigo 82.° CE, a Comissão está, por conseguinte, sujeita a uma obrigação de verificação do preenchimento desse requisito pelo terceiro.

Por último, quando o requerente demonstre um interesse legítimo válido, a Comissão não pode ser obrigada a verificar a possível existência de outras motivações por parte desse requerente.

(cf. n.os 114‑118, 124, 131)

6.      Os Regulamentos n.° 17 e n.° 2842/98, relativo às audições dos interessados directos em certos processos, nos termos dos artigos [81.° CE] e [82.° CE], não prevêem um prazo específico para um terceiro requerente ou denunciante que justifique um interesse legítimo exercer o seu direito de receber as acusações e a ser ouvido no âmbito de um processo de infracção. Além disso, a Decisão 2001/462, relativa às funções do auditor em determinados processos de concorrência, permite ouvir o requerente ou o denunciante em qualquer fase do processo, referindo expressamente, no artigo 12.°, n.° 4, que, tendo em conta a necessidade de assegurar a observância do direito de ser ouvido, o auditor pode «dar às pessoas, associações de pessoas, empresas ou associações de empresas a oportunidade de apresentarem outras observações por escrito após a audição oral». Por conseguinte, o direito de um requerente ou de um denunciante à transmissão das acusações e a ser ouvido no âmbito do procedimento administrativo de declaração da existência de uma infracção aos artigos 81.° CE e 82.° CE pode ser exercido até ao encerramento do processo.

Além disso, o artigo 10.°, n.° 3, do Regulamento n.° 17 dispõe que o Comité Consultivo em matéria de Acordos e Posições Dominantes é consultado antes de ser tomada qualquer decisão consecutiva a um processo de declaração da existência de infracções aos artigos 81.° CE e 82.° CE. Ora, tal consulta constitui a última fase do processo antes da adopção da decisão. Assim, enquanto o Comité Consultivo em matéria de Acordos e Posições Dominantes não tiver dado o parecer previsto no artigo 10.°, n.° 6, do Regulamento n.° 17 sobre o anteprojecto de decisão transmitido pela Comissão, o direito do requerente ou do denunciante de receber as acusações e de ser ouvido não se pode considerar precludido. Com efeito, enquanto o Comité Consultivo não tiver dado o seu parecer, nada impede que a Comissão possa examinar as observações dos terceiros partes no processo e possa ainda alterar, à luz dessas observações, a sua posição.

(cf. n.os 148‑149)

7.      A Comissão não é obrigada a limitar, com base em simples suspeitas relativas a uma eventual utilização abusiva das acusações, o direito à transmissão das comunicações de acusações previsto no artigo 7.° do Regulamento n.° 2842/98, relativo às audições dos interessados directos em certos processos, nos termos dos artigos [81.° CE] e [82.° CE], a favor de um terceiro requerente que demonstre validamente um interesse legítimo.

(cf. n.° 189)

8.      A comunicação da Comissão relativa às regras de procedimento interno para o tratamento dos pedidos de consulta do processo nos casos de aplicação dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado CE, dos artigos 65.° e 66.° do Tratado CECA e do Regulamento n.° 4064/89 do Conselho não consagra um direito absoluto à confidencialidade dos documentos que fazem parte do património de uma empresa e em relação aos quais esta pede a não divulgação a terceiros.

(cf. n.° 213)