Language of document : ECLI:EU:C:2022:19

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

13 de janeiro de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Política social — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 31.o, n.o 2 — Diretiva 2003/88/CE — Gestão do tempo de trabalho — Artigo 7.o — Férias anuais — Tempo de trabalho — Horas extraordinárias — Cálculo do tempo de trabalho numa base mensal — Inexistência de suplemento por horas extraordinárias em caso de férias»

No processo C‑514/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha), por Decisão de 17 de junho de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de outubro de 2020, no processo

DS

contra

Koch Personaldienstleistungen GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: I. Ziemele (relatora), presidente da Sexta Secção, exercendo funções de presidente da Sétima Secção, T. von Danwitz e A. Kumin, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de DS, por R. Buschmann,

–        em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e D. Recchia, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 31.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e do artigo 7.o da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe DS à Koch Personaldienstleistungen GmbH (a seguir «Koch») a respeito da tomada em consideração dos dias de férias anuais remuneradas no cálculo do volume das horas trabalhadas que dão direito a um suplemento por horas extraordinárias.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos dos considerandos 4 e 5 da Diretiva 2003/88:

«(4)      A melhoria da segurança, da higiene e de saúde dos trabalhadores no trabalho constitui um objetivo que não se pode subordinar a considerações de ordem puramente económica.

(5)      Todos os trabalhadores devem beneficiar de períodos de descanso suficientes. […]»

4        O artigo 7.o desta diretiva, sob a epígrafe «Férias anuais», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas nas legislações e/ou práticas nacionais.

2.      O período mínimo de férias anuais remuneradas não pode ser substituído por retribuição financeira, exceto nos casos de cessação da relação de trabalho.»

 Direito alemão

5        O Manteltarifvertrag für Zeitarbeit (Convenção Coletiva Geral sobre o Trabalho Temporário), na sua versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «MTV»), contém, no seu ponto 3.1, relativo ao «tempo de trabalho», as passagens seguintes:

«3.1.1.      O tempo normal de trabalho mensal de um trabalhador a tempo inteiro é de 151,67 horas. […]

3.1.2.      O tempo de trabalho individual mensal normal é determinado em função do número de dias de trabalho.

O tempo de trabalho mensal é:

[…]

–        de 161 horas num mês com 23 dias úteis.

[…]»

6        O ponto 4.1.2 do MTV prevê:

«Os suplementos por horas extraordinárias são pagos pelas horas cumpridas para além de:

[…]

–        184 horas por 23 dias úteis.

O suplemento por horas extraordinárias é de 25 %.»

 Facto do litígio no processo principal e questão prejudicial

7        No mês de agosto de 2017, que contou 23 dias úteis, DS, empregado pela Koch como trabalhador temporário a tempo inteiro, trabalhou 121,75 horas durante os primeiros 13 dias, tendo depois gozado, nos 10 dias restantes, férias anuais remuneradas, correspondentes a 84,7 horas de trabalho.

8        Considerando que se deviam ter em conta dias de férias anuais remuneradas para determinar o número de horas trabalhadas, DS intentou uma ação nos órgãos jurisdicionais alemães destinada a obter a condenação da Koch a pagar‑lhe um suplemento de 25 % por 22,45 horas, ou seja, 72,32 euros, correspondente ao volume horário das horas trabalhadas que ultrapassava o limiar de 184 horas.

9        Tendo a sua ação sido julgada improcedente em primeira instância e em sede de recurso, DS interpôs recurso de «Revision» no órgão jurisdicional de reenvio.

10      O Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha) salienta que, por força da redação do ponto 4.1.2 do MTV, só as horas trabalhadas podem ser contabilizadas para determinar se o trabalhador ultrapassou o limite do contingente horário do tempo de trabalho mensal normal. Com efeito, os termos «horas cumpridas» remetem para o conceito de horas de trabalho realmente prestadas, com exclusão dos períodos de férias.

11      Além disso, o objetivo do suplemento por horas extraordinárias reside, por força do MTV, na compensação de um volume de trabalho específico que não se produz durante o gozo das férias anuais remuneradas, pelo que o suplemento visa recompensar o trabalhador que efetua um trabalho para além das suas obrigações contratuais. Assim, o referido suplemento é um direito que se adquire pelo trabalho, sem que possam ser tomados em consideração os períodos de férias.

12      O referido órgão jurisdicional indica, além disso, que os suplementos por horas extraordinárias poderiam igualmente incitar as entidades patronais a não interferirem no tempo de lazer dos trabalhadores, criando essa ingerência um custo adicional de 25 % do salário horário contratualmente definido.

13      Todavia, o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal) observa que as disposições do MTV podem encorajar os trabalhadores a não gozarem o período mínimo de férias anuais remuneradas. No caso em apreço, se DS tivesse trabalhado durante as horas correspondentes às férias anuais remuneradas que gozou, teria ultrapassado em 22,45 horas o contingente horário normal de trabalho e teria tido direito, por essas horas, ao suplemento de 25 %.

14      Assim, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade do sistema instituído pelo MTV, na medida em que este implica in fine uma amputação do direito ao suplemento pelas horas extraordinárias, com a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual os trabalhadores não podem ser dissuadidos de exercer o seu direito ao período mínimo de férias anuais pagas.

15      A este respeito, esse órgão jurisdicional considera que o processo principal é relativamente semelhante ao processo que deu origem ao Acórdão de 22 de maio de 2014, Lock (C‑539/12, EU:C:2014:351), na medida em que, em ambos os casos, a desvantagem financeira não diz respeito à retribuição de férias remuneradas propriamente dita, mas produz‑se no decurso de um período anterior ou posterior às férias.

16      O órgão jurisdicional de reenvio recorda igualmente que, no Acórdão de 13 de dezembro de 2018, Hein (C‑385/17, EU:C:2018:1018, n.o 47), o Tribunal de Justiça declarou que, quando as obrigações decorrentes do contrato de trabalho exigem que o trabalhador cumpra horas extraordinárias que tenham um caráter em larga medida previsível e habitual, e cuja remuneração constitua um elemento importante da remuneração total, a remuneração por essas horas extraordinárias deve ser incluída na remuneração devida durante o período de férias.

17      Ora, se a jurisprudência que emana do referido acórdão for transposta para o processo principal, tendo em conta o facto de que, neste, as horas extraordinárias parecem apresentar caráter excecional e imprevisível, não há que incluir na remuneração paga durante as férias anuais remuneradas o montante dos suplementos devidos a título das horas extraordinárias cumpridas. Por conseguinte, é lógico que os dias de férias não sejam tidos em conta na determinação do volume horário que dá direito ao suplemento por horas extraordinárias.

18      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que as convenções coletivas não podem derrogar o artigo 1.o do Mindesturlaubsgesetz für Arbeitnehmer (Bundesurlaubsgesetz) [Lei Relativa ao Período Mínimo de Férias para os Trabalhadores (Lei Federal Relativa às Férias)], segundo o qual todos os trabalhadores têm direito a férias por cada ano civil, e que deve ser interpretado em conformidade com o direito da União, à luz do artigo 31.o, n.o 2, da Carta e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88.

19      Nestas condições, o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 31.o, n.o 2, da [Carta] e o artigo 7.o da Diretiva [2003/88] opõem‑se a uma regulamentação constante de uma convenção coletiva que, para calcular se um trabalhador tem direito a complementos remuneratórios por trabalho suplementar (horas extraordinárias) e em relação a quantas horas, apenas tem em conta as horas efetivamente trabalhadas e não as horas durante as quais o trabalhador goza do seu período mínimo de férias anuais remuneradas?»

 Quanto à questão prejudicial

20      Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 31.o, n.o 2, da Carta e o artigo 7.o da Diretiva 2003/88 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição de uma convenção coletiva por força da qual, para determinar se o limiar das horas trabalhadas que dão direito a suplemento por horas extraordinárias é atingido, as horas correspondentes ao período de férias anuais remuneradas gozadas pelo trabalhador não são tidas em conta como horas de trabalho cumpridas.

21      Em primeiro lugar, importa recordar que, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88, «os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas».

22      Embora caiba, ao abrigo desta disposição, aos Estados‑Membros definir as condições de exercício e de execução do direito a férias anuais remuneradas, estes devem abster‑se de sujeitar a qualquer condição a própria constituição do referido direito, que resulta diretamente desta diretiva (Acórdão de 29 de novembro de 2017, King, C‑214/16, EU:C:2017:914, n.o 34 e jurisprudência referida).

23      Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça declarou, no que respeita ao artigo 7.o da Diretiva 2003/88, que o direito a férias anuais remuneradas de cada trabalhador deve ser considerado um princípio do direito social da União que, revestindo especial importância, não pode ser derrogado e cuja aplicação pelas autoridades nacionais competentes só pode ser efetuada dentro dos limites expressamente previstos por esta diretiva (Acórdão de 6 de novembro de 2018, Kreuziger, C‑619/16, EU:C:2018:872, n.o 28 e jurisprudência referida).

24      Por outro lado, o direito a férias anuais remuneradas reveste, na sua qualidade de princípio do direito social da União, não só uma importância especial, como está igualmente expressamente consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta, à qual o artigo 6.o, n.o 1, TUE reconhece o mesmo valor jurídico que os Tratados (Acórdão de 25 de junho de 2020, Varhoven kasatsionen sad na Republika Bulgaria e Iccrea Banca SpA, C‑762/18 e C‑37/19, EU:C:2020:504, n.o 54 e jurisprudência referida).

25      Assim, o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 reflete e precisa o direito fundamental a um período anual de férias remuneradas, consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 115). Com efeito, enquanto esta última disposição garante o direito de qualquer trabalhador a um período anual de férias remuneradas, a primeira disposição aplica esse princípio ao fixar a duração do referido período.

26      A este propósito, há que recordar que o respeito da Carta se impõe, como resulta do seu artigo 51.o, n.o 1, quando os Estados‑Membros aplicam o direito da União.

27      Uma vez que a regulamentação em causa no processo principal constitui essa aplicação da Diretiva 2003/88, é, pois, à luz do artigo 31.o, n.o 2, da Carta que há que interpretar o artigo 7.o, n.o 1, da referida diretiva a fim de determinar se esta disposição se opõe a tal regulamentação.

28      Em terceiro lugar, no que respeita à finalidade da Diretiva 2003/88, há que recordar que, segundo o seu considerando 4, esta tem por objetivo a melhoria da segurança, da higiene e da saúde dos trabalhadores no trabalho. Quanto ao considerando 5 desta diretiva, este precisa que os trabalhadores devem beneficiar de períodos de descanso suficientes.

29      Neste contexto, o artigo 1.o da Diretiva 2003/88 prevê que esta última fixa prescrições mínimas de segurança e de saúde em matéria de organização do tempo de trabalho no que respeita, em especial, aos períodos mínimos de férias anuais.

30      Tendo em conta estes objetivos, o Tribunal de Justiça declarou que o direito a férias anuais, consagrado no artigo 7.o da Diretiva 2003/88, tem uma dupla finalidade, a saber, permitir ao trabalhador descansar da execução das tarefas que lhe incumbem nos termos do seu contrato de trabalho, por um lado, e dispor de um período de descontração e de lazer, por outro (Acórdão de 25 de junho de 2020, Varhoven kasatsionen sad na Republika Bulgaria e Iccrea Banca SpA, C‑762/18 e C‑37/19, EU:C:2020:504, n.o 57 e jurisprudência referida).

31      Com efeito, é tendo em vista a proteção eficaz da sua segurança e da sua saúde que o trabalhador deve normalmente poder beneficiar de um descanso efetivo (v., neste sentido, Acórdão de 20 de janeiro de 2009, Schultz‑Hoff e o., C‑350/06 e C‑520/06, EU:C:2009:18, n.o 23).

32      Daqui resulta que os incentivos no sentido de renunciar às férias de descanso ou de levar os trabalhadores a renunciarem às férias são incompatíveis com os objetivos do direito a férias anuais remuneradas, tendo em conta, designadamente, a necessidade de garantir ao trabalhador o benefício de um descanso efetivo, em vista de uma proteção eficaz da sua segurança e da sua saúde. Assim, qualquer prática ou omissão de um empregador que tenha um efeito potencialmente dissuasivo sobre o gozo das férias anuais por um trabalhador é igualmente incompatível com a finalidade do direito a férias anuais remuneradas (Acórdão de 6 de novembro de 2018, Kreuziger, C‑619/16, EU:C:2018:872, n.o 49 e jurisprudência referida).

33      Foi por esta razão que foi declarado que a obtenção da remuneração normal durante o período de férias anuais remuneradas visa permitir ao trabalhador gozar efetivamente os dias de férias a que tem direito. Ora, quando a remuneração paga a título do direito a férias anuais remuneradas previsto no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 é inferior à remuneração normal que o trabalhador recebe durante os períodos de trabalho efetivo, este corre o risco de ser incitado a não gozar as suas férias anuais remuneradas, pelo menos durante os períodos desse trabalho, na medida em que isso conduziria, durante esses períodos, a uma diminuição da sua remuneração (Acórdão de 13 de dezembro de 2018, Hein, C‑385/17, EU:C:2018:1018, n.o 44 e jurisprudência referida).

34      De igual modo, o Tribunal de Justiça declarou que um trabalhador podia ser dissuadido de exercer o seu direito às férias anuais remuneradas tendo em conta uma desvantagem financeira, ainda que esta se produza de maneira diferida, a saber, durante o período que se segue ao das férias anuais (v., neste sentido, Acórdão de 22 de maio de 2014, Lock, C‑539/12, EU:C:2014:351, n.o 21).

35      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio parece considerar que o ponto 4.1.2 do MTV pode ser suscetível de dissuadir um trabalhador de exercer o seu direito a férias anuais remuneradas, na medida em que este ponto prevê que apenas as horas trabalhadas podem, para efeitos do eventual benefício de uma majoração por horas extraordinárias, ser contabilizadas para determinar se o trabalhador ultrapassou o limite do contingente horário do tempo de trabalho mensal normal.

36      A este respeito, resulta da decisão de reenvio que o recorrente no processo principal trabalhou 121,75 horas durante os primeiros 13 dias úteis do mês de agosto de 2017, tendo depois gozado férias anuais durante os 10 dias úteis restantes desse mês. Ora, se tivesse trabalhado durante estes últimos 10 dias, teria cumprido 84,7 horas de trabalho além das 121,75 horas, pelo que, sem prejuízo das verificações que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, o volume de horas trabalhadas no referido mês teria sido de 206,45 e teria ultrapassado em 22,45 horas o limiar do número de horas trabalhadas que davam direito a suplemento por horas extraordinárias.

37      Todavia, uma vez que, em conformidade com o ponto 4.1.2. do MTV, a unidade de referência para fixar o limite do volume horário tomado em consideração para um complemento por horas extraordinárias é definido mensalmente, o facto de o recorrente no processo principal ter gozado dias de férias anuais no mês em que efetuou horas extraordinárias teve por efeito, por aplicação desse ponto 4.1.2, que o limite mensal de 184 horas não foi atingido.

38      Nestas condições, o exercício pelo recorrente no processo principal do seu direito a férias teve por efeito que a remuneração auferida relativamente ao mês de agosto de 2017 foi inferior à que teria recebido se não tivesse gozado férias durante esse mês.

39      Do mesmo modo, na hipótese de um trabalhador gozar férias no início um mês, a aplicação da convenção coletiva em causa no processo principal pode igualmente ter como consequência uma redução da remuneração relativa a esse mês, uma vez que as horas extraordinárias cumpridas, se for caso disso, por esse trabalhador na sequência das férias seriam suscetíveis de ser neutralizadas pelos dias de férias gozados no início do mês. Ora, como foi recordado no n.o 34 do presente acórdão, uma desvantagem financeira, ainda que esta se produza de maneira diferida, a saber, durante o período que se segue ao das férias anuais, pode dissuadir o trabalhador de exercer o seu direito às férias anuais (v., neste sentido, Acórdão de 22 de maio de 2014, Lock, C‑539/12, EU:C:2014:351, n.o 21).

40      Por conseguinte, um mecanismo de contabilização das horas trabalhadas, como o que está em causa no processo principal, nos termos do qual o gozo de férias pode implicar uma redução da remuneração do trabalhador, uma vez que esta é amputada do suplemento previsto para as horas extraordinárias efetivamente cumpridas, é suscetível de dissuadir o trabalhador de exercer o seu direito a férias anuais remuneradas durante o mês em que cumpriu horas extraordinárias, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar no caso do processo principal.

41      Ora, como foi recordado no n.o 32 do presente acórdão, qualquer prática ou omissão de um empregador que tenha um efeito potencialmente dissuasivo sobre o gozo das férias anuais por parte de um trabalhador é incompatível com a finalidade do direito a férias anuais remuneradas.

42      Esta conclusão não pode ser posta em causa pela circunstância, salientada pelo órgão jurisdicional de reenvio, de a aquisição do direito a suplemento por horas extraordinárias estar ligada, por força do ponto 4.1.2. do MTV, às horas de trabalho efetivamente «prestadas». Com efeito, sem prejuízo das verificações que cabe a este órgão jurisdicional efetuar a este respeito, quando é pacífico que o recorrente no processo principal efetuou horas extraordinárias às quais devia ser aplicado um suplemento de 25 %, o direito a suplemento por horas extraordinárias foi neutralizado pelo facto de a unidade de referência para fixar o limiar do volume horário tido em conta para esse suplemento ser definida mensalmente e de o recorrente ter exercido o seu direito a férias anuais remuneradas durante o mês em que fez as horas extraordinárias.

43      Por outro lado, no processo que deu origem ao Acórdão de 13 de dezembro de 2018, Hein (C‑385/17, EU:C:2018:1018, n.o 47), como o órgão jurisdicional de reenvio salientou, o Tribunal de Justiça abordou a questão da necessidade de ter em conta as horas extraordinárias cumpridas por um trabalhador para o cálculo da remuneração normal devida a título das férias anuais remuneradas previstas no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 e, assim, as condições de tomada em consideração dessas horas extraordinárias para determinar essa remuneração ordinária, a fim de que o trabalhador goze, quando dessas férias, de condições económicas comparáveis àquelas de que beneficia quando do exercício do seu trabalho.

44      Ora, esta questão deve ser distinguida da relativa ao limiar de desencadeamento do pagamento do suplemento das horas extraordinárias efetivamente cumpridas pelo trabalhador num dado período mensal, como o que está em causa no presente processo, pelo que as condições estabelecidas pelo Tribunal de Justiça no n.o 47 desse acórdão no que respeita à remuneração ordinária a título das férias anuais remuneradas não são pertinentes no caso em apreço.

45      Por conseguinte, um mecanismo de contabilização das horas trabalhadas como o que está em causa no processo principal não é compatível com o direito a férias anuais remuneradas, previsto no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88.

46      Resulta de todas as considerações precedentes que o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88, lido à luz do artigo 31.o, n.o 2, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição de uma convenção coletiva por força da qual, para determinar se o limiar das horas trabalhadas que dão direito a suplemento por horas extraordinárias é atingido, as horas correspondentes ao período de férias anuais remuneradas gozadas pelo trabalhador não são tidas em conta como horas de trabalho cumpridas.

 Quanto às despesas

47      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

O artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, lido à luz do artigo 31.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição de uma convenção coletiva por força da qual, para determinar se o limiar das horas trabalhadas que dão direito a suplemento por horas extraordinárias é atingido, as horas correspondentes ao período de férias anuais remuneradas gozadas pelo trabalhador não são tidas em conta como horas de trabalho cumpridas.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.